Olhar e desenhar a natureza Modos de ver, modos de re-ligar

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Desenho, DESENHO CIENTÍFICO, Artistas portugueses
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Olhar e desenhar a natureza Modos de ver, modos de re-ligar1 Emília Ferreira 1. Da representação simbólica ao exercício mimético Antes de a Paisagem2, como género pictórico, ter sido inventada no século XVII pelos pintores flamengos, já há muito que a Natureza suscitava curiosidade e vocações analíticas. É certo que nem todas as sociedades a olharam da mesma maneira, retirando dela imagens semelhantes. A diversidade de registos comprova a disparidade de olhares e modos de representação. A atenção ao corpo físico do mundo, conferida desde cedo pela Grécia – interrompida durante a Idade Média e a sua representação simbólica – e a que se regressou com o Renascimento, teve os seus reflexos na exigência oficinal, na perseguição de saberes técnicos, para os quais a mão e o olhar deviam ser educados, de modo a recriarem retratos mais fiéis. O Renascimento não deixou apenas o testemunho do seu olhar sobre a natureza. Coincidente com a época em que o traçado geográfico se encontrava em discussão e definição, coincidente também com um momento em que, como notou o filósofo francês Jean-Luc Nancy, a re-humanização do divino reorganiza as categorias do olhar, urgia demarcar claramente, de modo mimético3, os contornos desse novo mundo, em todos os seus rostos. E, da cartografia à fauna e à flora, as descobertas da diversidade física da vida e das suas paisagens foram medidas e reproduzidas. Os artistas que então desenharam as espécies (vegetais e animais) de que havia notícia, por vezes mesmo sem nunca as terem visto e criando delas representações baseadas em descrições literárias ou livres, de viajantes – 1 2

Texto do catálogo da Exposição Sobre-Natural: 10 Olhares sobre a Natureza. Realizada na A primeira referência ao termo paisagem surge em França, no século XV, no Dicionário de Molinet, significando quadro representando um país, e assinalando a representação plástica de um campo numa pintura holandesa. Cf. Roger, Alain, Court Traité du Paysage, Paris, Gallimard, 1997. 3 “Assurément, la mimesis n’en est pas moins tributaire d’un régime de la reproduction simples: c’est seulement à partir du moment où les dieux ont des corps entièrement humains et où les actions des héros sont des actions d’hommes, tout comme les passions humaines sont les raisons des rythmes et des timbres musicaux, qu’il est question d’'imiter’.” In Nancy, Jean-Luc, Le Plaisir au dessin, Paris, Editions Galilée, 2009, p. 31.

relembremos Dürer e o seu rinoceronte –, deram um contributo notável para a divulgação do conhecimento e a fixação de um catálogo de imagens. Recordemos que, ao tempo, os artistas estavam a conquistar o seu estatuto, desviando-se de um papel socialmente menorizado de artesãos, e as manifestações de saber – de um saber que se reivindicava como bem (in)formado – e as suas capacidades de reprodução eram portanto um meio desejado para a boa veiculação da informação. Porém, a par dos artistas, o registo científico era então também feito por médicos e farmacólogos, com premissas de desenho que, ao tempo, não apresentavam grande diferenciação em relação às dos primeiros. Com o passar dos anos, ainda no século XVI, a representação da natureza começa a ganhar uma relevância simultaneamente científica e artística4. É certo que o século XIV testemunhara já um aumento da atenção ao natural, tanto no gótico flamejante, como nas miniaturas flamengas, em que se reconhece um crescente realismo. Porém, como notou o artista e ensaísta inglês Wilfrid Blunt (1901-1987), nas obras coevas italianas, apesar de esse gosto ser patente na representação pictórica, raramente se encontrava aí uma flor reconhecível5. Apenas com os lírios parece ter existido essa preocupação, mantendo-se, de resto, um registo de apontamento, como por exemplo para indiciar na pintura o surgimento da Primavera6. Blunt recorda que o pintor italiano Cennino Cennini (1370-1440) prescrevia aos pintores que espalhassem pela pintura algumas flores e pássaros, denotando, desse modo, a presença do campo (natureza) nas suas composições. Tal prescrição significa, portanto, a manutenção de representações ainda eivadas de aspectos simbólicos, mais do que de apetência descritiva, analítica. O desenvolvimento da atenção ao detalhe de natureza terá uma maior acuidade cerca de cem anos depois, na Flandres, com artistas como os irmãos

