Olhar e Escutar com Atenção: Transmissão e Assimilação do Saber nas Práticas Musicais do Povo Ka\'apor

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II Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia

Etnomusicologia na contemporaneidade: Diálogos disciplinares e interdisciplinares

Belém, 22 a 24 de junho de 2016

REALIZAÇÃO

APOIO

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ANAIS

ADRIANA COUCEIRO, LILIAM BARROS COHEN, PAULO MURILO GUERREIRO DO AMARAL, SONIA CHADA (Orgs.)

ISBN 978-85-67528-01-4

Disponível em: http://iienabetnorte.wix.com/iienabetnorte

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Reitor Carlos Edilson de Almeida Maneschy Vice-Reitor Horácio Schneider Pró-reitora de Ensino de Graduação Maria Lúcia Harada Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Emmanuel Zagury Tourinho Pró-reitor de Extensão Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-reitor de Administração Edson Ortiz de Matos Pró-reitora de Planejamento Raquel Trindade Borges Pró-reitor de Relações Internacionais Flávio Augusto Sidrim Nassar Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Edilziete Eduardo Pinheiro de Aragão

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA ARTE Diretora Geral Adriana Azulay Diretor Adjunto Joel Cardoso

BIBLIOTECA CENTRAL Coordenadoria de Desenvolvimento de Coleções Nelma Maria da Silva Maia de Lima Coordenadoria de Processamento de Material Informacional Ana Maria Pereira Gomes da Cruz Coordenadoria de Serviços aos Usuários Carmecy Ferreira de Muniz Coordenadoria de Gestão de Produtos Informacionais Albirene de Sousa Aires Coordenadoria de Planejamento e Marketing (Sistema de Bibliotecas - SIBI/UFPA) Hilma Celeste Alves Melo

LABETNO Coordenadoras Líliam Cristina Barros Cohen Sonia Maria Moraes Chada

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ Reitor Juarez Antonio Simões Quaresma Vice-Reitor Rubens Cardoso da Silva Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Hebe Morganne Campos Ribeiro Pró-Reitora de Graduação Ana da Conceição Oliveira Pró-Reitor de Gestão e Planejamento Carlos Capela Pró-Reitora de Extensão Mariane Franco

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO Diretor Anderson Madson Oliveira Maia Vice-Diretor Jairo de Jesus Nascimento da Silva

EDITORA DA UEPA Coordenação e Chefia de Edição: Paulo Murilo Guerreiro do Amaral

GEMAM Coordenador Paulo Murilo Guerreiro do Amaral

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COMISSÃO ORGANIZADORA Adriana Couceiro Líliam Barros Cohen Paulo Murilo Guerreiro do Amaral Sonia Chada

COMISSÃO CIENTÍFICA Jorgete Lago José Ruy Henderson Liliam Barros Lívia Negrão Maria José Moraes Paulo Murilo Guerreiro do Amaral Rosa Maria Mota da Silva Sônia Blanco Sonia Chada

ASSISTENTES DE PRODUÇÃO

COORDENAÇÃO Jucélia Estumano Henderson Tainá Maria Magalhães Façanha Alice Alves Anderson Clayton Gonçalves Sandim André W.Louzada D'Albuquerque Bárbara Lobato Batista Dayse Maria Pamplona Puget Ednésio Teixeira Pimentel Canto Edson Santos da Silva Evandro Williams da Cruz Silva Laura Vicunha Paraense Guimarães Natália Lobato da Silva Paulo Roberto da Costa Barra Ricardo Smith Rodrigo Pinto de Macedo Thomas Rafael Alves Teixeira ARTE Josi Mendes EDIÇÃO E REVISÃO Tainá Maria Magalhães Façanha DIAGRAMAÇÃO Tainá Maria Magalhães Façanha

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Biblioteca Central – UFPA

Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia (2: 2016 jun. 22-24: Belém, PA) Anais [do] II Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia [e] II Colóquio Amazônico de Etnomusicologia / Encontro Regional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, Colóquio Amazônico de Etnomusicologia. – Belém: LABETNO: GEMAM, 2016. ISBN ISBN 978-85-67528-01-4 1. Etnomusicologia. I. Colóquio Amazônico de Etnomusicologia (2: 2016 jun. 2224: Belém,PA). II. Título.

