Ontologia sem espelhos

July 24, 2017 | Autor: Daniel Omar Perez | Categoria: Literature, Filosofía, Psicanálise
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ONTOLOGIA SEM ESPELHOS Ensaio sobre a realidade Descartes - Locke - Berkeley Kant - Freud

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Daniel Omar Perez Francisco Verardi Bocca Josiane Cristina Bocchi

EDITORA CRV Curitiba - Brasil 2014

Copyright © da Editora CRV Ltda. Editor-chefe: Railson Moura Diagramação e Capa: Editora CRV Arte da Capa: All Vectors

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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Ontologia sem espelhos: ensaio sobre a realidade Descartes - Locke - Berkeley - Kant - Freud / Daniel Omar Perez, Francisco Verardi Bocca, Josiane Cristina Bocchi. - 1. ed. - Curitiba, PR: CRV, 2014. 112p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8042-935-0

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1. Educação - Filosofia. 2. Sociologia educacional. I. Bocca, Francisco Verardi. II. Bocchi, Josiane Cristina. III. Título. 14-09190 CDD: 370.1 CDU: 37.01

Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004 2014 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV Tel.: (41) 3039-6418 www.editoracrv.com.br E-mail: [email protected]

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Prof. Dr. Leonel Severo Rocha (URI) Profª. Drª. Lourdes Helena da Silva (UFV) Profª. Drª. Josania Portela (UFPI) Profª. Drª. Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UNIR - RO) Prof. Dr. Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL - MG) Profª. Drª. Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFS) Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus (IFRO) Profª. Drª. Solange Helena Ximenes-Rocha (UFPA) Profª. Drª. Sydione Santos (UEPG PR) Prof. Dr. Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA) Profª. Drª. Tania Suely Azevedo Brasileiro (UNIR - RO)

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Profª. Drª. Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR - RO) Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Profª. Drª. Carlos Federico Dominguez Avila (UnB - DF) Profª. Drª. Carmen Tereza Velanga (UNIR - RO) Prof. Dr. Celso Conti (UFSCAR - SP) Profª. Drª. Gloria Fariñas León (Universidade de La Havana – Cuba) Prof. Dr. Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Prof. Dr. Guillermo Arias Beatón (Universidade de La Havana – Cuba) Prof. Dr. Joao Adalberto Campato Junior (FAP - SP) Prof. Dr. Jailson Alves dos Santos (UFRJ)

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Revisão: Gabriela dos Santos Franco Conselho Editorial:

Sumário

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PARTE 1 A LINGUAGEM DA REALIDADE............................................11 Um mundo inventado que inventa um sentido para si.............................................................11 De Borges à história da metafísica: em busca da realidade......................................................14 A leitura da realidade de Nietzsche...................................16 A leitura da realidade do tempo de Platão.........................19 A leitura do Real de Pascal...............................................20 O esquecimento como metáfora.......................................22 A realidade em metáforas..................................................25 A pergunta e a resposta sobre a realidade........................26 A penúltima versão sobre a realidade...............................26

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PROEMIO...................................................................................7 A pergunta pela Realidade..................................................7 O que é ontologia?..............................................................8

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PARTE II O SUJEITO DA REALIDADE..................................................29 Uma realidade moderna....................................................29 Meditações de Descartes sobre a realidade.....................30 A realidade de Berkeley entre a abstração e a linguagem...................................................34 A realidade de Locke.........................................................36 Contra a realidade de Locke.............................................37 A hipótese da matéria........................................................38 Kant contra o idealismo de Descartes e Berkeley........................................................44 A realidade e a loucura de Kant........................................46 Freud no final da modernidade..........................................48

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PARTE IV CONSTRUÇÃO INTRASUBJETIVA DO EU............................89 Do Eu como causa do mundo para o Eu ..........................89 como fronteira de diferentes mundos................................89 Inibição e realidade.........................................................103 Pensar a realidade..........................................................106

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CONCLUSIO A REFORMULAÇÃO DA PERGUNTA E O HORIZONTE DA ONTOLOGIA.............................................. 111

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REFERÊNCIAS......................................................................115 SOBRE OS AUTORES..........................................................119

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PARTE III O TESTE DA REALIDADE......................................................51 Do teste de realidade em Freud........................................51 Freud e o funcionamento da mente...................................54 Uma realidade desagradável.............................................56 A realidade e os primórdios da montagem de um aparelho................................................63 Estímulos e respostas em Freud.......................................68 A interpretação da consciência..........................................69 A realidade do narcisismo.................................................72 A realidade do amor..........................................................76 A realidade do juízo...........................................................80 Perguntas sobre a realidade.............................................86

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“Como alguém distraído na viagem, Segui por dois caminhos par a par. Fui com o mundo parte da paisagem; Comigo fui, sem ver nem recordar.

