Onde Fica A Língua Inglesa em Trabalhos Multimodais? Uma Experiência em Uma Escola Pública Brasileira

May 30, 2017 | Autor: Renata Quirino | Categoria: Teaching English As A Foreign Language, Multiliteracies, Public Schools
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Takaki & Maciel (Org.) Novos Letramentos em Terra de Paulo Freire. Ed. Pontes, 2014, v.1, p. 231-252.

Onde Fica A Língua Inglesa em Trabalhos Multimodais? Uma Experiência em Uma Escola Pública Brasileira Renata Quirino de Sousa O papel da imagem na construção de sentidos: desconstruindo conceitos de aprendizagem Na era digital e global em que vivemos, pode-se notar que as ima- gens vêm ganhando, cada vez mais, um papel de destaque nos textos multimodais, sejam eles propagandas de qualquer natureza, websites na Internet, textos interativos em museus, e diversos outros gêneros textuais que ajudam a construir o modo de ser e de viver na era digital (KELLNER, 2002). A escola, entretanto, tende a continuar favorecendo a linguagem verbal escrita, muito provavelmente por causa da linha divi- sória que arbitrariamente se estabeleceu entre esse modo de linguagem e a linguagem visual, hoje mais presente nas práticas sociais que ocorrem fora da escola (KELLNER, 2002). A pesquisa foi realizada em conjunto com um professor-colabo- rador, que atua em uma escola municipal ministrando aulas de língua inglesa para 6o a 9o anos. E, um dos maiores problemas levantados por ele, com relação a trabalhar leituras multimodais, construindo sentidos para as imagens, constitui a dificuldade em utilizar a língua inglesa nesse contexto, uma vez que uma imagem não traz linguagem verbal escrita e essa leitura seria feita, portanto, em língua materna, desca- racterizando o propósito da aula de língua estrangeira. Outra questão levantada pelos professores com relação a esse tipo de leitura é a difi- culdade em se medir a aprendizagem dos alunos, uma vez que não há uma interpretação “correta” para esse tipo de construção de sentidos, o que leva a uma sensação de que “tudo vale” e, que, portanto, o aluno não estaria, “de fato, aprendendo”. Desconstruir maneiras de pensar a aprendizagem de língua estran- geira no ensino formal passa por uma revisão das concepções de língua, de construção de sentidos, de avaliação, entre outras práticas que se desenvolvem em sala de aula. Kellner (ibid.) chama a atenção para o fato de que não se pode ignorar a importância dos multiletramentos – ou seja, do trabalho com textos multimodais e digitais – uma vez que, na sociedade digital, o conhecimento e a informação não chegam ao leitor/ usuário apenas pela mídia impressa, mas também, e principalmente, através de imagens, sons e material de multimídia. As imagens já têm, há muito tempo, papel fundamental na escrita de culturas não letradas. Menezes de Souza (2005), defende a quebra da dicotomia entre a linguagem verbal escrita e a linguagem imagéti- ca, uma vez que, para muitas culturas, a imagem constitui a escrita, e não apenas um “complemento do texto escrito”. Ao estudar o impacto da introdução da escrita alfabética na aldeia dos Kashinawá1, o autor notou que,                                                                                                                 1  Aldeia indígena localizada no estado do Acre, e que passou por um processo de alfabetização em língua

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para eles, a escrita alfabética no papel é insuficiente para a construção de sentidos e que, portanto, esta precisa ser complementada por outras formas visuais de representação. No entanto, ao fazer uso de desenhos, considerados pelas culturas não indígenas como primitivos ou infantis, os Kashinawá têm, geralmente, sua escrita subestimada em sua complexidade pelas culturas letradas. O papel das imagens nas práticas sociais de leitura e escrita varia, portanto, de uma sociedade para outra e, hoje, no mundo globalizado, em que as fronteiras já não são tão delimitantes ou geográficas (BAUMAN, 1999), elas também precisam ser vistas como texto, com potencial para a construção de sentidos, sem a dependência de um texto escrito. Na visão de Hubbard (1992), imagens sempre foram tão importantes quanto palavras para os seres humanos em suas práticas comunicativas, razão pela qual se deve expandir a atual visão de letramento, que prioriza o texto escrito, incluindo-se aí a dimensão visual. Dessa forma, estar-se- ia “atendendo ao pedido dos pesquisadores sobre o reconhecimento dos multiletramentos e das maneiras como esses letramentos se complemen- tam entre si” (HUBBARD, 1992, p. 112). Como fazer, entretanto, na sala de aula de língua inglesa, para que, durante as atividades de leitura de imagens e trabalhos com textos multimodais, a língua-alvo não se perca e a aula não se torne uma “aula de língua portuguesa”? Um dos motivos de resistência ao uso de imagens por parte de quem prepara o currículo, segundo Hubbard (1992), é causada pela visão compartimentada do conhecimento, que requer uma sequência de desenvolvimento das habilidades ligadas ao processo de letramento. Para esses profissionais que formulam o currículo, “encaixar” o uso de imagens nessa sequência “lógica” torna-se um problema, inclusive de avaliação, já que, dentro dessa visão, fica bem mais complicado avaliar a interpretação dada a uma imagem do que a interpretação que se pode dar a um texto escrito. Entretanto, segundo o autor, o processo de letramento é bem mais complexo do que isso, e requer outra visão de conhecimento – uma visão não linear, onde as imagens têm papel fundamental, já que fazem parte das práticas sociais. Há quem defenda que as imagens podem e devem ser utilizadas apenas nos primeiros anos do Ensino Fundamental, em que os alunos ainda não estão alfabetizados e, portanto, precisam reconhecer imagens e trabalhar com elas por meio da ação de colorir, identificar erros, fazer as próprias representações de sua realidade para que, quando estiverem completa- mente alfabetizados, passem, então, a consumir e a produzir apenas textos escritos. Hubbard (1992), entretanto, defende que fazer uso de imagens não deve ser uma prática atribuída a crianças que ainda não sabem ler e escrever fluentemente, como uma preparação para a “verdadeira escrita”. Ao contrário, imagens são parte importante do processo de construção de sentidos e, dessa forma, devem ter o mesmo status das palavras. Combinações de material impresso com imagens, gráficos e material de áudio e vídeo estão cada vez mais presentes nos ambientes multi- mídia (KELLNER, 2002), o que demanda uma diversidade de tipos de interação multimodal. Portanto, faz parte dos processos de letramentos desenvolver habilidades para transitar entre esses textos, com

