Ontologia e ciência

July 23, 2017 | Autor: Jonas Arenhart | Categoria: Filosofía, Filosofia Analitica, Ontologia, Filosofia da Ciência
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Tradução portuguesa de “Ontological Frameworks for Scientific Theories”, publicado em Foundations of Science 17, pp.339-356, 2012.

Ontologia e Ciência Resumo: Neste trabalho discutiremos a relação entre dois sentidos da palavra ontologia: um deles, que denominamos “tradicional”, estuda as diversas categorias ontológicas e as diferentes possibilidades de ontologias ao assumirmos diferentes categorias como básicas. Outro sentido, que denominamos “naturalizado”, busca primariamente em nossas teorias científicas informações sobre aquilo que há. Estes dois sentidos, aparentemente afastados, colocam a questão sobre como relacionar a investigação puramente filosófica do primeiro com a investigação cientificamente orientada do segundo. Discutiremos esta relação e argumentaremos também que lógicas distintas da clássica podem estar envolvidas na representação de determinadas categorias ontológicas na formulação de teorias científicas, ou no tratamento adequado dos objetos sobre os quais falam estas teorias. Concluímos com o exemplo da mecânica quântica, argumentando que esta teoria pode ser vista como podendo estar comprometida com pelo menos dois tipos bastante distintos de ontologia, e exemplifica as discussões desenvolvidas durante o trabalho. Palavras-chave: ontologia; categorias ontológicas; lógica; mecânica quântica; subdeterminação. 1. Introdução Há muito tempo que duas tendências aparentemente conflitantes vem se desenvolvendo na filosofia contemporânea, principalmente em sua vertente chamada “analítica”: por um lado, vemos um crescente interesse em questões metafísicas que poderiam em épocas atrás ser consideradas como confinadas exclusivamente ao período medieval, questões que se consideravam por algum tempo mortas e enterradas, mas que estão agora, neste pós-positivismo lógico, com fôlego renovado. Exemplos deste tipo de questões tratam da identidade pessoal através do tempo, do livre arbítrio, da causalidade, da natureza do tempo e do espaço, e das modalidades. Por outro lado, com o crescente sucesso da ciência nos últimos séculos e sua inevitável influência em quase todas as esferas da vida humana, temos que também os filósofos, e em grande parte aqueles interessados em questões de metafísica, voltam-se para a ciência e buscam fazer com que suas investigações, no pior dos casos, não entrem em conflito com as últimas descobertas de nossas melhores teorias científicas. Mas dado este quadro da situação atual, podemos garantir que a filosofia feita atualmente, e principalmente aquela de cunho estritamente metafísico, convive pacificamente com a ciência atual? Que tipo de atitude devemos ter diante de um conflito entre nossas investigações em metafísica e nossas melhores teorias científicas? Devemos sustentar que a argumentação filosófica coerente é um critério suficiente para a aceitação de uma teoria filosófica, independentemente do que ocorre na investigação científica? Se a resposta a esta pergunta for afirmativa, então, se alguma teoria científica, como a entendemos atualmente, não está de acordo com nossas especulações, podemos confiantemente afirmar que melhor será esperar pela próxima geração de teorias científicas, possivelmente mais afinada com nossa metafísica? Ou devemos tomar uma atitude de tendência mais naturalista e aceitar que a ciência, se não nos

fornece razões definitivas em favor de uma posição metafísica, pelo menos nos dá as melhores razões que temos atualmente para acreditarmos razoavelmente em algum tipo de posição e rejeitar outras? Neste caso, diante de um conflito, deveríamos abandonar nossas pretensões metafísicas, ou talvez, nem mesmo começar a especular sem ter um olho já voltado para a ciência? Ambas as possibilidades esboçadas no parágrafo anterior, a nosso ver, são demasiado radicais. Especular com as costas voltadas para a ciência atual pode nos levar a extremos indesejáveis, como aqueles que foram responsáveis por lançar a metafísica em seu período de esquecimento e ostracismo. Por outro lado, se nos lançarmos simplesmente ao estudo de teorias científicas, acabaremos cegos para os problemas especificamente filosóficos, aqueles que mais interessam aos filósofos e que fazem uso de muitos conceitos que são muitas vezes pressupostos pela própria atividade científica (ou até mesmo por qualquer atividade conceitual) e que merecem uma análise crítica do tipo fornecido pela investigação filosófica. Deste modo, a verdade, como em muitos casos, pode estar no meio termo, nem concedendo todo o campo para a metafísica, nem deixando que a ciência tome todo o espaço, permitindo uma mútua troca de informações que pode ser útil para o próprio desenvolvimento de uma metafísica “cientificamente informada”, um campo especificamente filosófico de pesquisa. Neste trabalho, argumentaremos em favor de tal concepção ao apresentarmos um possível esquema das relações entre investigação conceitual filosófica e sua inspiração oriunda das ciências empíricas. Acreditamos que seja possível assegurar um campo de trabalho ao filósofo que possa ser cientificamente informado e ainda assim não recair em um naturalismo extremado, que equipara filosofia legítima com atividade científica. Isso não significa que ou a ciência ou a metafísica tomarão a dianteira ditando as regras, mas que ambas trocarão informações mutuamente, de modo que por um lado, vemos a metafísica como aquela disciplina que assegurará as bases conceituais mais gerais para a ciência, enquanto que nossas teorias científicas, por sua vez, atualizarão as bases conceituais fornecidas pela metafísica. Assim, acreditamos que a metafísica poderá garantir seu espaço como um campo de investigação autônomo sem deixar de se beneficiar da valiosa contribuição que pode advir das ciências naturais. Trata-se de um primeiro passo em direção de uma teoria acerca da relação entre metafísica e investigação factual. Com isto não estamos afirmando que a metafísica apenas será legítima enquanto se pretender relacionada de algum modo com a investigação científica, mas antes que, se desejar estar relacionada com esta investigação (o que pode concernir apenas uma parte da investigação caindo sob o título “metafísica”, como parece ser o caso), então devemos procurar explicitar o modo como esta relação poderia ocorrer. Trataremos aqui não da metafísica em geral, mas apenas daquela parte chamada de ontologia, entendida aqui como concernindo o estudo daquilo que há. Em linhas gerais, nossa proposta será de que a ontologia pode ser vista com uma dupla tarefa: por um lado, em uma primeira linha de investigação que lembra seu sentido mais tradicional, buscará estudar as diferentes possibilidades de categorias ontológicas legítimas, os traços mais gerais daquilo que pode existir, sendo que todas as diferentes possibilidades devem ser investigadas (neste aspecto, somos inspirados por Lowe [1998], [2011]). Neste tipo de investigação, por exemplo, a ontologia estará envolvida com a possibilidade, por exemplo, de ontologias comprometidas apenas com universais, reduzindo os particulares a feixes de propriedades, ontologias comprometidas com outros tipos de categorias como tropos, espécies (ou tipos), entre outros. Em um segundo sentido, a ontologia é tomada em seu aspecto naturalizado, no qual são investigados os tipos de envolvimento que nossas teorias científicas possuem com relação às categorias

