Oi, ferida minha, meu amor

September 2, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: Pain, Self Harm, Self-Injury
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Oi, ferida minha, meu amor
Olá, ferida minha. Olá, meu amor. Como você está? E a saúde? Péssima, como sempre? Ou controlada, mantendo as aparências, sem notar que existe mas mantendo sua estreita conexão com minha dor? Minha amiga ferida, sinto sua falta. O tempo todo quero te sentir, mas isso você já sabe. Só não posso aparentar, que boa ferida é aquela que mantemos escondida, como se fosse um tesouro guardado até de nós mesmos, de quem até sentimos certa vergonha, que porém, a quatro paredes, alimentamos com muito cuidado e carinho.
Um dia você surgiu. Para alguns, amigas como vocês aparecem em meio a simples crises – para quem está de fora, fáceis de solucionar. Para outros, em meio a blackouts internos. Quando a incapacidade de tocar o dentro e o fora traduz-se numa repentina queda na superfície e no potencial amoroso da dor. É preciso entrar em contato. Traduzir essa distância de si e do outro na saída de sangue amargo – que tão bem traduz nosso escorrer pela vida e escorregar pela vontade não domada. Aí nós o provamos, e distanciados de nós mesmos (finalmente) nós nos aproximamos. De algo que se traduz num contato maior. Vem a calma. A paz.
Minha querida ferida, querida amada, vem de antes de você. Do momento em que algo caiu em mim – e nunca mais consegui pegar do chão. E sabe que não sei quando isso aconteceu? E sabe que não sei onde aquilo lá ficou? Talvez em um outro país, quem sabe, né. Ou no vôo de vinda – em meio às nuvens que rodeavam o barulhento 707 que embalavam mais uma tragédia. Ou quem sabe no olhar de alguém que me matou. Sei apenas que tudo foi antes. E que não sei quando foi. E que você veio depois – meio que para me lembrar. E que com você eu me lembro. E amo – a tudo e a todos. Por uma conexão que cheira mal. Por uma conexão que escorre – pústula maldita que abre espaços no esgoto da alma que acha a pureza do inferno.
Ela achava que eu não sabia do que falava. Nós normalmente achamos isso. Subestimamos a dor contida do outro – somos especiais, afinal? Subestimamos que o fluxo do sangue nos irmana a todos, e que isso é Igreja. Bebam do meu sangue. Comam o meu corpo. Suponho que haja aqueles que querem não apenas beber a si mesmos, mas também fazer de sua fuga e de sua fome uma fonte ainda mais pura de carência incontida. Mas nunca vi- nem quero. Embora tenha aqueles que gostariam até de mostrar. Que coisa. Minha dor é pura, caralho. Acaso querem que eu a transforme em show coletivo quando ela é apenas meu? Meu show. Palco, plateia, ator, eu mesmo para poder ser algo mais.
Você está aqui, comigo. Aqui em meu pé. Entre meus dedos. Você se esconde mas me diz que está comigo – sempre comigo. Formalmente, é nada. Poderia ter se espalhado como cancro e atingir minha medula espiritual para existir enfim por si só e me deixar, como ser tão fraco como sempre fui, no isolamento e solidão do não-ser. Mas você me amou, querida ferida. Aceitou conviver comigo. Aceitou dividir minhas ausências e me fazer companhia quando nem o sofrimento mais extremo conseguia comover-me. Obrigado, meu amor.
Mas não sei mais o que me acontece. Tua sedução obriga-me a não esquecer. Os momentos bárbaros em que finalmente me achei em você barbarizam minha memória e me fazem acreditar que quanto menos e mais mais espaço terei à minha volta para poder voar. Quando é mentira. A felicidade é uma corda estendida no abismo sem nada a segurá-la. Tua mão é o que busco – a mão traiçoeira de quem dá tudo sem dar absolutamente nada. Dê-me o fim de mim para quem sabe eu ainda tentar o começo. Quem sabe.

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