Olhares dissimulados de desespero que fingem desaparecer ao mero toque de uma fala suave

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Olhares dissimulados de desespero que fingem desaparecer ao mero toque de uma fala suave
Há quem pareça preferir catalogar os olhares, as camadas e tudo o mais que a gente percebe, quem sabe para nos permitir sentir maior segurança em encontros que podem dar em qualquer coisa, inclusive nas piores. No fundo, após bastante experiência, a gente deve conseguir mesmo catalogar o que vemos com certa facilidade. Pois as pessoas são complicadas, mas também parecem-se bastante entre si. Além do que: o que é experiência senão percepção de semelhanças entre o que já vimos com o que aparece a nós de repente, em momentos os mais inesperados?
Eu, no atual momento de pesquisa, prefiro tentar sentir o que vejo em demonstrações artísticas relativamente contemporâneas (pinturas figurativas, por enquanto) que possam me trazer luz quanto a sensações (distância, aproximação, empatia, por exemplo) que derivam, em última instância, eu sei, de carências e desequilíbrios patentes (medo, vazio, fraqueza, fragilidade, etc.) cujas origens estão, como sempre, nas condições materiais (vida, dinheiro, amor, dependência, dentre outras) e sensoriais (fome de sexo, fome de amor, crueldade, ironia, estupidez, etc.) de nossa existência compartilhada. Porque, caso não saibam, todos nós vivemos incrivelmente juntos. Talvez até demais.
De fato, pareço identificar, em várias dessas manifestações artísticas (nas pinturas de um Grünewald (sei, ele é anterior mesmo ao Medieval), de um Bosch (o mesmo), de um Schiele, de um Bacon e de um Freud, para citar os mais representativos), uma amostra qualificada de um sentimento de época que descamba, queiramos ou não, no contemporâneo. Já fiz um texto a respeito, no qual explano algo do que sinto no que se refere ao olhar das figuras que eles retratam. Não que essas demonstrações de olhares consigam realmente representar algo que se propõe, na vida, real. Elas, essas demonstrações, parecem-me mais expressar limites – até onde a coisa pode chegar. No exibicionismo de um Schiele, por exemplo, descansam incontáveis nuances, mais ou menos íntimas, todas ou quase todas ligadas à conexão vontade-corpo. Já no solipsismo de um Bacon identifico graus diversos de ensimesmamento doentio, facilmente identificado em comportamentos desviantes que por sua vez se expressam em diversos transtornos que a Psiquiatria contemporânea tenta qualificar e tratar da forma sempre mais cômoda – por meio de remédios. Já a depressão qualificada dos olhares nas telas de um Lucien Freud remetem claramente a uma ausência radical de estabilidade na relação para fora, assim como a uma extrema inamobilidade, relativa a uma morte em vida plenamente caracterizada nos dias deste século XXI. Comparadas a essas demonstrações, os olhares mortos do Cristo de Isenheim de Grünewald não conseguem, sequer de longe, se aproximar da vida do ser comum; já os olhares esbugalhados das figuras demoníacas de um Bosch a que poderiam se referir, senão a algumas amostras que vemos da população jovem paulistana "bombada" à base de anfetaminas ou da ampla gama de psicotrópicos plenamente disponível a todos que estejam dispostos a pagar? Uma leitura de perdição é apenas uma, dentre muitas possíveis. Mas ela é apenas uma LEITURA. Difícil, sei, é parar no olhar em si, deixando de lado o aspecto moral ou moralizante da questão. Pois não vivemos mais num mundo passível de ser salvo – talvez apenas no olhar de uma maioria ignara.
O foco no olhar real das pessoas consegue, contudo, permitir-nos sentir um microcosmo inteiramente pessoal que, de alguma forma, sub-reptícia ou não, liga-se a essas demonstrações tão abrangentes e limítrofes. Como não perceber no olhar de uma amiga atriz fixada em conseguir alguma coisa de mim uma amostra suavizada do olhar desesperado mas voltado para fora de algumas figuras de Bosch? Por sua vez, como não perceber, no olhar de outra atriz amiga, esta mais conformada a sua vida de lutadora aparentemente sem destino, o desatino objetivizado de alguns personagens perdidos de Freud? Pois eu sentia, ao conversar com ela, como parecia inútil aproximar-me de questões que ela mesma parecia desmerecer de antemão – e que portanto pareciam não existir. Por outro lado, tão logo foi trazido à tona seu desespero muito concreto, algo nela pareceu explodir – sem, contudo, no final da história realmente convencer. Eu sentia que estava sendo enganado – e não conheço pintura que mostre esse olhar, entre lágrimas, em que ela parecia enxugar o que afinal não existia. Mas há medos e medos. Há medos mais superficiais – simplesmente medos do desconhecido, que podem até ser melhores, em vida, do que seriam em morte. Por isso estimo que, dentre todas as demonstrações reais de olhares intimamente ou externamente perdidos, existam aquelas que não possuem realidade concreta em demonstrações artísticas – embora haja quem queira fazê-las reais dessa forma. Nesse ponto é que todo aprendizado no olhar da tela vira fumaça – e em que é necessário abandonar-se, como sujeito, à contemplação e à ação com base naquilo que realmente se vê. Que é necessário todo um método para realizar a aproximação que pode identificar o que normalmente não conseguimos ver, isso parece óbvio. Como óbvio parece ser que esse método independe de local, de contexto e de ferramentas especiais. É simplesmente um olho no olho descolado de qualquer leitura prévia mas determinado, em especial, por um interesse focado numa ação descompromissada mas atenta a um ágape absolutamente necessário.
Por outro lado, ao que parece, algumas pré-condições para esse tipo de contato têm a ver com a tradição psicanalítica e outras, não. A maior similitude está no poder da palavra. Realmente, ao que parece Freud, o Sigmund, tinha uma razão fundamental – e Jung, também. Porém, duas condições ligadas àquela não parecem ter guarida na tradição. A primeira: a palavra não basta. Esta precisa, ao que parece, para ter o efeito necessário, ser acompanhada de algo que remeta a uma confiança forte e inabalável. O que seria isso? Não sei bem, mas a empatia de se saber acompanhada/o por alguém tão ou mais desesperado (como eu), que por algum motivo sabe expressar seu desespero contido em palavras, ou textos, parece ser o diferencial. Isso me remete ao aspecto calmo de meus terapeutas, que me irritava sobremaneira, e que era também falso – pelo menos para alguns profissionais, que me contaram de seu sofrimento enquanto me ouviam –, mas que não permitia esse contato real entre almas. Isso, claro, pode criar problemas, pois a atriz/ator por vezes estabelece ou tenta estabelecer relação pessoal que pode eventualmente complicar o distanciamento; mas por outro lado, se bem trabalhado, com maturidade e respeito, pode significar realmente o fim do caráter anódino da ajuda profissional, desbancando-o em nome de uma real amizade – que porém precisa ter um motivo profissional (no meu caso, a transformação do desespero em arte, ou quem sabe, de forma mais limitada, mas amplamente rica, da atuação). Isso, acreditem, parece ser algo até mais do que maravilhoso. Uma empatia que pode evitar desastres – e que, no meu caso pessoal, parece estar me salvando.

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