fornecidas pela investigação no sentido anteriormente mencionado. Assim, por exemplo, podemos estar interessados, como muitos filósofos atualmente estão, em estudar a possibilidade de associar a mecânica quântica não-relativista com uma ontologia contendo apenas propriedades e relações (ver Muller e Saunders [2008]). Neste caso, estaríamos relacionando com a mecânica quântica uma ontologia comprometida com apenas uma categoria ontológica, a dos universais, e buscando, através do aparato conceitual da teoria, dar plausibilidade a esta tese. Outra possibilidade consiste em se tentar associar com a teoria quântica uma ontologia envolvendo substratos, no sentido de Locke, mais conhecido na literatura atual pelo seu nome em língua inglesa: bare particular (ver Moreland [1998]). Trata-se de possibilidades a serem investigadas, sobre as quais teremos mais a dizer adiante. Argumentaremos também que as diversas possibilidades conceituais investigadas pela ontologia em seu sentido tradicional poderão estar comprometidas com categorias que envolvam uma necessidade de se utilizar uma linguagem e uma lógica distinta da clássica para serem adequadamente representadas. Como se sabe, a lógica clássica (por simplicidade, assumimos que se trata da lógica clássica de primeira ordem com identidade) está comprometida com teses de grande peso ontológico, como por exemplo, que os objetos possuem uma espécie de núcleo imutável ao qual atribuímos propriedades, que a identidade pode ser aplicada universalmente, que não se podem predicar propriedades contraditórias de um mesmo objeto, entre outras (ver da Costa [2008] pp. 141-154). No entanto, para tomar apenas este último caso como referência, se ficar claro que uma ontologia de objetos contraditórios é possível, como argumentam alguns, e se desejarmos argumentar que estes conceitos podem ser vistos como sendo exemplificados em alguma teoria científica (em alguma formalização da teoria ingênua de conjuntos de Cantor, talvez? Ver da Costa [2002]), então, certamente a lógica com a qual tratamos deste tipo de objetos deverá ser distinta da clássica, que não tolera contradições (a menos que se deseje trabalhar em uma teoria trivial, como aconteceria no caso da lógica clássica na presença de contradições). Assim, nossa proposta envolve três eixos distintos de investigação: (i) ontologia em seu sentido clássico, de uma investigação conceitual de possibilidades de distintos esquemas de categorias ontológicas, (ii) ontologia em um sentido naturalizado, relacionado com o primeiro, no qual as categorias fornecidas por aquela investigação são utilizadas para se dar conta da ontologia associada com uma teoria científica, e (iii) o estudo da lógica que poderá comportar os tipos de entidades apontados como adequados segundo a etapa (i). Para ilustrar nossa proposta, como já deve estar claro pela breve discussão apresentada acima, trataremos do caso da mecânica quântica nãorelativista. Esta teoria serve como um interessante modelo para nossos propósitos por ser compatível com diferentes ontologias no sentido (i) acima e, além disso, por não nos permitir decidir, apenas considerando os recursos desta teoria, qual destas ontologias é a mais adequada. Esta situação, chamada de Segunda Tese da Subdeterminação, trata do modo como a própria metafísica, no caso, a ontologia, é subdeterminada por uma teoria científica, ou seja, a teoria não nos permite decidir com que tipo de ontologia ela está comprometida (para mais detalhes sobre esta discussão, ver French e Krause [2006] cap. 4, French [2009], Muller [2008]). Além disso, como veremos brevemente, esta teoria já possui diferentes sistemas de lógica que reclamam para si a representação de algumas das diversas formas de ontologia que a teoria pode assumir. 2. Dois sentidos para ontologia

Metafísica e ontologia são dois termos de arte em filosofia que, apesar de tanto tempo de uso e investigações, não são fáceis de definir precisamente. Em certo sentido operacional, conseguimos classificar um filósofo ou um trabalho como metafísico ou não, como tratando de temas pertinentes à ontologia ou à outra área da filosofia e, a menos que estejamos interessados em expor precisamente do que se trata cada uma delas, este tipo de conhecimento serve para todos os propósitos práticos. Como estamos interessados em nos restringir neste trabalho apenas ao que diz respeito à ontologia, e não a toda a área que atualmente se compreende pelo termo de metafísica, convém começar dizendo algumas palavras sobre o assunto, para evitar equívocos e malentendidos no decorrer do trabalho. Começamos notando que algumas vezes, principalmente entre os filósofos de língua inglesa, costuma-se identificar ontologia e metafísica (por exemplo, French [2009]). Esta identificação é conveniente quando se deseja falar da “metafísica associada a uma teoria”, ou mesmo quando se fala da subdeterminação da metafísica pela física, como indicamos acima. Em geral, nestes contextos, fica claro que estamos tratando de determinar a chamada “mobília do mundo”, e não de assuntos metafísicos mais afastados desta linha de problemas. No entanto, para nossos propósitos, será conveniente distinguir estes termos, e consideraremos aqui a ontologia como um dos vários ramos da metafísica, não coincidindo, portanto, com ela. Este tipo de abordagem está mais de acordo com o fato de que alguns problemas considerados problemas de metafísica, como o livre arbítrio ou a investigação acerca da natureza do tempo, por exemplo, não se enquadram naturalmente no tipo de investigação que comumente se considera ontológica, mas são certamente investigações em metafísica. Vista como um ramo da metafísica, a ontologia tem um papel privilegiado no entender de muitos filósofos atualmente, que a consideram como o ramo central da metafísica (ver a introdução em Lowe [1998]). Em geral, nestes casos, a investigação ontológica é vista como o estudo daquilo que há, das características mais gerais do ser, e das categorias mais gerais com as quais podemos classificar aquilo que existe. Neste sentido, a ontologia estará preocupada com o estudo das chamadas “categorias ontológicas”, os modos mais gerais de se classificar aquilo que existe, menos geral, apenas, do que a categoria do próprio ser (ver van Inwagen [2010] para uma exposição geral). Trata-se de determinarmos se existem universais, particulares, eventos, estados de coisas, entre muitos outros, e argumentar a favor ou contra se assumir alguma ou algumas destas categorias em nossa ontologia. Também, trata-se de estudar as relações entre estas categorias, por exemplo, se os particulares concretos podem ser definidos através de universais (ou reduzidos a universais), se podemos dispensar estados de coisas e utilizar apenas universais e particulares, etc. No entanto, há outro sentido em que este termo, “ontologia”, é utilizado atualmente, que também reclama para si o estudo acerca daquilo que há, mas que não se identifica de maneira simples com o estudo de ontologia conforme enunciado acima. Trata-se do estudo de ontologias (note o plural) relativamente a determinadas teorias, preferencialmente teorias científicas, mas, a princípio, não há nada que necessariamente limite a investigação apenas a elas (aqui, conforme discutimos na introdução, estamos interessados primariamente nas teorias científicas). Ou seja, neste caso trata-se de investigar aquilo que existe ou pode existir de acordo com determinada teoria. Para distinguir entre os dois tipos de estudo de ontologia, o primeiro tomado em sentido absoluto, o segundo em sentido relativo, sempre tratando do mobiliário do mundo módulo alguma teoria, designaremos o primeiro pelo termo ontologia em seu sentido tradicional, e designaremos o segundo por ontologia em seu sentido naturalizado,

