OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático O DIREITO À CIDADE NO RIO DE JANEIRO CONTEMPORÂNEO 1

May 22, 2017 | Autor: Taísa Sanches | Categoria: Urban Planning, Urban Sociology
Share Embed


Descrição do Produto



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

132

O DIREITO À CIDADE NO RIO DE JANEIRO CONTEMPORÂNEO1 Pedro Henrique Campello Torres2 Rodrigo Ribeiro3 Taísa Sanches4 Artigo submetido em: ago. /2016 e aceito em: fev./ 2016

RESUMO O objetivo do presente artigo é discutir direito à cidade no município do Rio de Janeiro, em perspectiva histórico-sociológica, com foco em seu desenvolvimento urbano a partir de dois eixos centrais: habitação e mobilidade urbana. Nesse sentido, buscamos fazer um breve resgate da história do planejamento urbano, indicando que a cidade do tempo presente é produto de um processo de longa duração que, em nosso caso, resulta em desigualdades e conflitos permanentes, envolvendo diversos agentes como poder público, empresariado, movimentos sociais, entre outros. Palavras-chave: Rio de Janeiro; Direito à cidade; Mobilidade Urbana; Habitação

THE RIGHT TO THE CITY IN CONTEMPORARY RIO DE JANEIRO ABSTRACT The objective of this article is to discuss the right to the city in the city of Rio de Janeiro, in a historical-sociological perspective, focusing on its urban development from two central axes: housing and urban mobility. In this sense, we seek to make a brief rescue of the history of urban planning, indicating that the city of the present time is the product of a long-term process that, in our case, results in permanent inequalities and conflicts, involving several agents such as public power, business, Social movements, among others. Key words: Rio de Janeiro; Right to the city; Urban Mobility; Housing

1

Uma primeira versão desse trabalho foi publicada na coletânea “O RIO QUE QUEREMOS: propostas para uma cidade inclusiva”, publicado pela editora NPC, em 2016. 2 Historiador, Mestre em Planejamento pelo IPPUR/UFRJ, Doutorando, bolsista Capes, em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Foi Visiting Scholar da Princeton University, bolsa CAPES-Sanduíche. 3 Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS-UFF). Bacharel em Ciências Sociais pela mesma instituição. Pesquisador Associado ao Laboratório de Etnografia Metropolitana – LeMetro/IFCS-UFRJ. Professor de Sociologia do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ. 4 Doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, bolsista Capes. Mestre em Ciências Sociais pela mesma instituição. Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidad Carlos III de Madrid. Bacharel em Ciências Sociais, com foco em Ciência Política e Sociologia, pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

133

INTRODUÇÃO O presente artigo objetiva discutir o direito à cidade no município do Rio de Janeiro, em perspectiva histórico-sociológica, com foco em seu desenvolvimento urbano a partir de dois eixos centrais: habitação e mobilidade urbana. Nesse sentido, buscamos fazer um breve resgate da história do planejamento urbano, indicando que a cidade do tempo presente é produto de um processo de longa duração que, em nosso caso, resulta em desigualdades e conflitos permanentes, envolvendo diversos agentes como poder público, empresariado, movimentos sociais, entre outros. Vivemos, desde a virada do século XIX para o XX, um aumento exponencial no número de pessoas vivendo em cidades do chamado mundo urbano. Hoje, no século XXI, muitos falam em crise urbana, e nela estão incluídas crises habitacionais, de saneamento, de água, de transportes, climáticas, migracionais, de alimentos, entre outras. No Brasil, já superamos a marca de 85% da população vivendo no meio urbano, o que dá mais ou menos 175 milhões de pessoas (MAGALHÃES, 2014), e algumas questões surgem a partir desta constatação: Como estamos vivendo nesse mundo urbano? Como queremos viver as próximas décadas? David Harvey, em O Direito à Cidade (2012, p.73), faz uma provocação: “O compasso e a escala, surpreendentes, de urbanização dos últimos cem anos contribuíram para o bem-estar humano? ”. Para Harvey, geografo marxista, a “cidade que queremos”, ou seja, aquela a ser construída, “não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos”. O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. Trata-se, portanto, de entender o direito à cidade como um direito humano. A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuramos argumentar, um dos mais preciosos e negligenciados direitos humanos. As cidades brasileiras, salvo raríssimas exceções, são exemplos de um planejamento urbano que, ancorado na aliança entre capital imobiliário e poder público, produziram cidades desiguais, com padrões de segregação e bolsões de pobreza em diversos municípios do país. Mesmo quando a tentativa por parte do poder público foi, de alguma forma, fazer política pública urbana para as classes subalternas, isso se deu de forma a produzir segregação espacial, como, por exemplo, a produção de moradias populares em áreas afastadas dos centros de comércio, serviços, educação, saúde etc. Tais perspectivas marcaram distintos períodos tanto de nossa democracia quanto da ditadura militar. Ainda hoje o governo federal reproduz, a partir do programa Minha Casa OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

134

Minha Vida, uma lógica de produção de moradias que vem desde a década de 40. Ao mesmo tempo estamos de alguma maneira presos a um tipo de morfologia de nossas cidades, ou do planejamento delas, que ainda tem a forte marca da ditadura militar. Como ressalta Maria Alice Rezende de Carvalho: É, portanto, nessas “cidades da ditadura” que continuamos a viver – cidades marcadas por arranjos urbanísticos de péssima qualidade e pior inspiração, pela escassez de saneamento, pela proliferação de guetos sociais, pela violência do Estado, pela ausência de participação efetiva da sociedade em experiências de autoorganização, e, como se não bastasse, pelo desrespeito à vida (e mesmo à morte), que se percebe em eventos como o da recente passagem do trem da SuperVia sobre o corpo do jovem que jazia em seus trilhos (CARVALHO, 2015, p. 3).

As “marcas da ditadura militar” estão por todos os lados, tanto no plano simbólico quanto no plano material. Afinal, enquanto a sociedade acreditar ser normal continuar homenageando – dando nome a estátuas, escolas e ponte – ou sendo indiferente àqueles que participaram do Golpe Militar, que mataram, torturaram e perseguiram a resistência, dificilmente teremos uma nova cidade (TORRES, 2015, p. 381). As marcas da ditadura nas cidades ainda hoje se proliferam através das remoções forçadas e soluções habitacionais precárias. Pesquisas recentes indicam que, em caso de hipotético concurso, o atual Prefeito Eduardo Paes seria eleito o que mais realizou remoções na história da cidade5. Para se ter uma ideia, entre os anos de 1965-1974 foram removidos 139 mil moradores de favelas na cidade do Rio de Janeiro – uma das taxas mais altas do mundo, e o processo continua (DAVIS, 2006). Apenas entre 2009 e 2013 o atual Prefeito Eduardo Paes removeu 65 mil moradores de favelas, reproduzindo o sentido de “interiorização” das classes subalternas para áreas distantes, sobretudo da Zona Oeste da cidade, como Campo Grande e Santa Cruz, cerca de 50-60 km da área central do município. Muitos dos removidos foram transferidos para novos conjuntos habitacionais do programa federal Minha Casa Minha Vida, em estratégia muito semelhante à das décadas de 40 a 60 e 70. No entanto, uma nova cidade surge, inclusive, com a denúncia pública destas arbitrariedades, com a elaboração de alternativas para as políticas públicas dominantes e, ainda, com a construção coletiva de uma visão de cidade inclusiva e justa. Reclamar o direito à cidade e procurar romper a lógica atual da cidade como negócio, tão louvada pela atual gestão, parece o grande desafio e o debate a ser encarado pelas forças progressistas de nossa cidade. Sobre o tema ver o livro de FAULHABER, Lucas e AZEVEDO, Lena. SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro. Editora: Mórula Editorial. 2015. Além das inúmeras remoções de favelas e das simbólicas marcações nas casas espalhadas pela cidade, o exemplo recente mais marcante é, certamente, o da Vila Autódromo, localizada na Zona Oeste da cidade e próximo às instalações olímpicas. Descrita como essencial à realização das obras de infraestrutura das olimpíadas, a remoção dos moradores se mostrou uma farsa pela prefeitura. A comunidade resistiu e, junto a acadêmicos e ativistas, realizou um plano alternativo de urbanização da área, que foi ignorado pelo município. 5