CDD - 23. ED. 780.89 O conteúdo publicado é de inteira responsabilidade dos respectivos autores.

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Olhar e escutar com atenção: transmissão e assimilação do saber nas práticas musicais do povo Ka'apor. Hugo Maximino Camarinha UEPA – MPEG - [email protected] Claudia Leonor López Garcés MPEG - [email protected] Resumo: Neste trabalho procuramos discorrer sobre os métodos particulares entre a transmissão e a apreensão musical dos Ka'apor, povo falante de língua do tronco Tupi, família Tupi-guarani, que vive no estado do Maranhão, na Terra Indígena Alto Turiaçu. Trabalhos sobre transmissão musical em contextos socioculturais específicos, debatidos em disciplinas como antropologia, etnomusicologia e educação, serviram para a melhor compreensão dos cenários da aprendizagem musical deste povo. A posterior seleção de elementos etnográficos no relato da experiência de campo, correlatos aos aspectos da transmissão musical foram no sentido de evidenciar os modos de aprender musicalmente entre os Ka'apor. No caso dos aspectos educativos do contexto musical, pensamos a consequência de seus atributos no sentido da criação e da perpetuação cultural. A transmissão e apreensão musical protegem a cultura, de modo que, ao ser transmitida, a tradição permanece e se fortifica. Palavras-chave: Transmissão de saber. Povo Ka'apor. Etnomusicologia.

1. Introdução e metodologia Neste trabalho procuramos discorrer sobre os métodos particulares sobre transmissão e apreensão musical entre o povo Ka'apor. Intento resultante de indagações que surgiram no transcurso da pesquisa122 – e que tiveram em parte, réplica preliminar em consequência de algumas observações e relatos feitos em campo, nomeadamente, durante nossas visitas às aldeias Xié e Paracuí na Terra Indígena Alto Turiaçu – mediante o contato com as manifestações musicais, objeto de nossa investigação. De que forma é feita a transmissão musical aos mais jovens indígenas, referente a todos os eventos onde a cultura musical Ka'apor é aplicada, sobretudo aquela executada nas práticas rituais deste povo? Procuramos colocar as reflexões a partir deste questionamento norteador, com base no relato da experiência de campo, através do método etnográfico, considerando aspectos relacionados diretamente com a transmissão de conhecimentos no interior do cenário musical Ka'apor.

Projeto: Música e Xamanismo Ka’apor. Uma abordagem etnomusicológica da medicina ameríndia. Tabalho de pesquisa desenvolvido no ambito do Programa Institucional PIBIC, do Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG (2015/2016) 122

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O universo das práticas musicais deste povo está inserido e é desenvolvido, em grande parte, no ato ritual. Contudo, deve-se ditinguir entre a práxis musical que apresenta finalidade terapêutica e a que se desenvolve com fim propiciatório. Por sua vez, essas práticas não emergem, mas só se desenvolvem segundo padrões específicos

de

transmissão de conhecimentos. As práticas de aprendizagem musical fora do âmbito escolar, em contextos socioculturais específicos, são tema debatido academicamente e transita entre disciplinas das áreas de antropologia, etnomusicologia e educação. Nesse sentido buscamos nessas fontes, alguns subsídios que achamos pertinentes para descorrer sobre os modos de passar e adquirir conhecimento musical entre os Ka'apor. 2. Transmissão musical e a abordagem etnomusicológica Em seu livro “The Anthropology of Music”, Merriam (1964, p. 145 -146) afirma que "cada cultura molda o processo de aprendizagem para lidar com as suas próprias ideias e valores"; postulou que "a forma mais simples e indiferenciada de aprendizagem de música ocorre através da imitação" segundo o autor a imitação é um recurso importante no aprendizado musical e afirmou que esse pode ser um procedimento inicial nesse processo. Tal assertiva (MERRIAM, 1964, p. 147, 305), parece ter sido firmada muito

por

influência de algumas etnografias sobre música, por exemplo, sobre os povos indígenas norte-americanos e os modos de aprender entre as crianças Venda da África do Sul, respetivamente: [A] aprendizagem de canções acontece, no canto para as danças, os jovens "sentam com os cantores junto ao tambor e aprendem as canções dessa maneira." Eles estão autorizados a bater sobre o tambor com o outros, e cantam baixinho até aprender as melodias (DENSMORE 1930, p. 654 apud MERRIAM, 1964, p. 147). (tradução do autor)

