Olhares Cruzados no Portugal de Quatrocentos

July 14, 2017 | Autor: CMaria Fernandes | Categoria: Religion and Politics, Latin Language and Literature
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OLHARES CRUZADOS NO PORTUGAL DE QUATROCENTOS: POGGIO E A EXPANSÃO HENRIQUINA “O corte epistemológico dos séculos XV e XVI introduz a diversidade do Outro – uma problemática que as sociedades europeias ainda não conseguiram nem integrar, nem superar.” Alfredo Margarido1

Entre Julho de 1448 e Agosto de 1449, na perspectiva de Tomás Tonelli2, ou entre Agosto de 1448 e Julho de 1449, segundo Luís de Matos3, Poggio Bracciolini, secretário pontíficio da Cúria Romana no pontificado de Nicolau V, dirige ao Infante D. Henrique uma carta encomiástica, que escreve quatro anos antes de deixar uma carreira que começara como escritor das letras apostólicas, no pontificado de Bonifácio IX. Homem de grande erudição, frequentou os Estudos Superiores de Florença, onde contactou com os maiores literatos do seu tempo, tendo estado ligado ao primeiro grupo de discípulos e admiradores de Petrarca. Chegou a ser eleito chanceler da república florentina e foi autor de uma extensa bibliografia, da qual destacamos o diálogo De Infelicitate Principum, tratado em que discorreu acerca das obrigações dos príncipes e dos seus vitia.4 A carta que comentamos insere-se também num quadro de preocupação com o ofício dos príncipes, neste caso, numa perspectiva que realça as virtutes do Infante D. Henrique, que merece louvor pela gesta expansionista que tem vindo a realizar. Estamos, portanto, perante uma exortação, uma cohortatio, cujas palavras advertem, commonentur, alguém tão singular como o Infante, que tudo empreendera sem quaisquer estímulos, nullis hominum cohortationibus. Impõem-se, assim, consilia que não devem ser desdenhados, aspernentur, nem desprezados, contemnant5, o que denota que Poggio tem a sua posição em alta conta, ao assumir que o próprio Infante deve acatar as suas recomendações. Apoiando-se na auctoritas ciceroniana, presente, aliás, em toda a carta, no estilo bem desenhado dos extensos períodos, em que predomina a consecutiva, oração muito adequada ao tom exortativo e laudatório, Poggio salienta a virtus do Infante. Ora este termo, que é um dos vocábulos chave da carta e que neste parágrafo introdutório tem cinco ocorrências (num total de onze), tem uma riqueza tal que merece a nossa atenção. Virtus, equivalente latino da ἀρετή grega, designa qualidades que caracterizam o homem, que em latim se designa vir; por isso, virtus é 1

Apud António Luís Ferronha, in O Confronto do Olhar, AAVV, Lisboa, Editorial Caminho, 1991, Introdução, pág. 13. 2 António Domingues de Sousa Costa, O.F.M., apud Monumenta Henricina, A. J. Dias Dinis, O.F.M. (coordenação e anotação), vol. IX (1445-1448), Coimbra, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1968, pág. 297. 3 L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. 4 Cf. A. D. de Sousa Costa, O.F.M., apud Monumenta Henricina, op. cit., pág. 298 e José de Pina Martins, “Poggio Bracciolini (Gian Francesco)”, in AAVV, Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira de Cultura, (edição século XXI), vol. 23, Lisboa – S. Paulo, Editorial Verbo, 2002, pág. 31. 5 Monumenta Henricina, op. cit, doc. nº. 186, pág. 300.

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“bravura” e, ao mesmo tempo, “perfeição moral”, em suma, abrange qualidades consideradas tanto no plano físico como no plano moral. Assim, de facto, também o caracteriza Ruy de Pina, quando o evoca vestido de guerreiro e “de viril coração”.6 De móbil da carta e de causa moral da acção do Infante, a virtude, nas palavras de Poggio, tem de continuar a ser prosseguida por D. Henrique. E, se ele é invocado como egregius princeps, isso deve-se à sua “egrégia virtude de espírito” (compreendemo-lo do uso do adjectivo), com a qual espontaneamente começou a tarefa que agora prossegue. Influenciado pela sua formação clássica, Poggio coloca-se no estádio, nos jogos de corrida, a clamar por um determinado concorrente. Esta imagem tanto remete para a Grécia, para os Jogos Olímpicos, e para a prova de corrida principal designada como estádio (o seu vencedor dava o nome aos jogos), como pode remeter para a corrida de carros no circo, também designado como estádio romano. Se Poggio é um espectador dos jogos, fica implícito que o Infante será um atleta ilustre da época clássica. Desenha-se aqui um quadro agonístico, em que o competidor luta contra as forças da natureza; para isto é fundamental o ingenium, termo que remete para o que é inato (tem o mesmo radical do verbo gigno, “gerar”), ou seja, a disposição natural, que explica tanto a vitória do atleta, como o sucesso do Infante. A virtus henriquina surge ao lado de outros predicados, tais como animus, “espírito” e consilium, “capacidade de decisão”, mas também “astúcia”, “ardil de guerra”, atributos que não faltam a D. Henrique, aliados a um imenso poderio económico, condições imprescindíveis para o sucesso obtido. Com efeito, o Infante, governador da Ordem de Cristo, detinha recursos fundamentais para a prossecução das viagens de descobrimento,7 como Ruy de Pina não se esquece de sublinhar, ao afirmar que a sua casa “foi a mais e melhor que, até seus dias, nenhum Principe destes Reinos de Portugal sem corôa teve”.8 Lembremos que, alguns anos antes, o Infante tivera a sagacidade de ir solicitando à Santa Sé aprovação para a empresa a que se propusera. Em 1434, ano que marca a passagem do Bojador por Gil Eanes e abre rotas antes não pensadas possíveis, avolumam-se as súplicas enviadas ao Papa, todas tendentes a prosseguir com o seu projecto de navegação já que, na época, era

