Ontologia, Conhecimento e a Concepção Platônica de Logos (A relação entre linguagem e mundo no Crátilo de Platão)

June 5, 2017 | Autor: Marcelo Carvalho | Categoria: Plato, Platão
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ONTOLOGIA, CONHECIMENTO E A CONCEPÇÃO PLATÔNICA DE LOGOS (A relação entre linguagem e mundo no Crátilo de Platão)

Marcelo Carvalho Universidade Federal de São Paulo

Publicado como: CARVALHO, Marcelo. Ontologia, Conhecimento e a Concepção Platônica de Logos. In: Logos e Práxis: leituras de filosofia antiga e ética. São Bernardo do Campo: Ed. Universidade Metodista, 2008.

Toda uma nuvem de filosofia condensada em uma gota de gramática. L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas

A investigação platônica da linguagem A elaboração da concepção platônica de linguagem estabelece-se, no Crátilo e no Sofista, em contraposição às concepções herdadas por Platão e às dificuldades a elas associadas. O debate sobre os mecanismos por meio dos quais se estabelece a significação do discurso e, de modo mais particular, sobre como explicar a possibilidade do discurso falso e da predicação, ocupa um lugar central na apreciação feita por Platão das concepções filosóficas anteriores ou contemporâneas a ele. Seu objetivo será evitar os paradoxos que resultam destas outras concepções sobre a relação entre linguagem e ser1. No Sofista apresenta-se uma apropriação da tese de Parmênides sobre o ser pelos sofistas, da qual estes derivam a impossibilidade do discurso falso e da predicação, de tal modo que o texto é uma resposta de Platão aos sofistas e,

Em particular o “sofisma de Eutidemo”, a saber, a conclusão de que não é possível dizer nada de falso, “pois não se pode exprimir aquilo que não é”, de modo que ou teríamos um discurso verdadeiro, ou não seria um discurso de modo algum (cf. e.g. Méridier, pág 37). Trata-se do “célebre argumento do não-ser”, que de Parmênides a Platão ocupou os espíritos mais profundos (Goldschmidt, Essai sur le “Crátyle”, pág. 26): falar falso consiste em dizer o que não é, o não-ser não se pode enunciar, logo, é impossível falar falso. Cf. os fragmentos 8, 18 e 38 de Parmênides.

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ao mesmo tempo, uma revisão da tese de Parmênides (caracterizada no texto como um “parricídio”). No Crátilo, a concepção convencionalista da significação dos nomes defendida por Hermógenes associa-se a Demócrito, Protágoras e Górgias. Crátilo, por sua vez, que sustenta uma posição “naturalista”, é um discípulo de Heráclito (e suposto mestre do próprio Platão), que teria levado ao extremo a doutrina do fluxo. O “naturalismo” exposto por ele no diálogo costuma ser também associado a Antístenes e se assemelha à apropriação sofistica da tese de Parmênides, tratada no Sofista. Nos dois diálogos são feitas, ainda, referências e comentários à nomeação em Homero e nos poetas2. A tradição acrescentou ao Crátilo o subtítulo “sobre a justeza dos nomes”, e nele encontramos um diálogo sobre o estranho tema da significação dos nomes ser natural ou convencional. O problema é formulado a partir da contraposição do “convencionalismo” de Hermógenes ao “naturalismo” de Crátilo [384d/385d]3. A intervenção de Sócrates indica a inadequação destas duas concepções à própria suposição de que seja possível o discurso cotidiano, tornando impossível o discurso falso (o que impede a crítica aos sofistas como “ilusionistas” que apresentariam o falso como verdadeiro). Estas considerações já se situam, entretanto, em um terreno muito distante da simples consideração sobre a significação dos nomes: trata-se de compreender a relação entre logos e ser (a partir da investigação do nome, suposta unidade básica da significação na linguagem) e de fundar a ontologia e a epistemologia de Platão. Colocados frente à pergunta de Hermógenes sobre o caráter natural ou convencional da nomeação, dificilmente relutaríamos em afirmar sua convencionalidade, já que são dados diferentes nomes, em diferentes línguas, aos mesmos objetos e situações, e mesmo em cada língua parece haver uma variação nas nomeações. Como afirmar, então, sua “naturalidade”? Entretanto, Sócrates inicia sua argumentação discordando justamente deste convencionalismo, sustentado por Hermógenes. Sócrates fora chamado por Hermógenes a opinar sobre a discordância que este tem com Crátilo a respeito da relação entre os nomes e as coisas nomeadas (nomos e physis). Hermógenes afirma não poder se persuadir de que a justeza do nome “seja outra coisa que um acordo e uma convenção” [384c-d]. Crátilo (que não fala senão na última parte do diálogo) opõe-se a Hermógenes e afirma que cada coisa tem uma denominação justa, que existe naturalmente, a mesma para todos, gregos e bárbaros [383a-b].