4

Do mero apontamento simbólico, fundo ou pormenor da composição, durante a Idade Média, a natureza ganha um exponencial protagonismo. Surgindo primeiro na margem de livros, como no volume das Três riches heures, do Duque de Berry (1410-1416), que constituiu uma experiência rara, seria preciso esperar ainda várias décadas até ao seu pleno uso como tema central. 5 Cf. Blunt, Wilfrid, The Art of Botanical Illustration: An Illustrated History, New York, Dover Publications Inc., 1994, p. 18. Esta obra é considerada de referência no corpo de trabalho deste autor. 6 Cf. idem, p. 18.

van Eyck (Hubert, 1366-1426, e Jan, c. 1390-1441), como se pode perceber no retábulo de altar de Gent, pintado c. de 1430. Outros artistas começam entretanto a usar de maior detalhe e mimetismo nas suas obras. Entre eles, Jacopo Bellini (1396-c.1470), Albrecht Dürer (14711528), Leonardo da Vinci (1452-1519). Os desenhos de flores 7 tornam-se referência pela sua exactidão, por não representarem um tipo de flor, mas uma flor específica, ou seja, com um nível de pormenor que evidencia individualização por observação directa. Para essa observação foram também essenciais os jardins. No caso de Dürer, por exemplo, o facto de existir em Nuremberga, sua cidade natal, um magnífico jardim, e sendo ele próprio jardineiro, a representação de flores ganha uma pujança especial. Esta atenção à Natureza tem razões filosóficas e teológicas. No final do século XV e início do XVI, vários autores, como o filósofo italiano Marsílio Ficino (1433-1499), ou o médico e pensador francês François Rabelais (1494-1553) defenderam um regresso à natureza de modo a ler directamente no livro que deus escrevera, através das suas criações, em vez de se restringirem a interpretações

bíblicas,

potencialmente

erróneas

e,

com

frequência,

causadoras de perturbações sociais8. 2. Limitações técnicas Contrariamente ao que poderíamos antecipar, nessa época os trabalhos mais realistas não saem da produção dos ilustradores, mas dos artistas. Como refere Wilfrid Blunt, no final do século XV, quando já era corrente, nas produções pictóricas e escultóricas, a representação mimética de elementos

7 Leonardo recordará mais tarde os inúmeros estudos de flores que fez nos seus primeiros anos de trabalho. 8 “At the beginning of the sixteenth century Vives, Rabelais and Ficino all encouraged men to study the facts of nature, and to come to know God through an acquaintance with his works. As the century wore on, this approach began to appeal to all those, both Roman Catholic and Protestant, who regretted seeing for, as Ralph Austen put it in 1657, ‘the people of Go in the beginning of the world were without the Scriptures for many years, and they read many things in the book of the creatures.’ The book of God’s work was older than the Bible whose interpretation caused so much controversy, and the hope that was by a common endeavour to observe nature and exchange information, scientists might recover the shattered unity of Christendom.” In Prest, John, The Garden of Eden: The Botanic Garden and the Re-Creation of Paradise, New Haven and London, Yale University Press, 1981, pp. 38-39.

florais, os incunábulos mostravam ainda imagens estilizadas de plantas9. A isso não deveria ser alheia a questão da reprodução: o facto de essas imagens serem destinadas à impressão fazia com que as ilustrações fossem realizadas em xilogravura10, o que impedia, tecnicamente, um maior rigor do traço. O menor realismo na representação também não seria alheio ao facto de, com frequência, por esses tempos, as ilustrações serem da autoria de amadores – ou de artistas menores – com frequência mais interessados no poder curativo das plantas do que na sua correcta representação, dentro de moldes científicos. Por isso, era comum a existência de duplas constituídas por um artista e um botânico (físico ou farmacólogo). Do concurso dessas duas valências saíam as mais relevantes obras, como é o caso do German Herbarius, um dos mais significativos herbários do tempo, que contou com um físico na preparação da secção médica11. 3. Desenhar nos jardins, compilar herbários, organizar o saber Nas primeiras obras deste tipo, começou a notar-se um naturalismo crescente também nas plantas que podiam ser desenhadas directamente do natural. Para tanto, como vimos, foram essenciais os jardins, nos quais se plantavam não apenas as espécies locais, como também as que então começavam a chegar de outras paragens do mundo. Assim, com o decorrer dos anos, tornouse igualmente notória a capacidade de mimetismo na representação. Não podemos, contudo, esquecer que, para o ilustrador científico, os pressupostos que conduzem ao realismo da imagem desenhada não pretendem a reprodução de um exemplar único (de uma flor em particular), mas de um representante da espécie, ilustrativo das suas características gerais. Apesar da aparente contradição e de podermos pensar que existe um regresso a uma 9