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

135

Neste sentido, apresentaremos a seguir algumas notas sobre o processo histórico que culminou na formação das desigualdades sociais na cidade do Rio de Janeiro. Logo em seguida, discutiremos como as políticas públicas atuais repetem alguns dos processos que levaram à segregação urbana no passado, apontando para as possibilidades de enfrentamento a esse tipo de execução dos programas habitacionais. Em seguida, apontaremos algumas alternativas de melhoria do espaço urbano. 1 RIO DE JANEIRO: UM LABORATÓRIO DE POLÍTICAS HABITACIONAIS Em 1906, o engenheiro civil Everardo Backheuser apresenta um relatório6 sobre as habitações populares vigentes no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, no começo do século XX. O relatório identifica as diferenças de moradia e a heterogeneidade das formas de habitação como os albergues, hospedarias, casas de cômodos, cortiços, estalagens, vilas operárias e pela primeira vez aparece a favela como uma dessas formas. As pessoas que viviam nessas moradias foram retratadas por médicos e engenheiros como a escória da sociedade. Frequentemente, os técnicos tratavam as pessoas que moravam em habitações degradadas como se fossem também moralmente degradadas. Vejamos: Hoje que a administração pública, deixando o campo theorico dos relatorios espalhafatosos, envereda afinal pelo terreno pratico da execução dos melhoramentos, hoje que se vae remodelando a velha metrópole rasgada por avenidas em todos os sentidos, demolindo-se e reconstruindo-se sofregamente, hoje que se sente, graças a isso, a esperança de se ver em breve um Rio de Janeiro formoso e hygienico, é hoje também ocasião de se voltarem as vistas para as lúgubres moradas onde vegeta a população indigente da cidade. (BACKHEUSER, 1906, p. 107. Grifos nossos)

A partir dos estudos específicos sobre a favela se começou a pensar sistematicamente a questão da habitação no Brasil. Essas primeiras análises datam dos anos 1950, devido às realizações dos censos demográficos7 de 1947 e 1950 coordenados por Alberto Passos Guimarães e que influenciaram posteriormente a realização do relatório SAGMACS8. Apesar disso, foi somente na década de 1960 que o assunto se firmou como objeto específico de reflexão. Nessa época vigorava a teoria da marginalidade social e a favela era vista como o Relatório apresentado ao Exmº Sr. Dr. J.J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Realizados pelo Serviço Nacional de Recenseamento, passaram a considerar “favela” um aglomerado que tivesse no mínimo 50 casas. 8 Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais – SAGMACS. Fundada nos anos 1950, a SAGMACS foi uma instituição de estudos e pesquisas com foco no planejamento urbano e regional e no desenvolvimento econômico e social, constituindo um organismo vinculado e influenciado pelo grupo francês MouvementÉconomie et Humanisme, coordenado pelo padre dominicano francês Louis-Joseph Lebret. No Rio de Janeiro, o grupo realizou trabalhos de planejamento urbano e regional e desenvolvimento econômico ao longo dos anos 1950 e início dos 1960. Em 1957, o grupo liderado por José Arthur Rios realizou o primeiro grande relatório sobre os aspectos sociais das favelas cariocas. Foi a primeira experiência de pesquisa urbana e regional e da inserção da pesquisa social como um instrumento dentro das ações do planejamento econômico e territorial, o que contribuiu com o aprimoramento da metodologia de pesquisa urbana sobre a 6 7

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

136

local característico da pobreza urbana (PERLMAN, 1977). De 1946 até 1960, diversas medidas e vários órgãos foram criados pelo Estado ou com apoio deste na tentativa de controlar e dar uma solução ao “problema” favela: Fundação da Casa Popular9; Fundação Leão XIII10; comissões da prefeitura do Distrito Federal e do Governo Federal; a Cruzada São Sebastião11; e o Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas – SERFHA. No entanto, várias favelas nasceram a partir da “tolerância” ou do incentivo do próprio Estado (GONÇALVES, 2013). A falta de moradia adequada e de políticas habitacionais para suprir a demanda dos diversos setores populares fazia entender que as favelas eram lugares temporários, enquanto o Estado não conseguia realizar ou realocar de forma digna esses contingentes populacionais. Nesse sentido, manter a “ilegalidade” e a precariedade foi uma estratégia do Estado, concedendo aos moradores a posse temporária da área, mas não o direito de propriedade. A partir da década de 1960, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), se iniciou uma política habitacional no Rio de Janeiro com o objetivo de erradicação das favelas e de remoção de seus moradores para longínquos conjuntos habitacionais, dando início à ocupação de lugares como Cidade de Deus e Cidade Alta. Uma vez deflagrado o golpe de 1964, a prioridade dada pela ditadura militar à questão da habitação e seus interesses políticos fica expressa na carta de Sandra Cavalcanti, ex-secretária de Serviços Sociais do Governo Carlos Lacerda, enviada ao primeiro presidente militar Castello Branco, sugerindo a criação do BNH: Achamos que a revolução vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que vamos ter de nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução dos problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica sobre as suas feridas cívicas. (apud VALLADARES,1982, p.39) realidade social, política e econômica da cidade e de seus habitantes. (MELLO; MACHADO DA SILVA; FREIRE e SIMÕES, 2012) 9 Primeiro órgão federal brasileiro na área de moradia com a finalidade de centralizar a política de habitação, criado em 1946 durante o governo do presidente Getúlio Vargas. Esta fundação é tida como precursora do Banco Nacional da Habitação (BNH), criado em 1964. 10 A Fundação Leão XIII foi a primeira grande instituição governamental direcionada à assistência. Foi criada pela Igreja Católica em 22 de janeiro de 1946, a partir do Decreto Federal n°22.489. Sua criação ocorreu em perspectiva interventiva com a articulação entre a Prefeitura do Distrito Federal, Ação Social Arquidiocesana e a Fundação Cristo Redentor. Objetivo: prestar assistência moral, material e religiosa aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro. A Fundação propunha trabalhar, na perspectiva de médio prazo, a promoção “moral” dos favelados. 11 Ação do bispo D. Hélder Câmara com verbas do Governo Federal (JK), 1955. Constitui-se como a principal ação da igreja católica desde o desgaste da Fundação Leão XIII, tendo a ideia principal de “integração dos favelados aos bairros”. A Cruzada São Sebastião também possuía um viés político dentro da conjuntura da guerra fria na disputa ideológica dos mais pobres. Em 1957, no Congresso Geral dos Representantes das Favelas Cariocas, D. Hélder condena políticos que fazem promessas e não cumprem e os comunistas para os quais “quanto mais miséria existir, haverá mais campo a ser explorado” (Tribuna da Imprensa, 07/01/1957).

