Oh Yeah! Micropolítica da Pornografia

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Pró-Reitoria Acadêmica Escola de Saúde Curso de Psicologia Trabalho de Conclusão de Curso

OH YEAH! MICROPOLÍTICA DA PORNOGRAFIA

Autoria: Argus Tenório Pinto de Oliveira Orientação: Ondina Pena Pereira

Taguatinga - DF 2015

ARGUS TENÓRIO PINTO DE OLIVEIRA

OH YEAH! MICROPOLÍTICA DA PORNOGRAFIA

Monografia apresentada ao curso graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília como requisito parcial para a obtenção da habilitação de psicólogo. Orientadora: Dra. Ondina Pena

Taguatinga 2015

À Catarina Melo dos Prazeres, que fez a primeira crítica da pornografia com que tive contato; que há dez anos me ensinou a noção de liberdade que tenho comigo até hoje. Saúde.

AGRADECIMENTOS

Agradeço às amigas e amigos, por me suportarem, tornando-me suportável a mim. Em especial à Apolônio, pela generosidade e amor e à Giulia Bedê e Eloã Moreira, pela longa companhia na caminhada. Sou grato pelo combate feito pelos coletivos, grupos de estudo e organizações estudantis nesses seis anos, sobretudo o AntiLAB e o Div’Gê. Agradeço à Ondina, minha intercessora, pela paciência e impaciência, maestria e atenção, e que muitas vezes teve papel fundamental para que eu quisesse permanecer no curso. Aproveito para agradecer a outras professoras: Flávia Timm, Shyrlene Brandão e Gleicimar Cunha. Sei que o ofício não está fácil. Agradeço à Tinha, pelo agenciamento das condições necessárias para este e outros caminhos. Agradeço ao Saike, caso contrário ele ficaria chateado, e isso também me entristeceria. Estou chegando. Minha gratidão à KOMech4n1cs, pelo apoio e companhia, nomeadamente Alex, Allan, Francesco, Laerte, Priscila e Ricardo. Bardo op. Não poderia deixar de mencionar meus queridos Felipe Areda e Gustavo Belisário, que tiveram seu peso neste texto. Por fim, agradeço aos amásios, os valetes de paus que o vento levou, por terem ido embora e pelas marcas que deixaram.

RESUMO

Referência: SETEMBRINO, Argus. Oh Yeah! Micropolítica da Pornografia. 2015. 30 f. Monografia em Psicologia – Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2015.

Este texto apresenta de modo didático e singelo um esboço do que vem a ser a micropolítica da pornografia. Com este intuito, define-se alguns conceitos base, como desejo e a própria ideia de micropolítica. Em coerência com o conceito de desejo com que se trabalha, em lugar de capítulos, apresenta-se platôs, cada qual iniciado por uma cena. Quatro são as temáticas que mais fazem relevo entre as demais e que, portanto, nomeiam os platôs: pornografia, eu (sujeito), captura e produção de subjetividade (subjetivação). São cenas fictícias, de lugares onde a pornografia se faz presente e das quais se parte para delinear os efeitos do consumo do pornô na subjetividade sexual, entendida portanto como subjetividade de consumo. Por fim, mencionam-se temas que por um motivo ou por outro ficaram de fora do texto final, fazendo alusão ao desejo de que este trabalho se configure como uma monografia menor, em um sentido especial da palavra.

Palavras-chave: Micropolítica. Cartografia. Consumo. Pornografia. Subjetivação. Amor.

ABSTRACT

This paper presentes, in a didactic and simple way, a sketch of what comes to be the pornography’s micropolitic. To this end, we define some basic concepts such as desire and the very idea of micropolitic. Consistent with the concept of desire that is being worked, instead of chapters, presents plateaus, each one initiated by a scene. There are four themes that make more relief among the others and, therefore, name the plateaus: pornography, I (subject), capture and production of subjectivity (subjectivation). These are fictional scenes, from places where pornography is present and then to outline the effects of porn consumption in sexual subjectivity, thus understood as subjectivity of consumption. Finally, there are cited themes that for one reason or another were left out of the final text, alluding to the desire that this work will constitute a smaller monograph, in a special sense.

Kaywords: Micropolitic. Cartography. Consumption. Pornography. Subjectivation. Love.

SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 7 Platô 1: Eu, Pornô .................................................................................................................... 11 Cena...................................................................................................................................... 11 Linhas ................................................................................................................................... 13 Platô 2: Captura, Subjetivação ................................................................................................. 18 Cena...................................................................................................................................... 18 Linhas ................................................................................................................................... 20 Restos e Álibis ......................................................................................................................... 26 Referências .............................................................................................................................. 28

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Introdução

Há uma política das formas acabadas, dos conjuntos molares, de onde se pode abstrair uma contradição e clareza de definições. Ela diz respeito à norma, ao extenso, ao consciente, ao finito, ao organizado; é a política maior, macropolítica, que se dá em complementaridade com uma política menor: micropolítica. São “duas faces de uma mesma moeda”, inseparáveis porém distintas. Embora se diga que uma é maior e outra menor, a distinção entre macro e micropolítica não é de tamanho; como se, por exemplo, a pornografia a nível macropolítico dissesse respeito às atividades de uma multinacional como a Playboy, e, a nível micropolítico, dissesse respeito ao comércio da revista em uma dada banca de jornal. Em vez disso, a diferença entre micro e macro é aqui tratada como uma diferença de natureza e não de escala. Em outras palavras, são duas linhas que atravessam, ambas, toda a sociedade e também todo indivíduo. “Tudo é político, mas toda a política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica”. Existe portanto uma micropolítica da conversa, do sexo, do romance dual, mas também das grandes produções em escala, dos vídeos “mais assistidos” e de qualquer coisa que se adjetive como mundial. De início, preferimos dizer que a natureza da micropolítica é “simplesmente” o desejo, isto é, que micropolítica é a linha através da qual o desejo faz sua política. Poderíamos qualificála também como invisível e inconsciente; linha dos afetos buscando simulação, linha asignificante, das intensidades, das fugas... todas estas seriam entradas possíveis. Fazer micropolítica é traçar essa linha do desejo; diz respeito às estratégias de formação do desejo no campo social. Isso se torna mais inteligível quando pensamos o desejo como positividade, em lugar de pensá-lo como falta, gozo ou prazer. Significa dizer que desejamos não um objeto, mas em conjunto. Não desejo apenas escrever um texto, desejo escrever um texto sobre micropolítica da pornografia, enquanto fumo, no meu quarto, orientado por tal ou qual professora, para ser avaliado por tal ou qual banca, que seja aprovado e, com sorte, lido. Do “mesmo” jeito, não desejo unicamente o homem que estou vendo, desejo ter com ele tal ou qual relação que me confira certo status social, certos sentimentos e sensações, desejo transar com ele de determinado jeito, ter um romance, fazer esse ou aquele programa. Em suma,

