Olhares no Espaço Cisterciense: Visitadores, Reis e Viajantes no Mosteiro de Alcobaça

June 15, 2017 | Autor: Antonio Maduro | Categoria: Cistercian architecture, Literatura de Viagem, Cistercian monasteries, Cistercian Farms
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Cadernos de Estudos Leirienses – 6 * Dezembro 2015

Olhares no Espaço Cisterciense: Visitadores, Reis e Viajantes no Mosteiro de Alcobaça Rui Rasquilho* António Valério Maduro**

1. As visitas ao mosteiro de Alcobaça, no período cisterciense, fizeramse por obrigação profissional, política e por curiosidade. Naquelas que se fizeram por obrigação profissional, as de visitação consideram-se exercícios regulamentares de fiscalização espiritual e temporal. As visitas políticas foram sobretudo as que os soberanos portugueses destinaram à hospedagem no mosteiro de Alcobaça, convivendo com os seus religiosos, aproximando-se, por isso, de Deus, o protetor do seu trono e do seu reino. Por último, a curiosidade. Manifestada na visita, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, de visitantes estrangeiros de formação diversa, civis e militares, cientistas e artistas. Independentemente de virmos a tratar com maior profundidade este tema em livro que se prepara, ficam neste texto alguns testemunhos sobre as visitas a Santa Maria de Alcobaça. 2. Sublinhando desde já que há notícia de ter havido visitações ao ainda mosteiro provisório, escolhemos o final do século XV, mais especificamente aquele que fez Frei Pedro Serrano, abade visitador, em meados da década de oitenta de Quatrocentos, assinando o seu relatório a quatro de novembro de mil quatrocentos e oitenta e sete. Não havendo abade no mosteiro, dirigiuo ao prior (Gomes, 1998, pp. 155-182). Transcrevem-se algumas observações relativas à vida espiritual do cenóbio alcobacense: * Antigo Diretor do Mosteiro de Alcobaça. ** CEDTUR/ISMAI - CETRAD/UTAD

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“(…) E porque a casa de Deus deve estar ornada com carácter de santidade, visitando este mosteiro, vimos por nós próprios serem falhos muitos dos ornamentos tanto na igreja como na sacristia (…)“. Há naturalmente uma enumeração das falhas para concluir “que cada uma das coisas adiante referidas e por nós nomeada e expressa seja cumprida para ornato, reparação e decoro da igreja e sacristia”. Relativamente ao ritual litúrgico que necessariamente deveria ter os “ornamentos” em bom estado, como referido, o abade visitador pede diligência aos monges no exercício do culto, “(…) cumprindo as cerimónias da ordem, clara, elegante e devotadamente, lendo com as devidas pausas e a necessária acentuação o prescrito na santa regra do nosso pai S. Bento” (Regra, n.ºs 19 e 20). Há, pois, uma exigência estética requerida não apenas pelo Regulamento mas também, pressente-se, pela sensibilidade de Frei Serrano que determina um padrão qualitativo, como se estabelece adiante: “(…) Façam uma vestimenta alva com os seus véus ou guarda-pós e sobreveu tanto para o altar-mor como para os restantes (…) para que os altares estejam ornamentados nos dias festivos e no tempo quaresmal e no restante tempo.” O visitador manda abrir aos leigos as portas da igreja durante a missa conventual e, não apenas por isso, ordenou a pintura do retábulo do altar-mor “que devia ser usado com ordem e decoro”. O altar seria vislumbrado durante a eucaristia pelos homens, que não podiam passar da grade colocada antes do coro, e que também em dias festivos podiam assistir às vésperas e participar nas procissões no claustro. As mulheres, essas, não podiam ir além da capela da galilé, em cuja soleira seria colocada outra grade. O abade visitador tornava efetivo a assistência dos crentes aos atos litúrgicos, dando a voz a Lucas, 10, 16: “Aquele que vos ouve é a Mim que ouve, e aquele que vos despreza é a Mim que despreza.” Muitas reparações são determinadas, e uma delas parece-nos importante para a conservação dos telhados e paredes: “Reparar a telha e fazer à volta condutas para a água”. Ordena noutro ponto do seu relatório que se “revista de ladrilhos o pavimento da igreja”. Frei Pedro Serrano, em coerência com a sua inspeção, determina “que no mosteiro haja professores que nele lecionem e o ilustrem”, porque, justifica, “a ignorância é a mãe de todos os erros”. Não seria possível ler as Escrituras, mas sobretudo compreendê-las, sem leitura e interpretação: “A leitura 138

