OFICINA DE TRADUÇÃO FRANCÊS-PORTUGUÊS Estudo comparativo de quatro traduções de um mesmo texto

August 11, 2017 | Autor: Angela Correa | Categoria: Translation Studies, Empirical Research
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Referência bibliográfica: CORRÊA, Angela Maria da Silva. Oficina de tradução francês português: estudo comparativo de quatro traduções de um mesmo texto. Estudos Neolatinos; Pesquisa e ensino. Rio de Janeiro, Fac. de Letras da UFRJ, v.1, n.1, 1996. p.290299. (Publicação com os trabalhos apresentados na 2ª Semana de Estudos Neolatinos do dep. de Letras Neolatinas da Fac. de Letras da UFRJ)

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OFICINA DE TRADUÇÃO FRANCÊS-PORTUGUÊS Estudo comparativo de quatro traduções de um mesmo texto Angela Maria da Silva Corrêa UFRJ Introdução Postulamos, na aula anterior, que o ato tradutório implica um Contrato de fidelidade, segundo o qual se espera que o TLT seja uma “reprodução” do TLO. Refletindo a respeito desta expectativa, verifica-se que se trata de uma ilusão, visto que a tradução é um processo irredutível a uma simples transcodificação1 de um texto de uma língua para outra. Numa visão um pouco menos ingênua, mas ainda idealizada, espera-se que, embora não seja uma “reprodução”, o TLT tenha o “mesmo sentido” que o TLO. Entretanto, como os sentidos (e não “o” sentido) do TLO não lhe são inerentes, mas atribuídos por cada um de seus leitores, não se pode afirmar que uma determinada leitura individual seja a única possível ou a única aceitável — o que terá como conseqüência que nenhuma tradução será a única possível ou a única aceitável. Procura-se então, na tentativa de cumprir o Contrato de fidelidade, estabelecer princípios interpretativos que levem em conta as pistas lingüísticas, discursivas e textuais do TLO, num confronto com os saberes disponíveis num determinado momento histórico e num determinado ambiente socio-cultural, para, em seguida, produzir um TLT cujos componentes apresentem a seus leitores pistas interpretativas socio-historico-cultural e esteticamente equivalentes — segundo os conhecimentos disponíveis — àquelas que foram identificadas no TLO. Asim, a proposta desta aula, no âmbito da Oficina oferecida durante a Primeira Semana de Letras Neolatinas, foi a de levar os participantes a produzirem uma tradução — experiência que lhes permitiu tomar consciência de que não há uma tradução correta, mas que várias propostas são igualmente aceitáveis. Por outro lado, foram levados a distinguir as características das traduções que devem ser descartadas, seja por apresentarem inadequações aos usos lingüísticos da LT, em sua estruturação textual ou discursiva, seja por se afastarem excessivamente do contrato de fidelidade ao TLO. O texto escolhido para a experiência foi o último parágrafo do primeiro capítulo do romance Kamouraska, da escritora quebequense Anne Hébert (1916*)2, e o fiz por uma razão prática: disponho de traduções do primeiro capítulo deste romance feitas por alunos do oitavo período de Francês da Graduação da Faculdade de Letras do ano de 1990. Pretendia, num segundo momento da aula, confrontá-las com as traduções que o público presente produzisse, além de confrontá-las com o mesmo trecho da tradução publicada em 19713 e com a tradução que eu mesma apresentei em minha tese de Doutorado.4 290