Sobre a aprendizagem musical das crianças Venda, Blacking afirma: […] as crianças Venda têm todas as oportunidades para imitar as canções e danças de adultos, [...] Os seus esforços para imitar os adultos e crianças mais velhas são encorajados e admirados ao invés de abafados, [...] embora as melodias estejam lá para ser imitadas, crianças pequenas fazem pouca ou nenhuma tentativa de cantar, e estão em primeiro lugar somente dispostas a imitar o movimento motor (BLACKING, 1957, p. 02 apud MERRIAM, 1964, p. 305). (tradução do autor)

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Como aponta Queiroz em sua tese (2005), referências teóricas provenientes dos estudos etnomusicológicos propiciam a compreensão dos vários cenários onde acontece a aprendizagem musical. Esses estudos enfatizam a necessidade de compreendermos corretamente as bases desses sistemas musicais, por exemplo, Nettl afirma: "I do belive that the way in which a society teaches its music is a matter of enourmous importance for understanding that music [...]." (NETTL, 1992, p. 3 apud QUEIROZ, 2005, p. 122) Menezes Bastos (1999, p. 214-220) observou entre os Kamayurá (grupo tupiguarani), momentos para escutar o “Maraka'ỳp – legítimo proprietário da música […]”. Quando a música na posse deste não é negociável (relação econômica) ela é transmitida. A transmissão musical Kamayurá é “linear” e “paralela” (divisão por gêneros, onde os homens seguem o estilo musical “de seu pai e irmãos do pai” e as mulheres seguem a “de sua mãe e irmãs da mãe”) e se divide no campo “formal” (isolada ou coletivamente) e “participacional” (no ritual) . Olhar e ouvir são fundamentais para a assimilação do aprendizado musical do Catopês, manifestação expressiva do universo do Congado (Queiroz 2005, p.129). A transmissão musical acontece coletivamente, se aprende com o ato de praticar, experimentar, prestar atenção e imitar os que têm domínio nas práticas musicais. Esses momentos de aprendizagem musical ocorrem durante as performances (QUEIROZ, 2014, p. 6). Apesar de alguns destes contextos culturais se mostrarem diferentes do foco de nossa pesquisa, entendemos que a maior parte dos processos de transmissão acima citados são os mesmos usados na transmissão musical entre os Ka'apor, posto que, no contexto ritual ou entre as performances isoladas, como veremos, também se fazem presentes alguns desses aspetos. 3. Modos de aprendizagem musical entre os Ka'apor 3.1 Assimilar e praticar com a performance do tambor Numa de nossas visitas ao território Ka'apor, depois da habitual reunião com a comunidade, a título de encerramento, tivemos o privilégio de assistir à performance rítmica por meio do tambor. O filho do cacique foi quem tomou a iniciativa. Um indígena adulto que domina as técnicas performáticas relativas à prática de tal instrumento e que, 265