deixando claro seu caráter relativo a teorias científicas, sem, no entanto, excluir teorias formais, como as matemáticas. Como deve ser notado, este segundo tipo de estudo ontológico está diretamente associado ao nome de W. V. Quine (por exemplo, em seu clássico “Sobre o que há”, em Quine [1964]). Foi ele um dos principais responsáveis pela re-introdução da ontologia na ordem do dia dos filósofos analíticos, provendo tanto uma grande parte do programa de pesquisa envolvido com o ressurgimento deste campo quanto os principais métodos a serem utilizados e critérios de rigor a serem satisfeitos ao se conduzir este tipo de investigação (ver a discussão em Chateaubriand [2003]). Um dos aspectos centrais do legado de Quine ao estudo de ontologia no sentido naturalizado é seu famoso critério de compromisso ontológico, que busca determinar com que tipo de entidades uma teoria está ontologicamente comprometida. Falando por alto, uma teoria está comprometida com determinado tipo de entidades às quais as variáveis ligadas da linguagem da teoria devem se referir para que as suas afirmações sejam verdadeiras, ou seja, com aquelas entidades que devem estar no domínio de interpretação da teoria para que as afirmações da teoria sejam verdadeiras. Para se proceder à aplicação deste critério, claro, a teoria deve estar escrita em uma linguagem que Quine chamava de “regimentada” (mais sobre isto adiante), na qual a forma das sentenças é explicitada claramente. Assim, por exemplo, uma teoria que tenha entre suas sentenças verdadeiras a fórmula “(x)(x é um cachorro)” teria que ter pelo menos um cachorro em sua ontologia, e assim estaria comprometida com este tipo de objetos. A primeira diferença entre estas abordagens repousa claramente no fato de que enquanto a primeira (tradicional) não possui restrições de aplicação, pretende tratar da estrutura geral daquilo que há de modo universal, a segunda abordagem (naturalista) deve sempre ser relativa a uma teoria. No entanto, como podemos investigar aquilo que existe efetivamente se estamos restritos apenas a uma teoria, e se diferentes teorias nos dão indicações completamente diferentes sobre o tipo de objetos que podemos considerar como existindo, e até mesmo que uma teoria pode ser entendida como comprometida com diferentes tipos de ontologias (entendida no sentido naturalista,)? Isto implica que as duas abordagens não são compatíveis, e que se trata, afinal, da mesma palavra sendo utilizada para estudos completamente divergentes? Bem, apesar de serem distintos, o primeiro passo para se perceber que estes dois tipos de investigação podem se auxiliar mutuamente consiste em se aceitar que a ontologia tomada em seu sentido naturalizado não implica a tese mais forte de que somente existe aquilo com que se comprometem nossas teorias científicas, e notarmos que a ontologia em sentido tradicional estuda as diferentes possibilidades, sem, no entanto, estar necessariamente comprometida com a defesa de que apenas um dos diversos esquemas possíveis deve ser aceito. Neste caso, podemos vislumbrar uma posição que busque compatibilizar os dois tipos de investigação: no seu emprego tradicional, a ontologia nos fornece um estudo a priori daquilo que pode existir, das categorias mais gerais do ser, investigando quais dentre elas são possíveis, enquanto que a ontologia no seu sentido naturalizado busca estabelecer a relação destas categorias com a investigação do mundo empírico, desenvolvida através das teorias científicas, com aquilo que acreditamos que existe de fato módulo uma teoria específica. O estudo da ou das ontologias associadas a uma teoria possui um caráter local e específico, em oposição ao estudo da ontologia no sentido tradicional, que se pretende universal, ou seja, uma possível configuração de categorias ontológicas pretende ser aplicável a tudo o que há, não apenas aos objetos com os quais determinada teoria nos compromete. A relação entre os dois estudos, como dissemos, pode nos ajudar a compreender melhor alguns aspectos de investigações em ontologia realizados apenas

em uma destas esferas. Um exemplo simples pode advir do caso mencionado anteriormente, em que uma teoria se compromete com cachorros. Isso significa que deve existir uma espécie “cachorro”, um universal do tipo platônico sobre o qual todos os cães caem, e assim, portanto, um objeto abstrato? Deste modo, estaríamos nos comprometendo com algo abstrato, um universal? Notemos que a sentença “(x)(x é um cachorro)” não fala nada sobre objetos abstratos, nem a teoria da qual ela é uma sentença precisa expressar isto de alguma forma. No entanto, do fato de nos comprometermos com a existência de cães não se segue que necessariamente deva existir um universal instanciado por todos os cães, talvez o realismo platônico não seja necessário, ou desejamos estudar a possibilidade de nos comprometermos com alguma forma de nominalismo no caso da teoria em questão. Como já dissemos, o tipo de compromisso ontológico que estamos assumindo, no sentido de que tipo de categoria podemos utilizar para classificar os objetos deste tipo, os cães, não está completamente expresso na teoria, não é algo que podemos determinar apenas com a investigação empírica empregada nesta teoria. Assim, apelamos para a investigação no sentido tradicional para revelarmos nossos compromissos neste sentido (ou, para investigarmos as diferentes possibilidades). Um caso análogo diz respeito, por exemplo, a alguma teoria que se comprometa com números. Isto implica necessariamente que a teoria nos diz que estamos comprometidos com objetos abstratos? Como estamos argumentando, este tipo de comprometimento não se segue da teoria, ela não expressa este compromisso explicitamente, isto dependerá de convicções ontológicas oriundas de outro tipo de investigação, que demanda, por sua vez, argumentação de ordem não empírica. Assim, há aqueles itens com os quais uma teoria se compromete explicitamente, através de suas sentenças, e aqueles com os quais ela está de certo modo implicitamente comprometida, que dependem de considerações metateóricas, e que aqui estamos tomando como sendo providas pela investigação da ontologia no sentido tradicional (esta distinção é inspirada em distinção análoga apresentada em Chateaubriand [2003] pp. 50-52). Adotando este modo de se compreender o comprometimento ontológico, em dois níveis, podemos vislumbrar mais adequadamente a relação entre uma multiplicidade de teorias científicas e seus diversos mobiliários para um mesmo mundo. Uma teoria como a mecânica clássica, por exemplo, pode ser vista como comprometida com objetos particulares, que por sua vez, podem ser entendidos de pelo menos dois modos: podemos aceitar que estes objetos se reduzem a feixes de propriedades e relações, ou podemos assumir alguma forma de bare particulars e propriedades. No primeiro caso, apenas propriedades e relações (e uma hipótese de impenetrabilidade) precisam ser assumidos, de modo que a teoria está comprometida apenas com este tipo de objetos. Neste caso, a teoria contribui nos informando que sempre podemos distinguir uma trajetória própria para cada objeto, e com isto, juntamente com a impenetrabilidade, garantimos que apenas propriedades e relações bastam para individuar os particulares. Podemos também, alternativamente, assumir que cada objeto particular possui um componente que lhe é próprio, o bare particular ou substrato que lhe confere individualidade, e que, além disso, é o portador de suas propriedades, entendidas como universais (ou como tropos, o que seria ainda outra possibilidade). Neste caso, a ontologia no sentido tradicional está comprometida com duas categorias de itens, particulares e universais. Nenhuma das duas opções encontra obstáculos na teoria. Como se argumenta amplamente em French e Krause [2006] cap. 2, a teoria por si só não decide qual a ontologia que lhe estará associada, havendo assim uma espécie de subdeterminação da ontologia pela teoria física. Decidir qual das duas possibilidades é a mais razoável ou mais desejável, caso sejamos tentados a argumentar neste sentido,