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Aqui, estabelecerei o confronto entre as quatro diferentes traduções de que disponho, além de dar conta da receptividade de cada uma delas pelo público presente. Doravante passarei a denominá-las de Versão 1 (V-1), Versão 2 (V-2), Versão 3 (V-3) e Versão 4 (V-4). Por ora, revelo apenas que a V-4 foi a que eu mesma havia proposto como alternativa em minha tese, tendo sido utilizada na oficina como alvo de críticas tanto quanto as demais. Na análise que efetuo a seguir, dividirei o trecho em seqüências, e analisarei aquelas que apresentaram dificuldades ou divergências significativas. O texto e suas quatro traduções O romance Kamouraska é ambientado na província do Quebec, no Canadá, entre a cidadezinha de Sorel, à beira do rio São Lourenço, a localidade de Kamouraska, no litoral do Atlântico, e as cidades de Quebec e Montreal — apresentando ainda referências às planícies que separam Sorel de Kamouraska. Trata da história de uma mulher, Elisabeth d’Aulnières, levada a julgamento em meados do século XIX, sob a acusação de ter sido cúmplice da morte do marido. O romance apresenta pouquíssimos vocábulos e construções característicos do francês canadense. Inicialmente narrado em terceira pessoa, passa sem aviso para o ponto de vista da personagem principal, já casada pela segunda vez, e às vésperas de ficar viúva novamente. Tais circunstâncias são evocadas logo no primeiro capítulo, sendo portanto necessário conhecê-las para o entendimento do trecho selecionado — que será transcrito a seguir. As versões estão transcritas integralmente em anexo. Trecho do TLO: [...] Bientôt je serai libre à nouveau. Redevenir veuve. Je voudrais déjà être couverte de crêpe fin et de voiles de qualité. Le noir bon marché ça verdit facilement. Essuyer mes yeux secs, flâner dans une ville inconnue, immense, sans fin, pleine d'hommes. Toutes voiles battantes. Sur la haute mer. La grande ville est comme la mer hautaine et folle. Partir, à la recherche de l'unique douceur de mon coeur. Amour perdu. Toute cette marmaille à porter et à mettre au monde, à élever au sein, à sevrer. Occupation de mes jours et de mes nuits. Cela me tue et me fait vivre tout à la fois. Je suis occupée à plein temps. Onze maternités en vingt-deux ans. Terre aveugle, tant de sang et de lait, de placenta en galettes brisées. Pauvre Elisabeth, prodigue Elisabeth. Mon petit Nicolas, fils unique de l'amour. Le sacrifice célébré sur la neige. Dans l'anse de Kamouraska gelée comme un champ sec et poudreux. L'amour meurtrier. L'amour infâme. L'amour funeste. Amour. Amour. Unique vie de ce monde. La folie de l'amour. Je vous en prie dites-moi l'état de votre santé et celle du pauvre petit enfant. Sa dernière lettre interceptée par les juges. 5

Seqüência 1: TLO: Bientôt je serai libre à nouveau. Redevenir veuve. 291

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V-1: Em breve estarei livre de novo. Voltar a ser viúva. V-2: Dentro em breve estarei novamente livre. Tornar-me-ei viúva. V-3: Em breve estarei livre de novo. Ficar viúva novamente. V-4: Logo ficarei livre novamente. Voltar a ser viúva.

Das quatro versões, V-2 foi a que suscitou maiores reações contrárias quanto à fidelidade ao TLO: no segundo enunciado, a mesóclise não corresponde ao registro informal utilizado no TLO; o infinitivo, tanto em francês quanto em português, marca uma referência ao processo em si, independente de qualquer especificação temporal, o que foi eliminado com a utilização do futuro; o verbo “redevenir”, em seu prefixo “re-”, inclui o traço semântico de repetição, que também foi eliminado no TLT. Entretanto, o que mais chamou a atenção foi o fato de que “tornar-se”, em português, refere-se a uma mudança de estado progressiva que não condiz com a subitaneidade da passagem do estado de “casada” a “viúva”. As demais versões foram consideradas traduções fiéis, embora tenham provocado diferentes reações. A V-3 foi criticada por apresentar a repetição do mesmo radical, na locução adverbial e no advérbio da primeira e da segunda frases. Sobre a V-4, observei que o uso do verbo “ficar”, apesar de ser perfeitamente correspondente ao TLO do ponto de vista lingüístico, foi inadequado: parece-me que a personagem não está se referindo propriamente à mudança de estado, mas sim antecipando o estado de viuvez. Quanto à segunda frase, ao retomá-la para esta análise, pensei numa solução melhor: “Viúva outra vez” — que me parece combinar, fônica e ritmicamente com a primeira desta seqüência em qualquer das versões. A locução adverbial “outra vez” conserva o traço semântico de repetição e o verbo de ligação ficou elíptico, podendo ser facilmente recuperado pelo leitor. Seqüência 2: TLO: Je voudrais déjà être couverte de crêpe fin et de voiles de qualité. V-1: Eu gostaria de já estar coberta de crepe fino e de véus de qualidade. V-2: Gostaria de já estar coberta de crepe fino e de véus finíssimos. V-3: Gostaria de me cobrir já de seda fina e de véus de qualidade. V-4: Gostaria de já estar coberta de crepe fino e de véus de boa qualidade.