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suas múl- tiplas formas, já que todos esses tipos de texto continuarão a fazer parte da mesma sociedade. Esses processos, para o autor, envolve desenvolver habilidades para participar ativamente das formas de comunicação e representação socialmente construídas e, portanto, não é possível igno- rar as multimodalidades e manter o foco apenas na mídia impressa. Os letramentos defendidos pelo autor envolvem ler e interpretar narrativas, imagens e todos os gêneros da cultura midiática, a qual engloba a mídia impressa e a mídia visual, formando um campo híbrido que combina todas essas formas. O termo ‘multiletramentos’, para Kellner (2002), engloba os dife- rentes tipos de letramentos necessários para acessar, interpretar, criticar e participar das novas configurações culturais e sociais construídas a partir das novas tecnologias. Segundo o autor, “multiletramentos envolvem ler através dos variados e híbridos campos semióticos e ser capaz de processar criticamente e hermeneuticamente textos impressos, gráficos, imagens em movimento e sons” (KELLNER, 2002, p. 163). O termo ‘híbrido’ sugere a combinação e a interação entre as diversas mídias e a necessidade de se sintetizar as várias maneiras de construir sentidos. Pode-se concluir, portanto, que a leitura e a interpretação de imagens são tão importantes para os processos de multiletramentos quanto a leitura de palavras e não podem ficar esquecidas pela escola. Voltemos, entretanto, à questão de onde fica a língua inglesa nas atividades de leitura multimodal, onde as imagens devem, também, ser lidas e interpretadas, construindo-se para elas sentidos possíveis, dado o contexto local, em diálogo com o contexto global, onde a leitura ocorre. Discussões a respeito dessa questão são propostas a seguir, conforme foi feita a análise dados da implementação de atividades de leitura multimodal em aulas de língua inglesa no ensino Fundamental II (6o ao 9o ano) em uma escola pública de São Paulo, em que se tentou contemplar a construção de sentidos, a contextualização da leitura de textos multi- modais – pôsteres de filmes –, bem como o trabalho de prática oral, com vocabulário em contexto. Neste capítulo, apresentam-se resultados desse trabalho realizado com alunos de 6o ano. Relatos de uma experiência na escola pública Com base nas teorias mencionadas anteriormente e em outras teo- rias sobre multiletramentos e construção de sentidos, foi realizada, em conjunto com um professor de língua inglesa da rede pública municipal de São Paulo, uma pesquisa colaborativa em que experimentamos e analisamos várias práticas multimodais. As aulas de intervenção foram preparadas e aplicadas em conjunto pela pesquisadora e pelo professor colaborador, seguidas de discussões a respeito das questões que emergiam dessas práticas. A seguir, será relatada e discutida uma das primeiras atividades propostas durante a referida pesquisa colaborativa. Tal atividade, que utilizou pôsteres de filmes para uma leitura multimodal, foi escolhida por se tratar de um gênero textual bem conhecido dos alunos, porém pouco explorado em sua profundidade. Buscamos propor uma leitura mais aguçada e reflexiva de imagens, bem como do texto que as

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acompanham, conforme descrição e análise a seguir. A escolha do gênero textual A atividade que será aqui apresentada e discutida teve como base a utilização de sete pôsteres de filmes, conseguidos em uma locadora de vídeos, e que foram colados à lousa no início de cada aula. Os tipos de filme eram variados, sendo um épico, um musical infanto-juvenil, dois filmes policiais, um filme de ação e dois dramas2. A escolha desse gênero textual se deu devido à proximidade desse tema com o cotidiano dos alunos fora da escola, bem como da possibilidade de se propor, por meio desse tipo de texto multimodal, diversas práticas, entre eles: 1) uma exploração do gênero textual – pôster de filme –, chamando a atenção dos alunos para a importância das imagens nesse tipo de texto multimodal; 2) uma prática oral, feita em língua inglesa, em que os alunos pudessem dizer de que tipos de filmes gostam, além de responder se já assistiram ou não a determinados filmes; 3) a exploração de vocabulário em língua inglesa, a partir do que se podia ver nas imagens; 4) uma discussão sobre a escolha dessas imagens e sobre temas relevantes tratados nos filmes; 5) uma discussão sobre a contingência dos gostos, que estão atrelados a diversos fatores, tais como a faixa etária, a classe social, o contexto local, entre outros. Tal discussão foi feita parcialmente em língua inglesa e parcialmente em língua portuguesa, levando-se em conta o léxico que os alunos já possuem, ou ainda não possuem, na língua e o que poderiam inferir de acordo com o contexto da atividade. É importante ressaltar que não houve uma ordem específica empre- gada na exploração desses pôsteres. As cinco práticas mencionadas foram exploradas de maneira integrada, conforme surgiam questionamentos, sobre vocabulário em língua inglesa ou sobre temas relevantes tratados nos filmes. De fato, houve momentos em que, durante a exploração das imagens, surgiram interessantes visões críticas dos alunos acerca da ma- neira como as imagens foram compostas e escolhidas para divulgar os filmes. E, com relação às duas funções comunicativas trabalhadas através de duas perguntas em língua inglesa, que serão descritas a seguir, a prática oral deu-se nos momentos que julgamos mais oportunos, analisando-se o interesse dos alunos, o andamento da exploração das imagens, entre outros fatores. A seguir, discutimos, então, a implementação da atividade e seus desdobramentos.