será algo que dependerá de argumentação oriunda de outra esfera, a ontologia em sentido clássico. Outra vantagem da abordagem que estamos propondo aqui consiste em tornar consistente a abordagem da ontologia em seu sentido tradicional, universal, com o estudo naturalizado, mais local, relativo aos diversos modos como as diferentes teorias representam o mundo. Notemos que mesmo que no seu sentido tradicional a ontologia sempre expressou o desejo de se apresentar como única, no seu sentido relativo, diversas teorias apresentarão compromisso com diferentes tipos de objetos. Podemos seguir aqui uma proposta apresentada por Rohrlich [1999], segundo a qual diferentes teorias nos fornecem descrições de diferentes aspectos da realidade. Podemos examinar, segundo Rohrlich, o mesmo objeto a partir de diferentes níveis cognitivos, cada um deles tratando de uma escala de comprimento, de tempo e de energia. Cada uma destas teorias, ainda, utiliza seus próprios métodos, conceitos e procedimentos experimentais. Assim, por exemplo, seguindo Rohrlich podemos considerar um gato, digamos, como um objeto da biologia, da química, da física, da física de partículas, e assim por diante. A princípio, a menos que adotemos uma tese reducionista muito forte, não haverá sentido em se distinguir uma dentre estas várias descrições do gato como sendo a mais adequada, ou ainda tomarmos uma destas descrições como sendo mais próxima da verdade. Deste modo, de acordo com o nível cognitivo que adotarmos, estaremos nos comprometendo com células, moléculas, átomos, e assim por diante. A divisão em níveis cognitivos, sem assumir o reducionismo, nos permite evitar um problema de compromisso implícito que se apresentava para a ontologia de Quine: se aceitamos que estamos comprometidos com a existência de um gato, como o biólogo aparentemente está, então, estamos comprometidos com a existência de cada um dos componentes do gato, de células, de moléculas, de átomos, de elétrons, de cordas... Certamente, alguns destes itens não estão implicados pela biologia, e assim, devem ser tratados por outras teorias de níveis cognitivos diferentes. Cada teoria poderá assumir apenas aquilo de que necessita para mobiliar o mundo. Claro, a possibilidade fica aberta para uma defesa de alguma forma de reducionismo, supondo que alguma teoria é mais fundamental, ou que até, naquilo que seria um otimismo exacerbado, uma teoria verdadeira final, à qual todas as outras se reduziriam, e que segundo este modo de ver, nos forneceria então a ontologia final, em ambos os sentidos do termo. A distinção proposta por Rohrlich ainda possui um interessante efeito neste mesmo sentido. Se considerássemos a adoção de uma abordagem naturalista a ontologia sem este tipo de qualificação, então, aparentemente o estudo da ontologia deveria estar restrito apenas a uma teoria, aquela que nos daria pretensamente a descrição última da realidade, até o momento atual. Seguindo esta abordagem, seria despropositado estudar ontologia relativamente a diversas teorias científicas, já que muitas vezes, pelo menos no modo usual de se compreendê-las, estas teorias são propostas justamente para ampliar o escopo de teorias mais antigas, ou servem para ultrapassar limitações umas das outras. Neste caso, seria razoável se argumentar que teorias mais recentes nos dão melhores descrições do mobiliário último do mundo. Assim, por exemplo, não teria sentido pretender estudar a ontologia associada à mecânica clássica, já que esta foi superada pela relatividade geral. Do mesmo modo, não se teria interesse em estudar a ontologia da mecânica quântica ortodoxa, pois esta, aparentemente, foi superada pela teoria quântica de campos. Aqui, “superada” indica que as teorias que superaram suas antecessoras nos fornecem uma descrição mais acurada dos fenômenos. Se considerarmos a proposta de Rohrlich, temos então que o interesse filosófico em se estudar as ontologias associadas com diferentes teorias é mantido, e uma das principais motivações para se sustentar que este tipo de interesse é legítimo pode ser percebido ao

notarmos que mesmo em um ramo da ciência como a física, ainda se aplica a mecânica clássica, mecânica quântica ortodoxa e teoria quântica de campos em diversas situações, dependendo de considerações pragmáticas, mesmo sabendo que a princípio, a teoria quântica de campos engloba estas teorias como casos limites. 3. Lógicas Examinamos a partir de agora o terceiro aspecto de nossa proposta: o papel desempenhado pela lógica tanto na explicitação de compromissos ontológicos no sentido naturalizado quanto na representação adequada das categorias ontológicas utilizadas. Para começar, distinguimos dois aspectos distintos que estão em jogo no que diz respeito à lógica, o aspecto sintático-lingüístico, no qual podemos seguir (com as devidas flexibilizações apresentadas adiante) o próprio Quine, que propunha que as teorias devem estar formuladas em linguagens regimentadas, ou seja, linguagens de primeira ordem com vocabulário bem definido e regras de formação rigorosas, sem constantes individuais nem símbolos para operações, e com apenas um número finito de símbolos de predicados. O segundo aspecto que deve ser enfatizado, e ao qual daremos também a devida atenção, diz respeito à metalinguagem na qual a semântica para este cálculo (ou seja, a teoria regimentada) será desenvolvida. Este aspecto é tão importante quanto o primeiro, pois é na metalinguagem que “vivem”, de certo modo, as entidades que compreenderão o domínio de interpretação das teorias, ou seja, suas ontologias (no sentido naturalizado, conforme apresentado acima). Começamos examinando o aspecto sintático. As restrições defendidas por Quine às linguagens aceitáveis, com um vocabulário austero, devem ser relaxadas se desejamos que nosso estudo possa compreender diversas possibilidades de categorias ontológicas. Quine, como é sabido, colocava estas exigências no vocabulário exatamente para limitar as possibilidades a opções econômicas, uma estratégia que, talvez, peca por limitar a gama de teorias que podem de fato ser assim analisadas e por excluir, por princípio, diversas possibilidades interessantes e em voga entre os estudiosos hoje. Além disso, a própria lógica clássica nos compromete com categorias ontológicas que poderíamos estar interessados em rejeitar, ou talvez, não assumir como primárias, mas apenas como derivadas de outras mais fundamentais. Conforme observado por da Costa (por exemplo, em da Costa [2008] pp. 141-154, e também especificamente com relação à identidade em French e Krause [2006] cap. 6), à lógica clássica está associada uma imagem idealizada de mundo, estática, na qual atribuímos propriedades a substâncias imutáveis. Assim, da Costa sugere que seria razoável relativizarmos o critério de compromisso ontológico proposto por Quine para englobar diferentes linguagens e lógicas. Deste modo, diferentes teorias poderão instanciar diferentes categorias ontológicas, e, até mesmo algumas que são proibidas pela lógica clássica, bastando para isto que se utilize uma lógica distinta da clássica como sua lógica subjacente. Para considerarmos as vantagens da flexibilização proposta por da Costa, não precisamos nem mesmo sair do âmbito da lógica dita clássica (apesar da evidente vagueza rondando qualquer definição de “lógica clássica”). Uma lógica clássica de segunda ordem, por exemplo, nos permitiria expressar compromisso com a existência de propriedades e relações. Mudando para o campo das lógicas não-clássicas, podemos ir ainda mais longe. Consideremos o caso de uma lógica paraconsistente de primeira ordem, por exemplo, que é, falando por alto, um sistema de lógica no qual contradições não levam necessariamente à trivialização do cálculo; complementando-se este cálculo com uma relação binária de pertinência, seríamos capazes de expressar compromisso