As versões V-2 e V-3 foram criticadas por não serem fiéis ao TLO. V-3 pelo fato de que, omitindo a referência ao “crepe”, omite a referência ao luto, necessária à composição da imagem da viúva, característica da época em que se desenrola a ação do romance. E V-2, por apresentar a repetição “fino”- “finíssimos”, ausente do TLO e estilisticamente criticável. Seqüência 3: TLO: Le noir bon marché ça verdit facilement. V-1: O preto barato esverdeia facilmente. V-2: O preto barato desbota facilmente. 292

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V-3: O preto, quando barato, esverdece facilmente. V-4: O preto barato desbota logo.

Verifica-se que duas versões (V-1 e V-3) apresentam uma tradução praticamente ao pé da letra, comprometendo o TLT ao traduzir literalmente o verbo “verdir” do francês (sendo que “esverdecer” é uma “criação” do tradutor, pois não consta do dicionário). Para manter uma proximidade maior com o TLO, talvez o emprego do adjetivo “esverdeado” fosse mais satisfatório, pois respeitaria o registro informal da narradora e não soaria artificial: “O preto barato fica logo esverdeado” — embora as duas outras versões tenham sido consideradas perfeitamente aceitáveis tanto do ponto de vista do Contrato de fidelidade quanto do ponto de vista da adequação aos usos da LT. Seqüência 4: TLO: Essuyer mes yeux secs, flâner dans une ville inconnue, immense, sans fin, pleine d’hommes. V-1: Enxugar meus olhos secos, vadiar em uma cidade desconhecida, imensa, sem fim, cheia de homens. V-2: [...] perambular por uma cidade desconhecida, [...]. V-3: [...] perambular por uma cidade desconhecida, [...]. V-4: [...] andar sem rumo numa cidade desconhecida, [...].

Nesta seqüência, a versão mais criticada foi V-1. “Vadiar” foi considerado inadequado porque possui uma conotação pejorativa, não existente em “flâner”. “Vadiar” implicaria a qualificação da personagem como “vadia”, o que está em desacordo com o seu “status” no romance, e mais especificamente, neste primeiro capítulo. Seqüência 5: TLO: Toutes voiles battantes. Sur la haute mer. La grande ville est comme la mer hautaine et folle. Partir, à la recherche de l'unique douceur de mon coeur. Amour perdu. V-1: Todos os véus batendo. Sobre o alto mar. A grande cidade é como o mar alto e louco. Partir, à procura da única doçura do meu coração. Amor perdido. V-2: Todos os véus esvoaçando. Em alto mar. A grande cidade é como o mar altivo e louco. [...] V-3: Os véus ao vento. [...] A cidade grande é como o mar, altiva e louca. [..] V-4: Com os véus batendo como velas. [...] A cidade grande é como o mar alto e revolto. Partir, em busca da única ventura de meu coração. Amor perdido.