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Chronica d’El-Rei D. Duarte, Lisboa, Escriptorio, 1901, pág. 122. Dias Dinis comenta, nas suas notas ao leitor, que D. Henrique geria os interesses da Ordem de Cristo e os próprios de forma que era “difícil distinguir quais são uns e outros, de tal modo se consubstanciavam ou unificavam” , tendo em vista a finalidade da expansão (Monumenta Henricina, op. cit., vol. IV (1431-1434), 1962, Introdução, pp. XIV e XV). Recordamos que o irmão, ao subir ao trono, lhe confirmou a seu pedido as mercês que o pai lhe garantira, a saber, a) proibição referente à estacada no Ródão, b) exclusivo de fabrico e venda de sabão no Reino, c) exclusivo da pesca do atum no Algarve, d) dízima nova da pesca feita por quem quer que fosse no mar de Monte Gordo, e) o quinto que pertenceria à Coroa de tudo o que fosse tomado pelos capitães de navios e fustas armados pelo Infante à sua custa. Veio também a beneficiar vitaliciamente do arquipélago da Madeira. O irmão D. Pedro, em 1443, concedeu-lhe ainda o quinto da Coroa sobre tudo o que fosse proveniente do comerciado e apreendido com a expansão africana a sul da Guiné. 8 Ruy de Pina, Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pág. 70. 7

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indispensável o arbítrio do Sumo Pontífice, que legitimava a expansão. De boa mente, aliás, pois as actividades e o expansionismo da coroa portuguesa serviam os interesses e a política da Santa Sé. Assim, D. Henrique, segundo a expressão de Luís de Albuquerque, “ia arrancando bulas que lhe eram favoráveis e tinham então grande peso na Europa.”9 O secretário pontifício menciona na sua carta as “trirremes” do Infante (cum certis triremibus per ultima maris oceani navigasse litora). Navios de guerra fenícios usados por Gregos e Romanos para dominar a navegação no mediterrâneo, as trirremes conferem a D. Henrique um estatuto equivalente ao de Temístocles na batalha de Salamina. Também o Infante, que tinha a seu cargo, desde a conquista de Ceuta, a armada do Estreito,10 levava a cabo um bellum navale, que Poggio relaciona com a exploração da costa africana feita pelos navegadores ao serviço do Infante (até cerca de meados do século XV, experientes corsários, habituados à emboscada 11), exaltando a sua coragem indómita em afrontar “mares ignotos (…), nações desconhecidas e ferozes (…), estabelecidas fora do curso do ano e do sol”. Estas terras fora do tempo e do espaço eram os confins onde habitavam os “Etíopes”, palavra originária do grego αιϑίοψ, que significa “de rosto queimado”, sendo a África subsariana, na época, conhecida pelos nomes de Mauritânia e Etiópia. Desconhecendo os europeus sobretudo as regiões a sul do Cabo Bojador, o seu mapa mental imaginava a África com muçulmanos a norte e cristãos a sul, com um mítico Prestes João, rico e poderoso, que porventura constituiria um aliado contra os infiéis. A partir daí, havia o “hemisfério de baixo”, ou seja, o mundo inferior (o inferno), habitado por povos desumanos e disformes, fora da graça de Deus e do contacto humano (vide Anexo II), criaturas que Umberto Eco espelhou tão bem no seu Baudolino. Tinham sido precisos vários anos de tentativas para passar o Bojador, porque pavorosos perigos míticos travavam os marinheiros: mais do que os corpos, perder-se-iam as almas; não havia gentes nem terras, nem altura de mar, que era negro e tenebroso, para navegar. Um dos maiores motivos para o mito devia-se ao facto de não haver cartas de marear para além daquelas paragens, e os muçulmanos contribuíam para espalhar os boatos de um mar horrendo que engolia os ousados que por ele se atrevessem.12 Poggio reflecte esta desconfiança dos navegadores (navigantibus suspecte), causada pela “violenta impetuosidade do mar oceano e das vagas

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Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, vol. I, Lisboa, Vega, 1991, pág. 48. Cf. Monumenta Henricina, op. cit., vol. IX, pág. 301 e Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos Notáveis Que Se Passaram na Conquista da Guiné por Mandado do Infante D. Henrique, Torquato de Sousa Soares (versão actualizada do texto), vol. II, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1981, pág. 50. 11 António Luís Ferronha, in O Confronto do Olhar, op. cit., Introdução, pág. 13. 12 Cf. Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos Notáveis Que Se Passaram na Conquista da Guiné por Mandado do Infante D. Henrique, op. cit., pág. 69 e António Alberto Banha de Andrade, Mundos Novos do Mundo. Panorama da Difusão, pela Europa, de Notícias dos Descobrimentos Geográficos Portugueses, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1972, pág. XXXII. 10