                                                                                                                2  Os títulos dos filmes são, respectivamente: “O Escorpião Rei”; “Camp Rock”; “Felon”; “Prison Break”; “Um amor de Tesouro”; “Ensinando a Viver” e “Longe Dela”.

 

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Explorando o gênero textual e o trabalho com a Língua Inglesa em contexto Parte 1: Construção de sentidos a partir da linguagem verbal Além dos referidos pôsteres de filmes, foram preparados para essa atividade dois cartazes feitos em papel-cartão. O primeiro deles iniciava- se com a expressão “It’s a/an...”, seguida de uma lista com a denominação de alguns tipos de filmes em inglês – comedy, drama, love story, thriller, entre outros. O segundo cartaz continha a pergunta: “What kind(s) of movies do you like?”, seguida da resposta “I like...”; em seguida, outra pergunta “Have you seen...?” era seguida das seguintes opções de res- posta “Yes / No.”; “It’s cool / boring”. O objetivo da atividade proposta era o de que os alunos, a partir das imagens presentes nos pôsteres, bem como das funções comunicativas em língua inglesa que poderiam ser suscitadas a partir dos cartazes cartazes, reconhecessem características desse gênero textual e, dessa forma, pudessem responder a questões como: quais eram os tipos de filme presentes nos cartazes; quais eram seus tipos de filme favoritos; quais daqueles filmes já haviam visto e qual seria sua opinião sobre eles, utilizando adjetivos como, por exemplo, cool e boring. A seguir, apresentaremos e analisaremos alguns trechos de aulas onde essa atividade foi implementada. O professor-colaborador da pes- quisa fez, em todas as turmas, uma introdução da atividade, chamando a atenção dos alunos para o fato de que as imagens também são textos e podem ser lidas, como podemos notar nesses trechos de aula em duas turmas de 6o ano (antiga 5a série): Início da Aula 1: ((enquanto colávamos os cartazes na lousa, os alunos demonstravam muita curiosidade)) ... PC3.: Uma atividade que nós vamos fazer com vocês sobre... O quê? As.: Filme!4 PC: Ah é? Como é que vocês sabem que isso é filme? A1: Porque tá escrito ‘DVD’. ((vai até o pôster e aponta para a palavra)) A2: Porque tá escrito ‘filme’! ((apontando a palavra em outro pôster)) PC: Ah, porque tá escrito ‘filme’? É isso? O que esse tipo de leitura possibilita a vocês? ... Isso aqui é um texto? ((apontando para um dos pôsteres de filmes)) As.: É.PC: Por que é um texto?A.: Porque tá escrito. PC: Porque tá escrito? Só porque tá escrito? Isso aqui é um texto, gente, pra vocês? ((apontando para a imagem de um dos pôsteres))                                                                                                                 3   Foi utilizado o seguinte padrão de abreviações nas transcrições de aulas: PC = professor-colaborador; Pq = pesquisadora; A = aluno; As = alunos; A1, A2, etc. = identificação de diferentes alunos.   4  As partes em negrito referem-se a pontos importantes que são retomados nas análises dos trechos de aula.  

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A3: As palavras. PC: Só as palavras? Um texto só tem palavras? ... Isso aqui é o que? Como é que eu chamo isso? ... Isso aqui, ó, que vocês estão vendo? ((apontando para a imagem de um dos pôsteres). A4: Texto. PC: Texto. Mas esse, de um modo geral, é de que? A5: Desenhos. PC: Desenhos, imagens, né? Então, aqui, o que é que tem? ((apontando para a imagem em um dos pôsteres)) Palavras, texto, palavras, certo? A imagem também caracteriza o texto porque pela imagem a gente pode identificar algo, muitas coisas, né? Por exemplo, você olha pra cara desse aqui, ó... ((apontando para um personagem em um dos pôsteres)) Como é que está ele? Está feliz? A8: Bravo.... Início da Aula 2: PC: Ó, então nós vamos trabalhar sobre... O que? As.: Filme! PC: Sobre tipos de...As.: Filme! A1: Em inglês! ((com tom de voz demonstrando entusiasmo))PC: Filme. E como é que vocês sabem que são tipos de filme?As.: Pelos cartazes!PC: Pelos cartazes? É... eu posso falar que isso daqui é texto? O que está nos cartazes? As: Pode! PC: Por que que eu posso, pessoal? Por que é que eu posso chamar isso aqui de texto? A2: Porque isso aí é uma história! É interessante observar as respostas dos alunos aos questionamentos do professor. O primeiro aluno faz uso de uma estratégia de leitura para encontrar uma palavra – em letras mínimas em um dos pôsteres – que pudesse comprovar que se trata de filme: a palavra DVD. Muito embora possa parecer óbvio que aqueles pôsteres eram propagandas de filmes, o aluno prefere utilizar a palavra, a qual ainda tem mais peso na escola – por ainda privilegiar a linguagem escrita – e, provavelmente por saber disso, o aluno recorre a ela. Talvez, em outro contexto, ele pudesse não utilizar esse recurso, simplesmente referindo-se às imagens dos pôsteres. Outra aluna usa a mesma estratégia e encontra a palavra “filme” em um dos pôsteres, fazendo uso dela para “provar” ao professor que se trata de uma atividade com filmes. O professor, por sua vez, continua perguntando o que se pode chamar de texto, e eles continuam afirmando que são as palavras. Até que o professor aponta para uma imagem, que um aluno chama de desenho, afirmando que imagem também é texto. Os alunos, entretanto, não parecem muito convencidos. Já na segunda turma, o pro- fessor obteve as repostas que queria de forma mais rápida, já que uma aluna associou os pôsteres com as narrativas dos filmes, afirmando que ali há uma história. É interessante notar que, para essa aluna, mesmo que o pôster em si não conte a narrativa por meio de palavras, ele contém a história, que pode ser representada na(s) imagem(ns).