A tradução de “toutes voiles battantes” foi identificada como problemática do ponto de vista do Contrato de fidelidade: o jogo com a homonímia de “voile”= “véu” e “voile”= “vela”, em francês, onde “voile” significa ao mesmo tempo “véu” e “vela”, fica prejudicado na tradução para o português. O vocábulo “voile” é 293

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imediatamente associado pelo leitor de língua francesa a várias expressões figuradas em que tal palavra ocorre: “mettre les voiles”— partir; “avoir le vent dans les voiles” — ter sucesso.6 Além dessas particularidades semânticas, a repetição do som [t] nesta frase é onomatopaica do ruído das velas ao vento. Este é um dos casos em que o Contrato de fidelidade adquire uma nova dimensão: como dar conta, no TLT, da “proliferação” de sentidos que a palavra “voile” suscita em TLO? Como produzir uma seqüência textual que também seja fonicamente significante? V-3 e V-4 apresentam soluções diferentes, ambas indicando uma tentativa de aproximar “véus” de “velas”. Relendo todas estas versões, ocorreu-me propor uma outra: “Os véus como velas ao vento”, onde a repetição do som [v] pode funcionar também como onomatopéia do ruído do vento batendo nas velas, e onde se evita a repetição cacofônica “com”- “como”. Além disso, a não-tradução de “toutes” evita o acúmulo de termos predominantemente gramaticais sem relação com o efeito onomatopaico pretendido no TLT. (No TLO “toutes” contribui para a construção dos efeitos onomatopaicos). Quanto à terceira frase da seqüência, todas as versões apresentadas foram consideradas aceitáveis, embora cada uma represente uma visão diferente da comparação entre a cidade grande e o mar: V-1 é uma tradução literal do TLO, adaptando, no entanto, a tradução de “hautaine” às características físicas do mar; V-2 é a mais literal das quatro; V-3 transfere a adjetivação do mar para a cidade, o que foi considerado válido porque são termos de uma comparação, e as características que se atribuírem a um termo transferem-se para o outro; finalmente, V-4, a que mais se afasta do TLO, procura privilegiar as características físicas do mar — que, graças à comparação, também são atribuídas metaforicamente à cidade. Observa-se ainda, em V-1 e V-2, o que se poderia chamar de um excesso de “fidelidade” ao TLO — “grande cidade” é uma seqüência que atualmente é muito utilizada no plural, ao se abordarem os problemas urbanos. No discurso da narradora, o correspondente discursivo mais plausível, em português, seria “cidade grande”. Há ainda em V-1, por influência da forma do TLO, um erro de emprego da preposição “sobre” (preposição que tem um emprego, em português, muito menos vasto do que “sur” do francês). As duas últimas frases da seqüência comportaram traduções diferentes mas consideradas igualmente aceitáveis. Seqüência 6: TLO: Toute cette marmaille à porter et à mettre au monde, à élever au sein, à sevrer. Occupation de mes jours et de mes nuits. Cela me tue et me fait vivre tout à la fois. Je suis occupée à plein temps. Onze maternités en vingt-deux ans. V-1: Toda a petizada para trazer e colocar no mundo, para educar no seio, para desmamar. Ocupação de meus dias e das minhas noites. Isto me mata e me faz viver 294

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ao mesmo tempo. Eu estou ocupada em tempo integral. Onze maternidades em vinte e dois anos. V-2: Todas essas crianças para sustentar e pôr no mundo, para criar ao seio, para desmamar. Ocupação de meus dias e minhas noites. Isso me mata e faz viver ao mesmo tempo. Vivo ocupada o tempo todo. Onze filhos em vinte e dois anos. V-3: Carregar no ventre toda essa pirralhada, dar de mamar e depois desmamar. Ocupação de meus dias e noites. Isso ao mesmo tempo me mata e me faz viver. Fico ocupada o tempo todo. Onze maternidades em vinte e dois anos. V-4: Toda essa filharada para carregar e pôr no mundo, criar no peito, desmamar. Ocupação de meus dias e de minhas noites. Isso me mata e me faz viver ao mesmo tempo. Estou sempre ocupada. Onze maternidades em vinte e dois anos.

