Olhar de poeta: questões sobre o fenômeno literário.

May 30, 2017 | Autor: M. Miranda Fiuza | Categoria: Jorge Luis Borges, Teoria da literatura, Bartolomeu Campos de Queirós, Fenômeno Literário
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Olhar de poeta: questões sobre o fenômeno literário.
Uma leitura de "O Aleph" de Jorge Luis Borges e de "O olho de vidro do meu avô" de Bartolomeu Campos de Queirós.




Marina Miranda Fiuza
São Paulo - 2009












Sumário


Introdução...................................................................................................................... 04

"O Aleph" – Jorge Luís Borges ..................................................................................... 06
"O ovo de cristal" – H. G. Wells.

"O olho de vidro do meu avô" – Bartolomeu Campos de Queirós ............................... 08

Conclusão ...................................................................................................................... 12

Referência Bibliográfica ................................................................................................ 13














Introdução

"A poesia é um compromisso da alma."
Gaston Bachelard

"Todos nós estamos na sarjeta,
mas alguns de nós olham para as estrelas".
Oscar Wilde

O filósofo e poeta francês Gaston Bachelard escreve uma de suas mais belas obras motivado pela seguinte pergunta: como o acontecimento singular e efêmero de uma imagem poética pode repercutir em outras almas e outros corações apesar das barreiras da individualidade? Desta indagação poderíamos retirar uma outra pergunta: o que é isso que emerge do texto literário e seduz os leitores numa relação íntima que, por sua vez, dará luz à diferentes formas? Ou ainda: o que faz o texto literário invadir e palpitar nas almas dos leitores diferentemente dos outros textos? Em quê reside o fenômeno literário?
Ao contrário do que poderia se esperar, a resposta para tais perguntas Bachelard não encontrou pela análise psicológica ou histórica do texto poético. Afinal, "o ato poético não tem passado", sua essência fenomenológica depende exclusivamente do presente. É somente na atualidade da poesia que o leitor pode experimentar a imagem poética e é nesta imagem, finalmente, que reside o fenômeno literário.
A imagem poética inaugura na alma do leitor um encantamento que é anterior à consciência do próprio discurso poético. "A imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade". (Bachelard, p.2). Daí dizer que a poesia se faz pela linguagem, mas é, antes disso, um compromisso da alma. E acrescentamos: não de qualquer alma, mas daquelas que, segundo o poeta Oscar Wilde, olham para as estrelas.
A fenomenologia da imagem poética não é experimentada por todos os leitores de poesia, e nem com a mesma intensidade para aqueles que a vivenciam. Para que tal fenômeno ocorra, Bachelard afirma que é preciso um mínimo de impulso sincero de admiração pela leitura. Aqueles desprovidos de tal impulso permanecerão indiferentes à poética dos textos literários.
Detenhamos nossa atenção, então, naqueles que simpatizam pela leitura. Estes leitores comungam com o literário, fazendo aflorar do texto material, as imagens poéticas. Entramos, agora, num universo onde prevalece o oblíquo e obtuso ao reto e certo. Para se adentrar este universo é preciso desapegar-se das objetividades matemáticas, do cientificamente comprovado. É preciso, como veremos adiante, ter olho de vidro. Este é o universo das possibilidades infinitas.
O presente trabalho busca discorrer sobre o processo de criação literária e o fenômeno das imagens poéticas tomando como base duas obras, nas quais pudemos observar uma forte referência metalinguística à este processo e fenômeno.
Em um primeiro momento, tomaremos como foco de análise o conto do magistral escritor argentino Jorge Luís Borges, publicado em 1949 e intitulado "O Aleph", fazendo rápida referência ao conto que inspirou Borges. Trata-se de "O ovo de cristal", publicado em 1897 pelo escritor norte-americano H. G. Wells.
Em seguida, partiremos para uma análise mais detalhada do livro "O olho de vidro do meu avô", obra do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós e publicada em 2004.










"O Aleph" – Jorge Luís Borges
"O ovo de cristal" – H. G. Wells.