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Parte 2: A construção crítica de sentidos a partir da linguagem não verbal Conforme dito anteriormente, procuramos trabalhar a leitura de ima- gens ao mesmo tempo em que trabalhamos vocabulário da língua inglesa, já que, dessa forma, acreditávamos que os alunos estariam mais interes- sados e que o aprendizado seria mais contextualizado e significativo. De fato, constatamos que, na maioria das vezes, os alunos demonstraram interesse no vocabulário que ia surgindo, fazendo repetições espontâneas e demonstrando satisfação em aprender uma nova expressão, e maior satisfação ainda quando já conheciam o termo que lhes era perguntado. Nesse momento, não demonstravam preocupação em saber a grafia das palavras, e prestavam bastante atenção à pronúncia de cada palavra ou expressão, para que pudessem reproduzi-la da mesma forma, conforme podemos observar nos seguintes trechos de aula das mesmas turmas: Trecho da Aula 1: Pq.: O que é isso aqui?As.: Um menino de ponta-cabeça. Pq.: Muito legal! E como é que se fala ‘um menino de ponta-cabeça’? As.: Boy... Pq.: A boy... As.: A boy... Pq.: A boy upside down. As.: A boy upside down. Pq.: Up é ‘pra cima’, side é ‘lado’ e down é ‘pra baixo’. Então, upside down é de cabeça pra baixo, certo? E o que é mais difícil, ser pai ou filho?((alguns alunos dizem ‘pai’ e outros dizem ‘filho’)) Pq.: Primeiro vamos ver o lado do pai. Quem acha que é mais difícil ser pai? As.: Eu!!! ((vários levantam as mãos)) Pq.: Why? A.: Porque ele tem que aturar o filho. Pq.: E quem acha que é mais difícil ser filho? As.: Eu! ((apenas alguns alunos levantam as mãos)). Pq.: Why? A.: Porque tem que aguentar os pais. Trecho da Aula 2: Pq.: (inc.) essa imagem? ((apontando para o pôster do filme “Ensinando a Viver”, onde o pai lê o jornal enquanto o filho se pendura de cabeça para baixo atrás do sofá)) A1: O pai é irresponsável! Nem liga pro filho! Pq.: E como a gente fala “pai” in English? As.: É... Father! Pq.: Father. Mas também tem um jeito mais carinhoso de falar. Como é?A2: Daddy!!! Pq.: Daddy! Congratulations! E como a gente fala “filho”? Alguém sabe? ((nenhum aluno se lembra)) P.: Vocês já viram como se fala “filho”.

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Pq.: A gente fala “son”.As.: Son?Pq.: Son. É como “sol”. É a mesma pronúncia. Só a escrita é diferente. Como é “sol”? Vocês sabem? ((ninguém responde) Pq.: Não? Então, vocês vão saber só pelo contexto, por isso é que tem que prestar muita atenção no contexto. Right? As.: Right. Pq.: Entenderam? E aqui? Por que o menino está upside down? A3: Porque ele tá aprendendo. Pq.: Tá aprendendo o quê? A3: A ser filho. A partir da leitura da imagem, ambas as turmas deduziram que se tratava de pai e filho. Embora a maioria não houvesse visto o filme, alguns já haviam ouvido falar. Sua dedução, porém, foi feita com base na foto escolhida para o cartaz, já que essa inferência não poderia ser construída apenas com base título - “Ensinando a Viver”. É interessante notar as leituras da imagem feitas por duas alunas no segundo trecho de aula. A primeira associou o fato de o pai estar entretido, lendo o jornal, com o fato de ser irresponsável e nem ligar para o filho – uma leitura de certa complexidade e que demanda atenção e uma reflexão. A segunda aluna, por sua vez, associou o fato de o garoto estar de cabeça para baixo ao fato de estar aprendendo a ser filho, ou seja, de ainda estar confuso, de ainda estar se adaptando a sua situação – outra interpretação que envolve conhecimento de leituras já institucionalizadas, que, em outras culturas, poderiam se desdobrar em diferentes construções de sentidos (GEE, 2006; KRESS, 2003). Nessa leitura da imagem, foram apresentados aos alunos dois novos termos - ‘upside down’ e ‘son’. Em ambos os casos, os alunos fizeram uma repetição espontânea, talvez por estarem habituados a repetir todo vocabulário novo, ou mesmo porque seria uma maneira de se lembrar dessas palavras mais tarde. Alguns alunos, inclusive, fizeram anotações em seus cadernos. Isso ocorreu em vários momentos durante a atividade de exploração das imagens dos pôsteres. Questionamentos dos alunos surgiram ao longo de toda a atividade, como no caso abaixo, em que um aluno lê uma palavra no cartaz desse mesmo filme, e decide perguntar ao professor o seu significado: A.: Professor, o que é adoção5? Toda uma discussão se instaurou a partir dessa pergunta. Aprovei- tamos para explorar com os alunos o tema adoção, perguntando-lhes sua opinião sobre o tema adoção, ou seja, levar uma criança para viver em um lar como se fosse filho(a) da família. Quase todos concordaram que é uma boa ação, que deveria ser feita com mais frequência. Entretanto, quando questionamos sobre problemas que podem decorrer dessa ação, como discriminações sofridas pela criança por parte de outras pessoas, ou dos próprios pais em momentos difíceis, futuros questionamentos da criança sobre seus pais biológicos,                                                                                                                 5  Esse

cartaz estava em língua portuguesa.  