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nesse contexto, para os neófitos da aldeia, serviu de referência. Em seguida pudemos presenciar várias crianças Ka'apor querendo também pôr em evidencia o resultado de seu progresso no aprendizado do instrumento. Aquele se tornou efetivamente, um momento para “praticar e experimentar, prestar atenção e imitar” (QUEIROZ, 2014, p. 6) e como referido, expor seus ganhos na prática instrumental. Cada criança, por sua vez e aleatoriamente, atravessava uma parte da ramada tocando e pulando sempre na intenção da execução mais próxima da performance “matriz”, perpetrada pelo indígena adulto, mestre na performance do tambor. Logicamente, os jovens adolescentes, por fatores como, agilidade e mais tempo de prática, concretizavam com mais propriedade que as crianças. Por mais que a performance do tambor apresente características complexas na sua execução, as crianças, mesmo longe de atingir o grau de execução dos mais velhos, nunca desistiram. Pelo contrário, estimuladas pelo desempenho destes últimos, observando com muita atenção cada detalhe de suas ações percussivas, foram as crianças as que mais tempo despenderam na prática do tambor durante aquele final de manhã. Esta síntese da transmissão e apreensão musical na performance do tambor foi pontual, aconteceu fora do contexto ritual. Já as manifestações musicais nesse contexto, entre os Ka'apor (onde os aspectos performáticos têm outra dimensão), se convertem, em paralelo com outros propósitos, no principal cenário da aprendizagem. Em tais eventos acontece aquilo que Ingold chamou de “educação da atenção” onde os neófitos procuram “sintonizar o movimento da sua própria atenção ao movimento da ação do outro" (INGOLD, 2001, p.144 apud MEDAETS, 2011, p. 12). 3.2 Transmissão e apreensão musical na Festa do Cauim Uma vez por ano, durante a lua cheia de Outubro acontece a festa do cauim Ka'apor (akaju kawĩ ta’yn muherha). Trata-se de um acontecimento segmentado ritualisticamente que reúne: a nominação das crianças, o menarca (ritual de passagem das moças), os casamentos, a posse dos novos caciques (LÓPEZ GARCÉS et al., 2014, p. 9). A bebida ritual desta festa é o suco de caju fermentado (akaju rukwer), preparado no período que antecede a celebração e repartida nessa ocasião. Mulheres e homens separadamente entoam cânticos nas danças de forma circular (em sentido anti-horário), e em momentos predominantemente assumidos pelos pajés, onde todos tomam cauim. Este é o principal evento cerimonial deste povo e que se converte também, num enorme palco para a 266

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transmissão e apreensão musical. Todos os aspetos performáticos são presenciados pelos mais novos, no entanto, os modos de transmissão e apreensão musical na contextura ritual não são evidentes, mas estão sim implícitos nele. Albuquerque, (2010) considera as beberagens dos antigos índios Tupinambá, como manifestações socioeducativas. Relativamente a tais práticas rituais, a autora nos diz: [...], encerram dimensões simbólicas e educativas, configurando-se como estratégias de entendimento das formas como homens e mulheres ordenam o mundo e lhe atribuem sentido. Durante as beberagens, sob o poder de cuias e cuias de cauim, discursos eram proferidos em altos brados, rememorando a força e a valentia dos guerreiros. Nelas, toda a cultura se expressava na forma de discursos, do canto, da dança, da ostentação de instrumentos e ornamentos plumários e corporais. As beberagens revestiam-se, portanto, de um sentido essencialmente estético e pedagógico, posto que transmitiam a memória coletiva, incutiam valores, perpetuavam a tradição, além de promoverem a resistência indígena aos ditames da colonização. [...] Contudo, a despeito dos preconceitos e das perseguições sofridas, tais práticas de consumo de bebidas fermentadas sobreviveram no tempo, estando presentes, ainda hoje, no século XXI, entre inúmeros grupos indígenas brasileiros, entre eles, os falantes das línguas tupiguarani […]. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 70,71).

Severiano (2014), sobre a transmissão musical no contexto ritual Tupinambá aponta o contexto das celebrações como “o momento onde um conjunto de saberes era transmitido às gerações mais novas pelas mais velhas, sendo um locus de circulação e apropriação de saberes, dentre eles os saberes musicais” (2014, p. 137). E acrescenta: [...] A música funcionaria como um passeurs culturels, mediando tempos e espaços diversos e contribuindo na elaboração e circulação de representações e do imaginário. Constato que a música era muito presente nos rituais e eventos cotidianos dos Tupinambá, tendo grande contribuição para a constituição e organização desta sociedade. Verifica-se que a educação musical entre os Tupinambá ocorria nas práticas socioculturais (SEVERIANO, 2014, p. 137,141).