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nunca se deseja um objeto sozinho, e tampouco um conjunto, mas precisamente em conjunto. Não se pode desejar fora de um agenciamento de elementos heterogêneos. Podemos dizer que ora o desejo vai em direção a um conjunto – “desejo um carro”, “desejo um emprego” -, construindo-o, ora ele próprio é modulado por um agenciamento, mas esse movimento não está previamente dado. Isso implica que a relação do desejo com um conjunto concreto não é regulada, por exemplo, pela dialética, tampouco prescrito por nenhum universal. É um movimento sem Lei que acontece de maneira singular em cada situação concreta e nelas admite suas regras de passagem. Os elementos agenciados não são destarte todos extensos como um corpo masculino, nem dizíveis como as palavras de um texto, nem finitos como um cigarro ou organizados como a instituição do romance. Ou seja, os elementos não são todos macropolíticos e mesmo estes que o são, têm em si níveis micropolíticos. São agenciamentos complexos que passam por níveis moleculares, formações que de antemão moldam nossas posturas, gestos, atitudes, percepções, representações... nossa subjetividade, o que inclui a maneira de amar. Esses conjuntos que o desejo agencia formam uma região, uma paisagem, que podemos denominar segundo melhor apetecer: território, platô, morada, ethos, em-casa. Lugar resultante da política do desejo e onde o desejo faz sua política. Nesse sentido, mais do que atravessar toda a sociedade e indivíduo, as linhas macro e micropolíticas os constitui. Fazer micropolítica, então, é fazer a cartografia do desejo; traçar num mapa seu movimento. Não no sentido de uma representação, interpretação ou simbolização, mas de marcação de misturas e distinções entre linhas que formam as realidades, acompanhamento de processos de constituição de territórios e também do seu desmanche. Obra e desobra, processos de produção de subjetividade e dessubjetivação. Nesse sentido, uma micropolítica da pornografia – que, sem prejuízo semântico, poderíamos denominar cartografia da pornografia – é o delineamento da realidade que a pornografia ajuda a conformar. Que linhas estão presentes em um ato de consumo de pornografia? Que afetos encontram via de expressão? Que alinhamentos se fazem, que nós, que cortes e posturas se engendram no encontro com a pornografia? Como a pornografia “influencia” nossa maneira de amar? São questões cartográficas complexas que tentaremos responder ao longo do texto que se segue.

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Se dissemos que a relação entre as linhas micro e macropolítica é menos de oposição ou binarismo que de coexistência, é porque uma linha coexiste à outra e uma passa para a outra. Um afeto que encontra matéria de expressão, um movimento de massa que entra para um partido, uma crença que se torna justificada são movimentos do micropolítico para o macropolítico, do molecular para o molar, um fluxo que se organiza. São passagens que deixam restos; resultam irregulares. Mas a complexidade está em não apenas marcar as distinções e misturas entre as naturezas molares e moleculares de um ato de consumo da pornografia, ou mesmo suas passagens. Pois, na medida em que o trabalho micropolítico parte de uma recusa às interpretações da realidade, ele se propõe à experimentação; quando recusa a representação, é pela sua impossibilidade de fidelidade à realidade correspondente que está sempre em movimento e para propor a produção desta. Na medida em que os territórios são todos inéditos, não se sabe que linhas podem aparecer. Podemos falar em linhas micro e macropolíticas, como também de dizibilidade, visibilidade, subjetivação, poder... bem como expressarmos de modo que as linhas estejam apenas subentendidas. No texto que se segue, apresentamos duas cenas absolutamente fictícias a partir das quais delineamos e experimentamos a micropolítica da pornografia. A opção por esta forma de apresentação se deve a três referências que inspiram o presente trabalho. Uma é a cartografia dos dispositivos disciplinares, de autoria de Michel Foucault, que inicia precisamente com a cena do suplício em Vigiar e Punir; outra é a Cartografia Sentimental de Suely Rolnik, em que parte de diversas cenas virtuais de uma “noivinha”; a terceira é “narrativa desarmada” de Herbert Daniel, em “Meu Corpo Daria um Romance”, em que o autor parte de uma cena de onze minutos que ele próprio viveu para desenhar as linhas que atravessaram aquele momento. Aqui cada cena abre um capítulo, que chamaremos de platô, em coerência com o fato de que cada cena enseja um movimento desejante. O primeiro platô funciona como um salvoconduto para que o próximo possa acontecer. Isso porque há uma noção que é muito cara à ciência moderna e particularmente à Psicologia, bem como ao senso-comum, que é a noção de Eu, de Sujeito, de Indivíduo, Self, etc. que destoa do conceito de subjetividade com que estamos trabalhando e por conseguinte atrai muita censura. Ao mesmo tempo ele aborda a questão da pornografia, por isso o intitulamos “Eu, Pornô”.

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O título não tem a intenção de representar a totalidade do que é tratado, de modo que não deve ser visto como metonímico. Também no segundo platô, “Captura, Subjetivação”, não tratamos estritamente das duas questões, mas também de conceitos que julgamos anteriores para entender, como propomos, a micropolítica da pornografia.