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encapeladas das tempestades”, que D. Henrique teve de enfrentar num acto verdadeiramente épico, qual Ulisses ou Eneias nas águas tormentosas do pélago. Olhando para os termos utilizados pelo humanista para caracterizar aquelas terras e aquelas gentes, é digno de menção o uso do adjectivo verbal remotus (“distante geograficamente”), que caracteriza o próprio Poggio em relação ao Infante (“homem que… muito afastado estou”) e seguidamente é aplicado às inóspitas regiões descobertas, que estão não só tanto (...) ambitu (…) remotae, como também ab omni cultu remotae, isto é, “distantes de toda a civilização”. Este termo, cultus, que traduzimos por “civilização”, remete para colo, que significa “cultivar”, tendo a ver, em primeiro lugar e etimologicamente, com o trabalho dos campos; mas colo é também “honrar os deuses”, logo, em cultus está implícito, do ponto de vista figurado, um estado civilizacional, um modus vivendi. Em suma, cultus define uma organização social, uma determinada forma de estar e de se organizar (ou não fosse colo também “habitar”), que no Portugal quatrocentista se alicerça na fé católica. Em consequência da ausência de cultus, os povos são “ferozes”, “assustadores” e “bárbaros”, no dizer de Poggio, efferae nationes (em efferus realça a ideia de “ferocidade”), immanes gentes (immanis significa “o que não é bom” e, por extensão, o “assustador” e “monstruoso”) e gentes barbarae (barbarus, nesta época, equivale a “cruel”). A visão aqui reflectida tem um cunho europocêntrico, que olha por um prisma único, por isso mesmo redutor. De facto, a expansão portuguesa dá origem a um confronto, ou a um encontro de culturas, termo derivado de “encontrar”, proveniente do latim tardio incontrare, que denota um movimento de aproximação, em que tanto pode existir uma ideia de “presença diante de”, como uma ideia de antagonismo, já que a preposição latina contra surge nas duas acepções. Podemos entrevê-lo nos olhares espelhados na carta de Poggio: na visão do humanista sobre si próprio, retratada nos elogios ao Navegador, na visão sobre os muçulmanos e na visão sobre os africanos. A primeira causa de estranheza acerca destes povos era a cor da pele, como se vê nas expressões utilizadas por Gomes Eanes de Zurara, que fala de “mouros negros”, baços, outros pardos, outros de pele clara. 13 “Mouros” era a designação dada aos muçulmanos em geral, recordando-se que, na África subsariana, a maioria dos habitantes se convertera ao islamismo, pela acção constante e agressiva dos árabes que a povoavam desde meados do século VII. Era sentimento geral, na época, como vimos pelas expressões de Poggio, que os autóctones eram criaturas inferiores, pouco mais humanizados do que animais ferozes. Zurara explica que, sendo que todos recebemos alma como criaturas racionais, alguns corpos não são dispostos a seguir as virtudes como são outros, por graça de Deus, e como não têm os princípios que são dados pela fé, fazem vida de animais; e, ao descrevê-los, di-los “tão negros como Etiópios, tão desafeiçoados assim 13

Crónica dos Feitos Notáveis Que Se Passaram na Conquista da Guiné…, op. cit., pp. 87, 94, passim.

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nas caras como nos corpos, que quase parecia aos homens que os esguardavam que viam as imagens do hemisfério mais baixo”.14 José da Silva Horta recorda-nos as muitas conotações negativas então atribuídas ao negro que, no mínimo, era sentido como demoníaco, uma verdadeira encarnação do mal, sublinhando que o facto de os europeus não estarem acostumados a lidar com populações não brancas os levava a inscrever todas essas etnias no espaço da animalidade.15 Assim, é com a maior naturalidade que os marinheiros, seguindo as ordens de D. Henrique, aprisionam e trazem para o reino, como se se tratasse de animal que se quer domesticar, homem, mulher ou moço, tanto fazia, “daqueles mouros” pois, segundo afirmado pelo próprio Infante, “gente era, por mais bestial que fosse”. Vemos popularizado este entendimento no teatro apresentado em 1451, por ocasião das festas do casamento de D. Leonor com o imperador da Alemanha, em que apareciam “selvagens originários das longínquas ilhas do Oceano sujeitas ao rei de Portugal”.16 Uma vez que estes povos estavam, à partida, irremediavelmente condenados, esta acção era um dever de fé que visava a salvação das suas almas, porque, caso se convertessem, podiam salvarse. Já em Portugal, os autóctones, que viviam “como bestas, sem qualquer preceito de criaturas racionais (…), não sabiam o que era pão nem vinho, (…), não haviam qualquer conhecimento de bem e viviam numa ociosidade bestial”, eram vestidos decentemente, nutridos com o alimento normal de qualquer filho de Deus e ensinados na doutrina cristã, garantindo-se assim o ganho de mais almas para a messe divina.17 Importante era também o facto, cuidadosamente lembrado por este cronista, no tocante aos autóctones negros, de a maldição de Cam ter constrangido os seus filhos à sujeição às outras gerações do mundo. O próprio pontífice enviara, numa das suas bulas, palavra de que os gentios podiam ser punidos se pecassem contra natura ou se fossem idólatras, porque a lei da natureza mandava adorar um só Deus, e também Sodoma e Gomorra tinham sido destruídas devido ao pecado dos gentios que as habitavam.18 Concluímos, pois, que se conotava o que na altura era sentido como perversidade sexual com os desconhecidos habitantes das inóspitas paragens. Os autóctones negros tinham, no entanto, uma vantagem: não vinham da linhagem de mouros, mas de gentios, e eram “melhores de trazer ao caminho da salvação”. Assim, embora deplorando 14

Crónica dos Feitos Notáveis Que Se Passaram na Conquista da Guiné…, op. cit., pág. 146. Cf. “A Imagem do Africano pelos Portugueses”, in O Confronto do Olhar, António Luís Ferronha (coordenação), op. cit., pp. 44, 46, passim e A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra Leoa (14531508), dissertação de Mestrado em História Moderna apresentada na F.L.U.L em Julho de 1990, sob a orientação do Prof. Doutor Luís de Albuquerque, pp. 68, 74, passim. 16 Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, pág. 40. 17 Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos Notáveis Que Se Passaram na Conquista da Guiné…, op. cit., pp. 75, 150, passim. 18 Ruy de Pina, Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pág. 90. 15