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

137

Enquanto havia mudanças no campo político, no campo técnico/profissional também existiram alterações. Os norte-americanos, através da USAID12, financiaram a experiência das “vilas13”. Logo em seguida, vários professores universitários dos EUA vieram avaliá-las e foram muito críticos aos planos vigentes para as favelas e a seus resultados. Já havia uma forte corrente negando as teorias da marginalidade com uma série de argumentos contrários à erradicação de favelas e favoráveis ao seu desenvolvimento urbanístico no próprio local em que estavam. Em setembro de 1973, após vários problemas políticos e sociais causados por essa política de remoções, a CHISAM foi extinta, tendo removido mais de 175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades em conjuntos habitacionais, estando a maioria destes nas zonas Norte e Oeste. No início da década de 1980, tendo em vista os antigos problemas, o Governo Federal implementou o Programa de Erradicação de Favelas – PROMORAR. O objetivo era promover o melhoramento das favelas através de obras de saneamento e aterramento das palafitas, entre outras prioridades. O primeiro programa realizado pelo PROMORAR foi o “Projeto Rio”. A meta consistia na urbanização das favelas situadas ao longo da Avenida Brasil e a remoção dos moradores das palafitas para os conjuntos habitacionais que estavam sendo construídos naquela mesma área. A mediação entre os moradores e o governo deveria ocorrer através das associações de moradores. A conjuntura política se modifica com a eleição de Leonel Brizola para governador em 1982, apoiado por um amplo setor popular e pelos movimentos sociais. O discurso institucional remocionista perde força para o da urbanização e fortalecimento dos direitos dos moradores das favelas. Vejamos na fala do ex-governador: As favelas pagam impostos, não apenas os indiretos, que estão incluídos nos preços de tudo que consomem (…) mas especialmente através de sua força de trabalho. (…) Há uma grande dívida social a ser resgatada em relação aos favelados, estes nossos irmãos modestos e humildes, discriminados, marginalizados, isolados, (…) Quando se considera a favela algo de incômodo, algo que tem de terminar, algo que tem que ser removido, algo que é uma ferida no rosto desta linda cidade, pouca importância se dá ao que ela deva merecer, e na hora da distribuição de investimento ninguém se lembra dela. (Entrevista de Leonel Brizola à revista Cadernos do Terceiro Mundo, Janeiro de 1983.)

Em pesquisa feita em 1982 pelo IplanRio/SMDS com lideranças comunitárias, as principais reivindicações dessas seriam (em ordem crescente): esgoto, água, luz, melhorias nas vias e propriedade das terras. Neste último quesito, o Governo Estadual lançou o 12

United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). 13 Devido ao “acordo do Trigo”, Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança. (GONÇALVES, 2013) OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

138

programa “Cada Família Um Lote”, concebendo o auxílio na titulação de propriedades, permitindo que os moradores das favelas submetessem pedidos de regularização de propriedade através das associações de moradores. Apesar de ter sido uma prioridade para os moradores durante os anos em que a remoção era uma ameaça real (especialmente quando o Brasil vivia sob a ditadura militar), o título foi requisitado para apenas 2% dos milhões de lotes selecionados. Uma vez que a ameaça de remoção havia sido afastada, as demandas de parte dos moradores de favela mudaram para o desenvolvimento da infraestrutura e melhoria das condições materiais de suas casas e bairros, além de que as posições de Brizola referentes à favela e as suas declarações de apoio à reforma da polícia não agradavam a elite carioca nem os conglomerados midiáticos, que fizeram uma forte oposição às políticas sociais do início ao fim do governo. A década de 1980, no clima da redemocratização do país, retomou o diálogo (em parte) do poder público com os moradores das favelas, a prefeitura do Rio lançou em 1985 o programa “Mutirão” com técnicos da secretaria e lideranças faveladas para debater onde e quais obras seriam implementadas pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), utilizando-se de mão de obra local e remunerada. A ideia da remuneração foi defendida pelo movimento comunitário. Essas experiências pautaram a urbanização como política de Estado na constituinte de 1988 e na Constituição do Estado do Rio de Janeiro, colocando o território das cidades como atribuição das prefeituras, entre outras conquistas do movimento social: função social da propriedade; usucapião urbano de 5 (cinco) anos; Plano Diretor, projeto do Estatuto das Cidades e indenização em caso de desapropriação. Vejamos: Art. 234 - No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão: I - urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área imponham risco à vida de seus habitantes. (Constituição Estadual, cap. III – Da Política Urbana)

O princípio da não-remoção também foi incluído na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro: Art. 429. A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos: VI - urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições físicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipóteses em que serão seguidas as seguintes regras: a) laudo técnico do órgão responsável; b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções; c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento. (Lei Orgânica do Município, Subseção I – Dos Preceitos e Instrumentos)

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

139

Se a década de 1980 trouxe melhorias consideráveis para as favelas, é certo também que o quadro ainda era de deficiência em vários aspectos. Mesmo na oferta de serviços públicos, o esgoto só chegava a 20% dos domicílios em favelas; a água atingia 60% destes e a luz, 85%. Em algumas favelas a situação mudou. Na década de 1990, o governo local passou a lidar de outro modo com a questão, mais sensível à necessidade de promover debates e ações voltadas para a urbanização das favelas cariocas. Em 1991, o número de favelas, segundo o IplanRio, era de 570, e o de moradores era de 963.000. Em 1992 foi constituído o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, exigência da Constituição de 1988, na qual a via urbanizadora das favelas é consolidada como função do poder público. Nos artigos do Plano, a favela é definida como [...] área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação de terra por população de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinhamento irregular, lotes de forma e tamanhos irregulares e construções não licenciadas, em desconformidade com os padrões legais. (Art. 147 do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, 1992).

Em 1994, a Prefeitura do Rio de Janeiro, juntamente com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), lançou o programa “Favela-Bairro”, possuindo como objetivo: “construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento ou democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade”14. A descrição demonstra que as políticas públicas para a favela também estão associadas à preocupação com o crescimento da violência urbana, que é relacionada diretamente à representação da “ausência” do Estado nas favelas. Tal conotação antiquada é explorada por Valladares (2005) ao mencionar que Euclides da Cunha já utilizava o termo “ausência” do Estado ao retratar a situação de Canudos, promovendo a reflexão que o mesmo não está ausente, mas se apresenta de diferentes formas nas margens do Estado (DAS e POOLE, 2004). A política do Favela-Bairro foi apresentada possuindo um caráter eminentemente “técnico”, sendo dividida em três fases e, em sua primeira etapa, tinha como principal missão integrar e solucionar problemas nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em favelas, assim como a contenção e a estabilização de encostas, a drenagem fluvial, a coleta de lixo, a circulação viária e a iluminação pública. Além disso, engajou arquitetos e urbanistas em projetos para a construção de áreas de convivência como parques, praças e jardins. De acordo com o site da Secretaria Municipal de Habitação, 143 comunidades foram beneficiadas com as ações do Programa. 14

Fonte: Secretaria Municipal de Habitação (SMH).

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

140

O que presenciamos na última gestão da prefeitura carioca (2009-2012) foi a redefinição da política urbanística municipal. Neste sentido foi apresentado um “novo” projeto da Prefeitura Municipal, o “Morar Carioca”, diretamente conectado ao “Plano do Legado Urbano dos Jogos Olímpicos 2016”, com o objetivo de “urbanizar todas as favelas ‘urbanizáveis’ até 2020”, tal como estabelece o “Planejamento Estratégico Rio pós-2016” da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro15. Com recursos do PAC – Urbanização de Favelas, totalizando cerca de 8 bilhões de reais, o Morar Carioca possuía como lema “integrar todas as favelas do Rio à cidade formal”. Pretendia promover um ordenamento no uso do solo urbano, a partir de três eixos principais: proteção ao meio ambiente (“ecoeficiência”), reassentamento e melhorias habitacionais. A partir de um convênio firmado com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), o programa constituiu normas urbanísticas na esfera municipal para reger a ocupação do uso do solo, estabelecendo parâmetros sobre as características físicas de cada uma das áreas. No quadro dessas normas, retomou-se o tema das remoções, amenizadas pelas propagandas governamentais, considerando os modos de “reverter o crescimento urbano e desordenado, criando formas de cidadania à população de baixa renda”, com o intuito declarado de “promover a urbanização com inclusão social, envolvendo a participação da comunidade”. Dentre as diversas notáveis contradições existentes entre o programa Morar Carioca e o Plano Estratégico Rio Pós-2016, destaca-se que o primeiro estabelece que 97% da população que vive em favelas ocupa áreas passíveis de urbanização, enquanto o segundo afirma que, até 2016, a Prefeitura pretende diminuir em 5% as áreas de favelas no Rio de Janeiro, sem ao menos explicar o motivo do quociente numérico. Tal contradição demonstra a falta de lógica programática dentro do próprio poder público, utilizando diferentes parâmetros em seus projetos de maior visibilidade. Entretanto, o programa não teve um desfecho positivo, praticamente parando a sua execução com a saída do ex-Secretário de Habitação Jorge Bittar em 2012. Na época, alguns urbanistas pontuavam questões complexas, no qual a integração das favelas à cidade oficial seria concluída apenas se os projetos de urbanização reconhecessem o que é comum e o que é particular em cada favela (LEITÃO & DELECAVE, 2013). 2 A CIDADE OLÍMPICA E A GESTÃO DE ALTO DESEMPENHO: NOVOS PADRÕES DE SEGREGAÇÃO URBANA NA CIDADE A administração da Prefeitura do Rio de Janeiro que teve início em 2009 decidiu por outro caminho: se guiar pelas melhores práticas de gestão (...) 15

Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/planoestrategico/

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

141

A chamada Gestão de Alto Desempenho da Prefeitura estava pautada em três valores fundamentais: foco em resultados, pragmatismo e disciplina. (...) Ou seja, ao invés de agir somente pela necessidade ou intuição, a Prefeitura passou a agir com método. (Gestão de Alto Desempenho, prefeitura do Rio de Janeiro 2009-2012)

Os trechos acima, retirados de um relatório chamado Gestão de Alto Desempenho, elaborado pela prefeitura do Rio de Janeiro para demonstrar o cumprimento das metas propostas para o período de 2009 a 2012, primeiro mandato de Eduardo Paes, sugerem que sua gestão se inspirou em práticas mais comuns ao setor privado. O relatório é importante para mostrarmos a partir de qual concepção partem os desenhos urbano e habitacional produzidos na cidade do Rio de Janeiro atualmente. Orlando Alves dos Santos Jr. (2015) vê neste projeto de cidade um novo ciclo de mercantilização do espaço urbano, na medida em que sua administração passa a ser feita de forma empresarial, inserindo as áreas e serviços públicos da cidade “aos circuitos de valorização do capital” (idem, p. 466). O autor sugere que está em curso um “processo de intensificação da elitização da cidade”, tanto por conta da “transferência forçada de ativos sob a posse ou controle das classes populares para setores do capital imobiliário”, quanto pela “criação de novos serviços e equipamentos urbanos que passariam a ser geridos pela iniciativa privada” (ibid.). Na mesma direção, Feltran (2014) aponta para o caráter de inclusão social pelo mercado das políticas públicas atuais. Para ele, “a habitação social contemporânea é a ponta da operação de mercados financeiros transnacionais” (FELTRAN, 2014, p. 507), sendo fundamental “associar ao dispositivo mercantil uma cunha de destituição do ‘direito a ter direitos’” (idem, p. 508), no sentido em que o direito à habitação é dado via aquisição de imóvel, mas não oferece aos beneficiários um real acesso à vida pública que a cidade possibilita. Veremos, nesta seção, como os planos e projetos, leis e decretos, relativos à urbanização e à habitação, da prefeitura do Rio de Janeiro e do governo federal, têm influenciado o processo de segregação urbana no Rio de Janeiro, a partir das perspectivas expostas. O documento que guia a gestão da prefeitura, de 198 páginas, contém o Plano Estratégico para os anos de 2013 a 2016, segundo mandato desta administração. Ele se baseia nas políticas “exitosas” que foram implementadas no primeiro mandato, e traz ao debate a questão habitacional – que não estava presente no relatório dos primeiros anos. O Plano propõe a construção de 100 mil residências, e a redução em 5% da área do município ocupada por favelas, mas não explica quais as atividades que serão desenvolvidas nesse sentido. A OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

142

palavra habitação aparece menos de 10 vezes no documento, e a palavra favela, quatro vezes. O Programa Minha Casa Minha Vida não é mencionado. Estes fatos se contrapõem àquilo que poderia se esperar em uma cidade cujo déficit habitacional é de 220 mil domicílios (Fundação João Pinheiro, 2013). Outro documento oficial importante que expõe a conjuntura habitacional e urbana da cidade do Rio de Janeiro é o decreto 34.522, de outubro de 2011, que “aprova as diretrizes para a demolição de edificações e relocação de moradores em assentamentos populares”. Ele estabelece “a necessidade de atualizar e uniformizar os procedimentos da administração municipal para a desocupação de áreas em assentamentos populares, necessárias à implantação de projetos de interesse público”, e apresenta o PMCMV como alternativa de relocação das famílias removidas. O Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro, em conformidade com a linha exposta no decreto, prevê, em seu Artigo 15, segundo parágrafo, que Os moradores que ocupem favelas e loteamentos clandestinos nas áreas referidas no parágrafo anterior16 deverão ser realocados, obedecendo-se às diretrizes constantes do art. 201 desta Lei Complementar, do artigo 429 da Lei Orgânica do Município, observado os dispositivos do Art. 4º da Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 200117.

O art. 201, mencionado no parágrafo acima, prevê que a política de habitação deve “produzir novas soluções habitacionais” e “incentivar a formação de parcerias com entidades públicas e privadas”, entre outras coisas. Portanto, os moradores de favelas e loteamentos clandestinos, devem, segundo o Plano Diretor da cidade, ser removidos e realocados em soluções habitacionais que preveem a parceria público privada. Ou seja, se antes a justificativa às remoções estava atrelada a ideias higienistas, civilizatórias e reativas à ordem, o investimento do excedente de capital no espaço urbano é o foco das políticas habitacionais atuais. A cidade está sendo redesenhada através de relocações em conjuntos habitacionais em formato de condomínios como forma de oferecer à população acesso à cidade, e enquadrando-as em um perfil de classe média. Há a tentativa em se universalizar um “novo urbanismo”, como aquele descrito por Harvey (2012), que nega a pobreza na cidade e vê na classe trabalhadora um mercado em potencial. 16

Ou seja: áreas de risco; faixas marginais de proteção de águas superficiais; faixas de proteção de adutoras e de redes elétricas de alta tensão; faixa de domínio de estradas federais, estaduais e municipais; áreas de Preservação Permanente e Unidades de Conservação da Natureza; áreas que não possam ser dotadas de condições satisfatórias de urbanização e saneamento básico; áreas externas aos ecolimites, que assinalam a fronteira entre as áreas ocupadas e as destinadas à proteção ambiental ou que apresentam cobertura vegetal de qualquer natureza; vãos e pilares de viadutos, pontes, passarelas e áreas a estes adjacentes; e áreas frágeis de encostas, em especial os talvegues, e as áreas frágeis de baixadas. 17 Disponível em http://doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.php?edi_id=455&page=6

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

143

No Rio de Janeiro, o investimento no ambiente urbano devido aos jogos olímpicos é enorme, e seus impactos na urbanização da cidade seguem o mesmo padrão, uma vez que absorvem “as mercadorias excedentes que os capitalistas não param de produzir em sua busca de mais-valia” (HARVEY, 2014, p. 33). Nas margens da cidade, os efeitos do investimento do excedente de capital produzem outro fenômeno descrito por Harvey. O autor aponta para o fenômeno de expansão da propriedade privada, e para a consequente suburbanização de condomínios customizados, sugerindo que este tipo de fenômeno cria uma “vida sem alma”. Os empreendimentos monótonos de moradia, nestes locais, “recebem um antídoto no movimento do ‘novo urbanismo’, que pretende vender uma “réplica customizada da vida nas cidades” (HARVEY, 2013, p. 41). A conjuntura em 2009 foi muito propícia para o começo da aplicação das mudanças urbanísticas e do reordenamento habitacional no Rio de Janeiro. Eduardo Paes foi eleito com amplo apoio e financiamento dos setores imobiliários, com destaque para os aportes financeiros de diversas empreiteiras: Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS, Gafisa, dentre outras. Ao mesmo tempo, a cidade já estava fortemente inserida nas obras do PAC e no começo

da

experiência

das

UPPs,

configurando

a

gramática

da

PACificação

(CAVALCANTI, 2013) e, para completar a conjunção de fatores favoráveis à consolidação do PMCMV, o Rio de Janeiro foi eleito como sede das Olímpiadas. A partir da inserção do Rio aos megaeventos, o poder público local passou a usar expressões como “precisamos vender a cidade18”, no sentido de melhorar a competitividade territorial e angariar “benefícios” externos para o município, aproximando a gestão pública na lógica da gestão empresarial (VAINER, 2000) e transformando o Rio de Janeiro em uma cidade-commodity. Vejamos as palavras do próprio chefe do executivo municipal: Não podemos deixar de divulgar a cidade. Precisamos vendê-la bem. Não adianta ser bonita e não ser bem tratada. Comparo o Rio a uma modelo internacional. Precisamos dar um tratamento privilegiado aos locais turísticos, precisamos cuidar bem de locais como a Lapa, com corredores iluminados, com revitalização e ordem, sempre trabalhando em parceria, principalmente com as forças de segurança. (Eduardo Paes, 2008, Coletiva de Imprensa. Grifo nosso)19

