Ontologia das coisas jurídicas

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Ontologia das coisas jurídicas1

Isso de que devemos estudar as normas muito confundiu os juristas. Normas estão sempre lá, em seu mundo normativo, com suas regras de dedução deontológica sempre nos impondo, nos proibindo, nos permitindo. Mas impondo algo? Proibindo algo? Permitindo o quê? Coisas não fazem parte do nosso objeto sacralizado de estudo – apenas as condutas, as regas de conduta. Condutas vazias, ao leu, condutas em abstrato – como os juristas adoram dizer – ou ainda pior, condutas em tese, mas jamais “coisas”. Afinal, normas não são coisas. No mundo dos juristas pode-se jogar vôlei sem bola, sem rede, sem time – mas nunca sem árbitro.

A ação dos antigos

Mas os antigos... ah, os antigos não pensavam como nós. Eles não conseguiam ver na conduta – na ação – um algo autônomo. E não nos enganemos, até porque a etimologia não deixa mentir: a actio romana é uma ação, uma conduta. Por isso ela não se separava do direito que se via exigido em juízo: a actio romana era a ação do direito, era colocar o direito em ação. E pensar que os romanos possuíam bem definida a concepção de direito subjetivo parece mais arriscado que a ideia de que os romanos iam em juízo lutar pela sua potestas (pensando em uma relação contratual, por exemplo) ou por seu status (pensando em uma relação familiar, por exemplo). Ao menos os romanos sabiam que o exercício judicial do poder possuía uma conexão profunda com o exercício real e quotidiano do poder ou de uma faculdade. A nossa visão contemporânea do processo e do direito de ação foi sutilmente introduzida em nosso imaginário e não percebemos o quanto ela dialoga com a própria metafísica da modernidade: o direito de ação abstrato – que enxerga o processo como um instrumento – é um direito subjetivo dos que lutam pelo direito, dos homens de bem que se levantam toda manhã para questionar seus tributos no judiciário. O direito de ação subjetivo é um ativo nas mãos do homem moderno.

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Publicado em http://justificando.com/2016/07/14/ontologia-das-coisas-juridicas/ em 15 de julho de 2016.

O direito de ação abstrato é, pois, uma abstração no sentido mais puro do termo: cria um processo como instrumento e, portanto, como fator a ser considerado na produção, nos custos, nas probabilidades de ganhos e perdas. Assim, a instrumentalidade do processo se separa das relações quotidianas de poder e de manutenção de status, sendo muitas vezes utilizadas para reproduzir essas mesmas relações com a tutela de legitimidade que somente a jurisdição pode oferecer (afinal, juízes são imparciais e somente atuam se provocados).

A ação moderna

O processo moderno tanto não foi criado para atender à realidade das massas que todas as demandas em massa ainda geram respostas formatadas em tese a serem reproduzidas, tecnicamente, em massa – fazendo com que a decisão judicial perca a sua aura de justiça. A fé depositada no processo – a de que ele é independente do mundo, criando o seu próprio, encerrado nos autos, com sua verdade própria, material ou formal, e toda a narrativa em torno do direito processual – apenas orientou gerações de monges juristas a escolherem os mantras que vão seguir. Seus mantras, as normas, viram verdadeiros produtos expostos em prateleiras (códigos) que orientam sempre e apenas condutas em tese. À execução cabe converter as normas em abstrato em condutas reais. Lembremos do caso Pinheirinho para visualizar exatamente como ocorre essa conversão. No momento que ação passou a significar qualquer outra coisa que não uma ação vivida – mas um direito abstrato ao processo – as normas ganharam o mundo.

Normas e suas Coisas

Enquanto normas mandarem no mundo, esqueceremos que o mundo é feito de mundo. Casas, bichos, sapatos, desenhos, frutas, gentes e coisas e mais coisas. Mas coisas não precisam ser apenas coisas simples, coisas materiais – jarros. A linguagem nos dá a dica: quando não sabemos explicar o que é uma empresa, uma prisão cautelar, um dissídio... podemos dizer, com conforto, que é uma coisa. Enquanto confundirmos a empresa com a regulação normativa da empresa, desviaremos o olhar do mundo e olharemos apenas para um reflexo opaco. Narciso não se apaixonou por si mesmo, mas por seu reflexo.