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a necessidade de separar pais de filhos, irmãos de irmãos, Zurara considera que o importante é que os seus corações fossem tocados com o conhecimento da vida eterna, trazendo desse modo a salvação àquelas almas “sem luz nem fogo de Cristo”;

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como realçou José da Silva Horta, a

conversão ao cristianismo superava a animalidade do viver.20 Justamente, o humanista Cataldo Sículo, nos seus Poemata, encomiava aqueles que tinham trazido para a fé católica um grande número de homens dos povos ímpios da África, que seguiam uma falsa religião.21 Poggio refere-se, em vários momentos, à importância das viagens de descoberta sob a égide do Infante e aos “inúmeros cativos” trazidos para o reino. Amigo de Cencio Rustici, secretário de Eugénio IV que, desde 1438, louvava o rei D. Duarte pela guerra que conduzia contra os muçulmanos, vimos que Poggio acompanhava atentamente os feitos dos portugueses. É, aliás, dos meios do Vaticano que parte, desde muito cedo, a ideia de compor a história dos empreendimentos portugueses além-mar. Luís de Matos comenta que todos se espantavam na Cúria que Portugal não cuidasse de registar os seus feitos para a posteridade, e o secretário apostólico Flavio Biondo chegou a escrever a D. Afonso V, em 1459, nesse sentido, mas sem resultados práticos.22 A acção do Infante é comparada à de Alexandre Magno, de forma, porém, a salientar que aquele sobrepuja o macedónio pela novidade da sua empresa. Era comum entre os grandes governantes da Antiguidade este desejo de comparação política com a figura do que consideravam ser o maior conquistador anterior ao império romano, paralelo que os humanistas emularam. No discurso proferido pelo Infante D. João, filho de D. João I, segundo Ruy de Pina, a respeito da oportunidade da empresa de Tânger, o cronista põe na boca do filho do rei de Boa Memória exactamente a mesma analogia, equiparando-se, ainda, o reino de Portugal ao império romano.23 Igual equivalência se encontra na carta de Poggio, que menciona as campanhas de César, atribuindo ao general romano três acções: subigere, perdomare e lacessere, tudo isto sintetizado em devincere: “submeteu a Gália, subjugou a Britânia, atacou a Germânia; mas venceu pelas armas províncias”. Quando fala da acção de D. Henrique sobre os povos das regiões descobertas, Poggio retoma o verbo subigere no sintagma “para a submissão desses povos”. O termo perdomare, com que o autor da epístola caracteriza a actuação de César sobre a Britânia, não seria menos expressivo, atendendo ao seu sentido etimológico de “domar”, muito apropriado a gentes que já apelidara de feroces. Mas subigere tem a vantagem do prefixo. É a subjugação do 19

Crónica dos Feitos Notáveis Que Se Passaram na Conquista da Guiné…, op. cit., pp. 104 e 152. A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra Leoa (1453-1508), op cit., pág. 87. 21 Apud Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, op. cit., pág. 89. Cataldo Parisio Siculo viveu em Portugal de 1486 a 1517, tendo sido preceptor de D. Jorge, filho bastardo de D. João II (a quem dedicou os seus Poemata), e de outros jovens notáveis da nobreza portuguesa. 22 Ibidem, pág. 548. 23 Chronica d’El Rei D. Duarte, op. cit., pág. 81. 20

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adversário que fica clara no prevérbio sub (literalmente o verbo significa “conduzir debaixo”), a qual é dirigida, antes de mais, aos sarracenos que detinham vastas áreas africanas. Recorde-se que o espírito cruzadístico estava presente nas mentes de todos os cavaleiros da Cristandade: o homem armado em nome de Deus, que combate e vinga os pecados dos inimigos da fé, legítimo defensor e resgatador de terras para Cristo, é o agente e confirmador da guerra justa preconizada por Agostinho de Hipona e pregada por Bernardo de Claraval em que “matando, tolhe a vida dos inimigos e morrendo, a dá a si para sempre”.24 Ideia explícita nas palavras de Poggio no último parágrafo da sua carta: “o ofício do príncipe cristão tem de ser o de pegar em armas contra os infideles, (…) hereticos, (…), fidei hostes”. O vocábulo hereticus, de origem grega, que tem por base a ideia de escolha, ganha no vocabulário religioso cristão um sentido pejorativo e, para o cristão quatrocentista, os “inimigos da fé” são, acima de tudo, os islâmicos. A expressão “inimigos da fé” é merecedora de atenção, já que contextualiza no âmbito religioso um termo bélico: hostes são os inimigos de estado, por oposição a inimicus, o inimigo privado. Foi deste último substantivo que derivou a palavra “inimigo” (tendo-se perdido a riqueza semântica oferecida pela língua latina), que designa aquele que é contrário, logo que age contra – no caso em apreço, contra a fé, contra o verdadeiro Deus e, por conseguinte, contra os cristãos. Em vez de adorar a Trindade Santa, os muçulmanos são “adoradores do falso cismático Mafomede”.25 Contumazes lhes teria chamado o Infante D. Henrique, e Ruy de Pina acrescenta que são falsos e traidores, não fiéis à sua palavra, conseguindo assim enganar os cavaleiros cristãos, que são “de palavra de verdade”.26 Uma bula do Papa Eugénio IV menciona os erros e as maldades dos “infiéis”, e outra elucida candidamente sobre os agravos principais da Igreja de Roma contra eles: ocupavam as terras que tinham sido de cristãos, em abatimento da religião cristã, e transformavam as outrora igrejas em mesquitas: é mais do que razão para lhes fazer guerra sem quartel.27 Moralizava Gomes Eanes de Zurara que os muçulmanos, depois de mortos, não podiam queixar-se tanto da sua sorte em terem morrido às mãos dos portugueses, quanto do engano em que estavam na sua falsa adoração por Maomé.28 E, esquecendo que os primeiros muçulmanos eram árabes e, segundo a tradição, filhos de Sem, já no século XIII se encontrava justificação para a sua sujeição, à semelhança dos negros: “pois que mouros são, todos são de

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Duarte Galvão, Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1995, pág. 53. 25 Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pág. 38. 26 Ruy de Pina, Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pp. 117 e 129. 27 Idem, ibidem, pág. 90. 28 Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pág. 38.