Por serem remanescentes dos Tupinambá, os Ka'apor (RIBEIRO; NEPOMUCENO, 2010, p. 80), conservam elementos da expressão cultural dos primeiros, presentes “ainda hoje” na celebração do cauim. Esse é um fenômeno que provem e muito se deve ao universo da transmissão. Contributo importante para que a cultura se perpetue (com as suas devidas (re)significações), subsista e perpasse de geração em geração e se mantenha presente hoje. Olhar, escutar com atenção é o principal exercício das crianças, que perambulando na área da cerimonia e mediante suas perceções, vão apreendendo aspetos do

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cerimonial do cauim. As crianças de colo, nas tipóias junto a suas mães, integram e vão se familiarizando com as várias etapas do ritual sendo o ponto culminante de sua participação (mesmo que passivamente), a fase da nominação. Os jovens mancebos depois de assimilarem previamente os cantos, através do testemunho de performances pontuais dos cantadores da aldeia e as vivências rituais passadas, vão integrando o desempenho musical dos adultos durante a ritualística. Por vezes, por não terem domínio do repertório musical, os mais jovens imitam os mais velhos e paulatinamente aperfeiçoam suas técnicas na performance durante a festa. O Pajé também é amplamente observado em sua intervenções durante a cerimonia, em parte por ter domínio no repertório relativo à cantoria. 3.3 O aspirante a pajé e o aprendizado do legado xamânico (apontamentos preliminares123) No xamanismo deste povo, mais propriamente nos processos de formação do jovem aspirante à arte da pajelança, a transmissão musical é crucial, pois é por meio da música que sucede a mediação fronteiriça entre os agentes de doença e cura. Nesse contexto, não se pode conceber a ausência musical, pois desse modo tal evento não ocorreria. Se espera do aprendiz ter por meta o domínio das práticas (musicais) xamanísticas, isto é, com o tempo, erigir certos aspectos, por meio da música, que levem enfermos à obtenção de cura. Nem todos são aptos a percorrer esse caminho. Aqueles que demonstram indícios específicos para tal, são normalmente considerados pelo pajé (ou por agente não-humano), possíveis candidatos ao desenvolvimento de tais conhecimentos. Inicialmente o aprendiz assiste aos rituais, olha e escuta com atenção as ações musicais e os movimentos do pajé, pode passar por jejuns, retiros, dietas específicas e, de forma progressiva, mediante a sua inserção e domínio de tais técnicas, vai assumindo protagonismo no ritual de cura. Nessa conjuntura, é parte preponderante do processo de aprendizagem a vontade de querer “ser” do aprendiz. Os processos de transmissão aqui abordados nos remetem ao que em antropologia e etnomusicologia se conhece como "observação participante", um dos artifícios do método etnográfico. A "observação participante" é também um processo de apreensão

de

123 Este

trabalho tangencia uma inserção mais criteriosa relativa ao aprendizado xamanístico, justamente por não ser o foco de nossa abordagem neste artigo e principalmente porque (segundo os dados coletados), o tema exige uma descrição densa e detalhada que por razões de espaço não podemos aqui alcançar. Não obstante, esse tema será tratado futuramente.

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conhecimento, pelo menos, seria esse seu objetivo. A diferença está, obviamente, no receptor. Uma falta, um lapso, um desacerto na clareza da observação, proveniente de uma perspetiva contaminada de conceitos e métodos, versus a nitidez perceptiva de uma criança indígena na apreensão do saber. Quanto à eficácia na apreensão de tal conhecimento, a partir dos distintos pontos de vista, parece estar em vantagem aquela que é a antítese do olhar inquieto do pesquisador participante, a do neófito indígena. Considerações finais Os processos de transmissão e apreensão de conhecimento numa determinada cultura poderiam ser objeto que antecede qualquer outro objetivo de estudo nas longas incursões em campo, uma vez que dessa forma, o "observador (pesquisador) participante" faria suas posteriores considerações com base em observações perpetradas com mais proximidade a tais processos de transmissão. Em nossa opinião, tal procedimento privilegiaria uma construção de conhecimento mais fidedigna, pelo menos mais próxima da forma de apreensão do saber daquela determinada cultura. Ingold (2015, p. 7) em artigo recente, fazendo-se valer de metáforas ao estilo Geertziano, nos apresenta um “dédalo” e um “labirinto” análogos a dois sentidos distintos de educação (respectivamente: a formal e a educação pela experiência, no caminhar). Os modos de transmissão musical Ka'apor se assemelham então ao “labirinto”, onde para o aprendiz “sua ação deve estar acoplada de modo próximo e retido com sua percepção [...] prestar atenção onde pisa, e também ouvir e sentir. [...] o conhecimento é relativo ao seu ambiente cultural.” (INGOLD, 2015, p. 7, 8). Entre os Ka'apor, os processos de aprendizagem musical acontecem nas experiências de performances isoladas e coletivas e principalmente no ritual, onde os elementos musicais (e análogos) são evidentes. “É através da experiência continuada, em primeiro lugar como observador ativo [...], em seguida como praticante cada vez mais experimentado" (MEDAETS, 2011, p. 10). Os jovens, convidados a integrar os rituais, para chegar ao nível performance musical pretendida, vão gradualmente alcançando tal intento “através da imitação124” (MERRIAM, 1964, p. 146) daqueles que demonstram domínio performático. Momento de atenção para a prática dos elementos