ontológico com objetos como o conjunto de Russell, e com objetos contraditórios em geral (ver estudo geral em da Costa, Krause e Bueno [2007]). Neste caso, conforme já argumentaram alguns filósofos, poder-se-ia desenvolver mais adequadamente uma ontologia fundamentada nas idéias de Meinong, que aceitava objetos contraditórios como o círculo quadrado (com as devidas restrições, claro, de que Meinong distinguia entre existência e subsistência. Ver discussão em van Inwagen [2010]). Claro, este tipo de ontologia não poderia ser desenvolvida no contexto da lógica clássica, e esta, em benefício do estudo das diversas possibilidades metafísicas, poderá ser substituída quando não for conveniente para o conjunto de categorias ontológicas que desejamos. Ainda, como a relação de pertinência e a linguagem de segunda ordem dos exemplos anteriores deve ter deixado claro, não nos restringiremos àquilo que Quine considerava como a lógica mais adequada, ou seja, a lógica de primeira ordem, aceitaremos linguagens de ordem superior e teorias de conjuntos, as chamadas “grandes lógicas” (segundo alguns, teorias de categorias são os sistemas adequados para expressarmos compromisso com uma ontologia de estruturas, o chamado realismo estrutural ontológico, mas o tema ainda é controverso devido ao fato de que a própria noção de estrutura em jogo neste caso não é intuitivamente clara o suficiente, ver French [2009]). Assim, a flexibilização proposta por da Costa é um primeiro passo para que diferentes possibilidades de ontologias, surgindo de diferentes categorias ontológicas, tenham, cada uma delas, um modo adequado de expressão. Uma ontologia admitindo objetos contraditórios (para citar apenas um exemplo), como muito já se argumentou, não poderia ser expressa adequadamente em uma lógica clássica (e em nenhuma lógica em que contradição e trivialidade sejam condições equivalentes). Conforme mencionamos anteriormente, além do aspecto sintático, há também um aspecto semântico, que trata de algumas características da metamatemática das teorias. Este aspecto é essencial, pois é na metalinguagem que determinamos o domínio de interpretação das teorias, e consequentemente, é aqui que entram os objetos com os quais está comprometida (ver a relação entre as linguagens e interpretações em Krause, Arenhart e Moraes [2011] e Arenhart e Moraes [2010]). Assim, em uma interpretação os objetos com os quais nos comprometemos na teoria estão dados em uma metalinguagem, que em geral é uma teoria de conjuntos, teoria de categorias ou até mesmo uma linguagem de ordem superior. Isso explica o fato simples de que uma teoria pode ter diversas ontologias associada a si, seus diversos modelos. O principal ponto a se levar em conta aqui é que as entidades que servirão de objetos para uma teoria são determinadas de acordo com os axiomas obedecidos pela metalinguagem. No entanto, novamente é importante estarmos atentos para o fato de que existem várias teorias de conjuntos distintas, não equivalentes entre si. Qual delas devemos utilizar? Em geral, o procedimento mais simples consiste em se empregar a teoria mais conhecida, aquela com que estamos mais familiarizados, que se trata da teoria de conjuntos de ZermeloFraenkel, mantida ao nível informal. No entanto, assim como ocorre com a lógica clássica, esta teoria (e de fato, todas as outras) traz consigo suas próprias restrições e hipóteses de teor ontológico, como por exemplo, obedecem ao princípio de não contradição, a identidade sempre se aplica, entre outros. Uma das dificuldades geradas por este tipo de procedimento é clara: se desejamos tratar de objetos que violam alguma das leis da lógica clássica, como por exemplo, objetos inconsistentes, envolvendo, por exemplo, conjuntos de Russell, teremos que, como a metalinguagem não contêm este tipo de objetos, então, não estaremos realmente nos comprometendo com estes objetos. Claro, mais do que isso deve ser compreendido: ao utilizarmos Zermelo-Fraenkel como metalinguagem, estaremos re-introduzindo a validade da lei de não-contradição para todos os objetos com os quais tratamos. Deste modo, através da metalinguagem re-

introduzimos exatamente aquelas propriedades que desejávamos restringir na formulação da linguagem e lógica utilizada como linguagem objeto. Um dos principais objetivos ao atribuirmos importância ao aspecto semântico origina-se, claro, em determinarmos como podemos impedir este tipo de situações. Este ponto pode ser esclarecido quando consideramos um sistema de lógica nãoclássica qualquer, principalmente no caso de sistemas ditos heterodoxos, ou seja, sistemas que violam alguma das leis da lógica clássica e buscam substituí-la em geral ou em determinado contexto. Nesses casos, devemos perceber que uma semântica formulada em uma teoria de conjuntos clássica, como Zermelo-Fraenkel, não será adequada de um ponto de vista filosófico. Esse ponto já foi discutido na literatura quando se leva em conta que desejamos, com estes sistemas, substituir a lógica clássica, nem que seja somente em alguns contextos. Nesses casos, a semântica para a lógica em questão deve estar de acordo com a motivação utilizada para se fundamentar a proposição de tal lógica, caso contrário, acabamos pressupondo a lógica clássica, e não podemos sustentar que a estamos substituindo (ver da Costa [2008], da Costa et. al. [1995]). Um exemplo simples de tal situação é a lógica intuicionista de BrouwerHeyting. Neste caso, a filosofia intuicionista, que está sempre presente no pano de fundo da formulação desta lógica, está comprometida, entre suas diversas teses de teor construtivista, com a restrição da validade da lei do terceiro excluído, por exemplo. No entanto, em uma semântica clássica para esta lógica, como a proposta por Kripke, por exemplo, utilizando a teoria de conjuntos ZF como metalinguagem, temos que a lei do terceiro excluído é assumida sem restrições, e assim, através da semântica, restauramos o compromisso com esta lei que desejávamos barrar com a própria formulação do sistema em questão. O mesmo ocorre com as lógicas relevantes. Segundo os proponentes destas lógicas, a lógica clássica deve ser substituída por algum sistema relevante, pois estes capturam melhor a noção de implicação lógica. No entanto, enquanto não fornecerem uma semântica baseada em uma teoria de conjuntos relevante, sua afirmação permanecerá infundada (para uma defesa desta lógica, ver Read [2006]). Como no caso da lógica intuicionista, o problema é que a metalinguagem clássica nos compromete exatamente com aquela lógica que desejávamos derrogar ao propormos a linguagem em questão, e assim, ao invés de a substituirmos, estamos pressupondo-a na formulação do sistema não-clássico em questão. A exigência de que um sistema de lógica não-clássica deva ter uma semântica formulada em uma metalinguagem adequada, que englobe de modo filosoficamente mais adequado seus compromissos, está encapsulado no Princípio de Consistência Semântica de von Weizsäcker-da Costa (ver Krause e Arenhart [2010], p. 10). Segundo este critério, a semântica para um sistema de lógica não-clássica deverá ser formulada na metalinguagem que se mostre a mais adequada para captar as categorias que desejamos empregar em nossa ontologia. Consequentemente, os objetos com os quais a teoria formulada tendo-se esta lógica como lógica subjacente irá se comprometer terão as características desejadas, e nos manteremos consistentes com as motivações que nos levaram a adotar uma lógica distinta da clássica para captá-las formalmente. Assim, evitamos a re-introdução, através da metalinguagem, daquelas propriedades que tentamos restringir ou violar na própria formulação da linguagem, sendo este um modo que consideramos, de um ponto de vista filosófico, mais aceitável de se formular a semântica de uma lógica e das teorias que nela se baseiam. Com isto, terminamos a exposição do terceiro membro do tripé sobre o qual se baseia nossa proposta de estudo da ontologia. Lembremos que havíamos proposto que, para que a ontologia seja tanto uma disciplina autônoma, com seu próprio campo de conhecimento, quanto para que ela esteja de alguma forma ligada à investigação