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Sobre essas referências, cf. V. Goldschmidt, Essai sur le “Crátyle”, e Méridier, “Notice”. As páginas assinaladas entre chaves referem-se ao Crátilo de Platão.

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A recusa do convencionalismo O questionamento da tese de Hermógenes, cuja concepção aproxima-se do relativismo sofista, parte da identificação de duas possibilidades de conceber o convencionalismo: ou a convenção que estabelece a nomeação é um acordo individual, ou este é dado pela cidade [385a]. No primeiro caso, os nomes são “relativos aos indivíduos”, determinados por eles. Neste caso a tese de Hermógenes é aproximada por Sócrates da tese do “homem medida”, de Protágoras, que estaria sendo defendida por Hermógenes. Segundo essa concepção da nomeação, entretanto, não poderia haver nomes falsos, qualquer nome utilizado por qualquer pessoa seria sempre verdadeiro, na medida em que é estabelecido por uma convenção que se refere a ela própria: “são para você o que parecem para você”. A suposição de um acordo privado ou individual impede que se estabeleça um padrão exterior ao falante para que se verifique a verdade de seu discurso, sendo esta sempre dada por princípio. Que impediria, nesta hipótese, que se chamasse o reto de circular ou vice-versa, como diz Platão na Carta VII? Na medida em que não se concebem nomes falsos, a possibilidade do discurso falso encontra-se, como vimos, igualmente comprometida. É necessário, de alguma forma, limitar o convencionalismo, de modo a que se possa introduzir a possibilidade de dizer nomes falsos (e, portanto, do discurso falso), caso se pretenda guardar a possibilidade de dizer do discurso ser ele verdadeiro ou falso. Este primeiro passo da argumentação de Sócrates estabelece de maneira clara os termos nos quais se desenvolverá todo o debate: Sócrates sempre retornará ao questionamento da capacidade das teses de Hermógenes e Crátilo explicarem a possibilidade do discurso falso, a base de sua argumentação [385b/c]. Assim, no caso de se pensar em uma convenção da cidade a estabelecer o significado dos nomes, outra possibilidade para o convencionalismo de Hermógenes, o argumento de Sócrates parte, já de início, da afirmação de que para que seja possível que os nomes sejam verdadeiros ou falsos, devemos supor a existência de essências independentes deles, em uma afirmação explícita do realismo como um pressuposto à concepção da possibilidade do discurso falso: Ora, se as coisas não são semelhantes ao mesmo tempo, e sempre, para todo o mundo, nem relativas a cada pessoa em particular, é claro que devem ser em si mesmas de essência permanente; não estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser deslocada sem todos os sentidos por nossa fantasia, porém existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural [386d/e]. 3

O argumento

de Sócrates apresenta uma defesa da impossibilidade de se conceber a

nomeação sem a suposição de essências estáveis, às quais os nomes imitam e correspondem [413a-c]. Ao caracterizar-se a falsidade como uma referência errada ao nomeado (como chamar Crátilo pelo nome Hermógenes), estaria pressuposto que aquilo que nomeamos permanece idêntico a si, independente da nomeação. Desse modo, a estabilidade ontológica (do ser), expressa pelo princípio de identidade, é apresentada como pressuposta à nomeação, condição de possibilidade à efetivação de sua característica essencial, a possibilidade de ser verdadeira ou falsa4. A estabilidade da nomeação estaria ancorada na estabilidade do nomeado. Essa forma de argumentação “transcendental” é o caminho por meio do qual Platão transita da análise da linguagem para a ontologia ou para os pressupostos fundamentais da teoria do conhecimento. O princípio de identidade é defendido como condição de possibilidade do discurso, sem o qual sua característica mais primordial (mais prosaica, poder-se-ia dizer), seria inconcebível. Estabelecido, então, o realismo e a existência de essências independentes da linguagem como condição de possibilidade do discurso, como pretende Platão, uma conseqüência necessária e fundamental à sua análise é a conclusão de que a atribuição dos nomes às coisas se caracterizam como um interpretação ou tese sobre as coisas nomeadas, e podem ser certas ou erradas, verdadeiras ou falsas. Os nomes passam a ser apresentados como “instrumentos” que nos informam a natureza ou essência da coisa nomeada e sua adequação pode ser determinada pelo sucesso na informação destas essências: O nome é instrumento para informar a respeito das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da teia. (Crát., 388b-c). Desta concepção resulta, ainda, que nem todos os homens têm capacidade para estabelecer os nomes das coisas, na medida em que esta atribuição pressupõe o conhecimento de suas essências. O responsável pela nomeação será chamado por Sócrates de legislador (nomoteta) [388e], e a escolha dos nomes por este legislador deve ser avaliada (para sabermos se é verdadeira ou falsa) a partir do saber de quem usa as palavras, o dialético (o filósofo, que interroga e responde) [390c-d] – que, deste modo, dirige e julga o legislador.