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Serei eu porque nada é impossível, Vários trazidos de outros mundos, e No mesmo ponto espacial sensível Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui?” Fernando Pessoa

A pergunta pela Realidade

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Chegado aqui, onde hoje estou, conheço Que sou diverso no que informe estou. No meu próprio caminho me atravesso. Não conheço quem fui no que hoje sou.

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O que é a realidade? Como uma pergunta desse tipo é possível? O objetivo deste livro é nos prepararmos para a interrogação acerca da realidade. Por isso, antes de responder e avançar positivamente preferimos nos deter e apontar para a própria pergunta. Assim sendo, ensaiamos a busca de alguns elementos das condições de possibilidade da sua formulação. Para alcançarmos o nosso objetivo desenvolvemos a apresentação do resultado da pesquisa em três abordagens e uma conclusão. Num primeiro enfoque do problema a tarefa se coloca na relação literatura-filosofia. A questão acerca do real aparece no plano da narrativa e do jogo da argumentação, isto é, da linguagem. Para isso usamos as ideias de Jorge Luis Borges e suas especulações sobre a realidade tanto nas ficções literárias quanto em relação à própria escrita filosófica. Numa segunda perspectiva o assunto é colocado em relação a quem pergunta e seu objeto. Por isso achamos pertinente usar alguns conceitos e dispositivos teóricos da filosofia moderna e suas objeções, especialmente em Descartes, Berkeley, Locke e Kant. No terceiro momento, indicamos o ponto no horizonte onde o fracasso das pressuposições anteriormente reveladas impulsiona a tentativa de uma nova formulação da pergunta pela realidade. O recurso da psicanáli-

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O que é ontologia?

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se se apresenta como a possibilidade de marcar o fim de uma época e abertura de uma nova pauta de trabalho. Ao final nos interrogamos o que é a realidade enquanto pergunta. Como uma pergunta desse tipo é possível? Nosso trabalho revela que a pergunta pela realidade supõe uma linguagem (isto é, um conjunto de conceitos, regras e argumentações) e um sujeito (desde onde se enuncia o interrogante). Linguagem articulada em conceitos e argumentos e Sujeito da enunciação se conformam num dispositivo teórico que possibilita a pergunta e a eventual resposta. Na avaliação da articulação conceitual que os filósofos nos propõem descobrimos dois elementos fundamentais: uma ficção originária e a pressuposição de interior/exterior. O recurso da ficção originária é geralmente algum tipo de postulado, axioma ou conceito que ordena todos os outros num dispositivo. A pressuposição de interior/exterior conforma o plano tomado como inquestionável. A partir dele é possível localizar sujeito e objeto, realidade e imaginação, percepção e alucinação e todas as relações de oposição ordenadas no dispositivo. Freud se defrontou com a fragilidade de algumas ficções originárias e propôs outras. Da mesma forma colocou em questão a geometria da superfície na qual se formula a pergunta e a tentativa de resposta sobre a realidade. Na avaliação do sujeito que enuncia a pergunta observamos que este se constrói em relação com o espaço que se supõe e as ficções conceituais que se propõem. Nesse sentido, Freud se vê forçado a repensar não só os conceitos e as relações de determinação causal, mas também a identidade do sujeito e o estatuto da relação interior/exterior. Sem indagarmos o dispositivo teórico que permite a pergunta e a resposta qualquer avanço em ontologia se revela arbitrário. Por isso, antes de responder à pergunta o que é a realidade? devemos observar suas condições de possibilidade: que tipo de ficções usamos para ordenar o campo conceitual, que tipo de relações de determinação causal fazemos funcionar entre os eventos, como pensamos a espacialidade e o tempo onde se localizam os elementos da nossa questão e qual é o lugar do sujeito da enunciação da pergunta e da resposta.