musicais

124 Entre

os Kamayurá no “plano didático-pedagógico” a imitação das ações dos mais velhos pelas crianças e jovens é constante (Bastos, 1999, p. 218).

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aprendidos previamente até a integração plena no ritual. Relatamos uma dessas performances isoladas com o tambor, onde as crianças protagonizaram momentos elementares do processo de transmissão/assimilação como: observar e escutar com atenção, imitar, praticar, explorar, experimentar, exercitar, demonstrar e brincar. No aqui abordado, percebemos a Festa do Cauim como o ápice para o aprendizado coletivo das crianças e dos jovens, onde se mostram concentrados nos aspetos musicais e na cadeia intersemiótica125 da performance ritual. Ao aproximarmo-nos de alusões à expressividade cultural Tupinambá, em particular de suas beberagens e identificar que os Ka'apor conservam ainda hoje traços culturais desse povo, podemos entender que esse fato resulta em parte de processos de transmissão de conhecimento que ocasionaram e ocasionam, que esses elementos perpassem e perdurem de geração em geração e estejam presentes hoje na ritualística Ka'apor. Verificamos que o xamanismo deste povo tem um de seus alicerces na transmissão musical, onde perante indícios específicos do jovem e o transcorrer entre aspirar ser ou ser designado, o neófito é inserido numa formação que, entre outras, o leve a ter domínio nos aspetos musicais da medicina tradicional, para chegar a assumir ,um dia, o lugar de pajé. Se as práticas rituais, a exemplo do xamanismo, se vão desvanecendo, pode muito bem tal situação ser atribuída ao fato da transmissão desses saberes ter cada vez menos facilitadores, menos mestres da cultura xamânica, fato que pode gerar falta de interesse dos mais novos no aprendizado dessas práticas. Sem referências visuais e auditivas do xamanismo, os aspirantes a desenvolver tais saberes ficam limitados ao desinteresse e disponíveis a outros apelos. Margarete Arroyo (2000, p.15), observa as práticas de ensino e aprendizagem de música como “reprodutoras e produtoras de significados, [que lhe] conferem […] um papel de criador de cultura". No caso dos aspetos educativos do contexto musical que aqui abordamos, pensamos a consequência de seus atributos dessa mesma forma, mas não só no sentido da criação como aponta a autora, mas também no sentido da perpetuação cultural. A transmissão e apreensão musical mantem, salvaguarda e protege a cultura no sentido em

125

O aprendizado não é exclusivamente musical abrange também a cadeia intersemiótica do ritual (Menezes Bastos, 1999, p. 214-220). O mesmo autor (2012) sobre os Kamayurá “[…] estabelece a música como um sistema pivot que intermedia, no ritual, as artes verbais (poética, mito) com aquelas plástico-visuais (grafismo, iconografia, sistema de adereços) e com as coreológicas (dança, teatro)” (2012, p.14).