Essência e aparência do nome Não por acaso, Crátilo (e Antístenes, a quem sua tese remontaria) são “acusados” de recusar o princípio de identidade. O tema é retomado no final do diálogo, quando Sócrates recusa a doutrina do fluxo.

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A conclusão de Sócrates é, portanto, no sentido de recusar que os nomes sejam simples convenções: eles não são atribuídos “de acordo com a fantasia” (389c), pelo contrário, têm “certa justeza” (391b): o nosso legislador deverá saber formar com os sons e as sílabas o nome por natureza apropriado para cada objeto, compondo todos os objetos e aplicando-os com os olhos sempre fixos no que é o nome em si, caso queira ser tido na conta de verdadeiro criador de nomes [389d]. Já é clara, por este comentário, que a alternativa de Platão se funda em uma distinção entre, de um lado, a forma lógica do nome (que consiste em distinguir as coisas “conforme sejam constituídas” [388b], ou “o nome em si” [389d]), e de outro a forma material do signo a ele associado, “os sons e as sílabas” [389d] com os quais se formam os nomes. Assim podemos entender, por exemplo, a afirmação de que o nome natural não se confunde com sons e sílabas, de que é expresso, e portanto, anterior ao signo [412c, 390e]. Neste sentido, letras não importam, desde que seja mantida a essência [393d e 389d], ou, afirmando de forma mais evidente a distinção entre o signo e o que se chama aqui de forma lógica do nome, letras são a aparência do nome [394a-b]. Nomear de forma adequada consiste em recortar o mundo “segundo a natureza” [387a]. Ao nome cabe capturar a essência do nomeado5, ele deve fazer ver a natureza do objeto designado [422d]. Não haveria porque supor que uma simples convenção seja capaz de fazê-lo

As etimologias de Sócrates e a estrutura da linguagem Um pedido de Hermógenes de que Sócrates apresente exemplos de como cada coisa teria seu nome natural dá início a uma nova parte do diálogo, marcada por sua ironia e sarcasmo, e é o pretexto para que se prepare a recusa, também, da concepção de Crátilo. Já na caracterização do caráter não-convencional dos nomes Platão diferencia-se e distancia-se do naturalismo sustentado por Crátilo. Sócrates apresenta um grande número de etimologias, dizendo-se “inspirado pelas musas de Eutífron” (cf. 396d-e, 400a), muitas delas profundamente marcadas por ironias, e, algumas delas são absolutamente fantasiosas, e tratadas com descrédito pelo próprio Platão.

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"É a essência do objeto que o nome deve imitar pelas letras e sílabas” (423e).

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Há duas maneiras de interpretar esses nomes [Dionísio e Afrodite], uma séria e outra jocosa. A respeito da séria, informa-te com outra pessoa; mas sobre a jocosa, nada me impede de manifestar-me; os próprios deuses são brincalhões [406b-c]. A ironia é clara. O problema comumente abordado pela crítica consiste em identificar a que ela se refere. A construção das etimologias por Sócrates é aproximada, a cada momento, de uma imagem da nomeação por poetas6, da inspiração das musas, dos oráculos, dos sacerdotes, todos eles, direta ou indiretamente ironizados pela inspiração de Sócrates. Ainda assim, essa análise etimológica de Platão desempenha um papel central na defesa de duas teses fundamentais à argumentação e à concepção de linguagem apresentadas no texto. Em primeiro lugar, evidencia-se por meio das etimologias que, na medida em que o nome é estabelecido por um legislador, ele expressa a sua concepção de cada coisa, sua ontologia, e também que essas coisas já seriam o que são antes da nomeação. Desta forma, o nome passa a ser concebido como uma tese sobre o ser (418a). No caso das etimologias do grego apresentadas por Platão no Crátilo, o que se revela é que este legislador sustentaria a doutrina do fluxo, de Heráclito [401d-e, 402a, 411 b-c, 413a-b]. Esta afirmação é indissociável da possibilidade de que existam nomes verdadeiros e nomes falsos, pois só assim as escolhas do legislador podem ser consideradas adequadas ou não. A segunda tese estabelecida a partir das etimologias expostas por Sócrates é a de que a explicação da significação dos nomes a partir de outros nomes deve ter um fim, para evitar uma regressão ao infinito. Sócrates conclui a partir desta análise que se deve distinguir entre os nomes derivados