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Cam, e se pudermos levar algo deles por batalha ou por qualquer força, e ainda prendê-los e fazê-los nossos servos, que não fazemos aí pecado, nem injustiça nem erro algum”.29 No já referido discurso proferido pelo Infante D. João são enumeradas as razões pelas quais os muçulmanos são maus: porque não têm verdadeira fé nem a querem ter, porque não dão louvores a Cristo e detêm, contra o que é de direito, a terra de Jesus Cristo, que de jure apenas cristão pode deter. Devem, contudo, ser primeiro admoestados por pregações e exemplos, e somente se, na sua “danada contumácia”, se não comoverem, devem então ser forçados pelas armas.30 Zurara dá-nos mais um motivo porque os islâmicos são maus: porque têm leis, costumes, língua e forma de viver diferentes (“contrairos”, no discurso de D. João) da nossa.31 Nos seus Poemata, Cataldo Sículo também os distingue com o seu parecer de homem civilizado: os mouros são um povo infiel e bárbaro, cujas leis celeradas autorizam a poligamia e o incesto, ignorantes da santa fé de Cristo, e provocam a indignação dos deuses pela sua impiedade. Por tudo isto, é mais do que justa - trata-se de obra pia - a guerra feita contra eles, que só pode agradar a Deus.32 Guerra que também beneficia o rei, pois acrescenta honra aos que a fazem, mas sobretudo serve a Deus, como expressava a bula de cruzada de Eugénio IV recebida em 1436, especificando que os que a empreendiam mereciam indulgências plenárias iguais às dos cruzados que tentavam libertar a Terra Santa do jugo maometano.33. Aliás, José da Silva Horta recordanos que, tendo-se conquistado Ceuta e implantado a fé cristã no norte de África, este continente era considerado “terra de direito de cristãos, usurpada pelos muçulmanos”, o que legitimava a guerra empreendida contra ele.34 Esta acção guerreira granjeará aos cristãos, como comenta Poggio referindo-se aos feitos do Infante, laus na terra e premia no céu. D. Henrique está acima dos demais cavaleiros cristãos, da mesma forma que seu pai, de quem herdara a virtus e o louvor, estava acima dos outros reis da cristandade. Tais recompensas terrenas e celestiais são referidas no final da carta, em que se associam conceitos cristãos (os premia junto de Deus sempiterno e a pietas, aqui exclusivamente na sua vertente religiosa35) a conceitos enraizados na civilização romana, tais como laus, “louvor”, e gloria, a qual forma com a honra um binómio indissociável, para reconhecer os actos valorosos dos homens ilustres.36 Diz Cícero que a “virtude quer honra, e nenhuma outra é a 29

Citado por José da Silva Horta (da General Estoria de Afonso X de Castela), in “A Imagem do Africano pelos Portugueses”, in O Confronto do Olhar, op. cit., pág. 58. 30 Ruy de Pina, Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pág. 75. 31 Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pág. 100 e Ruy de Pina, ibidem, pág. 81. 32 Apud Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, op. cit., pp. 98 e 102. 33 Ruy de Pina, Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pp. 62, 63, passim. 34 “A Imagem do Africano pelos Portugueses”, in O Confronto do Olhar, op. cit., pág. 50. 35 Para o romano da época clássica, a pietas é um sentimento de respeito e de veneração que o homem deve àqueles a quem está ligado por parentesco, e que se alarga à própria divindade, acabando por abranger as suas relações com o estado. 36 Cic., Sext., 65.136.

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recompensa da virtude”;37 honra que, na época que tratamos, era tida no mais alto apreço, de tal forma que Zurara, na dedicatória da sua Crónica dos Feitos da Guiné, dirigida a D. Afonso V, coloca a “honra” antes mesmo da saúde: “Deus (…) vos guarde de perigo, também de deshonra, e cumpra vossa vida e grande estado de honra, saude, riqueza e prazer”38 O mesmo cronista também concorda que D. Henrique tem lugar aparelhado entre as cadeiras celestiais, devido à sua vida santa e heróica (tendo sobretudo em mente os combates travados contra os maometanos).39 Estas noções dos islâmicos enformaram a imagem estereotipada que deles foi cunhada pelos portugueses, a qual não permitia alterações. Visão que passou para a linguagem, sendo relevante notar que o dicionário publicado em 1570 por Jerónimo Cardoso e Sebastião Stockammer continha, no seu vocabulário, a expressão “cáfila de mouros”, equiparando pois o sarraceno ao camelo;40 ainda hoje, quando desejamos designar um indivíduo brutal, selvagem, rude, usamos o vocábulo “alarve”, proveniente da expressão al-arab, “o árabe”. Mesmo assim, vislumbram-se-lhes na literatura da época algumas qualidades. Os Infantes da Ínclita Geração D. João e D. Pedro, por exemplo, dizem-nos “astutos e esforçados, fortes e valorosos”, e notam que o “mouro de peleja”, isto é, o guerreiro maometano, está, mais depressa do que o cristão, disposto a morrer.