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das divinas Escrituras conserva a alma, rege o afeto, dirige o ato, corrige o excesso, compõe os costumes, confere à ciência das coisas humanas e divinas semelhança, e dissolve também todas as paixões irracionais do homem.” 3. No que concerne às visitas oficiais civis, quase todos os reis, exceto os Filipes de Espanha, visitaram, por períodos mais ou menos longos, o mosteiro de Alcobaça, havendo destas hospedagens reais uma informação desequilibrada relativa aos percursos, à constituição das comitivas e ao quotidiano nos coutos. Deixamos as emblemáticas visitas de D. Maria I e de D. Miguel para outra ocasião e debrucemo-nos sobre as visitas dos reis D. Sebastião e D. João V, aparentemente menos políticas do que as referidas e também com menos informação direta. O jovem rei D. Sebastião era neto de D. João III e filho do Príncipe D. João, que morreu antes do seu nascimento. Foi o tio-avô, abade comendatário de Alcobaça, que acolheu o menino algumas vezes no mosteiro. “E como o Infante gostava de viver nas terras de Alcobaça pela amenidade e fertilidade do país, [D. Henrique] trazia consigo mui- “D. Sebastião, Rei de Portugal " (pormenor), pintura a tas vezes o menino Rey, em óleo atribuída a Cristóvão de Morais, Museu Nacional maneira que a mayor parte da de Arte Antiga. sua infância vive o sereníssimo D. Sebastiam no Real Mosteyro de Alcobaça” (Santos, 1710, p. 364). Rei com 14 anos, D. Sebastião virá passar um mês ao mosteiro, de 22 de Julho a 22 de agosto de 1569. Não será incorreto dizer-se que, por detrás da visita, terá havido não só um projeto pessoal de regresso à infância, agora com poderes reais, mas também a tentativa de iludir a peste. “Não sando estar en lugar grande, parecendo-lhe que estan más seguros en los pequeños y com menos gente”1. A Rainha D. Catarina escolheu Alenquer para fugir a Lisboa, de onde veio o rei e para onde seguiu após a longa estadia. 1

ARQUIVO Geral de Simancas, Estado, Legajo 386, fl. 28.

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Que casa encontrou o soberano no vale entre os rios? Segundo Frei Manuel dos Santos, “Deteve-se no mosteiro hum mês, e como os monges padeciam de grave detrimento», as câmaras impediam a passagem de mantimentos, «passou hum alvará pelo qual nos concedeo que em todo o reyno pudessem os monges de Alcobaça tirar os mantimentos que ouvessem mister sem embargo de quaisquer posturas das Cameras” (Santos, 1710, p. 364). O mosteiro não lhe oferecia nenhuma novidade, pois naturalmente conhecia-o perfeitamente, embora com uma perceção infantil da casa e do seu quotidiano. A fachada simples da igreja, com a sua galilé mortuária do lado norte da porta da igreja, o muro do claustro, a sua porta gótica de ligação ao terreiro e, na esquina, o palácio abacial, construído a mando do seu tioavô e concluído em 1558 (desta data há uma escritura lavrada a 7 de Janeiro). Aqui se instalou o Recriação da fachada medieval da igreja (in Coelho, Maduro e Rasquilho, “O Céu, a Pedra e a Terra”, juvenil rei e os seus mais próxiCEPAE, 2012) mos, muito provavelmente na sala da Galé, aparentemente a mais ampla do palácio. O rei despachou normalmente durante a sua estadia no mosteiro. No dia 19 de agosto, sexta-feira, o rei escrevia a Filipe II de Espanha para que este não se preocupasse com o seu casamento. Aliás, com a mesma data, há uma carta do cardeal D. Henrique a Filipe II, onde o comendatário diz ao rei de Espanha a propósito: “ (…) Não se espante del rei meu sõr lhe responder asi no negoceo do seu casamento (…) “2. Que seria, neste caso, com a irmã do rei de França, a princesa Margarida. Como habitualmente, o cenóbio de Alcobaça promoveu comemorações por ocasião dos 416 anos sobre a morte de S. Bernardo, a 20 de agosto. O rei participou na efeméride assistindo às cerimónias religiosas na igreja do mosteiro, sem que deixasse de cumprir o despacho nesse sábado. No Domingo, 2

ARQUIVO Geral de Simancas, fls. 32-33.