“During the closing years of the fifteenth century, when naturalism had already taken a firm hold of painting and illumination from Italy to Flanders, the illustrators of the first printed herbals were for the most part still perpetuating the degraded plant figures derived from classical models. These incunabula, with one important exception, must therefore be considered as belated expressions of a outworn tradition, just as the Venetian herbals of the beginning of the fifteenth century were the advance guards of a new age.” In Blunt, Wilfrid, 1994, op. cit., pp. 32. 10 Apesar de o último trabalho em que a xilogravura foi usada datar de 1701, sendo da autoria do médico e historiador sueco Olof Johannis Rudbeck (1630-1702), pai do naturalista Olof Olai Rudbeck (1660-1740) com quem fez parceria, a abertura de imagens sobre o corpo da madeira tinha perdido campo para modos de representação mais fidedignos, como a gravura em metal. 11 Cf. Blunt, op. cit., p. 35.

linguagem de tendência abstractizante, estamos muito longe do registo simbólico medieval, pretendendo-se, antes, a ilustração das características exactas da espécie, de modo a que ela possa ser claramente representada e definida. A atenção às potencialidades dos materiais gráficos e de reprodução revela exactamente o cuidado exigido na qualidade do desenho, tomado como instrumento de conhecimento científico e não como expressão artística. Apesar de as primeiras três décadas do século XVI não terem apresentado um volume de obras dignas de especial interesse, do ponto de vista botânico12, com a excepção da edição impressa de grandes nomes da antiguidade, como Plínio, Dioscórides e Teofrasto, dentro de poucas décadas o panorama iria ser consideravelmente enriquecido. Os herbários produzidos em Veneza, bem como o referido German Herbarius, haviam preparado o terreno para um claro avanço na área da ilustração botânica, recolhendo e sistematizando a informação do mundo natural em contínua descoberta. Em 1530 é, entretanto, publicado o Herbarum Vivae Eicones, do físico e monge alemão Otto Brunfels (1488-1534), famoso não tanto pelo desenho como pelo seu relevante trabalho de compilação. Em 1542, é publicado De Historia Stirpium, o portfolio do médico e botânico alemão Leonhart Fuch13 (1501-1566), um trabalho de referência, pela qualidade das suas ilustrações. A xilogravura estava a entrar em declínio, apesar de haver ainda várias obras impressas que recorreram a esta técnica para a reprodução das ilustrações, como a do físico italiano Pierandrea Mattioli (1501-1577), Tractado das drogas e medicinas das Indias Orientais no qual se verifica muito do que escreveu o doutor Garcia de Orta, com ilustrações do botânico Cristóvão da Costa (século XVI), publicado em 1578, e algumas obras de botânicos espanhóis, nascidas das viagens de exploração que então se faziam pela América do Sul. Na Flandres, está prestes a surgir um nome de referência nesta história: Charles de l’Écluse, mais conhecido como Carolus Clusius (1525-1609), um verdadeiro renascentista, conhecedor de várias línguas (vivas e mortas) tinha também vastos conhecimentos de História, Cartografia, Mineralogia, Zoologia, 12

Cf. idem, pp. 42-44. Blunt recorda que o nome da fúcsia (fuchsia), brinco-de-princesa, é uma homenagem a Fuch. Cf. Idem, p. 48. 13