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revoltas por conta do abandono, entre outros problemas, muitos alunos repensaram sua visão. Alguns, ainda assim, mantiveram-se a favor da adoção, enquanto outros disseram que depende de cada contexto familiar, da semelhança ou extrema diferença dos pais adotivos com relação aos pais biológicos, entre outros fatores. Em suma, um tema denso e que faz parte do cotidiano de muitas crianças, seja por experiência própria ou de amigos e colegas, foi discutido de maneira crítica (GEE, 2006; KRESS, 2003), refletindo-se prós e contras, mostrando-se pontos de vista não pensados antes, de maneira que algumas opiniões, que podiam ser simplistas por falta de maior reflexão, puderam ser questionadas, e novos sentidos puderam ser construídos. Toda essa discussão foi feita em língua materna, como parte integrante e importante de uma aula de língua estrangeira, segundo as concepções dos letramentos críticos (GIROUX, 2005) e multiletramen- tos (LANKSHEAR; SNYDER, 2000). As concepções de língua que, até recentemente, favoreciam o trabalho com vocabulário e gramática, bem como tradução, consideravam, principalmente, a parte estrutural da língua, porém com pouca preocupação com relação à construção de sentidos. Já as concepções de língua que norteiam o trabalho com os letramentos críticos e multiletramentos apontam para uma maneira di- ferente de se trabalhar língua, com foco no diálogo entre o leitor, o texto e o contexto, do qual surgem possibilidades de construção de sentidos (LUKE; FREEBODY, 1997), a qual, no caso do ensino formal de inglês no Brasil, ocorrerá em língua materna. O papel da língua materna nesta atividade de intervenção foi de grande importância, uma vez que foi por meio dela que os alunos in- feriram significados e construíram sentidos, muito embora durante a exploração das imagens, palavras e expressões em língua inglesa foram sendo evidenciadas. Para os multiletramentos críticos (GEE, 2006; KRESS, 2003; LANKSHEAR; SNYDER, 2000), a comunicação não se restringe a atos de fala, mas engloba, também, a reflexão crítica – daí a possibilidade de transitar entre as duas línguas, reservando espaço para discussões em língua materna. No contexto de aprendizagem de línguas estrangeiras, é na língua materna que a outra língua vai se fazendo presente. No caso da proposta aqui apresentada, isso se deu através da exposição a textos multimodais, os pôsteres de filmes, e a partir dos quais se trabalharam aspectos desse gênero textual, temas abordados nos filmes – como a adoção – e signi- ficados na língua inglesa – por meio de palavras e expressões. Em um primeiro momento, pode parecer que o trabalho com a língua inglesa manteve-se desconectado do trabalho de interpretação das imagens, e que, como afirma Snyder (2004), servimos “vinho velho em garrafas novas”, mantendo o trabalho com a língua inglesa restrito ao vocabulá- rio. Entretanto, essa atividade foi a primeira dentro de um conjunto de atividades em que se falou de filmes e nas quais os alunos foram expostos a outros textos multimodais na língua inglesa, como trailers e sinopses de filmes em sites estrangeiros.

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Parte 3: A construção de sentido a partir das funções comunicativas Nos trechos de aula apresentados abaixo, os alunos tiveram a opor- tunidade de aprender a nomear os diversos tipos de filmes, compreender e utilizar as perguntas “What kind(s) of movies do you like?” e “Have you seen...?”, bem como expressar sua opinião sobre um filme por meio de dois adjetivos que fazem parte do seu cotidiano na língua materna, e os quais agora poderiam utilizar em língua estrangeira – “cool” e “boring”. Isso possibilitou que fizessem parte de uma prática social que realmente ocorre em contextos de fala em língua inglesa. Interessante notar que os alunos espontaneamente inferiram os significados das frases e dos adjeti- vos, muito provavelmente porque estavam sendo utilizados em contexto. A estrutura gramatical das perguntas não foi o foco, e sim, seu significado em contexto, o que possibilitou que os alunos respondessem, em inglês, à pergunta “Have you seen...?” sem necessitar de uma explicação sobre o presente perfeito – o que não quer dizer que não houve explicações gramaticais, e sim que as explicações que foram dadas foram em função apenas de um uso correto da língua nas interações propostas, como no caso de quando se usa o artigo “a” ou o artigo “an”, conforme excerto abaixo: Pq.: Então, ó, só pra relembrar pra vocês, quando a próxima palavra começar com o som de vogal, a gente fala ‘an’. Aí a gente fala: “It’s an adventure”. Quando a próxima palavra começa com som de consoante, a gente usa ‘a’. “It’s a comedy.” Right? ((eles prestam bastante atenção)) Vocês sabem todos esses tipos que estão aqui ou tem algum que vocês não sabem? As.: Tem! Pq.: Qual? As.: Epic! Pq.: Epic. O que será que é ‘epic’. P.: Pensa um pouco!A.: Eu sei! É filme de época! Pq.: Isso mesmo! Very good! Agora eu vou perguntar... esses filmes aqui, vocês vão me falar de que tipo eles são, ok? As.: Ok.... Pq.: What kind is this? A.: Ação!Pq.: E como é que a gente fala de acordo com o cartaz? As.: It’s an action.... Pq.: ... What kind of movies do you like? O que é que eu estou perguntando? What kind of movies... A.: O que ou quais... Pq.: Quais os tipos...A.: Kinds é tipos??? Pq.: Kinds é tipos. A.: Olha!!! E o que é Discovery Kids? Pq.: Ah, kids é criança, só que você tira o ‘n’. Aí vira ‘tipo’, right? As.: Ahh!... A.: I like it’s... Pq.: Ah, não precisa do ‘it’s’ quando você fala de que tipo de filme você gosta...