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Platô 1: Eu, Pornô

A vida é uma farsa barulhenta. Nada tem que a justifique. Não é nada do que promete. Por isso mesmo é uma mentira adorável. Uma ficção pelo inverso do disfarce. Uma invenção. A ser falada. Ao vivo. – Herbert Daniel, Meu corpo daria um romance

Cena

Era um vestiário perto das quadras poliesportivas, usado mais pelos estudantes de Educação Física e em eventos esportivos que a universidade abrigava. Matheus e Paulo tomavam banho com frequência ali, sobretudo em tardes quentes como aquela, mas para Pedro era a primeira vez. Ele foi a convite de Paulo, seu amigo com quem passava o dia todo e todos os dias na universidade e saía aos finais de semana. Pedro era, como se diz, apaixonado por Paulo em segredo, daquela espécie de segredo sabido que perturbaria a ordem das coisas se deixasse de ser tratado como tal. Paulo e Matheus entram seguidos de Pedro, encostam as mochilas, pegam seus sabonetes e coisas de banho e começam a se despir sem constrangimento. Simples sociabilidade de machos, para os dois. Pedro senta-se no banco perto da entrada dos chuveiros, dispostos num corredor depois de uma parede. Assim poderia participar da conversa, apesar de sempre falar pouco perto de Paulo, que só tira a cueca já debaixo do chuveiro. O chuveiro que Paulo usa é o único na linha de visão de Pedro, que toma um susto ao abaixar da cueca do seu amigo. Paulo olha para Pedro, checando sua reação, mas Pedro não esboça nenhuma. Faz cara de blefe, ilegível; “poker face”. Enquanto Paulo estivesse de costas, era seguro olhar, mas sem encarar porque Paulo sentiria e isso poderia expor seu desejo. O primeiro juízo de Pedro, ao abaixar da cueca de Paulo, foi de que aquela bunda era mais verticalmente cumprida que o normal e tinha pelos entre as bandas que subiam até o comecinho das costas. Era diferente do modelo de perfeição que lhe era referência: um erro, uma variação, um desvio. O juízo

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subsequente foi de que era bonita, um juízo feito com a generosidade que Pedro sempre dirigia a tudo que concernia a Paulo. Pedro não se exigiu essa generosidade com relação às costas largas de Paulo, nem suas coxas peludas. Tampouco quanto à frente, manjada quando Paulo se vira para molhar as costas. Malgrado todos os homens com que Pedro tivera relação sexual ou ao menos visto a região do pênis tivessem pelos, não se espantou com a ausência total deles em Paulo. Era como nos pornôs; em pelo sem pelo, pelado, mas não nu. O ensaboar-se de Paulo era lascivo, quase sedutor. Em outras situações Pedro se faria entender interessado, corresponderia ao desejo dando vasão ao seu próprio desejo de uma transa suja ali e naquele momento. Mas Paulo não lhe era um estranho e Pedro experimentava uma situação para a qual não tinha roteiro: não sabia olhar como macho para o corpo de outro macho e tampouco sabia para onde olhar. Não havia nada ali interessante o suficiente para onde desviar o olhar de modo que seu fingido desinteresse pelo corpo de Paulo colasse. Desinstrumentalizado, Pedro ficara mais nu que Paulo. Havia em curso uma ação do corpo de Paulo sobre o de Pedro, afetando a este de um certo desejo de contato. Ao mesmo tempo, a ideia de rejeição provocava medo de não ser suficientemente atraente para Paulo, que pelo próprio trabalho sobre seu corpo parecia aderir a padrões de beleza dos quais Pedro se via distante. Havia também um medo da revelação do seu segredo atrair uma violência insuportável, maior do que a violência que a própria situação já representava. Conversa de machos em um banho entre machos. Pedro começa a assoviar numa tentativa sem jeito de aliviar a tensão, de escapar das intensidades que o chegavam. Assovia uma melodia qualquer numa tentativa desesperada de parecer natural e indiferente àquela situação. Logo em seguida é invadido por um sentimento de precariedade, de ridículo - “olha o que eu estou fazendo”, pensa – e, por conseguinte, é invadido também por uma enorme tristeza. A tristeza, Pedro não consegue dissimular. Ainda sentado, apoia a cabeça na parede, pois já é muito esforço sustentá-la sozinho; pesa suas pálpebras e se põe a olhar “para o nada” na parede. Enfim algum afeto encontrou expressão e passou pra fora de seu infinito particular.

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Linhas

As coisas acontecem como podem. Os corpos acontecem como podem, segundo os afetos, paixões a que estão expostos (SPINOZA, 2009). Neste conjunto concreto – e fictício – a que nossa personagem está exposta, há um segredo como componente, tomado aqui não só como algo que ninguém pode saber, mas precisamente como algo percebido secretamente. Foi assim com o desejo de Pedro de transar com Paulo, na sua investida para suprimi-lo e não deixar perceber, ao mesmo tempo em que Paulo o percebe secretamente, sem clareza, sem trazer à tona, para o dito, o organizado. O segredo faz parte da micropolítica da cena. Pedro não deixa notar-se com clareza, não arrisca em suas expressões uma investida de cunho sexual; o conteúdo é excessivamente grande para sua forma, a forma escamoteia e disfarça o conteúdo, que é percebido secretamente. Do ponto de vista conceitual, é isso o segredo. Mas mais do que isso, “só os devires são secretos; o segredo tem um devir” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 83). Devires por “natureza” desbancam a forma estabelecida, obrigam-na a se refazer, mesmo que sutilmente. É dizer que os devires desterritorializam a paisagem constituída, algo que Pedro teme intensamente. Daí ele finge estar totalmente familiar com a situação e tenta combinar com aquele agenciamento, “passar batido”, mantendo o banho entre machos um banho entre machos. É Suely Rolnik (2007) quem nos fala de três qualidades de medo que nos fazem barrar os devires: o medo de enlouquecer, o medo de fracassar e o medo de morrer. Três faces da angústia de Pedro; há na cena um pouco dos três. O segredo em questão é o desejo de Pedro, em germe, um desejo impedido pela impossibilidade de fazer novas conexões. No momento em que Pedro dissimula ou finge, ele impede que o desejo se espalhe e disso decorre sua tristeza. Mas há muito mais entre o interdito e a tristeza. Se aquele desejo concreto não fez novas conexões, não significa que não teve conexões anteriores que o modularam. Fizeram parte dessa modulação as imagens que consumira na pornografia disponível na internet, que forneceram referências e modelos que guiam Pedro nos instantes em que olha furtivamente para o corpo do Paulo. Se ele se exigiu certa generosidade