A ontologia é uma disciplina filosófica que pode ser definida como a ciência do ser. Abordar filosoficamente aquilo que é implica responder à pergunta: porque há algo e não nada? Quando se responde ao porquê desse algo se define o algo como algo determinado em geral. Esse algo determinado em geral é o que chamamos de realidade. O modo em que concebemos

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a determinação desse algo em geral se faz desde um lugar. Damos o nome de sujeito a este lugar desde onde perguntamos pela determinação em geral desse algo e estabelecemos o modo em que se concebe. Assim, podemos dizer que alguém enquanto sujeito com alguma linguagem se pergunta: o que é a realidade?

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PARTE 11

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O escritor Jorge Luiz Borges relata em um dos seus contos que uma vez recebeu um pacote com selo e certificação desde o Brasil em Buenos Aires. O pacote continha um livro enigmático e providencial que parecia responder exatamente a uma série de interrogações surgida em uma conversa anterior com seu amigo Bioy Casares. O texto e a conversa retomavam uma velha história sobre a realidade e a imaginação, o verdadeiro e o ficcional. O livro procedente de terras brasileiras era A first Encyclopedia of Tlön. Volume XI sem indicação de data nem lugar de edição. Na falaz obra se tratava da recapitulação da história, geografia, arquitetura, língua, ciência e metafísica de um lugar desconhecido, pelo menos para o público em geral. Esse lugar era Tlön Oqbar Urbis Tertius, primeiro, aparentemente um país perto do Iraque, depois, supostamente um planeta inteiro. A descrição relata um mundo inverossímil. Dentre as diferentes matérias que se descrevem na obra a metafísica é a que mais chamou à nossa atenção. Para termos alguma ideia do que acontecia em Tlön Borges escreveu algumas linhas comparativas com relação à nossa tradição:

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Um mundo inventado que inventa um sentido para si

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A LINGUAGEM DA REALIDADE

Hume notou para sempre que os argumentos de Berkeley não admitem a menor réplica e não causam a menor convicção. Essa sentença é totalmente verdadeira na Terra, mas absolutamente falsa em Tlön. As nações nesse planeta são – congenitamente ‒ idealistas. Sua linguagem e as derivações da sua linguagem – a religião, as letras, a metafísica − pressupõem o idealismo. (BORGES, 1994, vol. 1, p. 235)

Essa comparação entre empirismo e idealismo permitiu a Borges localizar em nosso universo bibliográfico algumas considerações referentes à concepção da realidade de Tlön Oqbar Urbis Tertius, por exemplo:

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Todas as citações desta parte seguirão o modelo autor, data, página, sendo a data a da edição utilizada.

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[...] os homens desse planeta concebem o universo como uma série de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo sucessivo no tempo. [...] A percepção de uma fumaça no horizonte, depois um campo queimado e depois o cigarro meio apagado que produziu a queima é considerada um exemplo de associação de ideias. [...] Todo estado mental é irredutível: o mero fato de nomeá-lo – id est, de classificá-lo − implica falsear. (BORGES, 1994, vol. 1, p. 236)

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Estas ponderações conduzem a entender a filosofia, isto é, o exercício do filosofar de Tlön Oqbar Urbis Tertius, de um modo peculiar: Toda filosofia seria “de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als Ob”. Isso se sustentaria em um modo particular de entender a linguagem e sua sintaxe, os princípios lógicos e suas derivações. Assim o escritor continua:

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Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade nem mesmo a verossimilhança: buscam o espanto. Julgam que a metafísica é uma rama da literatura fantástica. Sabem que um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles. (BORGES, 1994, vol. 1, p. 236)

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As filosofias do como se (Als ob) de Tlön não cessam de proliferar em sistemas onde sua lógica é de hierarquização e subordinação, já que um elemento do universo se coloca por cima de todos os outros e os explica. Assim, pode se negar o tempo em uma escola metafísica e em outra afirmar que todo o tempo já aconteceu sem perdas nem danos para qualquer um dos dois modelos explicativos. O mais escandaloso de todos os sistemas de pensamento de Tlön teria sido, segundo Borges, o materialismo. Um defensor desse pensamento teria escrito a história das nove moedas para mostrar a evidência da existência das coisas independentemente das percepções. A história é a seguinte: Na terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Na quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas um tanto enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Na sexta-feira Z descobre três moedas no caminho. Na sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor da sua casa. O herege queria deduzir dessa história a realidade – id est a continuidade − das nove moedas recuperadas. (BORGES, 1994, vol. 1, p. 237)

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Borges conta que: Querendo mostrar que era lógico pensar que as moedas existiram em todos os tempos da história, e independentemente de quem as encontrara e que as primeiras moedas eram as mesmas que as do resultado das descobertas, o materialista foi duramente criticado.