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o rei escreve ao seu vedor da Fazenda a propósito de um homem, Damião de Góis, que, dois anos após a missiva, volta a ser processado pela Inquisição de forma violenta. Este, antes de morrer, em trinta de janeiro de 1574, esteve preso no convento da Batalha à guarda dos dominicanos. Pelo menos a morte poupou-o aos tristes acontecimentos do fim da independência, com a constituição da monarquia dual. Na terça-feira, 23 de agosto, D. Sebastião seguiu para o convento dominicano da Batalha onde se hospedou durante uma semana. Não sabemos se o rei terá parado na vila de Aljubarrota, que atravessou na manhã dessa terça-feira. Continuou o seu périplo pelo reino, indo ao Algarve, antes de regressar a Lisboa, no domingo, dia 13 de outubro. A visita do rei D. João V ao mosteiro de Alcobaça, vindo de Óbidos e Caldas da Rainha, para depois seguir para os conventos da Batalha e Tomar, está plasmada na folha de despesas do Real Mosteiro, correspondendo ao final do triénio do abade D. Félix de Azevedo. A despesa com a hospedagem do soberano e sua significativa comitiva correspondeu a 4% das despesas do triénio de 1711 a 1714: “Despendeuçe com a vinda de sua de Mag a esta casa estando nella sinco dias com toda asua Comitiva dous contos trezentos setenta dous mil duzentos e vinte reis”. Embora não se conheça descrição D. João V, enquanto jovem pormenorizada das cerimónias da che(pintura atribuída a Pompeo Batoni) gada, estada e partida, estas não terão sido diferentes do que aconteceu alguns dias depois em Tomar, por um lado, e por outro porque as regras da etiqueta joanina eram muito rígidas. Na data da visita, de 18 a 23 de abril de 1714, a fachada “barroca” da igreja já teria recebido a estatuária, exceto a imagem da Virgem, que só subirá ao nicho em 1725, com a ajuda de oficiais italianos. O patim, em patamares, estava concluído, sendo D. João V o primeiro rei a ver e a utilizar oficialmente este espaço de aparato. Precedia o cortejo, na chegada ao terreiro, a liteira do cardeal da Cunha, 141

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Fachada actual da igreja do mosteiro de Alcobaça. Foi já esta imagem que D. João V e a sua comitiva contemplaram em 1714.

transporte porventura mais sereno do que qualquer outro que se fizesse à estrada. Quando a carruagem real parou em frente à escadaria e à fachada que lhe sucede, a alvura da pedra nova realçou por certo o colorido das roupas de seda, das cabeleiras, dos punhos de renda, e uniu-se ao empoado branco dos nobres rostos avivados por bochechas rosadas. O povo, no terreiro, espantado, viu-os subir, passando com gestos amaneirados os patins intermédios, até ao da entrada da igreja onde o cenóbio e o pálio aguardavam o rei. Os vivas populares, os sinos novos em repique, os foguetes a estalar compunham o cenário com as janelas da hospedaria engalanadas a preceito. Desceram depois a nave até ao cadeiral do coro. Iniciou-se o Te Deum e o rei deu a mão a beijar aos eleitos presentes da sociedade civil e militar. Os irmãos de D. João V, os infantes D. António e D. Manuel, e muita alta nobreza acompanhavam o rei. No dia 19, o rei e os infantes foram caçar nas matas dos coutos, indo posteriormente visitar o santuário do Sítio, dedicado a Nossa Senhora da Nazaré, e não repugna que tenham descido à praia para assistir à recolha das redes. D. José, que nascerá mês e meio após este périplo real, no dia 6 de Junho, justifica a ausência da rainha, D. Mariana de Áustria. 142

