Onda Negra - A Grande Conspiração Branca de Célia Maria

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UNIVERSITÁRIO, Porto Alegre, RS, Agosto de 1988. p. 6.

A Grande Conspiração Branca de Célia Maria Mário Maestri

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Resenha do livro: AZEVEDO, Célia Maria. Onda Negra. Medo Branco. O negro no imaginário das elites. Séc. XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987. Jornal UNIVERSITÁRIO. Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Agosto de 1988. p. 6.

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O lançamento de uma importante produção historiográfica especializada tem acompanhado

a celebração do I Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil. Entre as novas publicações sobre o passado escravista do Brasil, destacase o livro de Célia Maria de Azevedo Onda Negra, Medo Branco: O negro no imaginário das elites. Século XIX, lançado pela editora Paz e Terra, no ano passado. Este trabalho apresenta interpretações originais sobre a Abolição e a transição da produção feitorizada ao produção livre. Célia Maria tenta uma crítica explícita das leituras materialistas da problemática e orienta seu estudo a partir de propostas metodológicas desenvolvidas por pensadores tais como Walter Benjamin, Michael Foucault e Cornelius Castoriadis. As mais de 260 páginas de Onda Negra, Medo Branco desenvolvem-se no contexto de uma inegável coerência literária e interna. A autora abre o livro com uma citação de Walter Benjamin: "Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderarse de uma lembrança tal qual ela cintilou no instante de um perigo." Coerente com a epígrafe, Célia Maria despreocupase com a concordância entre seu discurso e o processo histórico objetivo em questão. Termina explicando quase cem anos de história entre os mais complexos do passado brasileiro a partir de uma espécie de grande conspiração branca contra o terrível perigo negro. A tese de partida de Célia Maria é paradoxal. O sucesso da revolta escrava de São Domingo/Haiti teria aterrorizado a tal ponto os senhores de escravos brasileiros que eles, nos primeiros anos do século XIX, começaram a se preocupar com a criação das melhores condições para a superação da produção escravista e para a "sua substituição por relações de trabalho livre". Iniciavase, sob a batuta do negro haitiano Toussaint Louverture, a desenfreada corrida dos antigos escravistas em busca do nirvana capitalista. Esta proposta do medo como motor da história colocanos questões tais como: por que os escravistas nacionais não se assustaram antes, quando dos impressionantes sucessos da Confederação dos Quilombos de Palmares? Ou ainda: por que as classes capitalistas européias não promoveram a transição do capitalismo ao socialismo, atemorizadas com a revolução 1 de 4

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proletária de 1917? Ou, para ficarmos no aqui e no agora: por quê, raios! a UDR não promove uma reforma agrária radical, temerosa das ondas de miseráveis que, expulsos do campo, invadem em forma ameaçadora as periferias, praças e ruas das grandes cidades brasileiras? Medo e repressão Podemos perscrutar o passado da Humanidade com lupa e não encontraremos sequer uma situação em que as elites tenham negado a base econômica de seus privilégios assustadas com a rebeldia das classes subalternas. O medo aos oprimidos determinou geralmente processos de retração conservadora e impiedosas iniciativas repressivas. As revoltas escravas urbanas da Bahia, de 1807 a 1835, não levaram os escravistas a processos reformistas, mas a uma desapiedada repressão que ensejou a Lei Excepcional de 1835. Ela condenava à morte, sem direito de recurso, a todos os cativos que justiçassem ou ferissem gravemente senhores, feitores e familiares destes últimos. A primeira parte de Onda Negra, Medo Branco é dedicada à crítica de uma importante literatura senhorial do século XIX sobre a questão servil. A autora sintetiza nas conclusões finais o resultado dessa investigação: "Ao acompanhar estes projetos que começam a surgir já nos primeiros anos do século XIX, tem-se a nítida impresso de que se está armando uma caça aos negros e mestiços [...] visando enquadrá-los socialmente na posição de trabalhadores livres a serviço do capital." Uma conspiração que, convenhamos, teria significado um real avanço histórico para as chamadas classes inferiores que, de trabalhadores escravizados e marginalizados, metamorfoseariamse em trabalhadores assalariados. Porém, o maquiavélico projeto não se teria realizado. Num segundo momento, a autora explica que o medo da massa negra e preconceitos racistas teriam levado as elites brasileiras a preterirem a população negra e mestiça do país em favor do imigrante europeu, como principal mão de obra pós-abolicionista. Portanto, um projeto de "higienização" e "branqueamento" da população nacional. Célia Maria afirma que imigrantistas e abolicionistas terminaram "por se completar" na execução desses dois projetos. Os primeiros teriam promovido a substituição dos "negros por brancos em atividades rurais e urbanas" e os segundos teriam contribuído "para concretizar em parte as antigas proposições emancipacionistas de controle social e sujeição do negro livre [...]." Célia Maria analisa toda uma produção literária sobre a questão servil, que se estende de 1753 até a Abolição, despreocupada com as conjunturas históricas que a enquadraram e a determinaram. Em papéis como os do Marquês de Queluz (1821), de José Bonifácio (1823), de Burlamarque (1837), de Francisco Brando (1865), de Beaurepaire Rohan (1878), entre outros, vê apenas diferentes etapas dos planos emancipacionistas que almejavam a definitiva conquista 2 de 4