Oval, cristalina e florescente. Assim foi definida por H.G. Wells e Jorge Luís Borges a imagem poética. Representada no ovo de cristal pelo escritor inglês, e no Aleph, pelo argentino, a imagem poética metaforiza-se num objeto mágico cuja luz seduz apenas alguns.
No primeiro conto, "O ovo de cristal", tal objeto revela universos a um senhor dono de uma loja de velharias. Para que sua luz florescesse era preciso o recolhimento, a escuridão de um canto da loja ou o envolvimento do objeto em um pano de veludo preto. Este recolhimento necessário para a contemplação da ação do ovo de cristal não é por acaso. Segundo Bachelard, é no retiro da alma, no recolhimento ao canto, "em torno dessa solidão centrada (que) irradia um universo que medita e ora, um universo fora do universo".
Inspirado por este conto de H.G. Wells, Jorge Luís Borges escreve o "Aleph". Neste conto, o Borges-personagem se mostra como um homem cético, sem paciência para a literatura, a qual ele se refere como sendo tolices e mentiras. Mas a amizade com um outro escritor traz ao conhecimento do Borges-personagem a existência do Aleph: objeto oval, reluzente, e detentor de todas as imagens do mundo simultaneamente, num mesmo ponto. Também não por acaso, só era possível experimentar a magia do Aleph na reclusão escura do porão onde se encontrava. A visão deste objeto que leva o nome da primeira letra do alfabeto judaico e, portanto, inaugura um universo de possibilidades literárias, mudaria para sempre a visão do escritor-personagem.

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? (...) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei. (BORGES,1992, p. 124-125)

O Aleph, para a Cabala, é uma letra cujo desenho representa um homem que assinala o céu e a terra. Ao experimentar a fenomenologia do Aleph, Borges se torna este homem poeta, capaz de transcender a imobilidade do mundo terreno e entrar no universo que emerge do literário, o universo das imagens poéticas. Daí dizer que o conto é metalingüístico. O texto do escritor argentino contém em si a pergunta:o que é literatura... assim como indagou Bachelard em "A poética do Espaço".



















"O olho de vidro do meu avô" –
Bartolomeu Campos de Queirós

"A infância que já não existe presentemente, existe no passado que já não é". É com as sábias palavras de Santo Agostinho que o escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós dá início a "O olho de vidro do meu avô".
Publicado em 2004, o livro relata as memórias de infância do narrador-personagem no interior de Minas Gerais. Tais memórias giram em torno da figura do avô, um homem sério e reservado que possuia um olho de vidro. A estabilidade daquele olho cor do mar causava grandes inqueitações no então menino, agora narrador adulto.

Era de vidro o seu olho esquerdo. De vidro azul-claro e parecia envernizado por uma eterna noite. Meu avô via a vida pela metade, eu cismava, sem fazer meias perguntas. Tudo para ele se resumia em um meio-mundo. Mas via a vida por inteiro, eu sabia. Seu olhar, muitas vezes, era parado como se tudo estivesse num mesmo ponto. E estava. Ele nos doava um sorriso leve com meio canto da boca, como se zombando de nós. O pensamento vê o mundo melhor que os olhos, eu tentava justificar. O pensamento atravessa as cascas e alcança o miolo das coisas. Os olhos só acariciam as superfícies. Quem toca o bem dentro de nós é a imaginação. (QUEIRÓS, 2004, p. 5)

É a imaginação do narrador que, mesclada à memória do menino curioso, vai tecendo esta belíssima narrativa em prosa poética. As palavras simples e aparentemente despretenciosas escolhidas pelo autor fazem do texto uma obra de sensibilidade e profundeza imessuráveis. Com tal delicadeza e sutileza vocabular, o narrador-personagem relata fragmentos da sua infância revividos através da memória.
O narrador-personagem, agora adulto, não relembra o passado como algo distante e fixo. O passado, bem como as angústias e medos vividos pelo menino naquela época, é trazido para o presente pelo vagão da lembrança. As emoções de outrora não são apenas rememoradas com a distância do olhar adulto, mas sim revividas pelo narrador no presente. Poderíamos dizer, então, que tais memórias não narram o passado, mas sim um presente que foi. É o passado tornando-se presente pela lembrança.
Podemos, agora, entender a escolha da epígrafe do livro. Nas confissões de Santo Agostinho acerca do tempo, ele diz:
Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acontecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância, que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória. (SANTO AGOSTINHO, 1999.)