Esta seqüência apresentou problemas para os participantes da Oficina: desconheciam o significado de “marmaille”, de “sevrer”, e de “élever au sein”. Vê-se, nas versões apresentadas, como “marmaille” e “élever au sein” também constituíram problemas para seus autores: em V-1 e V-2, a tradução de “marmaille” perde a conotação pejorativa; por outro lado, em V-3, “essa pirralhada”, parece-me pejorativa em excesso; assim, propus a solução de V-4 — “essa filharada” — que mantém a conotação do vocábulo do TLO sem ser tão pejorativa quanto a proposta de V-3. A lexia “élever au sein” foi erradamente traduzida em V-1 e V-2, pois tanto “educar no seio” quanto “criar ao seio” não condizem com o uso convencional da língua portuguesa7, tendo sido consideradas pelos participantes como traduções inaceitáveis. As opções de V-3 e V-4, embora diferentes, foram consideradas aceitáveis. O sentido do verbo “porter”, nesta frase, parece igualmente ter constituído um problema: “porter”, em TLO, é um dos elementos da enumeração das tarefas inerentes à maternidade, e, assim, sua tradução em V-1 e V-2 não é adequada, pois resulta na eliminação de tal enumeração. Em V-1, a seqüência “trazer e colocar no mundo” é um pleonasmo, além de ser estranha ao uso da língua (“colocar no mundo” não é uma expressão convencional da língua portuguesa8). Em V-2, “sustentar” traduzindo “porter” inverte a ordem das tarefas, não sendo portanto fiel ao TLO. Considero V-3 como a melhor solução, pois é efetivamente ao estado de gestação que a narradora se refere através do verbo “porter”. Quanto ao restante desta seqüência, há a assinalar a opção de V-2, onde “onze maternités” foi traduzida por “onze filhos”. Embora não possa ser considerada uma tradução inadequada, parece-me que a opção por “onze maternidades” torna mais explícito todo o processo de gestação e parto, ao qual a narradora faz alusão ainda na frase seguinte, que examinaremos na Seqüência 7.

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Seqüência 7: TLO: Terre aveugle, tant de sang et de lait, de placenta en galettes brisées. Pauvre Elisabeth, prodigue Elisabeth. Mon petit Nicolas, fils unique de l'amour. V-1: Terra cega, tanto sangue e tanto leite, placenta em bolachas quebradas. Pobre Elisabeth, pródiga Elisabeth. Meu pequeno Nicolas, filho único do amor. V-2: Só lembranças desfeitas de uma terra cega, de sangue, leite e placenta. [...] Meu pequeno Nicolas, único filho do amor. V-3: Terra cega, tanto sangue e leite, tanta placenta em bolachas quebradas. [...] V-4: Terra fértil, tanto sangue, leite e placenta em migalhas de biscoitos. [...]

O vocativo “terre aveugle” causou estranheza aos participantes da oficina: não conseguiram identificar a relação entre esse novo referente introduzido no texto e os temas que foram tratados até então, ou seja, a viuvez e as maternidades de Elisabeth. Observando-se V-4, verifica-se que eu também tive dificuldade em interpretar esta seqüência: para mim, “terre aveugle” seria um aposto a “Elisabeth”, e “aveugle” teria um sentido figurado. No entanto, relendo o primeiro capítulo, localizei, à página 8, o seguinte trecho: “C’est ça la terre, la vie de la terre, ma vie à moi. Un jour, c’est entre deux policiers que j’ai dû affronter cette terre maudite.” Vê-se , pois, que “terre aveugle” retoma uma referência anterior, e assim entendese que a tradução adequada é mesmo “terra cega” — que remete o leitor à atitude da personagem com relação à acolhida que a população daquela cidade lhe dispensava. A enumeração que se segue: “tant de sang et de lait, de placenta en galettes brisées” retoma o tema da maternidade, tendo causado dificuldades para os participantes da oficina que não identificaram, de imediato, a relação entre, de um lado, “sang”, “lait”, “placenta” e, de outro, “galettes brisées”, mesmo após terem sido esclarecidos a respeito do significado de “galettes” — no Quebec, designa um tipo de biscoito caseiro, de formato achatado. A estranheza, neste trecho, prende-se inicialmente ao fato de que, na enumeração de substâncias que seriam conseqüências biológicas da maternidade, a referência final a “placenta” opera uma inversão cronológica, criando um efeito descritivo de desordem, confusão — procedimento de que a narradora lançará mão em outras passagens do romance. Em seguida, a referência a “galette” produz um efeito de quebra no encadeamento semântico do texto: qual seria a relação entre “galettes”, de um lado, e “sang”, “lait” e “placenta”, de outro”? A resposta poderá ser encontrada no sexto capítulo, onde o quarto das crianças é assim descrito: “Le désordre de la pièce est indescriptible. Des restes de pain émiettés sur le tapis, une tasse de lait renversée. Un grand cheval de bois couché sur le flanc a l’air de tendre le cou vers la flaque de lait.”9 “Restes de pain émiettés sur le tapis” reatualiza a referência a “galettes brisées”; “tasse de lait renversée” permite uma outra leitura da enumeração do primeiro capítulo: como uma combinação alternada e condensada de “restos” biológicos (“sang”, “lait”, 296