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de um mercado de trabalho livre. Onda Negra, Medo Branco soma-se à vasta literatura historiográfica que compreende a sociedade escravista do século XIX como uma espécie de preâmbulo da ordem capitalista. Esta última termina assumindo, no contexto desta ótica teleológica, uma essência transcendente, natural, eterna e a-histórica. Como se os escravistas do início do século XIX se apressassem em acelerar o fim da escravidão para que seus tataranetos não perdessem as comemorações do I Centenário da Abolição, em 1988! Faltam negros Até os anos 1830, os pensadores das elites nacionais não se preocuparam com o excesso de negros ou com projetos de superação da escravidão: preocupavam-se com uma eventual falta de braços escravizados devida à crescente pressão inglesa anti-tráfico. O que explica as propostas pró-natalidade de José' Bonifácio, que procuravam criar, no caso da interrupção da chegada dos tumbeiros, as melhores condições para a reprodução natural da população cativa. Essa mesma preocupação, com conteúdos diversos, permeia a literatura senhorial pós-1850, quando cessa a chegada de cativos novos aos portos brasileiros. Para as elites de então, o grande problema não era o medo ao negro, mas o medo da falta de mão-de-obra escravizada e a ausência de um sucedâneo viável a ela. Célia Maria realiza a mesma leitura a-histórica do discurso dos imigrantistas. Não existiria, portanto, diferença de qualidade entre o imigrantismo de um Tavares Bastos e da sociedade da Imigração e o imigrantismo final, vitorioso, dos senhores-de-escravos. O primeiro representava as aspirações e as angústias de raquíticos setores urbanos médios (profissionais liberais; militares; intelectuais; etc.) asfixiados pela hegemonia das classes latifundiárias e escravistas. Essa camada social sonhava com uma "modernidade" européia onde latifúndio, escravidão e autoritarismo monárquico cederiam lugar à pequena propriedade, ao capitalismo e, no melhor dos casos, à república. Os primeiros imigrantistas pensavam construir, com o afluxo de europeus, o povo que sustentaria seus projetos políticos e sociais deslocados. A própria autora cita passagem lapidar de Taunay, de 1885: "Cumpre no confundir o problema da imigração com o da substituição dos braços necessários à grande lavoura. Este quer salariados e chega a preferir até os da raça inferior [sic] [...]. O escopo da imigração [...] busca organizar os elementos que devem formar a grande nacionalidade brasileira […]." Folga dizer que o imigrantismo vencedor foi o dos cafeicultores: trouxeram uma imensa massa de trabalhadores a fim de construir o exército agrário de reserva necessário à transição da produção feitorizada à produção livre. Transição que se mostrava inevitável devido à crescente insurgência servil que se abatera sobre as fazendas negreiras do CentroSul. 3 de 4

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A complexa transição brasileira do mercado de trabalho escravizado para o livre é vista por Célia Maria como uma grande conspiração branca para deixar os trabalhadores negros à margem da produção. A autora parece aceitar, como alguns pensadores coevos à Abolição, que tudo poderia ser resolvido com a simples integração dos livres pobres e dos ex-escravos à produção assalariada. André Rebouças falava de três milhões de mal ocupados ou desocupados: cativos, mestiços livres e ... um milhão de índios! Escapava a Rebouças e escapa a Célia Maria que o escravismo obrigava, através da coação física, o produtor direto a uma alta produção de trabalho excedente. Em um mercado de trabalho livre, só a separação do trabalhador das condições gerais de produção e uma massa de desempregados, obriga o produtor, livremente, a cumprir as mesmas duras condições de trabalho conhecidas pelos cativos, sob coerção física. Em 1888, quando da Abolição, estavam registrados no Brasil em torno de setecentos mil cativos.

Nos anos seguintes, mais de

setecentos mil imigrantes ingressaram apenas em São Paulo. Assim, em pouco tempo, escapava italiano desempregado ou mal empregado pelo "ladrão". Onda negra, medo Branco termina com uma verdadeira catilinária contra os setores mais conseqüentes do movimento abolicionista. É difícil saber se Célia Maria critica-os por não terem dirigido as massas negras, já em 1888, até além do reino da necessidade ou por terem contribuído à destruição da produção escravista. O que, convenhamos, para a época, foi uma verdadeira "mão na roda” da história.

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