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para perceber como bela a bunda e os pelos do seu amigo, a mesma generosidade não foi precisa para as demais partes, pois estavam conforme as imagens do pornô. Por mais ligeiras que fossem suas “manjadas”, teve tempo para operar uma seleção automatizada do que estava ou não conforme os modelos que lhe serviam de referência. Uma seleção operada em termos do que é belo – segundo os modelos - e do que é também belo – segundo a atração que Pedro sente em segredo, segundo sua generosidade. Seu desejo, a seleção e seu segredo têm uma face micropolítica de uma realidade macropolítica, isto é, a indústria pornográfica, e também a indústria cultural. A Indústria Cultural – para dizer de uma maneira talvez menos exegética do que poderiam fazer os comentaristas da Escola de Frankfurt, mas nem por isso menos afeita à noção – é uma indústria que produz e vende cultura, ou seja, modo de ser coletivo. A esse respeito, em sua análise sexopolítica da economia mundial, Beatriz Preciado (2008) coloca a pornografia como o modelo a partir do qual qualquer produção cultural contemporânea é feita e pode ser entendida, pois de modo límpido, seu circuito fechado de excitação-capital-frustraçãoexcitação-capital oferece a chave de leitura de qualquer tipo de produção cultural pós-fordista. Para a autora, a pornografia como produção cultural industrializada só se diferencia das demais por seu estatuto de underground ou escuso, mas que, como as outras, reúne todas as condições técnicas de produção, troca e capitalização. Por pornográfico, ela entende “qualquer material audiovisual sexualmente ativo, capaz de modificar a sensibilidade, a produção hormonal, ativar o circuito excitação-frustração e produzir prazer psicossomático” (PRECIADO, 2008, p. 185). Além disso, é próprio da pornografia, entre outras coisas, a oferta de “corpos tão desejáveis quanto inacessíveis, cujo valor masturbatório é diretamente proporcional à sua capacidade de se comportar como fantasia abstrata transcendental” (Idem, p. 181, tradução livre). Daí a frustração ser componente inerente da pornografia, ou melhor, um afeto inerente ao seu consumo. Partindo dessa crítica, Angela Donini (2014) analisa os elementos semióticos e técnicos que concernem à subjetividade sexual, o que talvez seja mais afeito ao “caso” de Pedro e Paulo e todos nós e a uma micropolítica da pornografia. Antes de partir para outras pornografias, não normatizadas, a autora constata que A pornografia do stablishment é parte dos procedimentos neoliberais que tomam de assalto a vida, implantam seus dispositivos e fazem com que nossos corpos

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incorporem cada micropartícula produzida se tornando, portanto, produto motor do capital, como se cada corpo se transformasse de maneira imaginária naqueles corpos projetados, como se o sexo, os modos de encontro e acesso ao corpo e ao outro passassem pela composição mental a partir de um repertório imagético disponível. (DONINI, 2014, p. 68, grifos meus)

É assim que o olhar de Pedro é mediado e seu desejo de transar com Paulo é modulado pelas imagens que consumira; é assim também que Pedro teme fracassar em uma investida, pois seu próprio corpo não está tal qual a imagem ideal e majoritária de corpo a que a maioria das pessoas, inclusive Paulo, aderiam. É assim que Pedro se frustra, com relação a si e a não ser capaz de ser coerente com seus afetos – incapacidade que qualquer normatização enseja. Se por um lado faz parte da micropolítica da cena a modulação prévia, pela pornografia, do desejo de Pedro, por outro, o próprio devir-segredo de seu desejo é também fruto de um agenciamento que o impede de passar. O que esse agenciamento reúne é uma opressão, pois mais do que heterossexuais, Paulo, Matheus e Pedro são machos, ou melhor, se comportam como machos. Em outros termos, a performance ou o simulacro que exerciam se dava justamente pela negação, naturalizada ou conturbada, de qualquer coisa diferente daquele patrão. Se são machos ou se portam como tal, é através de uma negação direcionada tanto a si quanto aos outros: do feminino, da viadagem e de outras e inimagináveis potencialidades não efetuadas, virtualidades não atualizadas. Poderíamos continuar falando de uma opressão que Pedro infringe sobre si mesmo e sobre seu desejo íntimo; que ao fingir-se natural à cena macha estaria impondo-se violentamente o uso de máscaras não coerentes com o que ele “realmente é, de verdade”. Mas isso seria supor que atrás das máscaras existe alguma coisa essencial, que aquém das performances haveria uma natureza fundamental. Seria definir um corpo pelo que ele é, mas não pelo que é capaz de fazer. Seria, ainda, adotar uma noção de Eu que não coaduna com os movimentos do desejo e da vida. Trata-se de uma noção de Eu que encerra dentro dele a subjetividade, isto é, o modo de pensar, de agir, de perceber, de sentir, de trabalhar, de transar etc. Essa noção tem uma historicidade. Podemos esboçar uma linha histórica dessa noção, presente na epistemologia do Iluminismo, quando

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a partir das Meditações de Descartes, a constituição da subjetividade se faz através da renúncia do indivíduo a uma parte de si mesmo (o espírito se separa dos sentidos) [e, com isso, lança-se a] condição para que ele se eleve ao plano dos valores universais que definem a verdade e a racionalidade (PEREIRA, 2004, p. 118).