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No mosteiro, onde passou uma boa parte da sua estadia, o rei ouviu, numa das missas e antes da consagração, o infante D. António a executar uma peça apropriada no órgão de tubos colocado do lado da Epístola, sobre o magnífico coro manuelino. O relato da estadia é quase omisso, todavia seguramente o rei terá passado algum tempo nas livrarias instaladas no antigo dormitório medieval. O rei, diz-nos Mário Domingues (1899-1977), colecionou na Congregação do Oratório todos os livros que pôde obter com louvores à Virgem, a que deu o nome de Livraria Mariana. A biblioteca do convento de Mafra foi muito acarinhada pelo rei depois da sagração da igreja, em 1730. No ano seguinte a este périplo é assinado o tratado de Utreque, restabelecendo-se a paz entre Espanha e Portugal. Em 1716 é instituído o Patriarcado de Lisboa e, no último mês desse ano, é nomeado o primeiro patriarca, D. Tomás de Almeida. 4. O século XVIII testemunha um reforço do interesse dos estrangeiros sobre Portugal. A viagem deve-se, em grande medida, à notícia dramática e traumática do grande terramoto de 1755 que suscita a curiosidade das elites pela destruição de uma urbe europeia. O périplo por terras lusas é ainda intensificado em virtude da difusão geográfica do Grand Tour (ritual iniciático dos jovens bem nascidos que, acompanhados de um preceptor, percorrem as capitais da renascença italiana, mas também da França, Países Baixos…, adquirindo um estofo de cosmopolitismo e de cultura ocidental) à Península Ibérica território considerado pelos estrangeiros como arredado do progresso civilizacional aportado pela revolução industrial e pela difusão do pensamento iluminista e liberal, logo exótico nos costumes e mentalidades. A visita a Portugal contempla, naturalmente, outro corpo de razões de âmbito diplomático, militar ou de simples veraneio motivada até por problemas de saúde. A estada temporal é, muitas vezes, curta, o que implica juízos precipitados e uma parca reflexão que alimenta ideias preconcebidas que pontuam entre os livros de viagens, acrescente-se ainda o problema da língua inibidor da compreensão e gerador de equívocos. A escala em Lisboa é sempre prioritária, o problema é que a digressão se queda às portas da capital e desta realidade física e social se fazem extrapolações para todo o país. Alguns viajantes alongam o período de observação e nos textos que nos legam recolhem-se preciosas referências aos usos e costumes do povo e classes aristocráticas, à religião e suas práticas, aos recursos do território e 143

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paisagem (preocupação saliente nos naturalistas), sua agricultura, artes e indústria, avaliação de governos e instituições laicas e religiosas, assim como temas que versam campos diversos da cultura, nomeadamente o literário, o histórico e artístico. São estas últimas categorias que conduzem os viajantes a incluir no seu itinerário a monumentalidade da capital e do Palácio Convento de Mafra e, quando a aventura se prolonga temporalmente, o Convento de Cristo de Tomar, o Convento da Batalha e o Mosteiro de Alcobaça, entre outros, assumem-se como lugares de paragem obrigatória. Debrucemo-nos então sobre os olhares dos estrangeiros a propósito do mosteiro e coutos de Alcobaça. As primeiras notas de viagem recaem sobre a paisagem, numa descrição mais ou menos pormenorizada dos cultos e incultos. Thomas Pitt, que visita o mosteiro no ano de 1760, refere a propósito que – “A localização do Mosteiro é extremamente bela, cercado por todos os lados por campos cultivados de vinhas e oliveiras, com um ribeiro abundante que rega o jardim durante todo o ano” e, mais à frente, acrescenta que – “Os montes elevam-se à volta a uma certa distancia, cultivados até ao cimo, e alguns deles revestidos com belos olivais e vinhas, e elevando-se as serras por detrás dos montes” (2006, pp.106,124). Este breve olhar regista dados interessantes a reter. Em primeiro lugar pronuncia-se sobre a beleza do local de implantação do mosteiro, beleza essa que recai não só na orografia de um vale profundo cercado de montes, mas nas culturas que enfeitam a paisagem. Fala-nos de olivais e vinhas como culturas dominantes e refere o seu cultivo tanto nos altos, como nos baixos. As fruteiras, segundo o ordenamento agrário cisterciense, eram prioritariamente remetidas para as ladeiras banhadas pelo sol deixando os vales para a cerealicultura e horticultura. A excelência da agricultura monástica constitui um elemento central das impressões de viagem. Giuseppe Gorani que, seis anos após Pitt, vem conhecer a abadia, refere que – “Todos os arredores são muito bem cultivados pelos monges, que ali possuem grande abundância de trigo, vinhos e toda a espécie de legumes e frutas” (1992, p.159). Idêntico depoimento extraímos de James Murphy que, em 1789, estancia três semanas no mosteiro – “Toda região vizinha está bem cultivada e produz trigo e frutas de várias espécies” (1998, p.85). Mas é com a pena literária de William Beckford que o descritivo ganha foro artístico. Este aristocrata inglês que visita três vezes Portugal leganos, da segunda estada, o roteiro das viagens ao Mosteiro de Alcobaça e Convento da Batalha entre 3 a 14 de julho de 1794, texto produzido numa distância temporal de quarenta anos face ao acontecimento. Pronunciando144