científica, poderíamos combinar três ingredientes: (i) aquilo que chamamos de ontologia em seu sentido tradicional, no qual é realizado o estudo de todas as possibilidades de categorias ontológicas, investigando inclusive as diversas maneiras em que uma categoria pode com mais proveito ser ontologicamente derivada de outra (ii) o estudo do que chamamos de ontologia em seu sentido naturalizado, que buscará compatibilizar as categorias ontológicas com a investigação empírica realizada pelas ciências, e (iii) o estudo da lógica subjacente à teoria em questão, ou, pelo menos, ao discurso sobre os objetos pretendidos pela teoria. Este último ramo deverá incluir, como apresentamos nesta seção, os aspectos sintáticos e semânticos, de modo que as categorias lógicas captem adequadamente as categorias ontológicas (mas que isto de fato ocorre não pode ser demonstrado matematicamente, claro). Nosso próximo objetivo é ilustrar esta discussão com um exemplo de uma teoria atual, a mecânica quântica não-relativista. Buscaremos ilustrar que esta teoria, através da relação entre os estudos em ontologia de acordo com os dois sentidos mencionados acima, pode ser vista como comprometida com pelo menos dois grandes tipos de ontologias: uma na qual os objetos tratados por ela são vistos como não-indivíduos, em um sentido que em breve deixaremos claro, e outra, na qual estes objetos podem ser vistos como indivíduos. Neste último caso, este termo (indivíduo) também deverá tomar um sentido específico, pois, ao que se argumenta, a própria teoria proíbe que algumas das diversas estratégias utilizadas para se caracterizar um indivíduo sejam empregadas neste caso. Vejamos. 4. Mecânica quântica não-relativista 4.1 Subdeterminação e indistinguibilidade Conforme discutimos brevemente anteriormente, a mecânica clássica manifesta uma forma de subdeterminação da ontologia, ao admitir pelo menos duas formas de ontologia de tal modo que não podemos, apenas com os recursos da teoria, decidir qual das duas deve ser adotada. As ontologias em questão tratam principalmente dos objetos particulares, de modo que podem ser vistos, no caso da mecânica clássica seja como feixes de propriedades, seja como objetos contendo um substrato e propriedades (ver French e Krause [2006] cap. 2). Outras possibilidades, claro, também podem ser investigadas. Até aqui, o espanto que pode surgir desta situação pode ser explicado por nossa tendência em estudar seja ontologia apenas em sentido naturalizado, e acharmos que uma teoria como a mecânica clássica deve ter uma ontologia não-problemática, ou por estudarmos ontologia apenas em seu sentido tradicional, e considerarmos que apenas uma das possibilidades deve ser o caso, independentemente do que nos diz a mecânica clássica. Em nossa abordagem, então, o fenômeno da subdeterminação pode ser visto em nova luz, como o resultado de ponderação metafísica balanceada por considerações de caráter específico da teoria em questão. No entanto, a mecânica quântica ortodoxa vai ainda mais longe, e nos mostra uma forma ainda mais forte de subdeterminação. Enquanto que na mecânica clássica a decisão entre as duas ontologias possíveis para a teoria deve restringir-se apenas ao modo como consideramos mais adequado individuar os objetos particulares, seja como feixes de propriedades, seja como substratos, na mecânica quântica o problema trata de decidir se devemos assumir que a ontologia associada à teoria, no que diz respeito aos particulares, é uma ontologia de indivíduos ou uma ontologia de objetos sem individualidade, os chamados nãoindivíduos. No centro desta situação está a indistinguibilidade das partículas quânticas e

o papel do chamado Postulado da Indistinguibilidade. Consideremos cada um deles brevemente, e vejamos como estão envolvidos nas disputas acerca da individuação, mesmo que sem todos os detalhes. Para começar com a noção de indistinguibilidade, é interessante observar que no que diz respeito às propriedades intrínsecas, ou seja, independentes do estado, como massa e carga elétrica, todas as partículas de um mesmo tipo, como os elétrons, são indiscerníveis, ou seja, partículas de um mesmo tipo possuem todas as propriedades independentes do estado em comum. O que podemos dizer do estado? Poderia ocorrer que duas partículas estivessem no mesmo estado, e assim, tivessem todas as propriedades dinâmicas em comum também? Na mecânica clássica, como mencionamos anteriormente, não é possível que esta situação ocorra, duas partículas sempre estarão em estado distintos e, além disso, podemos sempre seguir as suas trajetórias e, em diferentes momentos de tempo identificar a mesma partícula. O grande diferencial da mecânica quântica, aquele que contribuiu para promover a idéia de uma ontologia de não-indivíduos, é o fato de que, além de não termos mais trajetórias bem determinadas e contínuas, a representação de sistemas de múltiplas partículas é tal que muitas vezes não podemos atribuir um estado único para cada partícula individualmente (ou, pelo menos, não podemos fazê-lo de modo que cada partícula esteja em um estado distinto). Vamos considerar um caso simples de duas partículas, que vamos rotular 1 e 2. Os possíveis estados de cada uma destas partículas são vetores em espaços de Hilbert H1 e H2, respectivamente. O sistema conjunto é representado no produto vetorial H1  H2. Se {vi} e {uj} são conjuntos de vetores que expandem H1 e H2 respectivamente, então os vetores {vi  uj} geram o produto vetorial em questão. Para duas partículas indiscerníveis, ou seja, duas partículas do mesmo tipo, tomamos H1 = H2. A situação que nos interessa considerar então é se sempre podemos, em sentido análogo ao que ocorre na mecânica clássica, atribuir um estado distinto para 1 e 2. Na notação dos espaços de Hilbert que estamos considerando, devemos poder atribuir então para a partícula 1, por exemplo, um vetor v1, e para 2, um vetor u2, de modo que o estado do sistema composto pelas duas partículas seria v1  u2. Ainda considerando a analogia com o caso clássico, este estado seria distinto de v2  u1, ou seja, se trocarmos as partículas de estados, então o estado do sistema composto deveria ele também mudar. Qual é o problema com esta solução? Falando por alto, a dificuldade com os vetores v1  u2 e v2  u1 é que eles simplesmente não representam estados possíveis para sistemas quânticos (com uma ressalva importante que será considerada abaixo). Deixando-se de lado o caso de parapartículas, que são possibilidades teóricas sem evidência experimental atualmente, os dois únicos tipos de partículas encontrados na natureza, bósons e férmions, estão sempre em estados simétricos e anti-simétricos, respectivamente. Os estados mencionados anteriormente, capazes de distinguir entre as partículas, não apresentam nenhum destes tipos de simetria, e assim, não podem ser utilizados para representar estes tipos de partículas. Para bósons, os estados possíveis, neste caso são (i) v1  v2 (ambas em v) ou (ii) u1  u2 (ambas em u) ou (iii) 1\2(v1  u2 + v2  u1) (uma superposição de u e v). Para férmions, o único estado disponível é 1\2(v1  u2 – v2  u1). Estes quatro vetores geram H1  H2, mas não impedem que os vetores que não são do tipo adequado de simetria existam, eles apenas não são estados físicos possíveis. Mas o que nos garante isso? Que este é o caso nos é garantido pelo chamado Postulado da Indistinguibilidade. Segundo este postulado, grosso modo, ao permutarmos os rótulos das partículas, não há como distinguir entre os estados inicias, não permutados, dos estados finais, após a permutação, através de uma observação. Se representarmos os