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agora, a gente vai direto aqui ((apontando para a lista de tipos de filme)) porque agora a gente não está falando “É...”A.: I like comedy!... Pq.: Ok! Agora vamos olhar aqui, ó! Have you seen...? Alguém tem ideia do que significa essa pergunta?((ninguém se arrisca)) Pq.: Have you seen Harry Potter? A.: Tá perguntando se eu já vi? Pq. Uhum.A.: No! Pq.: Very good! Então eu vou mostrar os filmes e vou perguntar. E vocês vão responder Yes or No. ((apontando para o cartaz)) Tá bom? Have you seen... ((aponto para o primeiro cartaz)) ((antes que eu diga o nome do filme, eles respondem)) As.: Yes!As.: No! Analisando esse trecho da atividade, podemos notar que uma aluna, quando vai dizer sua preferência, recorre ao cartaz dos tipos de filmes e monta a frase usando dois sujeitos – “I like it’s...” – o que mostra que estava fazendo uso de uma estratégia de aprendizagem. Seu foco era comunicar e, por isso, interrompeu a explicação da pesquisadora, e reformulou a sua frase corretamente. Os outros alunos tiveram o mes- mo procedimento quando não esperaram que a pesquisadora dissesse o título do filme e já responderam se haviam assistido ou não logo que se apontava para cada cartaz. Estavam focados no evento comunicativo e, como o cartaz já representava o filme, seria desnecessário dizer o título. Isso caracteriza uma comunicação real, daí a escolha de não introduzir a expressão “I have / haven’t” no cartaz, já que, em uma situação real entre adolescentes de língua inglesa, não se usaria tal expressão. No momento em que os alunos foram chamados a dar sua opinião sobre os filmes dos pôsteres, e também sobre outros filmes, eles se mostraram entusiasmados e, após responderem a respeito de diversos filmes, eles mesmos passaram a dizer nomes de filmes para que os outros expressassem sua opinião, conforme o trecho abaixo: Pq.: Ok. Agora, a gente vai aprender a dar opinião, ok? A gente fala assim, ó: ((apontando para as frases no cartaz)) “It’s cool” se o filme for legal. “Cool” é “legal”. As.: It’s cool! Pq.: It’s cool. e “It’s boring” se ele for chato .As.: It’s boring. ((alguns alunos ficam repetindo as duas frases)) Pq.: It’s cool. P.: or It’s boring. Pq.: What do you think of “Senhor dos Aneis”? As.: It’s cool! As.: It’s boring!... A.: Premonição! Pq.: Premonition. As.: It’s cool!A.: A Múmia! As.: It’s cool!

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Pq.: “A Múmia” em inglês se chama “The Mummy”. As.: It’s cool! Pq.: Ok. Esse adjetivo é positivo ((apontando para o cartaz)) e esse aqui é negativo, right? As.: Right. Pq.: Em português, às vezes, os adjetivos mudam de conotação. Vocês já prestaram atenção? Por exemplo, hoje a gente fala que uma coisa é “sinistra” quando ela é o quê? As.: Legal! Pq.: Quando ela é ‘cool’. Mas antigamente, sinistro era ruim. Então, esse negócio de positivo e negativo pode mudar. A.: É que nem verdadeiro ou falso.Pq.: É que nem verdadeiro ou falso.... Pq.: Did you like it? Gostaram?As.: Sim!!!A.: It’s cool!!! Como nas duas atividades anteriores, o foco dos alunos era comuni- car, respondendo se o filme era ‘cool’ ou ‘boring’. Nesse momento, eles não estavam interessados em saber os títulos dos filmes em inglês, tanto assim que ignoraram por duas vezes o comentário dos títulos originais dos filmes “A Múmia” e “Premonição” e repetiram sua opinião – “It’s cool!”. Seu interesse em vocabulário restringiu-se aos momentos onde estávamos analisando o que havia nas imagens. É interessante observar, também, o comentário da aluna quando aproveitamos a dualidade dos adjetivos para falar da não fixidez dos conceitos, quando ela os comparou com a não fixidez do que é verdadeiro ou falso. Parte 4: A construção de sentido a partir de conhecimento prévio A curiosidade dos alunos para saber sobre termos em inglês que descrevessem o que viam nas imagens foi surpreendente, como pode ser observado nos trechos abaixo e, fomos concluindo que essa pode ser uma forma de aprendizado que faz sentido para os alunos, tanto por estarem sendo expostos a conhecimentos, nas duas línguas, que fazem parte do seu cotidiano, quanto por terem esse conhecimento apresentado a eles conforme eles mesmos perguntavam, ou seja, sob demanda – termo de Gee (2006), utilizado em sua teoria de que o conhecimento só se constrói quando é o aprendiz que precisa ou quer saber sobre algo. Essa atividade foi uma oportunidade para que os alunos pudes- sem ver tanto a língua inglesa quanto a linguagem das imagens como ferramentas de construção de sentido; e lhes foi permitido transitar livremente pelas linguagens, porque o foco era construir sentido e não memorizar vocabulário ou estruturas gramaticais. Muitos alunos, inclusive, relatavam que já haviam tido contato com alguns dos termos que estavam sendo apresentados através de letras de música, jogos e filmes, e demonstravam-se satisfeitos em poder contribuir para a leitura das imagens, conforme podemos notar nos seguintes trechos: A.: Eu sei o que é aqui, professora! Gail! Pq.: A pronúncia é jail. Very good! Então o rapaz é o quê?

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As.: Preso. Pq.: A prisoner. As.: A prisoner. Pq.: E esses dois aqui? O que eles são? As.: Policiais.A.: Um é policial e o outro é (inc.) Pq.: E como se diz policial in English? As.: Police? Pq.: Policeman. A.: X-Men. ((aluno pensa alto fazendo associação entre as duas palavras)) Pq.: X-Men? O que é X-Men? Alguém sabe?((vários alunos falam ao mesmo tempo)) Pq.: Por que é “x-men”? A letra “x”? Alguém sabe?((vários alunos falam ao mesmo tempo)) Pq.: Porque eles eram homens e agora não são mais. São mutantes. Por isso é “ex”. Como ex-boyfriend. As.: Ahh!!! Pq.: What’s this?As.: Uma arma! Pq.: Very good! E como é que se fala ‘arma’ in English? Alguém sabe?A1: Arsenal! ((com pronúncia da língua inglesa)) Pq.: ‘Arsenal’ é um conjunto de muitas armas, mas como se chama a palavra ‘arma’? A1: Armamento! Pq.: No. ‘Arma’ se chama ‘gun’. As.: Gun.Pq.: E ‘bala’ se chama ‘bullet’. ((alunos repetem espontaneamente o novo vocabulário)) Pq.: Ok, people, o que vocês veem aqui? What do you see here? ((todos falam ao mesmo tempo e não é possível compreender esse trecho da aula)) Pq.: E aqui? What is this? As.: Man! Pq.: A man... holding a gun. As.: A man... Pq.: A man holding a gun. As.: A man holding a gun. Ouvir os alunos e levar em conta seu conhecimento prévio parece fundamental em um trabalho de multiletramentos. Incentivar o trânsito entre a língua materna e a língua estrangeira também nos parece uma boa prática pedagógica, já que, dessa forma, os alunos podem ver a outra língua como veem sua própria língua, sentindo-se à vontade para fazer uso dela. Isso não significa, entretanto, que práticas mais tradicionais, como algum estudo de gramática, precisem ser abolidas. Há momentos em que a repetição, por exemplo, mostra-se uma prática importante para o aprendizado da língua estrangeira, desde que seja parte de um con- texto maior onde se vá utilizar, de forma contextualizada, o que se está repetindo, conforme procuramos fazer na atividade aqui apresentada.