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se sobre as terras de campo, refere que – “Aqui tudo sorria; cada nesga de terra era aproveitada ao máximo, graças à perfeição e bom uso do sistema lombardo de irrigação. Cada casa era manifestamente um núcleo de industriosa prosperidade, com o seu quintal bem cercado de muros e profusamente embelezado pelas abóboras e melões, com as suas bicas de água abundante, as suas vinhas, figueiras e espaldeiras de romãs (1997, p. 92). Estas terras que se estendiam da Maiorga a Alfeizerão foram recuperadas pelo mosteiro para a agricultura através de obras de engenharia hidráulica, desviando rios, enxugando pauis, evitando com portas de maré a invasão das águas salgadas e com uma ampla cercadura de pinhal o afogamento dos campos de cultura pelas areias, contrariando ainda, graças a este trato florestal, a ação nefasta dos ventos mareiros, dando assim razão à disseminação do milho grosso americano e, mais tarde, já na década de 20 do século XIX, do arroz. William Morgan Kinsey, que chega às terras de Alcobaça no ano de 1829, começa, igualmente, por descrever o espaço. O seu olhar fixa-se nos olivais que povoam o colo serrano (cultura que o mosteiro manda chantar entre a segunda metade do século XVII e, com grande intensidade, na primeira metade do XVIII), nomeadamente os olivais do Santíssimo Sacramento das Ataíjas que se estendem ao longo de três léguas e cuja produção se encontrava, aquando a visita de Kinsey, comprometida pelo ataque da ferrugem:

Olivais da beira-serra dos Candeeiros (Foto Alvão)