As palavras proferidas pelo prefeito incluem as expressões “vender”, “revitalizar”, “ordem” e “segurança”, demonstrando a prioridade no reordenamento do solo urbano e a 18

“A mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-se [...] em uma das funções básicas dos governos locais...” (Borja & Forn, 1996, p. 33) 19 Coletiva de imprensa realizada para a apresentação do novo Secretário Municipal de Turismo, Antônio Pedro Figueira de Mello. Fonte: http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2008/11/13/ult4728u20510.jhtm

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

144

estratégia de gentrificação20 pelo poder público local. Na capital fluminense, assim como em diversas metrópoles do mundo ocidental, verifica-se que “a linguagem do renascimento urbano é a prova da generalização da gentrificação na paisagem urbana” (SMITH, 2006, p. 61). Em abril de 2011, o Prefeito Eduardo Paes promulgou um decreto que retomou determinados parâmetros para as remoções e conflagrou o congelamento urbanístico: Artigo 1º. Fica vedado iniciar a construção de novas edificações em favelas declaradas por Lei como Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS. Parágrafo único: Excetuam-se as construções de iniciativa e responsabilidade do Poder Público destinadas ao reassentamento de população situada em áreas de risco, de preservação ambiental e em áreas de objeto de projeto de urbanização de comunidade, que poderão ser licenciadas observando os decretos específicos. Artigo 2º. Serão permitidas apenas reformas nas edificações existentes, comprovadamente para melhoria das condições de higiene, segurança e habitabilidade, desde que: I – Seja comprovada sua existência na data da publicação da Lei que declarou a respectiva área como de especial interesse social; II – Não promova acréscimo de gabarito ou expansão horizontal e vertical; III – Não se constituam em novas unidades habitacionais; IV – Não se situam em Zona de Risco ou de preservação. (Decreto n.º 33.648, 11 de abril de 2011)21

A falta de objetividade para definir quais áreas são removidas, e por quais motivos, coloca milhares de famílias à margem no posicionamento do solo urbano carioca, determinando cada vez mais a ação da especulação imobiliária na cidade do Rio de Janeiro. Alguns órgãos públicos, como o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUTH/DPGE), e alguns setores da sociedade civil e dos movimentos sociais que possuem ações ativistas nas favelas e periferias da cidade denunciaram a possível ligação dos Governos (Municipal e Estadual) e outros setores do poder público, com interesses imobiliários, dos grandes eventos e a desapropriação de áreas para o planejamento urbano municipal. A associação do Estado ao capital privado na construção de um projeto de cidademercadoria vem produzindo profundas máculas na capital fluminense. No Jardim Botânico, a ameaça está entre os moradores do Horto, uma vila de trabalhadores que existe dentro da área ambiental do parque desde a época de D. João VI. Segundo os moradores, o comitê do Jardim Botânico se recusa a discutir sobre por qual ou quais razões a comunidade precisa ser removida. O fato é que a comunidade do Horto está localizada na rua Pacheco Leão, uma das terras mais valorizadas do Rio, e tem poderosos vizinhos ricos, como por exemplo, as 20

O conceito gentrification foi formulado pela socióloga inglesa Ruth Glass na década de 1960. “Foi quase poética a forma como Glass contou a novidade desse novo processo do qual a nova gentry urbana, isto é, as famílias de classe média, tinham transformado os bairros operários”. (Smith, 2006, p. 60) 21 Fonte: Diário Oficial da Cidade do Rio de Janeiro.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

145

organizações Globo. Os moradores acreditam que a especulação imobiliária é o motivo para a remoção. Além do caso tratado acima, também foi bastante emblemático a remoção da Vila Autódromo, situada ao lado do Parque Olímpico, no bairro da Barra da Tijuca, na Zona Oeste da cidade. Esta referida comunidade tem aproximadamente 40 anos e desde muito tempo vem resistindo durante duas décadas a diversas ameaças de remoção. As alegações dadas pelo ente Público Municipal para a remoção desse assentamento popular são calcadas em diversas explicações. Uma das primeiras tentativas de remoção é datada de 1993, em que, por meio de uma ação civil pública movida pelo então subprefeito da Barra da Tijuca, Eduardo Paes, alegava-se que a Vila Autódromo estaria supostamente causando danos ambientais. Posteriormente, após três anos, a mesma área foi declarada “área de risco” pelo mesmo subprefeito, contudo sem apresentação de nenhum laudo técnico comprovando a afirmação. Outrossim, as ameaças foram mais intensificadas a partir de 2009 quando o Rio de Janeiro foi eleito como a sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. A partir deste momento foi apresentado mais uma variedade de argumentos por parte da Prefeitura para justificar a necessidade de remoção dessa população, tais como :poluição da lagoa de Jacarepaguá; ampliação das avenidas Salvador Allende e Embaixador Abelardo Bueno; instalação de um Centro de Mídia; incompatibilidade com a implantação do Parque Olímpico; ligação viária entre os corredores Transolímpica e Transcarioca, entre outros. Esses episódios eram apenas uma parcela de uma série de tentativas de desmantelamento da localidade que coincidiu com a rápida valorização dos terrenos na região (TAFAKGI, 2014). Atualmente, a maior parte da Vila Autódromo foi removida, eis que sofreu com grandes ameaças do poder público municipal e também a própria comunidade foi sendo aos poucos influenciadas a largar seus imóveis pelos altos valores financeiros oferecidos pelo consórcio Odebrecht-OAS-Carvalho Hosken aos moradores das casas que mais resistiram às remoções. Destaca-se que é intuito deste consórcio construir um grande condomínio destinado às classes médias e altas naquele local, acompanhando assim a especulação imobiliária da Barra da Tijuca. Os grandes investimentos em infraestrutura implementados pela atual prefeitura carioca e o seu programa maior de urbanização vêm estimulando, como visto, a especulação imobiliária em diversos lugares, inserindo a capital carioca no circuito global de cidadescommodities (VAINER, 2000) e favorecendo a gentrificação em muitas áreas.