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“placenta”) e restos de alimentos (“lait”, “galettes brisées”). Para o leitor atento, então, a seqüência do sexto capítulo ajuda a recompor a relação construída, no primeiro, entre os “restos biológicos” e os pedaços de biscoitos, restos indiretos, estes, das maternidades de Elisabeth. Observando as quatro versões apresentadas, ocorre-me, atualmente, uma outra: “Terra cega, tanto sangue, leite e placenta em migalhas de biscoitos”. Ainda que, à primeira leitura, tal enunciado pareça não fazer sentido, os efeitos descritivos de desordem e de quebra da seqüenciação semântica são análogos aos do TLO — não sendo pois necessárias mudanças de como as que se observam em V-2 e V-4. Seqüência 8:10 TLO: [...] Je vous en prie dites-moi l'état de votre santé et celle du pauvre petit enfant. Sa dernière lettre interceptée par les juges. V-1: Eu te imploro diga-me o estado de saúde em que você e o garotinho se encontram. Sua última carta interceptada pelos juizes. V-2: Peço que me informe de seu estado de saúde e também do de meu pobre filhinho. Sua última carta que os juizes interceptaram. V-3: Por favor, me diga qual o estado de saúde teu e do garoto. Sua última carta interceptada pelos juizes. V-4: Por favor, diga-me como vai sua saúde e a da pobre criança. Sua última carta interceptada pelos juizes.

Das quatro versões da seqüência acima, V-2 foi a única que causou estranheza nos presentes, por conta da artificialidade da seqüência “do de”. Do ponto de vista sintático tanto quanto do ponto de vista semântico, as demais versões foram consideradas como aceitáveis em português, além de serem fiéis ao TLO. Entretanto, ao compará-las, o público presente indicou V-4 como a mais próxima do uso coloquial da língua portuguesa, conveniente ao tipo de texto reproduzido no romance: um trecho de uma carta familiar (se é que se pode chamá-la assim, pois se trata da carta que o amante de Elisabeth lhe enviara após ter sido preso). Considerações finais Ao longo da análise que empreendemos, servimo-nos de uma série de princípios e de pistas para efetuar nossas críticas e nossas escolhas. Verificamos que as críticas efetuadas prenderam-se aos seguintes fatores: a) Fatores de estruturação gramatical e semântica do TLO independente de sua correspondência com o TLT: — erro de natureza gramatical: seqüência 5, V.1 (emprego de preposição). — artificialidade na construção sintática do TLT: seqüência 9, V. 2.11 — erro de natureza lexical: palavras inventadas na seqüência 3, V- 1 e V-3. 297