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“The road from Batalha to Alcobaça, a distance of three leagues, passes partly through fine valleys abounding with olive plantations, among which the disease called the ‘ferrugem’ seems to have committed great havoc”. Mais à frente fala-nos das florestas, dos prados verdes e da generosa produção de milho e frutas (1829, pp. 439-440). Kinsey reforça ainda o parecer de Beckford sobre a condição superior da arte agrícola nos coutos (Martins, 1987, p. 64), situação que contrasta com o estado geral de abandono do país: “The system of agriculture pursued in this district is excellent, and may be entirely attributed to the superior knowledge of Bernardine brethren in all masters connected with rural economy” (1829, p. 440). O desenvolvimento da tela agrária deve-se ao aprofundado conhecimento agronómico adquirido, ao longo dos séculos, pela comunidade monástica de Alcobaça através da sedimentação de experiências que resultam em aperfeiçoamentos culturais e inovações de caráter tecnológico. Neste exercício destaca-se o papel das granjas que , em certa medida, funcionam como escolas e laboratórios, de realçar ainda as profícuas trocas de saberes operadas entre o extenso corredor das abadias cistercienses de toda a Europa. Os viajantes sustentam ainda que este conhecimento ultrapassa os limites físicos das granjas e se difunde entre o mundo camponês. William Beckford refere, de uma forma lisonjeira, o papel que desempenham os senhores de Alcobaça na administração do território e desafogo das populações, destacando que a felicidade almejada pela abastança de frutos reflete uma transfusão de saberes práticos ensaiados nas granjas de que os camponeses se apropriam: “Os camponeses, que vestiam roupa boa e confortável, olhavam para a nossa esplêndida caravana com simpatia e sem inveja, pois os seus corações sentiam-se alentados pelo bom tratamento: os celeiros repletos, os rebanhos grandes e sadios, e os seus senhores, os ricos monges de Alcobaça, nem gananciosos, nem tirânicos. Quando o prior de Avis parou para conversar com esta boa gente, o que fez repetidas vezes, perguntou com a sua habitual benevolência e afabilidade: - “Quem vos ensinou a lavrar a terra com tanto esmero? A estrumá-la com tanta perícia? A cultivar tão bom cereal? A poupar ao gado esforços desnecessários? A criar as crias com tanto carinho?” – A resposta foi pronta e sempre a mesma: – “Os nossos indulgentes senhores e bons amigos, os monges do real Mosteiro” (1997, p. 92). Murphy corrobora o parecer de Beckford destacando a bondade dos monges – “Os que protestam contra a opulência destes monges fariam bem 146

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em indagar se entre nobres e plebeus de toda a Europa; possuindo rendimento igual ao deste mosteiro, há alguém que espalhe tantos benefícios sobre os seus semelhantes como os padres de Alcobaça” (1998, p. 93). Esta ideia paternalista e protetora da parte do mosteiro para com o povo é firmemente contestada por Heinrich Link que por aqui estancia em 1798. Considera o autor que as declarações de Murphy fogem à verdade dos factos: “Achou ali os caseiros muito abastados, viu que diariamente o mosteiro alimenta uma série de pobres e interrogou-se se de facto um qualquer particular rico poderia doar tanto aos seus próximos mais necessitados? Também aqui tenho de o contrariar. As gentes que estão sobre alçada deste mosteiro são totalmente espezinhadas pelos impostos e a pobreza reina onde podia haver abundância” (2005, p. 172). Para além da paisagem e do trato agrícola, a monumentalidade da Igreja exacerbada pelo programa barroco cativa os viajantes. Para Thomas Pitt, “A Igreja é gótica mas de extrema nobreza. As joias, as vestes, a prataria e seus ornamentos etc. são do mais rico que há (2006, p. 106). Deste mesmo deslumbramento fica refém Murphy quando testemunha que: “Ao entrar na igreja, pelo lado oeste, surpreende-nos a grandiosidade do efeito geral, peculiar aos interiores das igrejas góticas. Muito poucas, porém, a possuem em tão alto grau como esta. A perspetiva do limite este termina numa magnificente glória colocada sobre o altar a uma distância de 300 pés da entrada (Murphy, 1988, p. 86). É deste efeito cénico e teatral de que nos fala o Príncipe Félix Lichnowsky na viagem que faz ao mosteiro em 1842: “Um sol, ou glória dourada e colossal, que por detrás do altar-mor se prolonga em todas as direções, não se pode Retábulo do altar-mor dizer que tenha notável bele147

