Olhares que reconfiguram fronteiras.

September 26, 2017 | Autor: Erly Vieira Jr | Categoria: World Cinema, Contemporary Cinema
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Olhares que reconfiguram fronteiras

Globalização, modernidade líquida, cultura de consumo, rede, sociedade de
controle, pós-moderno, pós-colonial, império, capitalismo transnacional...
é gigantesca a variedade de termos (uns já bem desgastados, outros na
crista da onda) cunhados para designar as transformações ocorridas no
contexto global das últimas quatro décadas, cada qual vinculado a uma
corrente de pensamento distinta. Diferenças à parte, pelo menos uma coisa
todos esses termos têm em comum: a urgente necessidade de tentar
radiografar o atual momento do capitalismo global, que é bastante diferente
daquela "modernidade 1.0" que nos foi ensinada pelos livros escolares.
Trata-se de um novo contexto, em que a informação e a imagem passam a ser
as mais valorizadas mercadorias, e que as principais forças no jogo
político e sócio-econômico não são mais os estados-nação, e sim os grandes
conglomerados multinacionais. Categorias como espaço e tempo, bem como a
dicotomia real/ficcional passam a ser reconfiguradas, num processo de
aceleração que é intensificado pelas novas tecnologias de informação e
comunicação. Em lugar da divisão estanque do planeta entre um "primeiro" e
um "terceiro mundo" (embora a distinção entre dominantes e dominados nunca
cesse de existir), temos um panorama em que economias emergentes
descentralizam o eixo Europa-América do Norte, para constituirem uma
sociedade globalmente interconectada, em que os status de cidadão e
consumidor (sempre insaciável) praticamente se tornam sinônimos.
Aqui, a própria noção de identidade cultural assume-se como um processo
contínuo, em que as tradições locais dialogam com fluxo cada vez maior de
informações e imagens que atravessa fronteiras nacionais (basta pensarmos
no hip hop: ao mesmo tempo em que seus principais elementos, como o rap, o
grafite, o visual adidas e a breakdance estão espalhados pelas diversas
regiões do planeta, essa cultura se hibridiza com as particularidades,
discursos e referências musicais locais, num processo de contínua remixagem
simbólica – e o mesmo pode ser dito, em menor escala, de outras culturas
contemporâneas, como a rave, o indie e o emo, entre outras). Daí a idéia de
"comunidades de sentimento transnacionais", alternativa proposta pelo
indiano Arjun Appadurai, em substituição ao conceito do estado-nação. Para
Appadurai, num contexto em que o imaginário global é incessantemente
alimentado pelas migrações territoriais e pelos mass media (incluído aí o
cinema), os laços entre indivíduos seriam cada vez mais constituídos por
uma série de interesses que ultrapassariam barreiras étnicas e
territoriais, remodelando fronteiras também imaginadas. Cabe aqui recordar
o que escreveu Andréa França, em seu livro Terras e fronteiras no cinema
político contemporâneo (2003): o cinema inventaria "espaços de
solidariedade transnacionais, que ensejam uma espécie de adesão
silenciosa".
Um silêncio bastante ruidoso, eu me arrisco a dizer. Afinal, se levarmos em
conta a pluralidade de questões sócio-culturais e estéticas que os filmes
presentes nesta mostra têm em comum, conjugando olhares afiados sobre a
realidade que nos cerca, percebemos uma série de afinidades que realmente
transbordam fronteiras nacionais. Inclusive, o sentimento de
despertencimento a um território é fartamente compartilhado em vários
filmes aqui escolhidos. Em O elemento do crime, o dinamarquês Lars Von
Trier conta a história de um policial britânico expatriado no Cairo,
enquanto desenha, durante o filme, uma idéia da Europa como distopia e
irrealidade. Já a francesa Claire Denis, cuja infância em grande parte se
passou na África colonial, parte de um relato semi-autobiográfico, em
Chocolate, para, com seu "olhar intruso" (expressão emprestada de Denilson
Lopes), explorar as fissuras (praticamente abismos!) que demarcam o ambíguo
relacionamento entre o europeu e os nativos africanos, tanto no passado
quanto no presente pós-colonial. Essa questão também irá se desdobrar por
toda a obra do português Pedro Costa e sua investigação do universo das
comunidades de imigrantes cabo-verdianos nas periferias de Lisboa, cujo
sentido do exílio traduz-se num riquíssimo estranhamento visual e corporal
que encontra suas origens no primeiro longa do diretor, O sangue (embora a
temática da imigração ainda esteja ausente nesse filme).
Já o palestino Elia Suleiman, por sua vez, parte da situação híbrida de seu
povo (cuja nação sequer é reconhecida pela comunidade internacional,
relegado à paradoxal condição oficial de "árabe-israelense") para discutir,
com um humor que em muito se aproxima do norte-americano Buster Keaton, a
apropriação da causa palestina pelo nacionalismo árabe – não à toa, Crônica