Em

contrapartida, as ofertas de moradias populares oferecidas pelo Minha Casa Minha Vida se

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

146

concentram em sua maioria (cerca de 80%) em áreas da Zona Oeste e Zona Norte da cidade, as quais não receberão os grandes investimentos destinados às Olimpíadas. O Programa, do governo federal, foi criado com o intuito de oferecer habitação à população com faixa de renda de até 10 salários mínimos, ampliando o mercado habitacional brasileiro e o acesso a ele, especialmente para as famílias com baixa renda. Uma das características do programa é oferecer ao setor privado grande parte das responsabilidades acerca dos empreendimentos construídos sob sua marca. O governo, representado pela Caixa, fecha acordo com empresas de construção que se comprometam a construir as unidades habitacionais definidas, respeitando uma determinada faixa de preço. Por exemplo, se o valor definido para a construção das unidades habitacionais destinadas à Faixa 1 for R$ 50.000,00, a empreiteira terá que entregar as casas prontas por este valor, que inclui a compra do terreno. A localização periférica de alguns conjuntos habitacionais, a baixa qualidade construtiva e a adoção do modelo “condomínio” são algumas das consequências deste acordo entre governo e setor privado, uma vez que a busca de lucro pelas empresas tem influência nas suas escolhas. A opção por adotar a forma de “condomínios”, por exemplo, vai além da oferta de um estilo de vida. Para as empreiteiras, este tipo de construção as isenta da responsabilidade de gerir a manutenção dos edifícios após a entrega aos moradores, o que as exime dos custos relativos a isso. Os moradores, após se mudarem para os conjuntos, devem se responsabilizar pela gestão dos blocos de edifícios. O programa prevê, em sua criação, a adesão aos princípios do Estatuto da Cidade22, sugerindo que as empreiteiras responsáveis pela construção dos conjuntos habitacionais priorizem a construção em áreas urbanas consolidadas, por exemplo. No entanto, muitos municípios, como o Rio de Janeiro, não o fazem, ou não regulamentam as leis necessárias para que isso seja possível. Dessa forma, a execução do PMCMV idealizado é obstruída, e os municípios e empreiteiras encontram nele possibilidades de maiores ganhos de capital. No Rio de Janeiro, 67% (AZEVEDO & FAULHABER, 2015) dos conjuntos do PMCMV destinados à faixa salarial de 0 a 3 salários mínimos localizam-se na Zona Oeste da cidade, ou seja, em áreas afastadas do centro, pelos mesmos motivos expostos acima. As empresas buscam terrenos mais baratos, que ofereçam maiores chances de lucro, e a população é realocada em locais distantes e sem infraestrutura urbana. Não se leva em conta que existem especificidades em relação aos tipos de segregação e desigualdades presentes na cidade. Oferecer condomínios padronizados a diferentes populações e inseri-los em bairros também carentes de infraestrutura denuncia um tipo de visão que homogeneíza os problemas

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

147

das periferias. Como solução, são oferecidas “políticas redistributivas para espaços periféricos (...) que ficam perdidas entre a evidente insuficiência do que é realizado e a irrelevância das iniciativas, diante do que deveria (e até poderia) ser feito” (MARQUES, 2005, p. 54). Acerca da implementação do PMCMV no país, Maricato (2013) observa que o lançamento do programa, em 2009, representou o esquecimento da agenda da reforma urbana brasileira, iniciada em 2001, com a definição do Estatuto da Cidade (que previa o cumprimento da função social da cidade), uma vez que atendeu a interesses do capital imobiliário, enquanto “os pobres foram expulsos para a periferia da periferia” (MARICATO, 2013, p. 40). Ou seja, o PMCMV representaria a terceirização da questão da moradia, deixando sob responsabilidade de empresários a construção de edifícios cada vez mais distantes do centro das grandes cidades. Da forma como a cidade do Rio de Janeiro se apropriou do programa, além de oferecer somente a unidade habitacional, ele também serve como oferta de moradia aos removidos de áreas de risco e de interesse estatal. Desta forma, a segregação urbana que surge adquire novos contornos – além da distância física promovida pela construção em áreas afastadas, o formato “condomínio” expõe a cidade que está sendo construída, que procura inserir a população favelada em padrões de classe média, oferecendo-lhes acesso à propriedade privada, mas não ao urbano. Afinal, teto não é cidade. 3 MOBILIDADE URBANA Pólvora e estopim das manifestações que ficaram conhecidas como as jornadas de junho de 201323, a temática da mobilidade urbana já havia sido protagonista principal da campanha eleitoral municipal em 2012, com inúmeras promessas, planos e debates em um momento de crescimento acelerado de nossas cidades. Nas eleições de 2012, ainda não estava em vigor a Lei de Mobilidade Urbana (12.587/12), lei federal fruto de 17 anos de disputas e conflitos no Congresso Nacional, que prevê a suspenção de recursos do tesouro nacional para as prefeituras com mais de 20.000 habitantes que não apresentassem seus Planos Municipais de Mobilidade Urbana até abril de 22

Sua função é garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, o que significa o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.” (art.1º). 23 Embora o mote principal dos protestos tenha sido o aumento de 20 centavos na tarifa do transporte público, uma série de outros fatores levaram milhares de pessoas às ruas. Muito se escreveu sobre as jornadas de junho de 2013. Recomendamos duas leituras: NOGUEIRA, Marco Aurélio. As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília. Fundação Astrojildo Pereira (FAP); Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 228p. E também SINGER, André. Brasil, junho de 2013, classes e ideologias cruzadas. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 97, Nov. 2013. p. 23-40.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

148

2015 – três anos após a entrada em vigência da Lei24. Entre as principais diretrizes, além da realização de um plano de mobilidade com participação popular, estão a priorização do transporte público e não motorizado sobre o automóvel individual, a integração com outras políticas de desenvolvimento urbano como habitação, saneamento e gestão do uso do solo, entre outros importantes avanços. Algumas obras da atual Prefeitura, como a duplicação da Avenida Niemeyer ou o Novo Mergulhão, ao não priorizarem nem o transporte público nem o não motorizado, afrontam a atual legislação e merecem atenção do Ministério Público. Apenas em janeiro de 2015, três meses antes do prazo final, a Prefeitura do Rio de Janeiro iniciou o processo de elaboração de seu Plano de Mobilidade Urbana, nomeado de PMUS25 (Plano de Mobilidade Urbana Sustentável). O processo de construção, que deve conter e empregar a participação e o controle social, é discutível e tutelado pelo poder municipal sob a esfera de um canal oficial de diálogo chamado Ágora26. Mas o diálogo e a participação democrática não são marcas da atual gestão, muito pelo contrário. O município optou nos últimos anos por investir pesadamente no sistema de BRTs (sigla em inglês para Bus Rapid Transit), um projeto de VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) no Centro da Cidade, de BRSs (Bus Rapid System), além de trechos isolados de ciclovias, ciclofaixas, zonas 30, ou as bicicletas compartilhadas. Em termos de BRTs são 4 projetos: TransOeste, TransCarioca, TransOlímpica e TransBrasil, sendo que os dois primeiros já estão em funcionamento. O primeiro inaugurado, o TransOeste, que liga o Bairro de Santa Cruz à Barra da Tijuca, é, desde sua inauguração, alvo de inúmeras críticas, tanto de usuários quanto de especialistas: superlotação, assalto, movimento pendular em horário de pico, ausência de integração física com a estação de trem de Santa Cruz, entre tantos outros problemas. O problema do movimento pendular parece superado com relação ao BRT TransCarioca, corredor previsto desde a década de 1960 com o Plano Policromático de Constantino 24

O IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas – lançou em janeiro de 2012 o Comunicado Nº 128: A Nova Lei de Diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. 25 De acordo com a Prefeitura, “o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável, desenvolvido pela Prefeitura do Rio por meio da Secretaria Municipal de Transportes (SMTR), vai orientar os investimentos públicos em infraestruturas de transportes da cidade por dez anos, a partir de 2016. O PMUS deverá integrar modais motorizados e não motorizados em um sistema coeso e sustentável, priorizando o transporte público, o deslocamento a pé e por bicicleta e considerando emissões de gases do efeito estufa. O trabalho utiliza os dados do Plano Diretor de Transporte Urbano da Região Metropolitana (PDTU-2013), com foco na cidade do Rio de Janeiro. Ao final de dez meses, será elaborado um documento com as principais conclusões e propostas do estudo para os cenários de 2021 e 2026 (com diferentes graus de investimento). Todas as medidas estarão em acordo com as recomendações do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro (Lei Complementar 111/11), da Política Municipal de Mudanças Climáticas (Lei 5.248/11) e da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12)”.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