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za, porém produz grande impressão, principalmente quando, ao descer o Sol ao horizonte, essa grande massa brilhante se ilumina e cintila. Em geral, nesta igreja tudo parece disposto com o fim de produzir efeito (1990, p. 172). A escultura tumular, os conjuntos escultóricos, a capela relicário, os altares ricamente decorados e os órgãos que, em sintonia com o coro, contribuem para um clima de transcendência, constituem outros temas recorrentemente abordados pelos visitantes. Mas os estrangeiros também fixam o olhar em aspetos mais comezinhos ou menos edificantes. Beckford demora-se no fausto gastronómico que a importância da sua visita acaba por merecer: “O banquete propriamente dito compunha-se não só do que há de melhor da cozinha tradicional, mas também de iguarias raras e especialidades fora da época e de países longínquos: enchidos deliciosos, lampreias em conserva, manjares exóticos dos Brasis, e outros da China ainda mais estranhos (ninhos de andorinha comestíveis e barbatanas de tubarão), confecionados à moda de Macau por um irmão leigo chinês. Quanto a doces e frutas, não era aqui o seu lugar; esperavam-nos numa sala adjacente, ainda mais espaçosa e sumptuosa, onde os eflúvios das iguarias e molhos não nos alcançavam” (1997, p. 37). Maria Bettencourt Pires, estudiosa da obra de Beckford, realça o impacto e a popularidade do cozinheiro francês que acompanha o aristocrata concita entre a comunidade religiosa, mobilizando o seguinte excerto das Recordações: “Os frades de Alcobaça entusiasmam-se com a macedoine, os sautés and bechamels. O creme de trufas leva o Abade a dar graças com mais veemência do que habitualmente” (1987, pp. 158159). A qualidade e quantidade da dieta alimentar é também referenciada por Gorani quando descreve um passo da sua estada: “O dia imediato passamolo todo no mosteiro, onde as quatro refeições, almoço, jantar, merenda e ceia, foram magníficas. De lamentar foi não sermos nós pessoas da têmpera de Sancho Pança” (1992, p. 161). O espírito mundano que a abadia exala, em perfeita dissonância com o pensamento de S. Bernardo, nota-se neste prazer cultual pela mesa. Pelas receitas sofisticadas de carnes, peixes, mariscos e doces e pelo desejo dos vinhos preciosos das suas adegas. Trata-se de vinhos vermelhos e brancos cristalinos que se distribuem nos 40 gigantescos tonéis da adega com a capacidade estimada de 700 pipas. Estes vinhos produzidos pelo método de bica aberta, beneficiados pelo arrobe que lhes eleva o grau e pela junção de aromática camoesas que lhes transmitem um paladar frutado, conquistam o palato dos viajantes. 148

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Mas o mosteiro também é fértil em locais de introspeção, de fuga ao quotidiano ritualizado. Admiram-se os jardins da cerca tão necessários para garantir o equilíbrio de homens que partilham a vida em comum com todo o leque de tensões privativas. Giuseppe Gorani, refere que: “Nas traseiras do mosteiro, estes servidores de Deus tinham o desafogo de um vasto e magnífico jardim, fornecido de toda a espécie de frutos, cercado de vinhas, oliveiras, pequenos bosques de figueiras, limoeiros e laranjeiras. Neste jardim, de espaço a espaço, existiam belos caramanchéis guarnecidos de bancos. A meio existia um belíssimo largo oval, de 130 pés de diâmetro, com um obelisco ao centro. Na extremidade podiam-se ver ciprestes e teixos, a que a tesoura do jardineiro dera diferentes e engenhosas forma: caçadores, monges em prece, cabeças com rabicho e outras com cabeleira” (1992, p. 160). James Murphy também se deslumbra perante o espetáculo gracioso da jardinagem: “Há vários ciprestes, ao fundo do jardim, cuja ramagem é engenhosamente trabalhada, representando figuras de homens, alguns caçando outros rezando. Usam umas largas tranças, outros cabeleiras. Esta espécie de estatuária, ainda que não classificada entre as belas-artes, aproxima-se mais da Natureza do que qualquer outra…” (1998, p. 91). Outros anexos clamam a atenção dos viajantes. Richard Twiss, que visita o mosteiro em 1773, fala-nos da majestosa coelheira e do pombal:

Jardim do Obelisco num postal antigo (1912?)