Numismática, etc.. Médico e botânico, viajante informado, o seu trabalho beneficiou das inúmeras expedições que fez pela Europa, nomeadamente pela Península Ibérica, tendo resultado desta última a obra Rariorum aliquot Stirpium per Hispanias observatum Historia (1576). O seu trabalho é especialmente importante pelos dados de observação que introduziu, nutrido ao longo da sua vida não apenas pelas viagens, mas também por haver sido um grande cultor de plantas raras14. A par da história da ilustração, anda a dos jardins e da pintura. O interesse dos botânicos, e dos artistas, tantas vezes jardineiros amadores, dilatou também a flora europeia, tornando centrais nas representações de ilustração, nas pinturas e também nos jardins algumas espécies até então desconhecidas, como o jacinto, por exemplo, que cedo passaria a ostentar uma multiplicidade de variedades que, em 1580, já podia ser encontrada na Holanda15. A reescrita do mundo, com as descobertas, leva à necessidade de registo e inventariação das novas espécies botânicas. Por outro lado, essa diversidade irá alimentar o desejo de belos jardins. A ligação bíblica do jardim com o momento da criação fez com que, ao longo da história, estes espaços sempre tenham sido vistos como lugares privilegiados, de paz e perfeição, recriações dos perfeitos momentos originais. Como menciona o ensaísta inglês John Prest, ao tempo dos descobrimentos, os navegadores terão tentado encontrar, nas paragens recém-descobertas, o local do Jardim do Éden original. Não o havendo conseguido, terão começado a pensar em juntar do mundo os seus elementos dispersos e recriar o jardim sob a sua forma científica, botânica. Se esta teoria é discutível, já nos parece mais aceitável que os primeiros jardins botânicos tenham surgido fruto da curiosidade crescente sobre uma natureza física do mundo que se revelava cada vez mais surpreendente e rica, exibindo, nas novas paragens conhecidas, uma exuberância que urgia estudar e mostrar ao Velho Mundo, num espaço circunscrito e organizado16. Assim, do modelo de jardim fechado, simbólico e útil da Idade Média, passa-se para o jardim pensado para ser fruído pela sua beleza, pela pluralidade de formas, cores, perfume, simultaneamente mostruário do mundo, com a 14

Cf. idem, p. 64. Cf. idem., p. 75. 16 Cf. Prest, John, 1981, op. cit., p. 32 e segs. 15

vantagem – sobre um herbário, por exemplo – de as plantas estarem vivas17 e de se poder usufruir delas a vários níveis de conhecimento. A criação de jardins botânicos – rosto científico dos espaços consagrados às plantas como objecto de estudo – não cativa apenas os farmacólogos ou os físicos, mas também os artistas que, tanto como os primeiros, se ocupam do seu registo mimético e do seu estudo. Várias cidades europeias ostentam jardins com estas características de exemplo do mundo. Fundam-se jardins botânicos em Pisa (1543), em Pádua (1545) e Bolonha (1567). Há ainda importantes centros de estudo de botânica, com frequência em cortes ilustradas como a dos Habsburgos. Várias universidades se aplicam igualmente no estudo desta disciplina, dedicando o seu tempo e saber à criação de herbários. Um dos mais famosos estudiosos do tempo, que trabalhou em vários países da Europa, foi o flamengo Georg Hoefnagel (15421600), personalidade de múltiplos interesses, que afirmava a natureza como única mestra: Natura sola magistra18. O século XVII revela-se uma época de ouro, no que concerne ao interesse que a natureza desperta. Em França, surgem alguns gabinetes de curiosidades, nutridos pela fortuna e interesse de amadores. Em Inglaterra, por sua vez, está em curso um enorme contributo para o desenvolvimento da botânica 19 . O movimento científico baseado na experimentação, que se iniciara na Europa ainda em Quinhentos, e em que as Academias, instituições pioneiras no ensino e no debate científico, se revelaram fundamentais para o desenvolvimento de projectos inovadores, produziria ao tempo obras de referência. Como notou o ensaísta Nikolaus Pevsner, “los descubrimientos de Kepler, Galileo, Descartes, Newton y Leibniz son los resultados del nuevo espíritu de investigación experimental”20. Nesses anos, surgem, portanto, ensaios incontornáveis como as inúmeras investigações do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) ou as Mémoires pour servir à l’histoire des Plantes, de Dionys Dodart (1635-1707), publicadas em França em 1675. 17