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O motivo pelo qual esse fragmento e todo o anterior relato nos parece insólito não é outro que a naturalização da nossa linguagem, da nossa sintaxe e das nossas ideias metafísicas. O princípio de causalidade e a substantivação na nossa linguagem são tão cotidianos que apagam a sua própria história. Nessa naturalização confundimos as palavras com as coisas e o princípio de identidade da lógica com um princípio de criação das coisas no universo. Assim, perdemos de vista a origem e mudança dos conceitos metafísicos que articulam o horizonte de linguagem no qual se constrói o relato da realidade. Essa linguagem se torna tão natural que nos permite esquecê-la em seu status constitutivo e contar desde ela uma história como se fosse possível existir sem ela, concebendo-a apenas como instrumento de comunicação. O texto de Borges nos coloca na situação de instabilidade que provoca o estranhamento que experimentamos com a disfunção dos conceitos no interior da nossa própria linguagem. Uma vez superado o efeito espirituoso, o relato de Borges nos devolve a imagem de nosso próprio relato como num espelho. E se a realidade dos fatos fosse organizada sob outros conceitos acaso não produziria outra realidade? E se os conceitos com os quais lidamos para agir diante de um fenômeno real fossem outros não estaríamos acaso diante de outra realidade? A pergunta mobiliza em Borges a possibilidade da sua própria literatura. Mas até onde esse exercício de perguntas e respostas conceituais, lógicas e argumentativas já não é um exercício filosófico que se interroga pela realidade? Borges nos faz suspeitar que Tlön Uqbar Orbis Tertius é aqui e seus habitantes somos nós. Da ficção do relato literário à veracidade do discurso filosófico. O movimento se produz nos textos de Jorge Luis Borges e nos deixa o sussurro de outra interrogação: e se a veracidade de nosso discurso estiver fundada numa ficção?

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Os defensores do sentido comum se limitaram, em princípio, a negar a veracidade da anedota. Repetiram que era uma falácia verbal baseada no uso temerário de duas vozes neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que comportam uma petição de princípio, porque pressupõem a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Lembraram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta-feira, chuva) só tem um valor metafórico. (BORGES, 1994, vol. 1, p. 236-237)

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De Borges à história da metafísica: em busca da realidade

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Seria ociosa a tarefa que procurasse demarcar na obra de Jorge Luis Borges a jurisdição específica na qual sua escrita literária perpassa os problemas da filosofia, seus teoremas e filosofemas fundamentais. A referência do escritor à tradição metafísica ostenta os nomes de Hume, Heráclito, Platão, Schopenhauer, Nietzsche ou ainda dos místicos como Swedenborg, Ângelus Silesius, Boecio e Meister Eckart apenas para nomear alguns da ampla lista de autores. Mas não diríamos nada se apenas afirmássemos que nessa linhagem de pensadores citados por Borges reside uma espécie de mera vocação especulativa ou um simples jogo da curiosidade literária. Há uma preocupação ainda maior e sutil em Borges que exige determinadas tomadas de posição com respeito à escrita filosófica. Assim, Borges não seria apenas um escritor do realismo fantástico sul-americano, mas um filósofo ou um ensaísta com perspectiva filosófica própria. Os trabalhos de crítica literária que abordam este aspecto abrangem quase que todo o leque de filiações possíveis. Jaime Rest (1976), por exemplo, afirma que Borges pertence à tradição nominalista dos filósofos analíticos anglo-saxões. Ana Maria Barrenechea (1967) sugere a adesão ao panteísmo niilista para explicar seu pensamento. Já o crítico Jaime Alazraki (1968) pensa que o spinozismo expressaria muito melhor a reflexão filosófica do nosso escritor. Entretanto, Juan Nuño (1986) postula o platonismo. A lista de variedades pode continuar mostrando múltiplas leituras e recortes do texto borgeseano. Nos colóquios de Leipzig e Veneza, organizados por Alfonso de Toro (1999), Borges foi associado à figura de Derrida, Vatimo, Foucault, Rorty, Eco, etc. Se continuássemos com a bibliografia ainda poderíamos acrescentar outros tantos com diferentes interpretações. Mas, esta variabilidade interpretativa não é apenas patrimônio dos pesquisadores. O próprio Borges também tinha várias versões da sua relação com a filosofia que mudava de acordo com a ocasião. Geralmente se apresentava nas entrevistas como um cético. Em diálogo com Maria Esther Vazquez, em 1973, Borges fez a seguinte declaração: Eu não tenho nenhuma teoria do mundo. Em geral, como tenho usado diversos sistemas metafísicos e teológicos para fins literários os leitores têm acreditado que eu professava esses sistemas, quando realmente o único que tenho feito é ter me aproveitado deles para outros fins, mais nada. Além disso, se eu tivesse que me definir, definir-me-ia como um agnóstico, quer dizer, uma pessoa que não acredita que o conhecimento seja possível. (VAZQUEZ, 1977)