de outros nomes e os nomes primitivos, que não podem derivar sua

significação do interior da própria linguagem, não são explicáveis por nenhum outro nome [422a; cf 416a]: Os nomes examinados até aqui são so derivados e compostos. Para interpretá-los deve-se remontar necessariamente aos nomes primitivos dos quais eles provêm7. O problema que se apresenta, e que abre todo um novo domínio, no qual será travado o debate de Sócrates com Crátilo, consiste em compreender como são conhecidas e estabelecidas as significações dos nomes primitivos. Este modelo de nomeação impõe a necessidade de uma referência exterior aos nomes como condição de última instância à sua significação. A São citados, em particular, Homero e Hesíodo (Crát. 391d, 393b, 394e, 396d-e, 397e, 406b-c, 410e). Méridier, pág. 10; “Si l’on ignore en qui consiste la justesse des noms primitifs, il est impossible de reconnaître celle des dérivés ; l’on se condamnera, alors, à ne dire que des sornettes (426a-b) ».

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significação da linguagem pressuporia o realismo ontológico. Qual é, então, a relação entre os nomes (primitivos) e as coisas por eles nomeadas?. A resposta de Sócrates, antecipando as teses que sustenta no debate com Crátilo, é de que os nomes primitivos imitam a natureza das coisas (423a) de um modo diferente da música e pintura (423b): imitam a essência, tornam presente a sua natureza (423e). A própria forma do questionamento socrático, que recusa a possibilidade de uso significativo da palavra como qualificação sem que se indique o significado do conceito, já faria o significado derivado depender de um outro termo, anterior a ele, como no caso de chamar a algo de justo pressupõe-se saber o que é a justiça.

A recusa do realismo de Crátilo A crítica a Hermógenes não resulta, como vimos, no acordo com a tese de Crátilo sobre a nomeação: também esta tese resultaria em não ser possível dizer o falso (o não ser). Crátilo concorda com a argumentação de Sócrates em sua explicação da correção do nome como sendo a correta apresentação da constituição da coisa (428e) e de sua finalidade como sendo a instrução. Entretanto, sua concepção da relação entre o nome e o ser o impede de aceitar a possibilidade de que os responsáveis pela atribuição dos nomes, os legisladores, venham a errar (429b). Seu argumento consiste em caracterizar a significação do discurso a partir de uma identidade com o ser: De que modo dizendo alguém o que diz, poderá dizer o que não é? Dizer algo falso não será dizer o que não é? (429d-e). Segundo Crátilo, para poder ser chamado de nome, um som ou sinal deve manter uma relação de identidade com a coisa nomeada. Em decorrência disto, deixa de haver a possibilidade de uma representação aproximada daquilo que se nomeia: ou o nome apresenta o nomeado, ou não apresenta nada, reduzindo-se à aparência de um nome, a um ruído, carente de sentido. Afinal, o que poderia ser um nome de nada? Na medida em que seu conceito de nomeação pressupõe a exatidão na representação, para Crátilo ou dizemos os nomes verdadeiros, ou não dizemos nada. Analogamente, o discurso que não diz o ser não diz nada. Deste modo, só há nomes verdadeiros, e não há a possibilidade da falsidade ou da mentira. Também não é possível, a partir desta concepção da nomeação como uma relação de identidade entre nome e nomeado, que se distinga entre nomes primitivos e derivados, como Crátilo afirma 7