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— inadequação semântica do TLO: seqüência 1, V. 2 (quebra da combinatória semântica); seq. 5, V-1 e V-2 (“grande cidade”); seq. 6, V-1 (“educar no seio”) e V-2 (“criar ao seio”) — estas últimas contrárias ao uso convencional do português. b) Fatores que configuram quebra do Contrato de fidelidade: — seqüências do TLT que não correspondem (ou correspondem imperfeitamente), do ponto de vista estritamente semântico, às seqüências do TLO, resultando em perda de “nuances” de sentido e de coesão textual: seqüência 1, V. 2 (cf. uso do futuro); seq. 2, V-3 (cf “seda” em vez de “crepe”); seq. 4, V-1; seq. 6, V-1 e V-2 (cf. tradução de “porter et mettre au monde” e de “élever au sein”); seq. 7, V-2 e V-4 (cf. tradução de “galettes brisées” e de “terre aveugle”, respectivamente). — seqüências do TLT que eliminam efeitos retóricos e discursivos: • na seqüência 2, V-2, produziu-se um efeito de repetição inexistente no TLT;nas seqüências 4, V-1 e seq. 6, V-3 produziu-se um efeito discursivo de atitude pejorativa diferente do TLO (na última seria uma questão de excesso de atitude pejorativa, na tradução de “marmaille”);na seq. 6, V-1 e V-2 eliminam o traço de atitude pejorativa presente em “marmaille” do TLO;ainda na seq. 6, V-1 e V-2, observa-se a quebra da ordem dos elementos da enumeração pela tradução inadequada de “porter” e “mettre”;na seq. 7, V-2 e V-4, ao efetuarem traduções que eliminam a correspondência semântica, eliminam, em TLT, efeitos descritivos que contribuem para a construção da rede de sentidos do TLO.na seq. 8, V-1. V-2 e V-3 não reproduzem o efeito de discurso “familiar” presente em TLO. Conclui-se pois, que para cumprir o “Contrato de fidelidade”, empreendemos uma busca das correspondências semânticas entre TLT e TLO (através das pistas lingüísticas) e uma análise dos efeitos discursivos e retóricos do TLO, amparandonos na leitura prévia do romance que eu já havia efetuado — para, em seguida, tentar produzi-los com os meios da LT. Creio, com as versões apresentadas, ter demonstrado como este tipo de análise do TLO, baseada em conhecimentos lingüísticos, textuais, discursivos, retóricos e culturais, pode fornecer ao tradutor uma base teórica sólida para o seu trabalho — embora se saiba que haverá, inevitavelmente, uma parte de subjetividade nesse tipo de análise. NOTAS: 1

Sobre o conceito de transcodificação, consultar: LEDERER, M. Transcoder ou réexprimer. In: SELESKOVITCH, Danica & LEDERER, Marianne. Interpréter pour traduire. 2. ed. Paris: Didier-Érudition, 1986. p. 15-36. 2

Cf. HËBERT, Anne. Kamouraska. Paris: Seuil, 1970.

3

Cf. HÉBERT, Anne. A máscara da inocência. / Kamouraska/. Trad. de Leônidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. As citações desta tradução, no correr deste texto, são consignadas como V-2.

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Cf. CORRÊA, Angela Maria da Silva. Erros em tradução do francês para o português: do plano lingüístico ao plano discursivo. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1991. Tese de Doutorado em Lingüística. 5

Cf. HÉBERT, Anne. Op. cit. p. 10-11.

6

Cf. verbete “voile”. ROBERT, Paul. Dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Paris, SNL. 7

A propósito de expressões idiomáticas e convencionais, consultar TAGNIN, Stella Ortweiler. Expressões idiomáticas e convencionais. São Paulo, Ed. Ática, 1989. 8

Cf. TAGNIN, Stella Ortweiler. Op. cit.

9

Cf. HÉBERT, Anne. Op. cit. p. 33.

10

Deixo de comentar, aqui, as traduções das frases que se acham entre as Seqüências 7 e 8 por não terem suscitado questões relevantes para nossos propósitos. 11

As citações consignadas como V-2 ao longo do texto foram retiradas da tradução publicada pela Civilização Brasileira, citada na nota 3 acima.

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