Cf. idem, p. 6. Cf. Blunt, op. cit, pp. 77-79. 19 Cf. idem, p. 105. 20 In Pevsner, Nikolaus, Las Academias de Arte: Pasado y Presente, Madrid, Ediciones Cátedra, S.A., 1982, p. 30. 18

4. As flores no centro do quadro. Aspectos do quotidiano. No século XVII, surge um novo género pictórico: a natureza-morta. A pintura de flores, que não tem preocupações botânicas, embora exiba um conjunto de recursos técnicos, formais, de grande exigência e rigor, floresce ela própria ao longo de seiscentos. Mais uma vez, é na Flandres que tal género ganha maior expressão, alastrando, contudo, para outras nações. Pela pintura, as flores eram perenes. Numa época em que comprar flores seria proibitivo para alguns, surgem episódios pitorescos: uma senhora, sem meios para adquirir flores, teria encomendado a Jan Brueghel (1568-1625) um quadro em que as representass21. É difícil acreditar que um dos mais notáveis pintores flamengos se fizesse pagar abaixo do custo de um fornecimento frequente de flores frescas, mas o episódio é significativo, como nota Blunt, pela origem modesta deste género pictórico e, também, do nosso ponto de vista, pelo sublinhar de um exercício mimético de tal rigor que substitui o real. Apesar das modestas origens do género, muitos pintores se dedicaram à representação dos apetecidos modelos botânicos que, além do mais, começaram a ter um mercado exponencial, sobretudo numa Flandres em que a aristocracia massacrada pela Guerra dos Trinta Anos, fora substituída por uma burguesia florescente, com crescente poder económico, e que desejava encher as suas casas de uma beleza com referentes diversos do da classe dominante anterior. Tal como a pintura de género – que representava os interiores burgueses e o seu quotidiano – também a pintura de flores e a natureza-morta foram temas apetecíveis para clientes que não tinham modelos culturais enraizados na antiguidade e na cultura clássica. Entre os seus cultores, como Jan Brueghel (1568-1625), encontrar-se-iam nomes como Ambrosius Bosschaert (1573-1621), Daniel Seghers (1590-1661), ou Balthasar van der Ast (1593-94-1657), formando a geração de primitivos flamengos dedicada à pintura de flores. Com o passar do século, esse grupo foi dilatado, surgindo artistas como Jan Davidsz de Heem (1606- c.1683), Maria Verelst (1680-1744), Godfried Schalcken (1643-1706), Abraham Mignon

21

Cf. Blunt, op. cit., p. 117.

(1640-1679), Jacob van Walscapelle (1644-1727) ou Rachel Ruysch (16641750). Por outro lado, amadores abastados começam a encomendar aos artistas a realização de livros de flores e de quadros, nos quais espécies que não florescem na mesma época do ano se podem encontrar em conjunto, numa perfeita floração. Animados também por plantas que chegavam à Holanda, oriundas das Índias Ocidentais, e que ofereciam um vasto espectro de assuntos a observar e registar, e constituíam, além disso, um apetecível campo de experimentação botânica, nomeadamente no desenvolvimento de bolbos, e do comércio, vários artistas – como Judith Leyster (c.1610-1660), Jacob Marrell (1613/1614-1681) – se dedicaram à sua representação, tanto em pintura como em obras com fins mais prosaicos, como os catálogos encomendados por comerciantes de bolbos22. Ao longo dos séculos XVII e XVIII multiplicam-se registos de motivos vegetalistas, tanto da autoria de artistas como de amadores, em expressivas aguarelas, trabalhos a óleo ou gravura. Estes surgem tanto nos Países Baixos, como em França, na Alemanha, Inglaterra, Espanha, Itália ou Portugal – recordemo-nos, por exemplo de Josefa de Óbidos (1630-1684). A naturezamorta revela-se um género bastante praticado e com vasto mercado. 5. Aspectos da ilustração científica em Portugal. Apesar das viagens dos portugueses pelo mundo e dos conhecimentos geográficos que cartografaram e ajudaram a cartografar, redesenhando o mundo e contribuindo para o fim de vários mitos, como o da existência real do Jardim do Éden, cuja busca prosseguiu até ao século XVI 23 , a ilustração científica tem, entre nós, uma história bastante irregular. Com efeito, é apenas no século XVIII, com o naturalista italiano Domenico Vandelli (1730-1816), professor da Universidade de Coimbra e responsável pela criação do Jardim Botânico24 da sua universidade25, que esta terá plena e inovadora existência26.