expressamente (433d): a relação de nomeação é imediata, não podendo ser concebida por intermédio de outros nomes. Afirma-se, assim, em decorrência, a impossibilidade do discurso falso, e “que seja absolutamente impossível mentir” (429d), resultado idêntico ao obtido nas objeções a Hermógenes, mas agora por uma outro caminho argumentativo e associados às concepções de Antístenes e Heráclito. A identificação entre nome e coisa nomeada possibilitaria a Crátilo a transição do domínio da análise dos nomes para o conhecimento das próprias coisas, transitando para um outro domínio as conclusões sobre a significação no domínio da linguagem. O conhecimento estabelece-se por meio da análise da linguagem (das palavras), concebida como um duplo do ser. Sou de parecer, Sócrates, de que os nomes instruem, sendo-nos lícito afirmar com toda a simplicidade que quem conhece as palavras conhece também as coisas (425d). A argumentação de Sócrates avança no caminho inverso àquele observado na contraposição à concepção de Hermógenes. Trata-se, agora, de investigar a diferença entre linguagem e ser que possibilita à primeira, sem deixar de representar o ser quando verdadeira, poder também comportar um discurso falso significativo – como entendemos ocorrer no discurso cotidiano. A alternativa insistentemente apresentada por Sócrates parte da aproximação da representação por meio da linguagem com a representação pictórica, a figuração, que nos apresentaria um modelo para compreender a relação de nomeação. Os nomes primitivos poderão ser, assim, bons ou maus, e o legislador pode ser avaliado por suas escolhas. O argumento parte da afirmação da necessidade da diferença entre nome e nomeado no caso da linguagem, em que a representação identifica as qualidades dos objetos. Não sendo assim, no caso de uma identidade estrita entre ambos, como supõe Crátilo em sua concepção, não seria possível distinguir o nome do nomeado, deixando de haver representação, e, portanto, nomeação, estabelecendo-se, em seu lugar, uma duplicidade (que se revela, ao final, absolutamente sem utilidade). Pelo contrário, a representação deve ser diferente da coisa representada (434a). Se fossem postos juntos dois objetos diferentes: Crátilo e a imagem de Crátilo, e uma divindade não imitasse apenas a tua figura e tua cor, como fazem os pintores, mas formasse todas as entranhas iguais às tuas, emprestando-lhes o mesmo grau de ductibilidade e calor, além de movimento, alma e raciocínio, tal como há em ti; em uma palavra: tudo exatamente como és, e colocasse ao teu lado essa duplicata de ti mesmo: tratar-se-ia de Crátilo e uma imagem de Crátilo, ou de dois Crátilos? (432b-c). 8

Torna-se, assim, possível caracterizar a verdade como uma relação adequada de correspondência entre nome e nomeado (430d). O modelo da figuração pictórica esclarece que não seja necessária uma fidelidade estrita entre nome e nomeado, e que não exista um único meio de representação, de tal modo que pequenas variações na forma da representação não sejam relevantes, recusando-se a exigência de exatidão apresentada por Crátilo. Trata-se de contrapor um outro critério de verdade àquele de Crátilo: conservar a imagem fundamental (433a), dentro de certa margem de variações, e não apresentar a própria coisa. Esta margem, claramente observada no caso de contrapormos deferentes línguas, todas elas significativas, ou de observarmos no interior de uma mesma língua a variação que certos vocábulos observam ao longo do tempo, estabelece-se por meio do hábito ou convenção, que legitima uma identidade entre dessemelhantes. Curiosamente, encontramos a convenção, misturada ao projeto de representar a essência das coisas, como condição de possibilidade do discurso cotidiano, segundo Sócrates o concebe no Crátilo. Trata-se de buscar uma representação “tão semelhante quanto possível”, sabendo-se que a dessemelhança lhe é essencial. O critério de Crátilo, que exige a exatidão do nome, de tal modo que, caso seja alterada uma letra, ele simplesmente não estará escrito, é aceita por Sócrates para o campo da matemática, entretanto, revela-se excessiva no caso da nomeação: a imagem, que serve de modelo para o nome, é qualitativa, revelando-se impossível atender à exigência de Crátilo. Sendo o nome primitivo uma tentativa de figuração daquilo que nomeia, da perspectiva desenvolvida por Sócrates, reencontramos a concepção já defendida perante Hermógenes de que o legislador, aquele que primeiro estabelece os nomes, o faz segundo sua concepção do que sejam as coisas, de modo que o nome pode ser caracterizado como uma tese sobre o ser, sobre o que se nomeia. Esta concepção pode ser inteiramente falsa, e Sócrates supõe que efetivamente seja. A argumentação de Sócrates procura, por vários caminhos, reduzir ao absurdo a hipótese da identidade entre linguagem e ser defendida por Crátilo, seja pela impossibilidade de conceber a partir dela o discurso falso e a variedade de línguas e formas de nomear, seja pela impossibilidade sequer de que se fale em representação por meio da linguagem. A afirmação da semelhança (mimese) como meio através do qual o nome primitivo relaciona-se com aquilo que por ele é nomeado seria, então, uma condição para que se conceba a possibilidade de representação através da linguagem.