Assim, o filósofo apresenta uma versão mais acabada de uma concepção cristã, porque é em Santo Agostinho, anterior a ele, que temos o exemplo mais palpável até então desse exercício de “situar em um espaço interior tudo aquilo que tem que ver com a alma, a subjetividade, o mental, a moral ou a virtude” (DOMÈNECH, TIRADO e GÓMEZ, 2001, p. 114). Nas Confissões de Agostinho, pode-se encontrar em toda parte a distinção fora-dentro, interior-exterior, com especial apreço pelo interior e pela alma, identificada com Deus, e desapreço pelo que vem de Fora, com o ir para Fora. Por exemplo, “[...] minha alma não estava bem e, ferida, voltava-se para fora de si, ávida de se roçar miseravelmente às coisas sensíveis” (AGOSTINHO, 1980, p. 66). Em uma passagem emblemática, o padre faz uma recomendação a que Pedro e a modernidade parecem ter aderido muito bem: “Noli foras ire, in te redi, in interiore homine habitat veritas – não vás para fora, entra em ti mesmo, no homem interior que habita a verdade.” (AGOSTINHO apud FERNANDES, [s.n], p. 55). Deste modo, em lugar de entendermos que a opressão como uma forma de negação de si mesmo, de interdição de um eu sacralizado, de repressão social sobre o sujeito, preferimos concordar com Deleuze quando ele diz que “se as opressões são tão terríveis é porque impedem os movimentos, e não porque ofendem o eterno” (1992, p. 152). Na cena, o “eterno” é o próprio Pedro, se tomado como indivíduo, sujeito fechado, eu sacralizado – coisa bastante praticada na ciência, sobretudo a psicológica. “Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe [...], não desfizemos ainda suficientemente nosso eu” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 13). O movimento impedido é o do desejo “de Pedro” e daquilo que, a partir de novas conexões, poderia produzir: uma transa, um estilo, um devir-bicha em lugar de um devir-segredo ou mesmo outros devires a partir do segredo. As possibilidades são infinitas. Como dito, há uma pornografia instalada na intimidade de Pedro ou, em outras palavras, a pornografia produz subjetividade, mas não é menos produzido o sujeito que comporta, assim, a pornografia (GUATTARI e ROLNIK, 2011). É dizer que a “linha pornográfica” que compõe

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a micropolítica da cena é acompanhada por uma linha de subjetivação; a pornografia supõe um sujeito onde instalar o repertório imagético que molda de antemão sua semiótica, seu juízo estético, suas referências na sua relação com Paulo. É nesse mesmo sujeito “fechado” que Pedro crê quando resolve esconder dentro de si sua atração, seu desejo de contato, seus afetos e qualquer coisa que denuncie sua não pertença à cena macha. Mas onde quer que haja uma ordem estabelecida, haverá também devires que a ameacem. Não que os devires existam em função da ordem, reativos a ela, mas sim em função da vida que a ordem em algum momento passa a obstruir. O segredo de Pedro só se deu em função da vida, pois seu medo de fracassar, enlouquecer ou morrer não são gratuitos. Foi um devir de que seu corpo foi capaz, mas que no entanto foi logo “espantado” por uma tristeza causada por ideias que lhe fizeram mal. É a nível micropolítico que os devires se dão. Seu destino, isto é, aquilo que se faz deles constitui uma das principais ocupações da micropolítica. Na cena, falamos do devir próprio ao segredo de Pedro, secretamente percebido por Paulo. E também do seu destino: a captura do seu desejo pela pornografia. Este é um tema do segundo platô.

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Platô 2: Captura, Subjetivação

É intolerável que um corpo, individual ou coletivo, seja separado de sua potência. E como recusar o intolerável, e como reconectar um corpo com sua potência? Questões cartográficas e estratégias da maior importância, e da maior complexidade – Peter Pál Pelbart

Cena

Pedrita, Pedro, Peter e Pierre caminham até a sala da agremiação estudantil, onde estariam distantes de olhares alheios. Uma mulher e três homens, três homens para uma mulher. Era quase-noite de feriado e poucas pessoas estavam naquele bloco da universidade. No caminho do bar até a sala, vinham conversando sobre coisas da graduação que compartilhavam, mas também sobre amor livre, poliamor, “libertação das amarras sociais” e como aquilo que eles estavam prestes a fazer tinha a ver com tudo isso. Era Pedrita que volta e meia, em um tom situado entre o desafio e a cobrança, perguntava se ainda queriam fazer aquilo por que saíram do bar. Peter era o mais veemente e o primeiro a dizer que sim, que queria fazer, sorrindo levemente excitado. Pierre transparecia ser o mais ansioso e ao mesmo tempo era o que mais animadamente falava de amor livre. Chega a “hora da verdade”, como enuncia Pedro. Os quatro entram na sala uma tensão se instala. “E agora?”. Peter e Pierre arrastam os sofás e deixam um paralelo ao outro, enquanto Pedro apaga a luz. Sentam-se e Pedro propõe que fiquem só com as “roupas de baixo”. Pedrita chega a tirar o sutiã e não demorou pra que Pierre abaixasse sua cueca subitamente, como quem entra de uma vez na água gelada, seguido dos outros dois. Ficaram os quatro sentados, Peter e Pedrita, Pedro e Pierre, duas em cada banco. Um breve silêncio antecedeu o convite de Pedrita: “vocês vão ficar aí olhando?”. Com isso, Peter voa na direção de Pedrita e começa beijar lascivamente seu seio, acariciando e beijando Pedrita na boca. Ela fecha os olhos, possivelmente para sentir melhor, corresponde ao beijo na boca.