A dedicação dos juristas às normas empresariais é tempo que eles deixam de dedicar à empresa real. E isso apesar de a empresa somente existir enquanto um objeto jurídico – não existe empresa sem contrato e sem propriedade. Empresas são coisas, sim, mas coisas jurídicas Também o são prisões. Prisões não são apenas períodos nem muito menos locais de execução de uma pena em abstrato: prisões são coisas jurídicas, criadas pelo direito de punir. E empresas e prisões inundam nosso mundo, dão a ele e dele tiram sentido. Mudam nossas vidas, nossa linguagem, organizam nossos desejos, marcam nossas histórias com marcas (sejam marcas patenteadas ou marcas de bala). Podemos pensar as coisas jurídicas em termos de institutos – sim. Isso é importante para não descontextualizarmos os institutos jurídicos das grandes instituições de que fazem parte. Mas permanece uma diferença. Existem coisas jurídicas: empresa-coisa; prisão-coisa; sindicato-coisa, e assim por diante.

Coisidade

Pensar coisas jurídicas é pensar sua coisidade, ou seja, sua capacidade de integrar nossas vidas e não apenas de ser um objeto posto e analisável. Afinal, não apenas nascemos em um mundo que não escolhemos, aprendemos uma língua que não escolhemos e somos moldados por essas nãoescolhas: somos também moldados por coisas jurídicas que nos circundam desde sempre. A materialidade das coisas jurídicas é a mesma materialidade da linguagem e com ela se estabelece um infinito paralelo. Podemos pensar a morfologia da coisa jurídica, a sua “natureza jurídica”, que nada mais é que sua não natureza, sua criação, sua instituição, sua história e sua cultura. Podemos pensar a sintaxe das coisas jurídicas, que são as regulamentações, o ponto de confluência das normas – típico trabalho advocatício. É o raciocínio tipicamente utilizado para responder a perguntas como: o que preciso fazer para abrir uma empresa? Quais são meus direitos quando compro um carro? Quais são os riscos de uma determinada operação? Quais são minhas chances de ganhar uma causa? Podemos pensar a semântica das coisas jurídicas e expandir seu sentido ao estabelecer (por diferenciações) seu sentido econômico, seu sentido político, seu sentido moral e assim por diante. Mas acima de tudo, precisamos falar – assim como precisamos viver imersos na realidade das coisas jurídicas.

Viver nas coisas jurídicas significa tanto presenciar e conhecer suas vertentes claras e conhecidas, as da lei e das normas inequívocas, como presenciar e conhecer o obscurantismo da lei vivida e dos conflitos normativos, dos problemas não antecipados e das soluções inovadoras ou retrógradas.

As coisas e sua justiça

A justiça não está nas coisas. A justiça não é. Porque as coisas são e isso gera um certo imobilismo – a justiça “é” da ordem das coisas que surgem e das coisas que desaparecem (já Anaximandro, pai dos filósofos, e Salomão, pai dos sábios, diziam isso). O que é perene e impregna as coisas é a injustiça. Esta é tão material quanto as coisas: empresa injusta, sindicato injusto, prisão injusta. Coisas precisam deixar de ser ou passar a uma nova existência para serem justas – e aqui entram as normas. As normas carregam em si o poder de reconhecer que as coisas são de um jeito mas podem – e devem – ser de uma outra forma. Normas transformam um anão realidade em uma possibilidade (uma obrigação, uma proibição, uma opção). Normas devem ser o caminho da justiça e isso implica destruir e reconstruir e desconstruir tudo muitas vezes. Por isso as normas começam na política – elas são a negociação do futuro. Mas as normas existem apenas em função das coisas jurídicas, das propriedades, dos contratos, das empresas, das prisões, das famílias, dos casamentos, das eleições, das autarquias. Por isso os juristas, os estudiosos das coisas jurídicas, não apenas estudam seus objetos, mas com eles convivem e são os que mais entendem de normas, apesar de seu limitadíssimo poder em controlar sua produção. Ser um jurista, parece, não é mais que isso, fazer, a cada dia, uma reflexão do próprio mundo e não apenas o seu reflexo. Ser justo, parece, não é mais que isso, fazer, a cada dia, as coisas andarem mais perto da justiça, levando-as a ser aquilo que ainda não são.

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