de um desaparecimento é uma co-produção Israel-França, o que muito
evidencia esse entre-lugar, que acima de tudo, assume-se como uma postura
assumidamente política de contestação das estruturas de poder no Oriente
Médio.
A questão da mulher e da criança na sociedade iraniana é outro entre-lugar,
explorado desta vez pelos filmes de Jafar Panahi. Se O balão branco,
contudo, prefere se concentrar num tom de doçura, revê-lo à sombra de obras
mais recentes e contundentes do diretor, como Fora de Jogo e O círculo,
pode nos permitir outras interpretações do que aparentemente assume-se como
uma fábula minimalista.
Um contraponto interessante a essas perspectivas está nos protagonistas
marginais dos primeiros filmes de Gus Van Sant ambientados em Portland, no
noroeste dos EUA (como Mala noche, por exemplo), em que o desajuste social
traduz-se não só num outro olhar da câmera sobre o mundo (potencializado
pelos planos detalhes) mas também por um desejo de errância, em busca de um
território ao qual se possa finalmente pertencer.
Van Sant vai se posicionar, nesse momento inicial de sua carreira, numa
dissecação do reverso do american dream (também assumido aqui como
distopia) que pauta boa parte do cinema norte-americano independente dos
anos 80, como por exemplo, o filme de estréia dos irmãos Coen, Gosto de
sangue, que também faz uso de outra estratégia característica do mundo
contemporâneo: a adoção de um cinema que se auto-referencia, ao dialogar
com sua própria história e sua rica galeria de ícones. No caso do filme dos
Coen, temos uma espécie de releitura do noir, gênero que também ecoa, ainda
que de forma mais sutil, no primeiro longa de Von Trier.
O diálogo com a linguagem dos mass media, em especial a estética
publicitária que começa a se esboçar em As time goes by, de Wong Kar-wai,
cineasta de Hong Kong, também é bastante sintomático de um contexto global
em que as fronteiras culturais se reescrevem a todo momento, num jogo de
espelhos com a tradição norte-americana do filme de gangster (tanto na
década de 30 quanto a releitura proposta por Scorsese nos anos 70). O
universo do filme policial também aparece em Os matadores, de Beto Brant,
aliado aqui à não-linearidade temporal (mais uma característica da
experiência contemporânea) e à exploração das particularidades regionais da
região fronteiriça entre Brasil e Paraguai.
Já Objeto misterioso ao meio-dia, de Apichatpong Weerasethakul, faz
confundir os domínios do real e do ficcional para enredar o espectador numa
experiência francamente sensorial pelas matas tailandesas. Temos aqui o
ponto de partida de uma filmografia autoral que, com sua opção narrativa
calcada em uma forte elaboração de ambiências, coloca-se em sintonia com a
obra de alguns realizadores contemporâneos que compartilham de uma certa
"estética do fluxo". Ao mesmo tempo em que Weerasethakul aproxima-se de um
conjunto transnacional de obras e cineastas, seus filmes descolam-se
totalmente da tradição cinematográfica de seu próprio país.
Algumas vezes, o discurso desses cineastas é revestido por uma postura
geracional que lança novas provocações às disjunturas de seus cinemas
nacionais. Mundo Grua, de Pablo Trapero, realizado em 1999, é um dos marcos
cruciais do Nuevo Cine Argentino, e Pickpocket, de Jia Zhang-Ke (que depois
se tornaria um dos mais ávidos críticos da China globalizada), é uma obra
central no contexto da Sexta Geração chinesa. Em comum, ambos os filmes têm
um formato de produção enxuto (equipes reduzidas, filmagens em locação e
baixo orçamento), um aguçado senso de observação do cotidiano de seus
países (guardadas, naturalmente, as radicais opções estéticas de cada
realizador) e uma opção assumidamente política por um circuito de
exibição/distribuição underground ou voltado para os festivais
internacionais (no caso chinês, para driblar a forte censura do governo; no
argentino, pela própria busca de um espaço de circulação dessas obras), e
por uma não-identificação com as linguagens e temáticas que marcaram o
cinema das gerações que lhes antecederam (em especial, o excesso de
metaforizações para se falar da própria realidade social de cada país, algo
impensável para os momentos políticos então vivenciados).
Por mais que as realidades chinesa e argentina desta década sejam bastante
diferentes entre si, certos paralelos reforçam as disjunturas que demarcam
o contexto global, e as particularidades das questões que emergem em cada
região. Nesse caso, a emergência de novas vozes, de novos filmes é
essencial para questionar tais experiências. E nisso, os filmes de estréia
são verdadeiras radiografias, tanto globais quanto locais, de um estado das
coisas em acelerada transformação.


Erly Vieira Jr é doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor
do Departamento de Comunicação Social da Ufes. Também é escritor e curta-
metragista.
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