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Pierre acopla-se no outro seio e Pedrita chama a Pedro que até então só observava. Pedro estava mais interessado nos rapazes e eles, ao que tudo indicava, em Pedrita. Ele deixara claro que nunca havia transado com mulheres e viu ali uma chance de ter essa experiência nova. Pedro tira a calcinha de Pedrita delicadamente, pela sensualidade que talvez surtisse, mas também porque não tinha pressa. Beija devagar a barriga de Pedrita, vai beijando até chegar à sua vulva, precisamente como vira ser feito em alguns filmes. Sentiu o cheiro da vulva, um cheiro inédito, diferente do cheiro de uma rola, inclusive porque ao sentir o cheiro de uma rola em mesmo grau de “curtição” que estava a vulva de Pedrita, Pedro já ficaria excitado. Diferente disso, Pedro percebe o cheiro como levemente nauseante, mas não hesita em começar a beijar a buceta de Pedrita. Beijar, sim, e não chupar, porque se lembra, momentos antes, do comentário da sua melhor amiga, que disse que a maioria dos caras que fizeram sexo oral nela – e com as mulheres com quem conversara – eram agressivos demais, pareciam querer “arrancar um pedaço”, chegando a machucar. Com a sala parcamente iluminada pelas luzes que vinham de fora do bloco, Pedro se guia mais pelo seu olfato, tato e paladar. A comunicação entre os quatro é na maior parte por signos territoriais; a mesma comunicação que Pedro aprendera com seus cachorros. Ele umedece toda a vagina com sua boca, mas logo põe-se ao norte e começa a lhe lamber o clitóris. Alterna entre lambidas, beijos e fricção com a ponta da língua. Pedrita se contorce deixando Pedro confuso sobre o que ela tem. Ela geme e Pedro entende que é prazer e se regozija. Troca de posição com Peter e experimenta os mamilos de Pedrita. “Nossa, o Pedro é tão delicado!”, “Isso é bom?”, “Sim, muito!”. Pedro sente como se fosse capaz de parte daquilo que ouvia meninas elogiarem sobre fazer sexo com outras meninas; fica lisonjeado. Pedrita e Peter se apartam dos outros dois. Ela fica de pé, apoia-se em uma poltrona, de costas para Peter, empina-se, para que ele a penetrasse e foi o que ele fez, enquanto Pedro e Pierre observavam. Ele enfiava numa velocidade tão rápida que não demorou para ficar ofegante, dava pausas em que beijava e acariciava os seios de Pedrita. Para Pedro, o som do impacto dos corpos era mais descritivo e mais excitante que a cena observada e ficaram os dois, Pedro e Pierre, tocando-se, cada um ao próprio corpo, enquanto observavam. Não demorou para que Pedrita puxasse Pierre que também transou num frenesi que Pedro só vira em vídeos pornô. E era isso que parecia a Pedro, naqueles momentos em que

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observava a Pierre e Peter e volta e meia imaginava-se no lugar de Pedrita: um vídeo pornô. Eles se esforçavam mais do que podiam, perante os outros dois caras, para ter um desempenho exuberante, “sex machine”. Chegada a vez de Pedro, ele brocha sem constrangimento. Ele se sai de maneira jocosa: diz “É, sou viado mesmo...” e todos riem. Pedrita logo se junta a Peter, e Pedro vai em direção a Pierre, sentado ao seu lado de pau nem duro nem mole, “meia bomba”. Pedro se ajoelha e passa a fazer-lhe uma oração. “Caralho, Pedro!”, interjeita Pierre, como quem diz “olha o que você está fazendo eu fazer!”. Pedrita se surpreende com a cena de um cara chupando outro, mas sem repreender. Ela parecia a que estava mais à vontade dos quatro e desse ponto em diante passam a se alternar nas combinações: Peter-Pedrita, Pedrita-Pierre, Pierre-Pedro. Pedro faz algumas investidas para continuar com Pierre na próxima etapa do script pornográfico standard oração-penetraçãoejaculação, mas Pierre o beija na boca e diz preferir ficar deitado agarrado, para a surpresa e agrado de Pedro. Depois de um tempo, a suruba parece ter chegado ao seu ápice, que, diferentemente do pornô, não coincidiu com a ejaculação. Ninguém gozou. Mas o ápice foi quando todos deram um tempo, pelados nos sofás e Pierre comenta que queria estar com sua câmera para fotografar aquele momento. Depois disso Pedro resolve ir ao banheiro e, quando volta, estão todos vestidos, a sala reorganizada e a luz acesa.

Linhas

Uma primeira linha que gostaríamos de traçar é a linha dos afetos. Trata-se destarte de uma opção por uma tradição distinta da concepção de sujeito de que falamos, um sujeito fechado, um Eu que é a redundância do juízo de Deus em nós. Dito isto e seguindo uma sugestão de Pelbart (2007), poderíamos partir de Spinoza, para quem um indivíduo se define não pelo que é, mas pelo que pode fazer e suportar, pelos afetos de que é capaz. É possível nomear alguns afetos que passam por Pedro na cena, a saber: ansiedade, a caminho da sala; vergonha, ao apagar a luz; curiosidade, quando do convite de Pedrita; náusea,

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quando do cheiro; regozijo, ao conseguir dar prazer a Pedrita; lisonjeio, ao se comparar com a maioria dos caras; excitação, ao assistir e ouvir Peter e Pedrita transarem; graça, quando ri; frustração, quando não segue o roteiro pornô com Pierre; surpresa e agrado, quando Pierre o beija na boca. Esses afetos envolvem o aumento de sua potência, como a excitação, o lisonjeio ou a graça; outros, diminuição, como a vergonha do próprio corpo ou a frustração. Em outros termos, eles envolvem respectivamente alegria e tristeza (SPINOZA, 2009). Entretanto, mais do que aumento ou diminuição da potência, “o affectus em Spinoza é a variação” (DELEUZE, 1978, p. 8). Isso quer dizer que afeto diz respeito menos a um estado de potência do que a um movimento de variação que se passa entre os estados. Conceitualmente, isso é importante porque esses afetos que nomeamos são, eles próprios, movimentos vitais de diferenciação, isto é, “os afectos são devires” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 42). Movimentos que se dão a partir da ação de um corpo sobre outro e a ideia que isso inscreve e, mais ainda, da ação do território e todos os corpos que ele exprime. É nesse sentido que poderíamos traçar uma latitude como um traçado dos “seus” devires. A linha dos afetos que atravessa a cena é menos uma sequência dos afetos que enumeramos – ansiedade-vergonha-curiosidade... e assim por diante –, e mais da potência de Pedro a cada variação, a cada devir, isto é, o que Pedro é capaz de fazer a partir de cada devir. É dizer que a linha dos afetos a que nos referimos não é uma linha cronológica e estrutural, mas uma linha das virtualidades que se poderia atualizar1. Desta forma poderíamos responder às questões de como atualizar essas virtualidades e o que impede as atualizações; “como reconectar um corpo com sua potência” e o que o separa. Entretanto, nos interessa mais como a micropolítica da pornografia interfere na política do desejo na cena; como a pornografia do stablishment – para usar uma expressão de Donini – interfere na latitude dos corpos em questão. É novamente Spinoza quem nos dá uma pista. Em sua “teoria dos afetos”, ele fala da necessidade que o tirano tem de inspirar paixões tristes nas pessoas, tais como esperança ou medo, para que possa manter-se como tal. Então podemos entender a pornografia como uma forma de mediar a prática de inspirar tristeza e exercer poder – este entendido justamente como o ato de separar as pessoas daquilo que elas Aqui há uma referência ao conceito de “virtual”, com frequência confundido com “potencial”. Enquanto este se refere a um ainda-não-ser ou a algo que poderia ser e ainda não é em ato, aquilo que é virtual é real, por mais que não atualizado em estado de coisas. 1