Poderíamos entender, então, que tudo o que lemos em "O olho de vidro do meu avô" tem um ponto de partida apenas: a memória, e não o passado em si, como poderia se imaginar. A memória, tão humanamente frágil e líquida, faz do passado algo sempre oblíquo e incerto. Segundo Walter Benjamin, "Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na espera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois". (BENJAMIN, 1994, p. 37) Os fragmentos lembrados pelo narrador extrapolam, então, os limites do vivido. Impregnam-se de imaginação. Tornam-se ficção nesta relação ambígua entre o real e a fantasia.
Realidade e ficção estão contidas uma na outra. Segundo o crítico literário e também historiador Alfredo Bosi, "a ficção tira do real desejos de alguma coisa que o real ainda não é" e é "a partir do real que vamos imaginar o desenho do possível futuro". (BOSI, 1997, p. 17).
Vale lembrar que não está em questão, neste momento, a veracidade dos fatos narrados nem a aproximação do narrador com o próprio escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Deixemos essas questões para os historiadores interessados. É dentro do universo da literatura que discutimos como o passado repercute na emoção do presente, por meio da memória e em como a memória é uma ilusão da realidade que foi. Afinal, "cada manhã, ao acordarmos, (...), seguramos em nossas mãos apenas algumas franjas da tapeçaria da existência vivida, tal como o esquecimento a teceu para nós". (BENJAMIN, 1994, p. 37)
Ora, o que temos na narrativa de "O olho de vidro do meu avô", então, é apenas uma meia visão do passado. Ao relembrar, o narrador-personagem do nosso objeto de estudo também adota um olhar de olho de vidro. Com o olho bom ele recorda os nomes próprios, os lugares, os eventos. Com o olho de vidro, que é o olhar da imaginação, ele ficciona um mundo infantil repleto de curiosidade, de medos e de ternura na relação vivida com o avô.
Ao indagar sobre o que pensava o avô (ou sobre o que via aquele misterioso olho de vidro) o narrador vai definindo sua própria existência. Este narrador passa a se enxergar pelo reflexo do olho do avô. O menino curioso só o é diante do olho de vidro. É na alteridade da figura do avô que a personagem-narrador ganha corpo e forma. Esta relação de alteridade fica evidente no seguinte trecho:
Ao ficar diante do meu avô eu me sentia apenas um menino em seus olhos. Se alguém nos olha nos multiplica. Passamos a ser dois. Somos duas meninas dos olhos. Mas no olhar do meu avô eu só podia ser um. E ser dois é ter um companheiro para aventurar, outro irmão para as errâncias. Assim, é sempre possível jogar nossa culpa no outro. E ele desculpa sempre. Toda pessoa é gêmea de si mesma. Há sempre um outro escondido dentro de nós que nos vigia em silêncio. Só aqueles que possuem um olhar de vidro refletem isso. Meu avô me reduzia, me fazia solitário. Eu me sentia único, órfão, sem portas para saídas. (QUEIRÓS, 2004, p. 6-7.)

Pelo processo narrativo, a ficção busca a novidade do velho: só o narrador adulto do presente poderia decifrar as inquietações que viveu na infância. Por outro lado, a ficção também busca o presente no passado, pois ao rememorar, ou ainda, ao reviver o que já foi, as emoções tornam-se experiência no presente. Em ambos os casos, porém, observamos a linguagem como organismo da ficção, pois é somente pela e na linguagem que a matéria do passado pode ser compreendida.
Entendemos, então, o olho de vidro como inteligente metáfora da máquina literária. Uma vez adotada esta visão, toda a narrativa passa a ter um caráter metalinguístico que coloca em evidência o próprio fazer literário. Para entrar no mundo da literatura onde tudo é possível é preciso transcender-se, é preciso sensibilidade e imaginação para ver o que somente o olho de vidro vê. Afinal, o que faz o poeta a não ser atravessar as cascas e alcançar o miolo das coisas? (QUEIRÓS, 2004, p.5).
As referências ao processo criativo literário não se esgotam pelo texto. Ao discorrer sobre a palavra verdade o narrador personagem assume sua alma de poeta:

Tenho medo da palavra verdade. (...) Eu sempre acreditei mais no olho da mentira do que no olho da verdade. Com o olho da mentira meu avô só me via com encantos. A dúvida sempre me salvou. As pessoas que cismam ter encontrado a verdade me assustam. Daí gostar do meu avô. Ele sempre duvidava do que via. E se via, fazia de conta que não via. Ele escolhia o que ver. Quando nos negamos a ver é porque já vimos. E fica impossível desver. (QUEIRÓS, 2004, p. 9)


Em uma relação de ternuras silenciosas, avô e neto partilhavam o gosto por aquilo que não se pode ver e que se concretiza no imaginário pela linguagem. Não por acaso, é o próprio objeto do olho de vidro que fica de herança para o narrador, que o observa deitado num pires enquanto escreve a própria obra.

Meu avô não deixou herança a não ser sua história. (...) Mas para mim, depois de passar de mão em mão, restou seu olho de vidro, agora sobre minha mesa, dormindo num pires. E sempre que passo diante dele repito: olho de vidro não chora. Olho de vidro brilha por não ver. Nunca vou saber o que o olho de vidro do meu avô viu. (QUEIRÓS, 2004, p. 46).


Assim encerra a narrativa este menino-homem que narra sua infância, tomando emprestado o enigmático olho de vidro de seu avô. Duas almas de poetas ligadas intimamente pela metáfora do olho de vidro.




Conclusão

O fenômeno literário concretiza-se no Aleph como um momento quase epifânico que leva o espectador a experimentar todo o universo numa expressão máxima de sensibilidade. Já em "O olho de vidro do meu avô", este fenômeno literário aprece em doses homeopáticas, como algo inerente a própria existência da alma do poeta.
A semelhança entre o conto de Borges e a narrativa de Queirós está no caráter metalinguístico que ambas colocam em evidência pela metáfora do Aleph e do olho de vidro. É a literatura sendo representada com uma esfera cristalina e sem limites, cuja superfície poderíamos percorrer infinitamente.
Já disse Henry James em seu famoso artigo "The art of fiction": "Parece a mim que nunca ninguém poderá fazer uma tentativa artística sem se tornar consciente de um enorme aumento – um tipo de revelação – de liberdade. Este percebe, neste caso – pela luz de um raio celeste – que a província da arte é toda a vida, todo o sentimento, toda observação, toda visão" (JAMES,1984, p.59). Segundo este mesmo autor, o artista é dotado do privilégio de absorver toda a experiência que paira ao seu redor, como uma teia de aranha cujos finos fios de seda suspendem-se na consciência do artista e captam cada partícula de ar em seu tecido. Esta mesma capacidade artística que sugere James, concentra-se no Aleph. Ambas funcionam como um portal que permite o homem terreno expandir sua existência para diferentes universos, a transcender-se para o mundo onde estão todas as possibilidades de experiências. Este é o mundo da imagem poética. Este é o mundo da literatura.
Só os poetas (leitores ou escritores) têm um Aleph no porão de suas almas. Só estes poetas têm olho de vidro.





Referência Bibliográfica


BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo: Globo, 1992.

BOSI, Alfredo. "As fronteiras da literatura". In: AGUIAR, Flávio et al. (orgs.). Gênero de Fronteira. São Paulo: Xamâ, 1997.

JAMES, Henry. "The art of fiction". In: Literary Criticism. Library of America, 1984.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. O olho de vidro do meu avô. São Paulo: Moderna, 2004.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

WELLS, Herbert George. The crystal egg. Alan Rodgers Books, 2006.











Tradução própria.



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