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Cf. Blunt, op. cit., p. 122. Ver, sobre este assunto, Prest, John, op. cit., capítulos III e IV. 24 Domenico Vandelli defendia a importância dos jardins botânicos como fonte de conhecimento com inúmeras aplicações práticas, como no avanço da agricultura. Veja-se o 23

Será este artista a alma da criação, em Lisboa, da Casa do Risco do Jardim Botânico, no Palácio Real da Ajuda, em 1780, que formou vários desenhadores científicos27, fazendo com que, ao tempo, Portugal se colocasse na vanguarda da ilustração. Não podemos, por isso, deixar de referir nomes tão importantes para a ilustração científica de então como António José dos Santos, Vicente Jorge de Seixas, Manuel António da Silva, José Joaquim da Silva, Cypriano da Silva, João Pedro Correia, Francisco de Paula Rocha, António Gomes, António Casimiro Turreira, António José Ferreira de Araújo, José Cândido Correia, Manuel Tavares da Fonseca, José dos Anjos, Victor Modesto Azzolino, Pedro José Nunes e Alexandre José das Neves “personagens que, salvo raras excepções, continuam no mais completo anonimato”28, apesar da relevância científica do seu trabalho. 6. O triunfo do ornamento, ou as formas naturais como inspiração A chegada ao século XIX revelará duas realidades distintas. Por um lado, o êxito de fixação da imagem fotográfica e, por outro, a industrialização. No primeiro caso, os artistas, questionando-se quanto à necessidade de mimetismo

nas

suas

obras,

doravante

libertas

para

a

expressão,

desinteressar-se-ão do registo mais realista. Em termos artísticos, Oitocentos verá o género da natureza-morta decrescer em importância, tornando-se mais praticada a paisagem que, desde Setecentos, se tornara já interesse central dos artistas ingleses. Vê-la-emos em seguida apaixonar os pintores norte-americanos e alemães, tornando-se, depois, foco de uma das mais importantes escolas informais de pintura em França. Vivendo os seus

texto reproduzido neste catálogo, que o autor, sábia e diplomaticamente, dedicou à rainha D. Maria I. 25 Cf. Leite, Ana Cristina, “Alegorias do Mundo: a arte dos jardins”, in História da arte Portuguesa, Direcção Paulo Pereira, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, p. 216. 26 Sobre este assunto, ver, neste catálogo, o texto de Pedro Salgado. 27 “Em Portugal, embora existam casos anteriores dignos de referência, como o de Frei Cristóvão de Lisboa, a prática do desenho científico – suporte fundamental da investigação da natureza – iniciou-se sistematicamente na Casa do Risco do Jardim Botânico, no Palácio Real da Ajuda, no ultimo quartel do século XVIII.” In Faria, Miguel, “A Casa do Risco do Jardim Botânico da Ajuda (1780-1833)”, Salgado, P.; Marques, D., Farinha, N.; Bígio, A.T., 5 Séculos a ilustrar História Natural de Portugal, no prelo. 28 Idem.

melhores momentos com a Escola de Barbizon, terá os últimos momentos de glória com os impressionistas, já no último quartel do século XIX29. A contínua valorização da natureza, tanto como inspiração sentimental (a Inglaterra tornará populares os volumes de flores, com a sua procurada linguagem simbólica, usada nos salões e na literatura; os textos desses volumes de flores não terão interesse botânico, mas as suas ilustrações sairão ainda da pena de competentes botânicos30) como enquanto mestra do desenho, terá como mote a reacção contra a crescente industrialização. Será ainda em Inglaterra, país em que foi mais vivo o debate sobre o ornamento – o aspecto decorativo de que era dotado um objecto funcional, de modo a embelezar as suas formas e a retirá-lo da secura da simples função a que a máquina o votava –, que veremos erguerem-se vozes de autores e teóricos tão relevantes como John Ruskin (1819-1900), para os quais o ornamento era algo inspirado no trabalho de Deus, ou seja na Natureza31, Owen Jones (1809-1874), que defendia que o reconhecimento e a criação da beleza advinham da observação da natureza, e William Morris (1834-1896), fundador do movimento Arts & Crafts, que também defendeu a inspiração na natureza como forma de recuperar o espírito da arte e de a adequar às necessidades mais humana, revalorizando o papel do desenho bem (in)formado para a criação de objectos cuja beleza enriqueceriam a vida dos seus produtores e dos seus consumidores. Para todos eles – como também, do outro lado da Mancha, na Alemanha, para o naturalista Ernst Haeckel (1834-1919), autor do famoso volume Kunstformen der Natur –, a fonte de inspiração era a natureza e o seu estudo devia ser atento, ainda que os resultados das produções artísticas pudessem vir a ser estilizados. Inúmeras publicações – periódicas e em livro – vêem a luz durante o século XIX,