observáveis O por operadores hermitianos O, e P são os operadores de permutação de rótulos nos estados, então podemos expressar este postulado mais formalmente do seguinte modo: para qualquer estado s e observável O, = = . Ou seja, ao permutarmos os rótulos, os valores esperados são os mesmo para o estado antes e depois da permutação. Muito já se escreveu sobre este postulado e sobre sua relação com as chamadas estatísticas quânticas (ver French e Krause [2006] cap. 4, e French e Rickles [2003]). No entanto, o que mais nos interessa aqui é o modo com pode ser entendido. Em uma primeira leitura, este postulado nos garante que os rótulos não possuem nenhum efeito, e que os estados obtidos devem ser tais que antes e depois das permutações os valores esperados para as grandezas físicas devem ser as mesmas (Bitbol denomina esta característica das partículas quânticas de impermutabilidade, ver Bitbol [1996], p. 316). Isto foi visto por muitos como implicando que as partículas, na teoria quântica, tinham perdido sua identidade, não poderiam mais ser consideradas como indivíduos (para a história relevante, ver French e Krause [2006] cap. 3). Tão comum era a adoção deste modo de ver as partículas quânticas como não-indivíduos, que esta posição foi batizada de Received View sobre a não-individualidade das partículas, a concepção recebida acerca da não-individualidade das partículas (ver French [1998]) Este comportamento está em clara oposição ao que ocorre no caso da mecânica clássica, em que, mesmo partilhando todas as propriedades intrínsecas em comum, a permutação de duas partículas dará origem a um estado distinto do original. Isto, claro, remete ao fato de que duas partículas, no caso clássico, no poderão partilhar todas as propriedades dinâmicas, o que pode ocorrer na mecânica quântica. Mas como podemos entender esta não-individualidade mais rigorosamente? O primeiro ponto a ser notado é que a noção de objetos particulares sem individualidade, neste caso, poderá figurar como uma nova categoria ontológica, ou poderá ser uma subcategoria da categoria de objetos, desde que a categoria de objetos não esteja comprometida com a noção de critérios de identidade. Estas restrições à identidade devem ser feitas neste caso, pois se acredita que não há nada, nenhuma questão de fato que nos permita identificar uma partícula, nomeá-la ou numerá-la, todos estes artifícios que funcionam para indivíduos deixam de fazer sentido para as partículas quânticas. Assim, as partículas violam de alguma forma as principais propriedades da relação de identidade, e a lógica que se utiliza para tratar delas deve, igualmente, fazer restrições à identidade. Estas, no entanto, são apenas as linhas gerais daquilo que se poderia chamar de uma metafísica da não-individualidade (ver também Krause [2010]). Mais estudos ainda devem ser realizados para se investigar precisamente a relação entre a impermutabilidade e a ausência de individualidade, e ainda, para se desenvolver uma ontologia envolvendo não-indivíduos e sua relação com os indivíduos, se alguma houver. Não entraremos aqui nos detalhes dos sistemas de lógica já desenvolvidos com o propósito de se acomodar não-indivíduos, mas nos limitaremos a mencionar que existem diversos sistemas para tais propósitos, tanto de lógica de ordem superior, como as lógicas de Schrödinger, quanto teoria de conjuntos, a chamada teoria de quaseconjuntos (ver French e Krause [2006] caps. 7 e 8). No entanto, a Received View não é a única opção de ontologia para a mecânica quântica. Recentemente tem-se argumentado que as partículas, apesar do Postulado da Indistinguibilidade e da impermutabilidade, podem sim ser consideradas como

indivíduos (ver French e Krause [2006] cap. 4). Esta posição pode ser defendida do seguinte modo: consideremos novamente o caso das partículas 1 e 2 acima, e os estados v1  u2 e v2  u1, que não respeitam o tipo adequado de simetria, ou seja, não são nem simétricas nem anti-simétricas. Como dissemos anteriormente, estes estados poderiam distinguir as partículas, mas os únicos tipos de partículas observadas até hoje na natureza, os bósons e férmions, não ocorrem nestes estados. O Postulado de Indistinguibilidade, no entanto, não proíbe este tipo de estados, eles simplesmente não ocorrem. Então, não poderíamos considerar este postulado como apenas restringindo o acesso das partículas a estes estados? Ou seja, não poderiam ocorrer que, pelo Postulado da Indistinguibilidade os observáveis devem sempre comutar com os operadores de permutação, e para que isto ocorra, os estados devem ser simétricos ou anti-simétricos, sem que, no entanto os estados não simetrizados sejam proibidos, eles simplesmente são inacessíveis às partículas. Assim, as partículas poderiam ser distinguidas, pelo menos por princípio, se estivessem nestes estados, mesmo que nunca estejam. Este tipo de argumento baseia-se na estrutura dos espaços de Hilbert utilizados para se representar os sistemas físicos estudados. Uma característica destes espaços, a existência de estados não simetrizados, é utilizada para que se fundamente uma possibilidade de ontologia de indivíduos. O primeiro desafio para esta posição é explicar o modo como podemos fundamentar a individualidade das partículas. Devemos notar que, ao obedecerem ao Postulado de Indistinguibilidade, elas devem de certa forma ser indistinguíveis, não podem ser distinguidas por nenhum observável. Ou seja, mesmo que possam ser a princípio distinguíveis, esta distinguibilidade deve estar fundamentada em algo distinto das propriedades dos subsistemas compondo o sistema em questão. Quais são as opções para uma ontologia de indivíduos neste caso? Aparentemente, devemos nos restringir a um princípio de individuação que permita a indistinguibilidade qualitativa, concedendo a possibilidade de diferença numérica. As principais teorias acerca de particulares tendo estas características são as teorias do substrato ou a adoção de alguma forma de essência primitiva (ver Adams [1979]). Estas duas formas de responder ao problema da individualidade postulam que, além das propriedades qualitativas, os particulares ainda possuem seja um substrato que não é uma propriedade e garante a individualidade, no caso da teoria dos substratos, seja uma essência individual, uma propriedade única a cada indivíduo que não conta como uma qualidade deste objeto. Em ambos os casos, dois objetos podem partilhar todas as qualidades, o que explica sua indistinguibilidade, mas seus substratos ou essências dão conta de sua diferença numérica. Notemos que se trata de duas ontologias distintas, uma delas postulando um substrato e propriedades, com pelo menos duas categorias, e outra postulando essências individuais e propriedades, de modo que a princípio, as essências poderiam ser propriedades, mas de algum tipo especial (para mais discussões acerca destas possibilidades relacionadas com a mecânica quântica, ver French [1998], French e Krause [2006]). 4.2 O que as partículas não poderiam ser Uma terceira opção dentre as teorias da individuação que trata da natureza dos particulares, a chamada teoria dos feixes, também pode ser considerada neste caso. Como vimos anteriormente, esta teoria pode ser utilizada para explicar a individualidade das partículas na mecânica clássica. Na teoria quântica, no entanto, o caso não é tão simples, e existem fortes argumentos propondo que as teorias de feixes simplesmente não funcionam para conferir individualidade às partículas da mecânica quântica. Claro,

por trás disso tudo estão o Postulado da Indistinguibilidade e o fenômeno da impermutabilidade por ele implicado. Vejamos brevemente qual é a dificuldade neste caso. Segundo uma teoria de feixes, um indivíduo é um feixe de propriedades. Como devemos entender a noção de feixes e a relação entre as propriedades de um indivíduo são problemas que não tocaremos aqui. O principal aspecto de uma teoria de feixes que nos interessa é que, para garantir a unicidade de cada feixe de propriedades, conforme exige o bom funcionamento de uma teoria de feixes, devemos adotar alguma forma do chamado Princípio da Identidade dos Indiscerníveis (PII), atribuído geralmente à Leibniz. Segundo este princípio, falando informalmente, se dois objetos são qualitativamente idênticos, ou seja, se partilham todas as mesmas propriedades, então, na verdade não são dois, mas apenas um e o mesmo. Este princípio nos garante exatamente aquilo que devemos evitar na mecânica quântica, segundo as discussões acima, ou seja, que a indistinguibilidade colapse na identidade. Como vimos, na teoria quântica, podem existir situações em que dois objetos numericamente distintos são indistinguíveis. No entanto, antes de partirmos para as conclusões, devemos notar que o termo “propriedades”, aparecendo na formulação de PII pode ter diferentes sentidos. Começamos com uma classificação, ao notarmos que, conforme restringimos o escopo das propriedades em PII, temos que este princípio pode ser escrito de pelo menos três formas diferentes: na primeira forma, mais fraca, PII1, dois objetos que possuem todas as mesmas propriedades e relações, incluindo relações espaço-temporais, são o mesmo; em PII2, excluímos as relações espaço-temporais, mas ainda permitimos relações que não sejam deste caráter; por fim em PII3, a forma mais forte do princípio, permitimos apenas propriedades monádicas. Tem-se argumentado muito que, para que uma teoria de feixes cumpra seu papel de individuar particulares, apenas PII3 deve ser considerado, ou seja, devemos garantir que dois objetos numericamente distintos não possuem nenhuma propriedade monádica em comum (ver discussão em Adams [1979]). Relações não deveriam ser permitidas, pois, em geral, já pressupõe os objetos que serão relacionados, e assim, não poderiam ser utilizadas para individuá-los. A grande dificuldade para um defensor de uma teoria de feixes é que a versão PII3 é incompatível até mesmo com a mecânica clássica, ele falha neste caso. Lembremos que foi preciso assumir uma hipótese de impenetrabilidade para adotar uma teoria de feixes naquela teoria. Para a mecânica quântica, a situação é ainda mais complicada. Nesta teoria, se identificarmos as propriedades dos sistemas com os operadores Hermitianos dos espaços de Hilbert que os representam, então, para partículas em estados simétricos e anti-simétricos, como é o caso dos bósons e férmions, por força do Postulado da Indistinguibilidade não poderemos distinguir duas partículas do mesmo tipo nem através relações, violando assim até mesmo PII1. Neste caso, sem PII não podemos garantir o funcionamento de uma teoria de feixes, e assim restam apenas as opções de substrato e essências individuais (ver French e Rickles [2003], French e Krause [2006] cap. 4). Deste modo, se a mecânica quântica não nos diz que tipo de ontologia está associado a ela, se trata de indivíduos ou não indivíduos, ela pelo menos nos diz que tipo de objetos não pode estar associado a ela. Aparentemente, uma ontologia de feixes não é compatível com a teoria, não se trata de uma opção possível. No entanto, recentemente estas conclusões foram desafiadas (ver, por exemplo, Muller e Saunders [2008], Muller [2008]). O cerne do argumento a favor de PII na mecânica quântica é que ele pode ser válido, mas apenas quando reconhecemos que a sua formulação pode ser enfraquecida. Não precisamos da força total de PII3, dizem os defensores do