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Enfim, como pudemos notar nos trechos analisados, a interação dos alunos com a pesquisadora durante a atividade proposta foi surpre- endente. Permaneceram atentos e contribuíram grandemente com suas interpretações das imagens e com seus conhecimentos de vocabulário; além de terem, ao final das aulas, demonstrado entusiasmo diante das novas palavras e expressões que aprenderam. Nos corredores da escola, os alunos procuraram a pesquisadora para pedir que retornasse para realizar outras atividades como essa, já que, segundo eles, haviam “aprendido muitas coisas interessantes.” De fato, observando-se os diversos trechos de aulas onde experimentamos essa atividade, pode-se notar um grande número de importantes temas discutidos, como: velhice, respeito dos filhos com relação aos pais e vice-versa, separação, violência, entre outros. Aproveitamos, também, para levar os alunos a refletirem que os gostos, que consideramos pessoais, passam por influências contextuais, como classe social, faixa etária, gênero, entre outros fatores, conforme podemos notar no seguinte trecho, com uma turma de alunos mais velhos, do 8o ano (antiga 7a série): Pq.: Vocês assistiram a esse filme? ((mostrando o pôster do filme ‘Summer Camp’)) As.: Não! Pq.: Why not? A.: Porque não. Pq.: A 5a série adorou esse filme, por que será? A.: Porque eles são crianças. Pq.: Então, o gosto tem a ver com a idade? Se você for mais velho, vai gostar de outro tipo de filme? Esse aqui, por exemplo? ((mostrando o pôster do filme ‘Longe dela’)) A.: Sim! A.: Não! Depende do seu gosto. Pq.: Quer dizer que a idade influencia mas não determina o gosto, right? A.: Ah, depende da coisa, professora. Tem filme que quase nenhum jovem vai gostar, como esse aí, mas tenho certeza que minha mãe gostaria, então tem a ver sim. Pq.: Concordo com você, tem a questão do gosto pessoal, mas a idade e outros fatores do contexto de cada um têm bastante influência, right? As.: Right. Faz parte do trabalho com multiletramentos críticos (GEE, 2006; LANKSHEAR; SNYDER, 2000) propor questionamentos que ajudem a refletir e, talvez, a desconstruir ideias preestabelecidas. Perceber que os gostos podem ser influências da própria cultura, dos colegas que compartilham contextos sociais parecidos, e de outros fatores externos, auxilia na percepção de que somos socialmente constituídos, e de que nossas escolhas não são tão livres quanto podemos pensar que sejam. Foi interessante notar que os alunos, embora não houvessem refletido acerca disso anteriormente, ao menos não de maneira consciente, demonstra- ram uma boa capacidade reflexiva e um bom grau de autorreflexão. E, embora a discussão crítica tenha se dado em sua maior parte em língua materna, utilizando-se a língua inglesa pontualmente, dentro do escopo de conhecimento que os alunos já possuíam ou poderiam inferir, pode-se dizer que se trata, sim, de uma

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aula de língua estrangeira, já que se está falando de língua, de linguagem, de práticas sociais – temas estes que não creio que devam ficar esquecidos por conta de um trabalho estrutural com a língua, que, possivelmente, não resultaria em qualquer construção de sentidos ou de conhecimento. A discussão a respeito de onde fica a língua inglesa quando se busca um trabalho segundo as propostas dos multiletramentos críticos passa por diversos aspectos do trabalho com a língua estrangeira no ensino formal, onde há uma preocupação com a construção da cidadania. Soares (2004 [1998]) nos lembra que, nas culturas letradas, ao ir para a escola, os aprendizes já dominam oralmente sua língua materna e, por meio dela, carregam visões de mundo próprias de sua cultura, conforme também afirma Bakhtin / Voloshinov (1981 [1929]). Ao longo dos primeiros anos escolares, os alunos são letrados nessa língua – que já dominam oral- mente – não apenas dando seus primeiros passos nos usos da leitura e da escrita, mas, também, aprendendo sobre as práticas sociais da sociedade à qual pertencem. A língua estrangeira chega, então, como um contexto onde se pode ter acesso a outras visões de mundo, a outras maneiras de representação e de construção de sentidos, tendo, a língua materna, papel fundamental nesse trânsito pela língua estrangeira e pelas possibilidades de sentidos que ela traz nesse contexto de ensino. Considerações Finais A atividade aqui descrita, portanto, possibilitou que os alunos utili- zassem a língua materna, juntamente com seus conhecimentos prévios, para fazer inferências acerca dos textos multimodais a que foram apresen- tados, ao mesmo tempo em que puderam trazer conhecimentos prévios da língua inglesa – para nomear o que viam nas imagens, aprendendo, também, novos termos e expressões. O contato com a outra língua cria, a meu ver, a possibilidade de sair de si mesmo e perceber que há outras maneiras de ser e estar no mundo, outros significados. Compartilho da ideia de Maturana e Varela (1980) de que o contato único e exclusivo com língua materna pode funcionar como uma armadilha, que leva a acreditar que a própria maneira de ver o mundo é a única maneira possível. Com base nessa premissa, creio que um passo importante para um trabalho multimodal crítico consista em fazer perceber que a outra língua não é simplesmente a tradução da língua materna, mas uma prática social informada por valores que são diferentes daqueles a que se têm acesso na própria cultura e que, portanto, constroem realidades distintas. Há, entretanto, dificuldades para a realização desse tipo de proposta no ensino formal, uma vez que essas maneiras de construir significados e de fazer inferências podem levar muito tempo, “atrapalhando” o cum- primento do currículo. Vejo esse como um grande desafio na formação do professor, uma vez que a aprendizagem de uma língua estrangeira no ensino formal se dá de uma maneira muito distinta da aprendizagem da língua materna – língua que os alunos já dominam oralmente e que irão utilizar para construir sentidos para todo tipo de informação e de conhecimento com o qual venham a ter contato. Com