sobretudo

em

Inglaterra,

onde

os

jardins

ganham

crescente

protagonismo32 e os amadores buscam um nível de informação científica já

29 Sobre este assunto, ver Ferreira, Emília, “O Elogio da Natureza”, in Natura Artis Magistra. A Natureza Mestra das Artes, Almada, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, 2001. 30 Cf. Blunt, op. cit., p. 219. 31 Cf. Ruskin, John, The Stones of Venice. Volume I, The Foundations. London & New York: J.M. Dent & Sons Ldt. e E.P. Dutton & Co., 1907, cap. XX, § XVII, p. 196. 32 A relevância dos jardins em Inglaterra, com a crescente construção de estufas para o crescimento de exóticas, tem um dos seus corolários na Great Exhibition, de 1851, em que o

bastante apurado. A revolução industrial tivera também como consequência os tempos livres e surgem então os hobbies, com que as classes mais abastadas preenchem esses momentos. Além de a pintura de flores ter passado a ser praticada como prenda, sendo ensinada às meninas desde tenra idade, a contínua ocupação com a jardinagem prendia os interesses de inúmeros cidadãos, que se tornarão leitores curiosos das inúmeras revistas de floricultura que, na segunda metade do século XIX, floresceram em Inglaterra. Apesar de a fotografia, em muitos campos, ter feito perigar a continuação do desenho como processo analítico e registo científico, muitos autores mantiveram um intenso e muito significativo labor na área. Se é certo que, então, foram mais os botânicos a trabalhar esses conteúdos, alguns artistas permaneceram atentos ao registo científico. Em Portugal, destacam-se ainda no século XIX, Félix Brito Capello (1828-1879) e o artista espanhol radicado em Portugal, Enrique Casanova (1850-1913), um dos maiores nomes da gravura e da ilustração científica. Por toda a Europa, vários artistas de formação persistirão nessa prática, contribuindo para a divulgação dos conhecimentos científicos da flora dos seus países e dos países que visitavam, para nutrirem os crescentes gabinetes de botânica nos museus de história natural. Notaremos apenas alguns nomes, entre artistas e botânicos: os ingleses George Loddiges (1784-1846), George Cooke (1781-1834), William Baxter (1787-1871), Mrs. Edward Blury, autora da importante Selection of Hexandrian Plants (1831-1934); os alemães Jacob Sturm (1771-1848) e Johann Wilhelm Sturm (1808-1865), autores do volume Deutschlands Flora in Abbildungen nach der Natur; e o suíço Jonas David Labram (1785-1852), fabricante de tecidos e pintor de flores, autor das litografias realizadas para o volume do botânico Johann Hegetschweiler (1789-1839). 7. A persistência do desenho Ao longo do século XX, a produção de ilustradores científicos e de artistas plásticos viu acentuadas as suas diferenças de representação. Hoje, porém, edifício da exposição sairá da pena de Joseph Paxton, um dos mais notáveis jardineiros britânicos do tempo.