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que ao transmitir, passar, conduzir transferir a memória musical comum ao povo, grupo ou coletivo, a tradição permanece e se fortifica. Assim como Montardo (2009, p. 272) verificou, entre os Guarani, a “música desempenha um papel fundamental na formação da pessoa”. Com base em nossas preposições, postulamos também no mesmo sentido, relativamente à importância da música na formação da pessoa Ka'apor. Referências: ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Beberagens Tupinambá e Processos Educativos no Brasil Colonial. Revista Cocar v. 4, n. 7, p. 49–62, 2010. Acesso em: 4 abr. 2016. BASTOS, Rafael José de Menezes. Audição do Mundo Apùap II – Conversando com “Animais”, “Espíritos” e outros Seres. Ouvindo o Aparentemente Inaudível. Antropologia em Primeira Mão v. 134, p. 21, 2012. BASTOS, Rafael José de Menezes. Capítulo 4: Sociomusicologias Kamayurá. A Musicológica Kamayurá: Para uma antropologia da comunicação no Alto Xingu. 2a Ed. ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999. p. 197–240. BLACKING, John. The role of music amongst the Venda of the Northern Transvaal. Johannesburg: International Library of African Music. 1957 apud MERRIAM, Alan P. Chapter VIII Learning. The Anthropology of Music. 1st. ed. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1964. p. 145–164. DENSMORE, Frances. Peculiarities in the singing of the American Indians. American Anthropologist 32, p. 651-60.1930 apud MERRIAM, Alan P. Chapter VIII Learning. The Anthropology of Music. 1st. ed. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1964. p. 145–164. LÓPEZ GARCÉS, Claudia et al. Textos - Exposição “Ka’apor Akaju kawĩ yta muheryha ” “A Festa do cauim do povo Ka’apor". [S.l.]: MPEG. , 2014 INGOLD, T. From transmission of representation to education of attention. Londres e Nova Yorque: Berg Publishers, 2001. apud MEDAETS, Chantal Vitória. Práticas de Transmissão e Aprendizagem no Baixo Tapajós. n. ANPEd, 2011. INGOLD, Tim. O Dédalo e o Labirinto: Caminhar, Imaginar e Educar a Atenção. Horizontes Antropológicos v. ano 21, n. 44, p. 99, 2015. Acesso em: 22 mar. 2016. MARGARETE ARROYO. Um olhar antropológico sobre práticas de ensino e aprendizagem musical. Revista da ABEM v. 8, n. 5, p. 13–20, 2000. MEDAETS, Chantal. “Tu Garante?” Reflexões Sobre a Infância e as Práticas de Transmissão e Aprendizagem na Região do Baixo-Tapajós. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais n. UFBA, p. 15, 2011. Acesso em: 22 mar. 2016.

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MEDAETS, Chantal Vitória. Práticas de Transmissão e Aprendizagem no Baixo Tapajós: Contribuições de Um Estudo Etnográfico para Educação do Campo na Amazônia. 34a.Reunião anual da ANPEd: Educação e Justiça Social. Natal. n. ANPEd , 2011. MERRIAM, Alan P. Chapter VIII Learning. The Anthropology of Music. 1st. ed. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1964. p. 145–164. MONTARDO, Deise Lucy Oliveira. Através do “Mbaraka”: música, dança e xamanismo Guarani. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009. P. 304 NETTL, Bruno. Ethnomusicology and the teaching of world music. In: LEES, Heath. Music education: sharing musics of the world. Seoul: ISME, 1992. apud QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. CAPÍTULO 5 Transmissão musical nos Ternos de Catopês. Performance musical nos ternos de catopês de Montes Claros. Salvador: UFBA, 2005. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. CAPÍTULO 5 Transmissão musical nos Ternos de Catopês. Performance musical nos ternos de catopês de Montes Claros. Salvador: UFBA, 2005. Tese v. p. 122–134. QUEIROZ, Luis Ricardo Silva. Educação musical e cultura: singularidade e pluralidade cultural no ensino e aprendizagem da música. Revista da ABEM v. 12, n. 10, 2014. RIBEIRO, Darcy; NEPOMUCENO, E. Meus índios, minha gente. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2010. 106 p. 80. SEVERIANO, Rafael. Música indígena e processos de educação: saberes musicais da sociedade Tupinambá na Amazônia do Brasil Colonial. Anais do 3o Simpósio Internacional de Música na Amazônia. Manaus – Amazonas: Editora da Universidade Federal do Amazonas, EDUA, 2014. Pp. 132–140.

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