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base nessa premis- sa, apoio-me na distinção de Bakhtin / Voloshinov (1981 [1929]) acerca da diferença entre a construção da língua materna e a aquisição de uma língua estrangeira: [...] a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. E apenas no processo de aquisição de uma língua estrangeira que a consciência já constituída - graças à língua materna - se confronta com uma língua toda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência (BAKHTIN / VOLOSHINOV (1981 [1929], p. 64). Com base nessa afirmação, concluo que o papel da língua materna no trabalho com uma língua estrangeira já se inicia na própria formação do indivíduo. Ao estudar uma língua estrangeira, já se tem a língua materna como a prática social por meio da qual se construíram maneiras de ser e estar no mundo e de lidar com conhecimentos. Por isso, penso que a língua possa funcionar como o lugar no qual é possível construir senti- dos e refletir a respeito do que se lê e se ouve na língua estrangeira. E, mesmo no caso de trabalhos multimodais realizados a partir de imagens produzidas em culturas diferentes, avalio que é, em boa parte, na língua materna que se dá a construção de sentidos e a reflexão crítica a respeito de maneiras de construir significados através dessas imagens, podendo a língua estrangeira ser utilizada em momentos onde a inferências sejam possíveis de ser feitas. Creio que o trabalho com maior foco na língua estrangeira, por sua vez, pode ser feito em diferentes momentos das ati- vidades multimodais críticas, aproveitando-se brechas para se explorar aspectos da língua que se façam relevantes no gênero textual trabalhado. Não quero dizer, com isso, que a língua estrangeira não possa ser utili- zada em interações em sala de aula no ensino formal. Sua utilização, porém, parece-me fazer mais sentido em alguns contextos do que em outros. Por exemplo, há casos em que o uso da língua materna me parece mais adequado, como os momentos em se mostra relevante olhar para as diferenças linguís- ticas nos usos da língua estrangeira de acordo com o contexto, bem como para diferentes visões de mundo que podem estar presentes nesses usos. A língua estrangeira, por sua vez, ocupa, a meu ver, um lugar de descobertas – movido por curiosidades – onde, quanto mais essas curiosidades partirem dos próprios alunos, mais intensamente estes irão querer construir sentidos, fazer comparações, acessar seus conhecimentos prévios e, assim, seguir no caminho de construção dessa língua estrangeira neles mesmos. Concordo com a afirmação de Kellner (2002) de que a construção de novas pedagogias e de novas relações sociais é um processo importante e só é possível através do cultivo de novos tipos de letramentos e da reconstrução da educação. As multimodalidades oferecem, a meu ver, a possibilidade de um transitar diferenciado pelas línguas, pelos

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sentidos, pelas práticas sociais, ao mesmo tempo em que exigem dos professores que repensem a educação como um todo, desde o seu próprio papel como educador, passando pelas relações professor-aluno, pela dinâmica de sala de aula, pela avaliação, até os objetivos educacionais que se quer buscar. Vejo o papel da língua inglesa nesse contexto não como um limitador, que obriga, que enquadra, que simplifica, mas como um ponto de partida para outros olhares e outras construções. Referências BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV, V. N.). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. LAHUD, Michel; VIEIRA, Yara Frateschi. 2. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1981 (1a ed. 1929). BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. GEE, J. Situated Language and Learning: a critique of traditional schooling. USA / Canada: Routledge, 2006. GIROUX, H. Border Crossings: cultural workers and the politics of education. 2.ed. NY & London: Routledge. 2005. HUBBARD, R. Images: Partners with Words for Making Meaning. In: HEDLEY, C.; FELDMAN, D; ANTONACCI, P. Literacy Accross the Curriculum. New Jersey: ABLEX Publishing Corporation. 1992. p. 87-116. KELLNER, D. Technological Revolution, Multiple Literacies, and the Reconstruction of Education. In: SNYDER, I. (Org.) Silicon Literacies: communication, innovation and education in the electronic age. New York: Routledge. USA & Canada, 2002. p. 154-169. KRESS, G. Literacy in the New Media Age. London / NY: Routledge, 2003. LANKSHEAR, C.; SNYDER, I.; GREEN, B. Teachers and Techno-Literacy: Managing Literacy, Technology and Learning in Schools. Malaysia: SRM Production Services, 2000. LUKE, A.; FREEBODY, P. Critical Literacy and the Question of Normativity: an introduction, In: MUSPRATT, S.; LUKE, A.; FREEBODY, P. (Org.). Constructing Critical Literacies: teaching and learning textual practice. St. Leonards, Sydney: Allen & Unwin, 1997, pp. 1-18. MATURANA, H.R.; VARELA, F.J. Autopoiesis and Recognition: the realization of the living. Reidel Publishing Company: Dordrecht, 1980. MENEZES DE SOUZA, L.M.T. The Ecology of Writing Among the Kashinawá: Indigenous Multimodality in Brazil. In: CANAGARAJAH. A. S. Reclaiming the Local in

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