vários autores estabelecem pontes entre os dois registos. É certo que se mantêm divergências. Como observa o biólogo e ilustrador científico Pedro Salgado, além de uma história diversa (a ilustração científica não tem evoluído por movimentos ou correntes, mas em torno da exigência científica e da inovação dos processos gráficos) os pressupostos são distintos, interessando à ilustração científica o rigor da explicação do que é a espécie representada e não o traço autoral daquele que a desenha – algo que é fulcral no registo artístico. Contudo, a todos eles – artistas e ilustradores – une o desejo de ver e de representar o visível através do desenho. Munidos de cadernos de campo, é porventura aí que a visão mais pessoal – leia-se, para o que aqui nos interessa, expressiva, artística – cruza os olhares. Para além de, arriscamos pela nossa parte, um igual sentimento de religação ao mundo, que o desenho permite e exige. Ao celebrarmos a primeira década de vida de O Chão das Artes – Jardim Botânico e recuperando a relevância que, há dez anos, quisemos dar ao desenho como disciplina do rigor e da atenção ao mundo, lançámos a uma dezena de autores o repto de partilharem connosco as suas visões da natureza, seja tomando-a como elemento a estudar e a celebrar, seja como ponto de partida para a sua expressão pessoal. Foi com enorme satisfação que recebemos de volta a sua adesão a este projecto. Os artistas plásticos presentes são Domingos Loureiro, Pedro Saraiva, Pedro Vaz, Rosário Forjaz e Ruth Rosengarten. Os ilustradores científicos são Filipe Franco, Marcos de Oliveira, Nádia Torres, Sara Simões e o decano e mestre de todos eles, Pedro Salgado. Bisamos, assim, dez anos depois, a colaboração deste biólogo, pioneiro contemporâneo do desenho científico em Portugal, criador do Grupo do Risco. Apesar de os termos referido aqui em dois grupos separados, na exposição eles partilham o espaço, entrando num diálogo que exemplifica as múltiplas faces e possibilidades do desenho, sem hierarquias nem espartilhos, apenas com os olhos postos na natureza como mestra. Enquanto casa do desenho, espaço de reflexão sobre as potencialidades da disciplina, o que interessa à Casa da Cerca é a diversidade dos modos de fazer surgir formas. Neste caso, a pretexto dos 10 anos de O Chão das Artes – Jardim Botânico, lugar de ciência, arte e fruição, não quisemos deixar de

evocar o quanto a natureza – em scope paisagístico ou em detalhe – tem apaixonado e continua a atrair os desenhadores. Fazer surgir a forma, para usar uma expressão de Jean-Luc Nancy, é uma das grandes missões do desenho. Torná-la presente, patente, reconhecível, tem sido, com mais ou menos insistência histórica, uma constante. Nesse esforço existe uma vontade de analisar o mundo, de lhe captar a essência através da forma. O conhecimento processa-se através desse acto de re-presentação, de captação dos segredos dos diferentes corpos, observados, sintetizados e repetidos pelo gesto do desenhador. Desenhar é, portanto, um acto de humildade e de dedicação ao visível. Há muitos anos, o pintor, gravador, crítico de arte e diplomata francês Roger de Piles (1635-1709), deixou claro que, mais do que a observação, desenhar é também fazer ouvir a sua voz, sendo que representar uma visão sobre o visível é um traço autoral. À parte discussões – que neste contexto pouco nos interessam – sobre os limites e as definições do que é arte, importa-nos sublinhar o que une todos estes autores: a matriz da natureza, nas suas múltiplas faces. Como também dizia Roger de Piles, o que consideramos um bom desenho merece sempre a atenção dos curiosos33. Sendo a curiosidade uma das mais importantes fontes de grandes descobertas e de inequívoco e intenso prazer, é esse despertar que desejamos que esta exposição vos proporcione.

33 “Les Desseins dont on veut parler ici, sont les Pensées que les Peintres expriment ordinairement sur du papier por l’exécution d’un Ouvrage qu’ils méditent. On doit encore mettre au nombre des Desseins les Études des grands Maîtres, c’est-à-dire, les Parties qu’ils ont dessinées d’après Nature; comme des têtes, des mains, des pieds & des Figures entières, des Draperies, des Animaux, des Arbres, des Plantes, des Fleurs et enfin tout ce qui peut entrer dans la composition d’un Tableau. Car, soit que l’on considere un bon Dessein, par rapport au Tableau dont il est l’Idée, ou par rapport à quelque Partie dont il est l’Étude, il mérite toujours l’attention des Curieux.” In Roger de Piles, Idée du Peintre Parfait, 1725.

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