149

Doxiádis. Seria a Linha Azul, que posteriormente se chamou Corredor T5, que percorre bairros com alto índice de ocupação urbana. Uma avaliação sobre os BRTs deverá ser um dos grandes pontos de debate sobre mobilidade urbana nas próximas eleições. Muita gente questiona a priorização pelo sistema de ônibus, tanto em detrimento do serviço por trilhos, quanto no que poderia ter sido investido para melhorar o atual e péssimo sistema de trens metropolitanos sob administração da Supervia. O problema não parece tanto o questionamento sobre o sistema de BRTs, mas seu planejamento, operação e transparência com relação à tarifa. Corredores de ônibus com faixa exclusiva ou prioritária são velhos conhecidos do brasileiro, que desde a década de 70 convive com a experiência que começou em Curitiba, passou por Bogotá, na Colômbia, e hoje retorna ao país em cidades como Porto Alegre, Fortaleza, Belo Horizonte, Brasília, entre tantas outras. Trata-se de um sistema de implementação rápida e barata se comparado ao metrô, trem ou o VLT, mas, no caso carioca, as obras são caras, com construção de inúmeras vias elevadas, pontes estaiadas, e alto número de remoções, o que coloca em xeque as vantagens que poderia ter a obra. No caso específico do BRT TransBrasil, seu traçado foi muito questionado, sobretudo por conta da alta demanda do corredor, quanto de sua chegada ao centro da cidade. Quando inaugurado, o corredor, que ligará Deodoro ao centro do Rio pela Avenida Brasil, deve se tornar o corredor com maior número de usuários do mundo, com uma demanda esperada de 900 mil passageiros/dia. A problemática que envolve o aumento constante das tarifas de ônibus, contrastando com o péssimo serviço oferecido, os altos lucros dos empresários27 e a má condição dos veículos, também deverá ser tema do próximo pleito eleitoral. Afinal foi promessa de campanha a meta de ter 100 % dos ônibus da cidade com ar-condicionado e adaptados para garantir a acessibilidade das pessoas com deficiência até o fim de 2016. O Bilhete Único Carioca, outra promessa da última eleição, também deve ser alvo de questionamento sobre seu funcionamento para os próximos anos, afinal qual a dificuldade de termos em nossa região metropolitana apenas um cartão que integre todos os sistemas? 26

O conselho curador do Ágora é composto 4 Secretarias Municipais, o IAB, o CAU-RJ, a PUC-Rio, além de três ONGs: ITDP, Transporte Ativo e Rio Como Vamos. Nota-se a ausência de movimentos sociais, associações de moradores e de bairros, sindicatos, outras universidades, entre tantas frações da sociedade. 27 Em 2012, a Câmara de vereadores do Rio de Janeiro instaurou a CPI dos Ônibus, que tinha como principais objetivos investigar a formação de cartéis e a transparência das planilhas e contratos das empresas de ônibus da cidade.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

150

Devemos ainda pensar em modernas ferramentas de planejamento integrado, como, por exemplo, o DOT ou TOD28 (do inglês Transit Oriented Development), que prevê o máximo aproveitamento da área de abrangência de um transporte de alta capacidade, integrando outros fatores do viver em cidade (TORRES, 2015). Ou seja, ao se pensar em grandes obras, como uma estação de metrô, trem, VLT ou um BRT, deve-se levar em conta como é possível aproveitar o potencial do investimento para o desenvolvimento urbano do entorno dessa área. Ou, ainda, explorar instrumentos previstos no Estatuto das Cidades29, como a Contribuição de Melhoria. A Contribuição de Melhoria, prevista por lei, é a possibilidade de o poder público recuperar parte do dinheiro investido em obras de infraestrutura urbana que tenham gerado valorização imobiliária. É sabido que logo após o anúncio de uma obra como o metrô, VLT ou um BRT, os valores dos imóveis da área de impacto sofrem alterações e a especulação imobiliária se aproveita para tirar grandes lucros. No recente caso do BRT TransCarioca, isso pode ser verificado pelo aumento do preço dos aluguéis e a verticalização da região. Com a Contribuição de Melhoria, o poder público poderia recuperar parte do investimento, reaplicando esse recurso em mais melhorias para a cidade. Agendas contemporâneas, salvaguardadas pela Lei da Mobilidade, podem enriquecer o debate sobre, por exemplo, qual será o futuro dos automóveis em nossas cidades? Rodízios de carros ou o pedágio urbano (congestion charge em inglês) são temas importantes para o futuro da nossa cidade, assim como a necessidade de se investir em resiliência e/ou adaptação às mudanças climáticas. Mobilidade urbana e sustentabilidade são, hoje mais do que nunca, como irmãos siameses, e, em nosso caso, com as maiores cidades brasileiras ocupando territorialmente o litoral, suscetíveis aos impactos de eventos extremos. CONCLUSÕES E CAMINHOS Esses temas, que no fundo nos remetem à questão central de qual cidade queremos para os próximos anos, estão ganhando cada vez mais a agenda internacional como nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ou o HABITAT III, ambos liderados pela Organização das Nações Unidas. Hoje as cidades parecem reproduzir, em âmbito municipal, a 28

A ONG ITDP vem realizando um trabalho pioneiro com o conceito no Brasil, tendo, inclusive, realizado iniciativas com a Prefeitura do Rio de Janeiro para aplicação de TOD no corredor da Avenida Brasil e outras áreas. 29 Outros instrumentos urbanos, como o IPTU progressivo, operações urbanas consorciadas ou a outorga onerosa, poderiam ser melhor debatidos no caso carioca, verificando experiências positivas e negativas, benefícios e malefícios que tais medidas poderiam gerar. No caso do BRT Transcarioca, a Prefeitura optou por estabelecer uma AEIU – Área de Especial Interesse Urbanístico – no entorno, instrumento, a nosso ver, insuficiente com o potencial de valorização e aproveitamento do desenvolvimento urbano do local. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

151

desarticulação do Ministério das Cidades separado em Secretarias que não são interligadas (Saneamento, Mobilidade e Habitação). O passo posterior ao da definição da cidade que queremos é colocar em prática políticas públicas integradas, de ocupação do território, de habitação, saneamento e mobilidade urbana. Em suma, políticas da cidade. No que se refere à habitação, pode-se apontar para uma execução mais responsável do MCMV30. A forma como o projeto é concebido possibilita que seja colocado em prática de maneira dialógica, ou seja, de forma que os condomínios estejam inseridos na cidade e ofereçam a seus moradores o direito a ela. Dentro do programa, há espaço para a urbanização de favelas, por exemplo, e também há a possibilidade de investimentos em áreas mais consolidadas da cidade. A análise aqui apresentada demonstrou que o erro consiste em inserir esse tipo de política pública em uma lógica de mercado que não considera a população e sua utilização do espaço. Mas é possível caminhar pelos trilhos do MCMV sem levá-lo a ser mais um vetor de segregação. Experiências exitosas, como em São Paulo, podem servir de guia. Na cidade, o plano de metas do governo de Fernando Haddad prevê a construção de 55 mil unidades residenciais entre 2013 e 2016; sendo que, destas, 25.473 famílias foram ou serão atendidas no âmbito do MCMV. Dentre estas últimas, 16.149 são destinadas à categoria Entidades, que é dirigida “a famílias de renda familiar mensal bruta de até R$ 1.600,00 e estimula o cooperativismo e a participação da população como protagonista na solução dos seus problemas habitacionais” (Prefeitura de São Paulo, 2015). As demais unidades seriam construídas através de outros programas, tais como Urbanização de Favelas e Mananciais. Não está prevista a execução do MCMV com foco em remoções. O MCMV Entidades é a atualização do Programa Crédito Solidário, criado em 2005, sendo que ambos têm o objetivo de oferecer moradia a associações de famílias que se proponham a autogerir a construção de suas moradias. Lago (2011) destaca a “significativa concentração das unidades contratadas em Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo, Maranhão e Mato Grosso do Sul” (LAGO, 2011, p. 8), afirmando que esta característica se dá tanto pela maior organização política da população quanto pelo estímulo dos governos locais. Tanto o Minha Casa Minha Vida, quanto o programa Entidades, foram marcas da gestão da Era Lula e do Governo Dilma para a área de habitação, não ficando claro se serão mantidos por novas gestões. Existem ainda outras saídas interessantes de serem debatidas com a sociedade em relação à questão da habitação, como, por exemplo, o aluguel social – certamente não nos