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podem (DELEUZE, 1988). Exemplo disso seria a vergonha do seu próprio corpo, de que Pedro se previne quando resolve apagar a luz. Esse exercício está talvez relacionado ao caráter normativo da pornografia. Em um breve texto sobre a miséria da pornografia, Rafael Trindade resume bem o que seria essa limitação da sexualidade que ela efetua, numa perspectiva afeita às cartografias de Foucault acerca do poder disciplinar: O poder age individualmente. Mas se achamos que estamos escondidos no escuro do nosso quarto quando abrimos um site pornô, estamos plenamente enganados. A luz dos holofotes está em cima dos corpos que de forma performática realizam o ato sexual. A pornografia não diz como é, mas como deve ser, completo esquadrinhamento da sexualidade em tags, categorias, vídeos mais vistos e cortes de cena. Através dos vídeos, temos nossa cota semanal (ou diária) de “formação sexual”. Da mesma forma que aprendemos como nascem os bebês em uma conversa constrangedora com nossos pais, aprendemos como usar camisinha em uma aula de “educação sexual” na escola, aprendemos o que é uma mulher bonita na playboy e descobrimos como devemos dar e receber prazer através dos sites de pornografia. (2014, p. 1, grifos meus)

Na cena, vimos Pierre e Peter desempenhar uma penetração viril e “selvagem”, mais do que podiam, numa tentativa frustrante de imitar o pornô, uma tentativa que tem o pornô como referência de “dever ser”. E também Pedro, quando adere ao roteiro oração-penetraçãoejaculação com Pierre, ou quando inicia o contato com Pedrita. Ele só tem afetos alegradores quando passa a se portar segundo o desejo concreto de Pierre (ficar deitado agarrado) e segundo a experiência concreta compartilhada pela sua amiga (no sexo oral com Pedrita). Se a pornografia é povoada de afetos entristecedores, por que então o seu consumo? Não temos aqui a prepotência de supor que as pessoas consomem porque não sabem ou não sentem seu efeito normalizador, mas, diferente disso, supomos que há um desejo pela segurança e conforto que a pornografia oferece. O pornô é um colo, como o é todo dispositivo disciplinar, basta que as multiplicidades obedeçam as suas prescrições. Mas não é somente pelo sentimento de segurança que somos seduzidos. Neste ponto podemos falar de duas grandes linhas – presentes na cena – pelas quais a micropolítica da pornografia acontece. Uma delas é a normalização, pelo poder, que impede a atualização das

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virtualidades infinitas dos corpos nem tanto pelo proibido, mas pelo permitido, prescrevendo assim comportamentos2. “Cada escolha é uma renúncia” ou infinitas renúncias. A outra linha, que mais nos interessa aqui, é a captura das linhas de fuga. Dissemos inicialmente que a natureza da micropolítica poderia ser qualificada como a linha das fugas e, como já se poderia supor, a fuga não tem a ver com “correr das responsabilidades” ou fugir da realidade. Como explica Suely Rolnik, “ao contrário, é o mundo que foge de si mesmo por essa linha, ele se desmancha e vai traçando um devir” (ROLNIK, 2007, p. 49). Em outros termos, há uma relação estreita entre linhas de fuga e devires. No nosso entendimento, linhas de fuga se dão a partir de devires, são devires mais intensos. Linhas de fuga, que são da ordem do desejo, acontecem não em oposição à ordem estabelecida, mas à diferença dela. No dizer de Tomaz Tadeu, “A diferença [(devir)] é mais da ordem da anomalia que da anormalidade: mais do que um desvio da norma, a diferença é um movimento sem lei” (2002, p. 66). Linhas de fuga são movimentos de desterritorialização; a mínima passagem de um estado a outro tem a ver com o devir. A questão principal é, como dissemos, o destino dessas linhas. Porque elas podem ser seguidas, e daí acontece o ato de criação; ou podem ser capturadas e transformadas, daí o ato de reprodução, recognição, o delírio persecutório, a mania. É na micropolítica que se define um destino ou outro. Da perspectiva da micropolítica, nossa sociedade é definida por nossas linhas de fuga, e não por suas contradições. Essas linhas, por sua vez, “não seriam nada se não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classes, de partidos” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 104). Então, as linhas de fuga são ora abafadas e condenadas à reprodução, ora forçam reorganização do mundo, ora abolem o instituído, criando novas terras, a partir de novos elementos. No que tange à pornografia, ela se sustenta sobre linhas de fuga, tal qual o fascismo3,

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“Quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela forma, ocasionam efeitos de miséria?” (FOUCAULT, 2015, p. 127) 3 Com frequência Deleuze e Guattari referem-se ao fascismo como fruto não de coerção, enganação ou engodo dos nazistas, mas como fruto do desejo da população. “É que, diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 123).