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O próprio Ruy de Pina, falando de determinado capitão

muçulmano, afirma-o “homem de bom esforço e assas avisado”, reconhecendo, pois, a sua grande coragem e sagacidade.42 Não deixa de ser interessante verificar que os detestados “infiéis” olhavam para os autóctones africanos exactamente da mesma maneira que os cristãos europeus. De facto, o bom muçulmano tem o dever, segundo o Corão e a Sunna, de, em primeiro lugar, chamar à fé os não muçulmanos, que considera infiéis: é o apelo à conversão ou da’wa. Se este apelo não é ouvido, assiste-lhe o direito (e o dever) de empreender a jihad, entendendo-se como justo matar e aprisionar os infiéis e escravizar as suas mulheres e crianças. Para o muçulmano, a sua cultura religiosa é superior a qualquer outra; os gostos e as tradições que as outras culturas trazem consigo constituem um terrível problema para a sua consciência. É, pois, vital que ele imponha a Arábia e a sua mensagem.43 Os autóctones são gente “sem Lei revelada”, pagãos idólatras, que eles designam por madjus ou kuffar (palavra que os portugueses transformarão no pejorativo “cafre”), isto é,

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Rep., 3.28.40. Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pág. 5. 39 Ibidem, pp. 16 e 60. 40 Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, op. cit., pág. 39. 41 Ruy de Pina, Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pp. 81 e 87. 42 Ibidem, pág. 101. 43 Joseph M. CUOQ, Histoire de l’Islamisation de l’Afrique de l’Ouest – Des Origines à la Fin du XVIe Siècle, Paris, Librairie Orientaliste Paul Guethrer S.A., 1984, pág. 49. 38

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“infiéis” ou “ímpios”: aos olhos do muçulmano, a idolatria é um dos pecados mais graves.44 Os Negros, ou Sudan, como eles lhes chamam, são povos “vis e desprezíveis”, votados às penas eternas pela sua impiedade, e são olhados como criaturas profundamente ignorantes, visto tratarse, na sua maior parte, de povos sem escrita, sem complexidade social, nas suas próprias palavras, “gente que não participa dos princípios religiosos, bons costumes, instituições e tudo o que faz um país civilizado”.45 O historiador e filósofo do século XIV/XV Ibn Khaldun desenvolveu uma teoria baseada nos climas, entendendo que o facto de determinados povos estarem expostos à canícula destemperada os aproximava do comportamento dos animais, arredando-os do estado de homens. Outros autores árabes exprimiam opinião semelhante, atribuindo a factores astrológicos, como o sol no seu zénite, a anulação de todo o equilíbrio dos juízos e o facto de algumas etnias subsarianas terem um comportamento mais próximo do dos animais selvagens do que do dos homens, gente sem piedade e sem misericórdia, mesmo entre si.46 Assim, pois, também o muçulmano observa, à partida, os povos com os quais contacta com a ideia de os transformar, levando-os a aderir ao que considera ser a única forma de vida verdadeira e, portanto, aceitável. Veículos da cultura clássica para a cristandade, que ciosamente a salvaguardou e a tomou por modelo, geógrafos, médicos, poetas e arautos ilustres da cultura na Medievalidade, os muçulmanos devolvem aos cristãos, em espelho, o olhar que estes têm sobre eles. Em súmula, do que observámos concluímos que aquilo que mais impressiona a sensibilidade humana, ontem como hoje, é a diferença, o que os homens menos perdoam na alteridade. Vimos que isso já fora verbalizado, de um dos lados do prisma, ao enumerarem-se os principais agravos que os cristãos tinham contra os muçulmanos: hábitos, idioma, modus vivendi eram incompreensíveis e, por conseguinte, inaceitáveis, porque aquilo que se não domina é sentido como uma ameaça, que apenas os mais destemidos ousam enfrentar. Retomando a epístola de Poggio Bracciolini, centremo-nos, tal como ele, no que aqui nos trouxe: a figura do Infante D. Henrique, que deu origem a extensa produção bibliográfica. Por “casto e severo, de uma rigidez valente”, além de profundamente devoto, o tinha Ruy de Pina, realçando o seu infatigável zelo em procurar grandes empresas.47 Inteligente e ambicioso, tinha forte espírito de aventura, deleitando-se no trabalho das armas, especialmente contra os

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André Miquel, O Islame e a sua Civilização – Séculos VII – XX, Serge Bonin, (cartografia), Francisco Nunes Guerreiro (tradução), Lisboa – Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1971, pág. 169. 45 Al-Istakhri, apud Joseph Cuoq, Recueil des Sources Arabes Concernant l’Afrique Occidentale du VIIIe au XVIe Siècle (Bilad al-Sudan), Paris, Centre National de la Recherche Scientifique, 1985, pág. 64. 46 Cfr. Al-Hamdani, Sa‛id b. Ahmad Sa‛id, Ibn Khaldun, ibidem, pp. 58, 110, passim. 47 Chronica d’El-Rei D. Duarte, op. cit., pág. 122.