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A concepção apresentada por Sócrates possibilita o abandono da “adesão” eleata entre ser e dizer. Como explicar a existência de diferentes possibilidades de representação do mesmo objeto? Ao lado da semelhança, Sócrates é obrigado a colocar um certo grau de convenção, caracterizando a representação pela linguagem a partir da semelhança e da convenção: a oposição de Sócrates tanto à afirmação da verdade universal dos nomes a partir do convencionalismo, quanto à impossibilidade absoluta de sua falsidade, a partir do naturalismo de Crátilo, levam-no a afirmar uma tese intermediária, em parte naturalista, em parte convencionalista, como condição à possibilidade do discurso falso. A estratégia de Platão para analisar a relação entre o discurso( e o ser (representado tanto por Sócrates quanto pelo Estrangeiro de Eléia) será a de procurar alternativas que introduzam uma fissura, uma distância entre ambos (linguagem e ser), a qual possibilitaria a complexidade do discurso cotidiano e a enunciação da falsidade, de tal modo que o logos, apesar de capaz de dizer o ser, não é seu duplo: diz também o falso. O conceito elaborado para tanto é o de imitação (mimesis). Isto não ocorrerá sem importantes conseqüências para a ontologia e para a concepção de conhecimento em Platão.

Linguagem e conhecimento Tal qual Crátilo, Sócrates derivará de sua análise da relação entre linguagem e ser um conjunto de conclusões sobre o conhecimento. Em primeiro lugar ele recusa a afirmação de Crátilo de que quem conhece o nome conhece a coisa. Sendo a verdade do nome primitivo estabelecida a partir da correspondência deste àquilo que nomeia, é necessário supor-se um conhecimento das coisas que não seja mediado pelas palavras, mas que, pelo contrário, seja medida da correção da própria escolha do nome. É, assim, necessário supor a possibilidade de que se conheça as coisas sem os nomes e, mais do que isto, de que este conhecimento direto seja preferido e mais belo. Estabelecido o conhecimento adequado e direto das coisas como pressuposto à nomeação, fica evidente a necessidade de que se conceba ao trabalho do legislador, que estabeleceu os nomes, como uma expressão de sua concepção sobre o ser. Sócrates retoma a afirmação de que este supunha que quase tudo se achava em movimento, apesar de contradizer-se ao supor que algumas coisas mantêm-se em repouso, e transita para uma recusa da doutrina do fluxo a partir de

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sua análise da linguagem e do conhecimento. Seu argumento consistirá em mostrar a incompatibilidade entre a concepção do fluxo e o conhecimento e a significação por meio da linguagem, de tal forma que a recusa do fluxo e a afirmação de essências estáveis seja um pressuposto ao conhecimento e este, por sua vez, um pressuposto à significação por meio da linguagem. O conhecimento direto seria um pressuposto à própria significação.

Os fundamentos da lógica Platão contrapõe-se, então, às duas teses supostamente contrárias, de Hermógenes e Crátilo, a partir da indicação de que partilham do mesmo equívoco – a identificação entre ser e dizer – e de que são igualmente incapazes de explicar a possibilidade do discurso falso, possibilidade de que Sócrates investida as condições. Ambos afirmam a aderência total de palavra e ser, e são obrigados a afirmar que o ser é incomunicável e o erro ou mentira é impossível. Encontramos no Crátilo a formulação, em toda a sua complexidade, do debate sobre a relação entre linguagem e mundo – sobre a forma geral da proposição e seu mecanismo de significação. O que se evidencia por esse percurso é o lugar central do debate sobre o discurso na constituição da reflexão filosófica. A partir dele Platão pretende fundar sua contraposição à sofística e seu distanciamento em relação à ontologia de Heráclito, bem como sua tese (epistemológica) de que a doutrina do fluxo resulta a impossibilidade do conhecimento. Parte das concepções do Crátilo serão abandonadas no Sofista, texto final de Platão sobre o tema, mas o núcleo desse debate, que marcará a tradição filosófica ocidental, já está ali apresentado.

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