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“The rabit-warren is adjacent to the kitchen, and is a very singular one. It is a large area, paved with square marble falbs, and walled in; several rows of low sheds are built, in parallel lines, from one end to the other; and under these are placed five thousand earthen pots, with lids, having a hole in one side to admit the conies, which consequently are all tame. At one end of the area is an inclosure to separate the young from the bucks occasionally. They are readily caught by the hand, on lifting off the lid of the pot. “Ajoining to the warren, stands the pigeons-house, which is circular. A round column supports the roof; the inside is full of earthen pots, in which the pigeons build their nefts. There are twenty-four rows of these pots, one hundred and twenty in each row, and round the column, in the middle, are like wife twenty-four rows, cach containing twenty-four pots: the total number of which is three four hundred and fifty-six.” (1773, pp. 41-42). A coelheira do mosteiro também impressiona James Murphy, que dela faz descrição detalhada : “Contíguo ao jardim que venho mencionando, encontra-se uma coelheira pertencente ao Mosteiro e construída por forma que nunca havia visto. Tem 200 pés de comprimento, por 125 de largura. Cercada de paredes com 16 pés de altura. O chão é pavimentado com grandes ladrilhos cujas juntas estão ligadas com cimento. Há pequenos abrigos ao longo do muro, onde estão colocados potes de barro ovais, com 11 polegadas de altura e 9 de profundidade. Cada um destes potes tem na parte da frente uma espécie de tubo arredondado, por onde a coelha aqui gera e cria os seus filhos. Dentro da área da coelheira há também várias filas de potes colocados visivelmente à parte, para os machos. Estão calculados, ao todo, em 5 ou 6.000 os coelhos que ali vivem alimentados pelas plantas dos jardins vizinhos juntamente com as sobras do convento” (1998, pp. 91-92). Também Beckford alude ao convite para visitar a coelheira considerada a maior cerca de coelhos do mundo (1997 p. 44) e Kinsey menciona a grande coelheira adjacente ao edifício (1829, p. 447). Esta instalação, para efeitos de limpeza, localizava-se sobranceira ao rio, daí na entrada do triénio de Frei Tomás de Sampaio (1739-41) registar-se a reparação do açude da coelheira, a edificação de um muro e portal. O olhar reclama a atenção dos viajantes que passam em trânsito pela abadia para muitos outros diversos e interessantes aspetos que não se 150

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compaginam no teor breve destas páginas, mas que, como já enunciamos, iremos tratar em obra futura. Bibliografia – BECKFORD, William (1997): Alcobaça e Batalha. Recordações de uma Viagem. (Introdução, tradução, e notas de Iva Delgado e Frederico Rosa). Lisboa, Vega. – BECKFORD, William (2009): Diário de William Beckford em Portugal e Espanha. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal. – CARVALHO, Maria Amália Vaz de (1899): Em Portugal e no Estrangeiro (ensaios críticos). Lisboa, Livraria Editora. – CHAVES, Castelo Branco (1983): Os Livros de Viagens em Portugal no século XVIII e a sua projecção europeia. Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa. – FERREIRA, Maria Emília (1979): “D. Sebastião”, in Dicionário de História de Portugal (dir. Joel Serrão), vol. II., Lisboa, Iniciativas Editoriais, pp. 817-821. – GOMES, Saul António (1998): Visitações a Mosteiros Cistercienses em Portugal. Séculos XV e XVI. Lisboa, IPPAR. – GONÇALVES, Iria (1989): O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e XV. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa. – GORANI, Giuseppe (1992): Portugal. A Corte e o País nos anos de 1765 a 1767. Lisboa, Círculo dos Leitores. – KINSEY, William Morgan (1829): Portugal Illustrated. London. – LINK, Heinrich (2005): Notas de uma viagem através da França e Espanha. Lisboa, Biblioteca Nacional. – MACEDO, José Braga de (1979): “D. João V”, in Dicionário de História de Portugal (dir. Joel Serrão), vol. II. Lisboa, Iniciativas Editoriais, pp. 623-626. – MARTINS, Isabel Oliveira (1987): William Morgan Kinsey – Uma Ilustração de Portugal. Lisboa, Edições 70. – MURPHY, James (1998): Viagens em Portugal. Lisboa, Livros Horizonte. – PIRES, Maria Bettencourt (1987): William Beckford e Portugal. Lisboa, Edições 70. – PITT, Thomas (2006): Observações de uma Viagem a Portugal e Espanha (1760). Lisboa, IPPAR. – RORIZ, Aydano (1949/2002): O Desejado – A fascinante história de Dom Sebastião. São Paulo, Ediouro. – SANTOS, Frei Manoel dos (1710): Alcobaça Ilustrada. Coimbra. – TWISS, Richard (1773): Travels through Portugal and Spain, in 1772 and 1773. London.

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