Onde erramos nas ciências criminais?

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Onde erramos nas ciências criminais?

O que fez com que hoje nós não tenhamos a correta noção de como lidar com o fenômeno "crime"? O que faz com que tenhamos hoje um quadro gravíssimo de insegurança pública, mesmo tendo nossos governos investido tantos recursos nessa área nas últimas décadas? O que faz pensar que encarcerando uma parcela maior da sociedade estaremos combatendo eficazmente a criminalidade? O que ocasionou a nossa sociedade clamar por punições medievais e legitimá-las e as condições desumanas dos nossos cárceres, mesmo em pleno século 21? O que naturalizou e banalizou a violência cometida pelo Estado através de suas forças oficiais?
Por que a Academia não consegue explicar e propor soluções viáveis a todo esse caos? E, ainda, quando são apresentadas tais soluções, por que não há utilização destas por parte dos agentes e agências (políticas) de poder? Onde foi que nós erramos?
Para buscar responder, mesmo que incipiente e provisoriamente, este trabalho se propõe a levantar discussões e reflexões acerca do modelo integrado de ciências criminais e seu reflexo no grave problema contemporâneo da segurança pública, especificamente em nossa sociedade.
Para tal, buscar-se-á alguma pista dessa hipótese na evolução histórica da ciência criminal, a partir das obras universalistas dos autores Ilustrados - Beccaria (Itália), Marat (França) e Feuerbach (Alemanha) -, bem como seu posterior esfacelamento com a autonomização da Criminologia a partir do método etiológico-determinista da Criminologia Positivista (Lombroso, Ferri e Garófalo), e os subsequentes modelos que envolveram a interação entre as então departamentalizadas Ciências Criminais (Dogmática-Penal, Criminologia e Política Criminal), ora com prevalência da dogmática (como ocorre em Franz von Liszt e em Rocco), ora com a prevalência do saber criminológico (à exemplo da teoria de Gramatica e de Marc Ancel).
A partir da prevalência da dogmática sobre as outras disciplinas relacionadas, podemos dizer que houve uma sobreposição daquela sobre as demais, tendo essas ocupado caráter auxiliar durante quase um século. Nesse meio tempo, a dogmática jurídico-penal pôde se desenvolver em complexos modelos teóricos, desenvolvidos à exaustão no plano abstrato, os quais rodearam principalmente a Teoria do Delito, subdividido na ideia tripartite de tipicidade-ilicitude-culpabilidade, mas que também se ocupou da Teoria da Pena e da Lei Penal, apenas.
Assim, pela postura de distanciamento adotada das outras ciências auxiliares, e mais ainda de outras áreas do saber (como a sociologia, a economia, a ciência política, a antropologia etc.), o Direito Penal foi alçado a um plano teórico isolado e pretensamente autorreferencial, de forma que seus pressupostos e alicerces são construídos a partir de uma perspectiva interna da sua própria dogmática.
Nesse sentido, temos que há uma limitação intrínseca à perspectiva adotada, a qual possui uma limitada visão dos complexos problemas os quais pretende resolver.
A arrogância do direito penal, aliada à subserviência das áreas de conhecimento que são submetidas e se submetes a este modelo, obtém como resultados o reforço do dogmatismo, o isolamento científico e o natural distanciamento dos problemas reais. (DE CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 16).

Portanto, tem-se que o modelo adotado, de utilização primária da dogmática em contraposição ao uso acessório da Criminologia e da Política Criminal possui um raso nível de esgotamento face à complexidade dos fenômenos sociais, o que resta concluir que é urgente o resgate da integração entre as ciências criminais: de forma verdadeiramente genuína, sem sobreposição de uma sobre as outras.
Nesta explanação, relevante notar que as ciências criminais aparecem de forma articulada em discursos únicos a partir da experiência do Iluminismo, o qual pôs fim ao arquétipo do Estado Absoluto que reproduzia uma lógica irracional e brutal desde o modelo da Inquisição, como subproduto da Idade Média que perdurou no tempo.
Em contraposição, após o desenvolvimento do método cartesiano e do positivismo científico de Conte, houve a necessidade de compartimentalização dos saberes, embebidos da ideia de que a segmentação dos aspectos dos problemas investigados permitiria uma maior compreensão do todo, quando na verdade ocorre o oposto.
A realidade é multifatorial e hiper-complexa, ao ponto de soar ingênua qualquer pretensão de explicar esses fenômenos com os recortes metodológicos apresentados pela epistemologia contemporânea tradicional. Ou pode, ainda, ser má-fé.

Essa fragmentação das disciplinas obstaculizou a compreensão global dos saberes criminais, fato que gera, no atuar cotidiano dos operadores do direito – e dos demais atores que participam da investigação do fenômeno criminal -, incapacidade de compreensão das violências inerentes ao sistema penal e de criação de instrumentos para minimizá-las. (DE CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 14).

Nada obstante, almeja-se investigar em que ponto se deu a ruptura da ciência processual penal do espectro das ciências criminais. Observa-se doutrinariamente que a disciplina do Processo Penal foi arrebatada das ciências criminais, passando a integrar o campo epistemológico que então também ganhava autonomia, qual seja a do Direito Processual. Sendo assim, o Processo Penal, com todas as suas especificidades e peculiaridades, passa a integrar a teoria comum do Processo, perdendo parte suas características definidoras e que, em última análise, deveriam ser formas processuais de garantia do cidadão face ao poder punitivo materialmente exercido pelo Estado.
Assim, inúmeras confusões metodológicas e de conteúdo são ocasionadas em razão da recorrente diferenciação que existe (ou pelo menos devia existir) quanto à instrumentalização do Direito Penal, em relação, por exemplo, ao Processo Civil nas questões patrimoniais. Para ilustrar, podemos aduzir que a importação acrítica do princípio pas de nullité sans grief do Processo Civil ao Penal produz danos irreparáveis e de difícil comprovação (uma vez que uma condenação, ou sobrepunição, não são encarados como prejuízos demonstráveis pela jurisprudência) para com os acusados que se vem tolhidos do direito fundamental de serem imputados sob a égide de um devido processo penal, com formas que servem de garantias do cidadão face ao proceder desregrado de um poder punitivo que inevitavelmente tende ao excesso.
Da mesma forma, quando se observa os institutos do "periculum in mora" e do "fumus boni iuris" serem usados para referenciar medidas cautelares (inclusive a prisão preventiva), percebe-se a incoerência dessa tentativa do processo científico totalizante (englobando todas as searas processuais), tendo em vista que a instrumentalização (finalidade precípua de qualquer processo) é definida pela estrutura do direito material que a circunda.
Nesse quadrante da análise, forçoso perceber que a colonização do Processo Penal pela dogmática processual-civil, em nome de uma pretensa coerência sistêmica, é na verdade geradora de inúmeras distorções, tendo em vista que o Processo Civil tutela a disputa acerca de interesses individuais disponíveis (em regra, patrimoniais), enquanto que o Processo Penal tem como função precípua a limitação do ius puniendi estatal e garantir os direitos da parte vulnerável dessa relação (ora o acusado – na cognição, ora o condenado – na execução). Isso, certamente, foi só uma explosão de indagações, e nós vamos explorá-las amiúde!

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