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inimigos da Fé.48 Para perseguir esse objectivo, ocupava-se em investigar a forma de investir contra fortalezas e praças-fortes, escutando com todo o cuidado os militares experimentados na ciência da guerra.49 Vitorino Magalhães Godinho classifica D. Henrique como pouco escrupuloso quanto à forma de adquirir os vastos proventos de que dispunha e acentua o seu carácter irreflectido.50 Zurara informa-nos que ninguém “ousava contrariar o infante, porque era pessoa de mui grande autoridade”, dizendo-o “arrebatado em sanha”.51 Luís de Albuquerque sintetiza-o como “imbuído de ideais cavaleirescos e religiosos”, “homem de acção e não de reflexão”.52 Matteo de Pisano, preceptor de Afonso V, tal como Poggio Bracciolini, é encomiástico. Na sua obra De Bello Septensi, louva a nobre coragem do Infante, que passou cerca de trinta anos a descobrir o que a natureza subtraíra aos olhos humanos e escondera nas partes mais recuadas dos continentes, em direcção às quais nunca ninguém antes abrira caminho.53 Do mesmo modo, Mestre Frei André do Prado54 enaltece o amor do Infante pelas ciências, mostrando-o como “nova glória e espelho dos Príncipes”. Homem de grande visão, de maior tenacidade, intrépido e irascível, com a severidade própria do soldado de Cristo que dedicou a sua vida ao combate pela fé, guerreiro hábil e valoroso, o Infante D. Henrique merece o lugar de destaque que ganhou na História por ter impulsionado as navegações portuguesas que atingiram outras paragens, outro mar, outros mundos e outras estrelas.55 Não dizendo com Zurara que o Infante fez ajuntar o Levante com o Poente,56 relevamos o seu papel pioneiro em abrir caminho, através dos descobrimentos portugueses, à ciência moderna, com contributos para o desenvolvimento da cartografia, geografia e botânica, bem como das disciplinas de etnografia e antropologia.

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Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pp. 42 e 44. Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, op. cit., pág. 80. 50 Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, vol. II, Lisboa, Edições Gleba, 1945, pág. 143. 51 Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pp. 42 e 72. 52 Luís de Albuquerque, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, op. cit., pp. 63 e 64. 53 Apud Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, op. cit., pp. 79 e 80. 54 Professor de teologia no Estudo Geral da Cúria Pontifícia no pontificado de Martinho V, este teólogo franciscano tece estas considerações no prólogo do diálogo por si composto Horologium Fidei (publicado em Monumenta Henricina, vol. IX, 1968, op. cit., doc. nº. 212, pp. 356 a 358), datável de aproximadamente 1448, no qual D. Henrique aparece como um dos intervenientes. 55 Luís de Matos, L’Expansion Portugaise dans la Littérature Latine de la Renaissance, op. cit., pág. 70. 56 Crónica dos Feitos (…) da Guiné…, op. cit., pág. 59. 49

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ANEXO I CARTA DIRIGIDA AO INFANTE D. HENRIQUE PELO HUMANISTA POGGIO BRACCIOLINI57

Nº. 186 [Julho 1448 – Agosto 1449]

AO CONDE D. HENRIQUE, DUQUE DE VISEU Se acaso te parecer surpreendente, egrégio príncipe, que eu, homem que tu desconheces e que muito afastado estou, tenha assumido o cuidado, como que supérfluo, de te escrever, gostaria que atribuísses isto à tua virtude, que, espalhando-se ao longe e ao largo, me impeliu e predispôs a que te exortasse, por minhas palavras, a isto, para o que vejo que te encaminhas, por tua espontânea vontade, sem que ninguém te incentive. Diz Cícero que a virtude tem um valor tal, que estimamos os que são dotados dela, mesmo que nunca os tenhamos visto. Assim como aqueles que disputam a corrida no estádio com muita frequência são inflamados pela vozes dos apoiantes, eu penso que isso precisamente há-de acontecer com a minha exortação, embora vá ser breve: ela há-de motivar-te um pouco e dirigir-te o pensamento à prossecução desta tarefa, que espontaneamente, graças à tua egrégia virtude de espírito, começaste, sem a exortação dos homens. Há que incentivar principalmente os que, apoiando-se no seu engenho, como te acontece a ti, se encaminham para obras de virtude. Mas também estes tornam o seu louvor ainda mais sublime, se não desdenharem nem desprezarem os conselhos daqueles cujas palavras os advertem a perseverar na virtude. Há já muito tempo que ouvi dizer a vários portugueses, a quem estava ligado por laços de amizade, quando os interrogava sobre os teus feitos, que tu, movido por uma grandeza de alma especial e como que incitado pelo estímulo da virtude, navegaste pelos confins do mar oceano com certas trirremes58 e que avançaste até onde jamais penetrou algum dos antigos, imperador ou

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Tradução de Ana Alexandra Alves de Sousa, baseada na versão latina publicada in Monumenta Henricina, op. cit., vol. IX, 1968, pp. 297-302, a partir da edição de Tomás Tonelli, em Poggii Epistolae, vol. 2, xxxv, Florença, 1859, pp. 379-382, reproduzida do códice 759 da Biblioteca Riccardiana de Florença, fls. 219-220 v. Tonelli consultou a versão do cod. lat. 14394 da Biblioteca Nacional de Paris. Existe uma tradução francesa comentada e anotada por M. Guéret-Laferté, in Poggio Bracciolini. De l’Inde. Les Voyages en Asie de Niccolò de’ Conti, Turnhout, Brepols, 2004, a partir da edição de Hélène Harth, Poggio Bracciolini, Lettere III, Florença, 1987, pp. 88-90. Carlos Ascenso André publicou uma tradução portuguesa da carta, a partir da versão dos Monumenta Henricina, in José Manuel Garcia, “O Elogio do Infante D. Henrique pelo humanista Poggio Bracciolini”, in Oceanos, nº. 17, Lisboa, Março 1994, p. 14. Algumas divergências em relação a estas versões explicam a necessidade de verter de novo a carta para língua vernácula, já não referindo o facto de a anterior versão em língua portuguesa não se encontrar disponível no mercado. 58 A versão francesa da carta não remete para as famosas embarcações da Antiguidade Clássica, nem opta pela tradução mais adequada do adjectivo certi, ao qual dá o sentido de “(vaisseaux) résolus”.