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as igrejas evangélicas, a televisão, o romance e tantas outras instituições/organizações na sociedade. Quando Pedro e Pierre assistem, ao vivo, ao pornô performado por Pedrita e Peter, eles se excitam. Esse afeto, que é devir, poderia compor uma linha de fuga, dando origem a uma transa mais afeita aos corpos do que aquela. Mas o devir em questão – excitação – foi de pronto rebatido na cena costumeira, capturado pelas imagens que lhe eram familiares a partir do consumo da pornografia, pelo som violento do impacto entre os corpos a cada penetração, pela dominação em cena. Será preciso concordar com o pensamento segundo o qual vivemos em um regime de desejo que tanatiza o desejo – enfatiza uma conexão entre desejo e morte – e que erotiza o poder – gruda em qualquer libido um desejo de dominar ou submeter (de possuir, de ocupar, de ter o controle ou de entregar, de colaborar, de perder o controle). (BENSUSAN, 2004, p. 132)

Faz parte da tanatização do desejo o medo de morrer, de enlouquecer e de fracassar que impede às personagens e a todo mundo de criar outros platôs, outras paisagens, da qual fazem parte novas sensibilidades, novas eróticas, que só se dariam por movimentos desejantes. Se por um lado, é sempre necessária uma prudência4 para preservar-se, o medo é aquela paixão triste e tirânica que nos imobiliza. Pedro, Pedrita, Peter ou Pierre, eles não entraram em devir, não fugiram. Ao contrário, permaneceram no mesmo lugar, sedentários. Um território que a pornografia ajuda a reproduzir através do poder e da captura do desejo, que não seriam efetivos se não produzissem, ao mesmo tempo, um Eu. Em outras palavras, tanto as linhas de captura quanto as de poder terminam por produzir subjetividades; é pela captura e pelo poder que a pornografia enseja subjetivação. Perseguir as linhas de fuga implica, então, um processo de produção de si mesmo. Uma vida nas dobras a partir de uma relação com as intensidades que, como tal, não são hierarquizáveis, totalizáveis ou relativizáveis. Intensidades dizem respeito ao que poder ser, ao que pode o corpo, ao que ainda não é e está por vir. Indizível, invisível, imperceptível,

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“O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 27).

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inconsciente, informe... chamemos de Fora, Desrazão ou Força... mas o importante é o que elas podem fazer pela subjetividade sexual, pela singularidade. Esse fazer-se nos parece a proposta insurgente da pós-pornografia. E se insurgimos é porque já é tempo de não mais falarem em nosso nome, aqueles que nos engasgam e nos embargam; insurgimos porque o horizonte está pleno de possibilidades e não há nada mais impossível do que permanecer onde estamos.

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Restos e Álibis

Em lugar de considerações finais, preferimos falar de restos e álibis. Resto, para usar um conceito de Ana Godoy, é aquilo que não passa5. Pois também na escrita há um combate, um jogo de forças do qual o próprio texto resulta. Coisas permaneceram para ser comunicadas e outras desapareceram. Dedicamos esta seção que seria das considerações finais para falar de alguns desses restos. Isso talvez soe como justificativa e talvez o seja, pois como disse Herbert Daniel em sua cartografia: “jamais vivemos: criamos álibis” (1984, p. 50). A primeira coisa que ficou fora do texto, ou foi apenas tangenciada, foi a temática do patriarcado. Em cada uma das duas cenas, há elementos para pensar o patriarcado como constitutivo dos processos de subjetivação e como linhas que compõem a pornografia. O patriarcado relacionado ou não com a homofobia, lesbofobia, transfobia, lipofobia... enfim, “não-eufobia”. Consideramos as limitações de um trabalho de conclusão de curso de graduação, mas cada ideia que levantamos poderia se desenvolver bem mais. Um segundo resto diz respeito aos trabalhos pós-pornográficos. O projeto inicial envolvia uma cena de uma pessoa ou coletivo assistindo a um vídeo pós-pornográfico. A partir de como ele funcionasse na situação concreta – e fictícia –, nós traçaríamos as linhas de subjetivação desse coletivo que, supomos, tem em si marcas da pornografia do stablishment. A partir do contato com um vídeo pós-pornográfico a pedagogia da pornografia seria expressa. Mas a falha é constitutiva do plano e as coisas acontecem como podem. Um terceiro resto é o “diagrama de Foucault”, que Deleuze constrói a partir de sua leitura da obra do amigo (DELEUZE, 2005). Poderíamos e gostaríamos de partir dele para pensar a subjetivação pelo poder e pelo desejo, mas optamos por uma escrita tão didática quanto possível, na possibilidade ainda que remota de que este trabalho seja lido no contexto da Psicologia e também para escaparmos da armadilha que seria utilizar os conceitos para alguns poucos entendedores, assemelhando-nos assim a um grupelho de lacanianos.

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“Há todo tipo de resto. Há aquele cuja materialidade nos permite mensurar, quantificar, mas há ainda aquele incomensurável [muito embora inseparáveis, são restos cuja natureza difere]. Ambos excedem os esquemas, escapam às contagens e, por tudo isso, o resto é aquilo que não passa.” (GODOY, 2011, p. 144)

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Um último resto diz respeito ao Eu. Gostaríamos de explorar em que medida o Eu é, além do “Juízo de Deus” em nós, uma redundância do Estado em nós. Mas isso extrapolaria, talvez, os objetivos do trabalho e seria tema para uma outra monografia. De resto, estamos muito satisfeitos com o esboço de cartografia que fizemos nesses dois platôs. A formatação escapa do formato dos artigos das revistas acadêmicas, de maneira proposital. Gostaríamos de pensá-la como uma monografia menor, fruto de um processo nem sempre brilhante, impecável, regular e claro; mas um processo por isso mesmo minoritário e afeito a quem escreve e, com sorte, a quem lê. “A grandeza do menor estaria nisto que se poderia chamar de não-pertencimento a um modelo” (GODOY, 2008, p. 58).

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Referências

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PEREIRA, Ondina Pena. Ethos do indivíduo grego e o êxtase do sujeito contemporâneo. Revista Episteme, Porto Alegre, n. 9, 2004. 115-137. PRECIADO, Beatriz. Pornopoder. In: ______. Testo Yonqui. Madrid: Espasa Calpe, 2008. p. 179-220. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007. SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e Diferença: impertinências. Educação & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 69, 2002. 65-66. SPINOZA. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. TRINDADE, Rafael. A miséria da pornografia. A razão inadequada, 2014. Disponivel em: . Acesso em: 26 nov. 2015.

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