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

152

moldes e valores atuais – sobretudo para ocupação de áreas centrais ou vetores da cidade que seriam desejáveis de se habitar, principalmente aquelas áreas já dotadas de infraestrutura. Mas, novamente, é fundamental a sociedade retomar o protagonismo nesse debate até para evitar casos recentes de absoluto descompasso entre a sociedade civil e o poder público, como, por exemplo, no caso do teleférico da Rocinha31. Do mesmo modo, a mobilidade urbana pode ser levada a dialogar mais com a cidade, promovendo a gestão democrática e priorizando obras e áreas prioritárias para assegurar o direito à cidade e não apenas atender o setor imobiliário. É imperativo que a cidade tenha um plano integrado de desenvolvimento urbano sustentável, que aponte – ouvindo a população – a cidade que queremos para o curto, médio e longo prazo. E que esse plano faça o diálogo com os demais planos e projetos existentes de nossa cidade, de habitação, mobilidade, saneamento, ambiental, etc. Pairam dúvidas para o cenário carioca pós-Olímpiadas. Será sustentável o investimento em duas frentes da cidade como a Barra (e adjacências) e o Centro? Como podemos pensar a integração com a região metropolitana? Pensar os deslocamentos, a mobilidade, portanto, em sintonia com os projetos de habitação – e saneamento – da cidade deve ser prioridade. Não é possível que em pleno século XXI continuemos insistindo em políticas públicas autoritárias que produzem desigualdades nas cidades, com conjuntos habitacionais construídos a quilômetros de centros e sub-centros, e sem a garantia de transporte público, saúde, educação, entre tantos outros direitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACKHEUSER, Everardo. Habitações Populares. In: Relatório apresentado ao Exmº Sr. Dr. J.J Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. RJ: Imprensa Nacional, 1906. BORJA, Jordi & FORN, Manuel de Políticas da Europa e dos Estados para as cidades, Espaço e Debates, ano XVI, n. 39, 1996, p. 32-47. BURGOS, Marcelo Baumann. Dos parques proletários ao favela Bairro: As políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (Orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 25-60. 30

Seria desejável, por exemplo, que a Prefeitura, através de decretos, ou submetendo à Câmara de Vereadores um Projeto de Lei, defina as áreas prioritárias para a construção de novas unidades, exigindo que elas atendam certos padrões de inserção urbana. 31 O caso do teleférico da Rocinha é emblemático do ponto de vista das prioridades do poder público no processo de urbanização de favelas e da ausência de uma gestão democrática que dê voz às demandas dos moradores. Líderes comunitários, residentes e especialistas criticaram o alto custo com a obra em detrimento da resolução de problemas básicos como saneamento.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

153

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Sobre “tudo que está aí”. Boletim CEDES – Agosto – Dezembro 2015, p. 1-5. CAVALCANTI, Mariana. À espera, em ruínas: Urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da ‘PACificação’. In: Dilemas, vol. 6, n. 2, 2013, p. 191-228. DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006. DAS, Veena e POOLE, Deborah. El estado y sus márgenes. Etnografias Comparadas. In: Cuadernos de Antropologia Social, FFYL-UBA, 2004, p. 19-52. FAULHABER, Lucas e AZEVEDO, Lena. SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro. Editora: Mórula Editorial. 2015. FELTRAN, Gabriel. O valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. CADERNO CRH, v. 27, n. 72, Salvador, 2014. p. 495-512. FERREIRA DOS SANTOS, Carlos N. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio, Zahar, 1980. GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: História e Direito. Rio, PUC, 2013. GUIMARÃES, Alberto Passos. As favelas do Distrito Federal. In: Revista Brasileira de Estatística, 1953, p; 250-278. HARVEY, David. O Direito à Cidade. Revista Lutas Sociais, número 29, 2012. Página 73. IPEA. Comunicado Nº 128: A Nova Lei de Diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. ITDP – Instituto de Transporte e Políticas de Desenvolvimento. TOD Standard. 2014. Disponível online em: https://www.itdp.org/tod-standard/ LAGO, L. C. O associativismo produtivo na periferia urbana: novos conflitos em pauta. In: CUNHA, Neiva Vieira; FELTRAN, Gabriel. (Org.). Sobre periferias: novos conflitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013, v. 1, p. 178-189. LEITÃO, Gerônimo & DELECAVE, Jonas. O programa Morar Carioca: novos rumos na urbanização das favelas cariocas? In: O social em Questão – Ano XVI, nº 29, 2013. P.265284. MAGALHÃES, Sérgio. Reflexão sobre o espírito do público na arquitetura contemporânea. Sérgio Magalhães. XX Congresso Brasileiro de Arquitetos Fortaleza, 2014. MELLO, Marco Antonio da Silva; MACHADO DA SILVA; Luiz Antonio, FREIRE, Letícia de Luna; SIMÕES, Soraya Silveira (orgs). Favelas Cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. Nogueira, Marco Aurélio. As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília. Fundação Astrojildo Pereira (FAP); Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

154

PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Rio, Paz e Terra,1977. RIBEIRO, Rodrigo L. C. Pensando em antigas e novas formas (políticas) de habitação popular no Rio de Janeiro: Para onde foram (ou vão) os pobres?. Libertas, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p.1-23. TAFAKGI, Mariana. Copa e olimpíadas pra quem? uma etnografia sobre os impactos sociais e as mobilizações coletivas no processo de preparação do rio de janeiro como sede de megaeventos esportivos. Revista Ensaios, Niterói, v. 7, p.1-16, 2014. TORRES, Pedro Henrique. MEMORIA DOS 'ANOS DE CHUMBO' NAS CIDADES BRASILEIRAS. Estudos de Sociologia (São Paulo), v. 20, p. 381-398, 2015. ____. Transit Oriented Developed (TOD) and sustainable development in the Global South. In: J. Condie and A. M. Cooper (Eds.). (Org.). Dialogues of Sustainable Urbanization: Social Science Research and Transitions to Urban Contexts. 1ed.Sydney: Penrith: University of Western Sydney, 2015, p. 1-3. SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos. Governança empreendedorista: a modernização neoliberal. In. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz (ed.). Rio de Janeiro: transformações na ordem urbana. Editora Letra Capital, Rio de Janeiro, 2015, p. 453-483. SINGER, André. Brasil, junho de 2013, classes e ideologias cruzadas. Novos estud. CEBRAP, São Paulo, n. 97, nov. 2013, p. 23-40. SMITH, Neil. A gentrificação generalizada de uma anomalia local à “regeneração” urbana como estratégia global. In: BIDOU-ZACHARIASEN (org.), De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo, Annablume, 2006. p. 60-87. VAINER, Carlos Bernardo. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos Bernardo; MARICATO, Ermínia (orgs.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000, p.75-103. VALLADARES, Licia do Prado (org.). Repensando a habitação no Brasil. Rio, Zahar, 1982. E-BOOKS MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!. In: Cidades Rebeldes- Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Boitempo Editorial, Rio de Janeiro, 2013. Sem numeração de página. IMPRENSA Portal eletrônico do jornal O Dia (www.odia.ig.com.br) LEGISLAÇÃO Portal eletrônico da Prefeitura do Rio de Janeiro (www.rio.rj.gov.br) Portal eletrônico da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro (www.camara.rj.gov.br) OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249



OLHARES PLURAIS - Dossiê Temático

155

RELATÓRIOS TÉCNICOS Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro: 2013-2016, 2012. – Secretaria Municipal da Casa Civil. Plano Municipal de Habitação de Interesse Social, 2010. – Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos – IPP.

OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Dossiê “Urbanidades, Sujeitos e Territórios”, n. 16, vol. 1, Ano 2017 ISSN 2176-9249

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.