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rei, tanto quanto ouvimos dizer ou lemos. Com efeito, conta-se que, em direcção ao meio-dia de África, transpuseste os seus confins e chegaste aos Etíopes. Isto não só é digno de admiração, por causa da violenta impetuosidade do mar oceano e das vagas encapeladas das tempestades, como também é digno de ser celebrado pelos louvores de todos, por causa da novidade das coisas que daqueles lugares são trazidas. Tem necessariamente de parecer glorioso que tenhas sido o único com um espírito, uma virtude e uma capacidade de decisão tais que apenas tu tenhas afrontado, em guerra naval, coisa que ninguém até agora ousara empreender ou tentar, mares ignotos, regiões nunca vistas, nações desconhecidas e ferozes, povos assustadores, estabelecidos nas extremidades fora do curso do ano e do sol, aonde antes ninguém acedera, e daí tenhas trazido muitos cativos. Tratou-se de uma expedição indubitavelmente grande e merecedora de ingente louvor. Nada há de mais notável que teres estado imbuído de uma tal força de espírito e grandeza que não só ousaste enfrentar litorais impossíveis de aportar, um mar tempestuoso, nações selvagens e distantes de toda a civilização,59 o que é próprio de uma grande deliberação, mas também foste o primeiro de todas as nações a superá-las pelas armas. Se bastantes vezes se louvam as gestas daqueles que conquistam os povos vizinhos, quanto mais ainda merece exaltação aquilo que se leva a cabo contra nações separadas e afastadas por um tão grande intervalo de mar e de terras! Alexandre da Macedónia percorreu o orbe terrestre com as suas vitórias, mas chegou àquelas províncias e regiões, aonde outros mais tinham chegado anteriormente. Pelo contrário, a tua virtude estendeu-se àquelas margens do orbe, aonde, segundo se lê, ninguém antes de ti penetrou. César submeteu a Gália, subjugou a Britânia, atacou a Germânia; mas venceu pelas armas províncias, umas conhecidas, outras próximas do império romano. Ora a tua frota circundou aquelas partes que não eram conhecidas nem tinham acesso fácil e, em virtude do medo do mar e dos povos bárbaros, causavam desconfiança aos navegadores. Mas a tua intrepidez de alma superou todas as dificuldades, todos os labores, todos os perigos e conseguiu o que te há-de dar uma glória eterna. O muito sábio e intrépido outrora príncipe de Portugal, teu pai, deixou-te esta herança de todas a mais preclara, a de pegar em armas contra os infiéis. Ele mesmo, dotado de singular virtude de espírito, perante a inércia dos restantes reis cristãos na salvação dos fiéis 60 foi, graças à egrégia 59

A tradução de Carlos Ascenso André não contempla a questão civilizacional, remetendo para uma discutível ausência de culto entre os povos africanos com os quais se contactava: “… nações bárbaras, alheias a qualquer espécie de culto…” (in Oceanos, op. cit., pág. 14). 60 Afastámo-nos, de novo, da já referida versão da carta em língua portuguesa, que atribui ao verbo frequentativo oscitare o sentido de “entreter-se”. Na realidade, o verbo que, em sentido concreto, significa “bocejar”, tem uma aplicação, em sentido figurado, que remete para a inércia, pois ele é também sinónimo de “estar em descanso”. Não esqueçamos que a motivação difundida para a actuação portuguesa em terras africanas é precisamente a conversão dos infiéis, e o rei cristão português D. João I sobressaiu nessa importante missão com a chegada a Ceuta.

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superioridade da sua virtude, o único que atacou, com uma enorme frota, África e, desbaratados os inimigos, conquistou pela força Ceuta, cidade marítima e muito populosa, que ainda hoje vós detendes nas fauces dos Sarracenos61. Tu, imitando a gesta de um pai ilustríssimo, consideraste que tinhas herdado não só uma porção do reino, mas também o louvor e exigiste para a posteridade a fama da glória paterna, acrescentada com as tuas obras. Mas, uma vez que isto parece ser como que as primícias dos acontecimentos futuros para os que esperam de ti coisas maiores, exorto a tua excelência a que de maneira nenhuma descanses ante os feitos realizados, mas penses que ainda há coisas mais notáveis, cuja palma e vitória te estão reservadas. A tua virtude não deve contentar-se com o que tomaste, mas deve dirigir todos os teus cuidados, todas as cogitações, todas as forças para a submissão desses povos, de cuja sujeição não só resulta o louvor dos homens, mas também se alcançam prémios junto de Deus sempiterno. O ofício do príncipe cristão tem de ser o de pegar em armas contra os infiéis, contra os hereges, contra os inimigos da fé e o de poupar o sangue dos fiéis de Cristo. Aqueles que o fazem sobressaem de forma insigne pela sua piedade e pela sua glória. Se isto quiseres imitar, como tens feito, superarás os restantes príncipes pela fama e pelo louvor da tua gesta.

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A palavra fauces, na expressão in saracenorum fauces, tem na supra mencionada versão francesa um sentido geográfico de “estreito”; a versão portuguesa opta por “goelas” (“adentro das goelas dos Sarracenos”). Preferimos seguir a letra, considerando que estamos perante a utilização do elemento concreto, “fauces”, em representação dos clamores que das goelas sarracenas emanariam, dada a presença dos portugueses numa posição tão estratégica como Ceuta.

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Anexo II

http://www.google.pt/images?hl=ptpt&gbv=2&tbs=isch%3A1&sa=1&q=mapas+t+no+O&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=, [2010.11.01].

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