princípio, podemos apelar para uma forma chamada de discernibilidade fraca: dois objetos 1 e 2 são fracamente discerníveis quando há uma relação R irreflexiva entre eles. Uma relação R é irreflexiva quando, para qualquer objeto x, não é o caso que xRx. Assim, relações de discernibilidade fraca podem nos ajudar a distinguir dois objetos “fracamente”, já que nenhum deles pode ter a relação consigo mesmo. Deste modo, garantimos a sua diferença e salvamos uma forma mais fraca de PII. Podemos estabelecer estas relações para partículas quânticas? Muller e Saunders [2008] argumentam que sim, a relação de “ter spin oposto a” é uma relação binária entre dois elétrons, por exemplo, e é irreflexiva (nenhum elétron pode ter spin oposto a si mesmo). Será que com isto se mostrou que os argumentos contra PII na mecânica quântica estão equivocados? Dificilmente, dizem os críticos. O problema com esta proposta é que ela envolve relações, e relações, como já dissemos, já pressupõe em geral os objetos relacionados. Assim, a abordagem da discernibilidade fraca foi rejeitada por muitos por ser circular, por já pressupor objetos individuados para então os colocar em uma relação irreflexiva. Notemos que, de fato, se a relação é irreflexiva, devemos já saber que se trata de dois objetos distintos, de modo que não podemos fundamentar a diferença dos objetos na relação irreflexiva em questão, esta diferença simplesmente já está pressuposta (ver também Ladyman e Bigaj [2010], Krause [2010a] para mais críticas). Assim, há um crescente consenso de que as tentativas de se utilizar discernibilidade fraca para se salvar PII tem em geral fracassado, e até mesmo que estão mal motivadas, diante do projeto mais amplo de se fornecer uma teoria de feixes. A subdeterminação, no entanto, permanece entre, por um lado, uma ontologia de indivíduos e por outro, uma ontologia de não-indivíduos. Como estamos argumentando, decidir entre estas opções envolve mais do que recurso apenas à teoria em questão, e aqui também a argumentação filosófica poderá mostrar seu peso, indicando a viabilidade de determinadas possibilidades e sua consistência com os fatos apresentados pela teoria. 5. Observações finais O fenômeno da subdeterminação da ontologia pelas teorias científicas, tanto no caso da mecânica clássica quanto no caso da mecânica quântica, nos mostra que há uma interessante relação entre o estudo de caráter puramente filosófico, da ontologia no sentido que denominamos tradicional, quanto no sentido que denominamos naturalista, voltado para a investigação científica. Por um lado, não podemos simplesmente “ler” nossa ontologia de determinadas teorias científicas, precisamos estar equipados de antemão com algumas categorias ontológicas para que possamos classificar adequadamente aquilo que nossas teorias dizem que existe. Por outro lado, como o caso da mecânica quântica indica, nem sempre determinadas categorias serão adequadas, e isto pode ser aprendido com o estudo rigoroso das teorias. Deste modo, os dois sentidos de ontologia se influenciam mutuamente. A proposta deste trabalho foi a de buscar esclarecer estas relações entre ontologia e teorias científicas. A distinção entre as duas formas de ontologia e suas distintas tarefas foi um passo importante para que a situação em casos de subdeterminação possa ser estudada com mais clareza. Além disso, permite que se mantenha a relevância da investigação propriamente filosófica, mesmo em contextos que atribuem grande peso às informações oriundas da pesquisa científica. O estudo de ontologia pode ser cientificamente informado, mas não é apenas isso, pois, como vimos, se ficarmos restritos apenas ao que nos diz uma teoria científica, em determinados

casos, não teremos uma única ontologia, mas várias. Nesta circunstância, o estudo de ontologia apenas em seu sentido naturalizado ficaria paralisado sem seu complemento que busca estudar todas as possibilidades. O estudo da ontologia em seu sentido tradicional, no entanto, poderia cometer equívocos ao não considerar as informações das teorias científicas, como é o caso da mecânica quântica com relação às teorias de feixes. Assim, acreditamos que damos um primeiro passo, por menor que seja, para o estabelecimento de um modo razoável de se compreender as relações entre a investigação a priori e as informações empíricas acerca da mobília do mundo. 6. Referências Adams, R. M., [1979], Primitive Thisness and Primitive Identity, The Journal of Philosophy, 76, no. 1, 1979. Arenhart, J.R.B., Moraes, F.T.F., [2010] Estruturas, Modelos e os Fundamentos da Abordagem Semântica, Principia, 14(1), pp. 15-30. Bitbol, M., [1996] Mécanique Quantique: Une Introduction Philosophique, Paris : Flammarion. Chateaubriand, O., [2003] Quine and Ontology, Principia, vol. 7(1-2), pp. 41-74. da Costa, N.C.A., [2002] Logic and Ontology, Principia vol. 6(2), pp. 279-298. da Costa, N. C. A., [2008] ‘Ensaio sobre os fundamentos da lógica’, São Paulo, Hucitec/Edusp, 3ª ed. da Costa, N.C.A., Bueno, O., Béziau, J-Y., [1995] ‘What is Semantics?’, Sorites, 3, pp. 43-47. da Costa, N. C. A., Krause, D. e Bueno, O., [2007] Paraconsistent Logic and Paraconsistency, in D. Jacquette, editor of the volume on Philosophy of Logic; D.M.Gabbay, P.Thagard and J.Woods (eds.), Philosophy of Logic, Elsevier, 2006, na série Handbook of the Philosophy of Science, v. 5, p. 655-781. French, S. [1998], ‘On the Withering Away of Physical Objects’ em E. Castellani (ed.), ‘Interpreting Bodies: Classical and Quantum Objects in Modern Physics’ Princeton, NJ: Princeton University Press, pp. 93-113. French, S. [2009] Metaphysical Underdetermination: Why Worry?, Synthese, disponível online. French, S., Krause, D., [2006] ‘Identity in Physics: A historical, philosophical and formal analysis’ Oxford: Oxford University Press. French, S., Rickles, D., [2003] ‘Understanding Permutation Symmetry’ em Brading, K., e Castellani, E., (eds.), ‘Symmetries in Physics: Philosophical Reflections’, Cambridge University Press, pp. 212-238. Krause, D. [2010], `The metaphysics of non-individuality’, in Krause, D. and Videira,

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