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Seu agnosticismo se manifesta em uma espécie de teoria da leitura, um exercício sobre o texto que põe em funcionamento quando cruza literatura com filosofia, teologia, mística, cabala, mitologia, etc. Por outro lado, nas Notas do livro Discusión (1932) referindo-se à filosofia Borges escreve:

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Kant, Alberto Magno e Edgar Allan Poe na mesma série dos usos da linguagem. Filosofia, teologia e literatura como narrativas fantásticas da realidade. Esta declaração parece ir ao encontro do dito em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius sobre a metafísica como um tipo de literatura fantástica (Borges vol. 1, 1994, p. 437), bem como também de alguns outros ensaios redigidos em El livro de arena (em 1975). Assim, o Borges do ceticismo se articula com o Borges dos escritos de ficção. Mas entre um e outro aparece uma figura que permite pensar mais adequadamente a sua relação com a filosofia. Em vários momentos ele se definiu como um argentino perdido na metafísica (BORGES, vol. 2, 1994, p. 135). Talvez essa afirmação deva ser entendida como sugere Juan Jacinto Muñoz Rengel que diz que o seu extravio era o da própria metafísica. A hipótese de uma metafísica como extravio, explorada por Borges extraviado nesse labirinto, pode nos fazer pensar no fio condutor de uma aparente multiplicidade de versões da realidade como ficção e da relação Borges/Filosofia. Assim como Kant utilizou a metáfora do mar sem orla para se referir à metafísica, que segundo ele formulava problemas sem sentido, também podemos pensar o caráter ficcional da metafísica que propicia as condições de seu próprio extravio. Borges se extravia na multiplicidade de relatos de uma metafísica como gênero da literatura fantástica e ressurge desse extravio no exercício de sua escrita.

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Alguma vez organizei uma antologia da literatura fantástica. Devo admitir que essa obra é das poucas que um segundo Noé teria de salvar de um segundo dilúvio, porém, confesso a culpável omissão dos inquestionáveis e maiores mestres do gênero: Parménides, Platão, João Escotus de Erígena, Alberto Magno, Spinoza, Leibniz, Kant, Francis Bradley. Com efeito, que são os prodígios de Wells o de Edgar Allan Poe – uma flor que nos chega do futuro, um morto submetido à hipnose − confrontados com a invenção de Deus, com a teoria de um ser que de algum modo é três e que solitariamente perdura fora do tempo? O que é a pedra beozar perante a harmonia preestabelecida, o que é o unicórnio perante a trindade, quem é Lucio Apuleyo diante dos multiplicadores de Budas do Grande Veiculo, o que são todas as noites de Sherazade comparado com um argumento de Berkeley? (BORGES, vol. 1, 1994, p. 280-281)

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A leitura da realidade de Nietzsche

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Se a realidade nasce do relato ou do postulado tanto literário quanto filosófico a pergunta então é: Como se realiza essa concepção ficcional da filosofia no exercício da escrita literária ou ensaístico-filosófica borgeseana? Colocando de manifesto no início e sem preâmbulos o caráter ficcional da filosofia na sua origem. Trata-se de um trabalho de desarticulação dos argumentos e dos princípios ou postulados utilizados na montagem das teorias filosóficas com o intuito de mostrar sua artificialidade, sua ficção. Este trabalho de Borges tem várias entradas. Uma delas, talvez a mais importante (e tentaremos dar provas disso) é a análise das metáforas. Borges desarticula os textos filosóficos em vários momentos mostrando sua instância última como metafórica. Essa é a via da escrita que utilizou, por exemplo, na Historia de la Eternidad (1936) onde o tratamento dos argumentos filosóficos chega a passar da ironia ao humor. Borges lê os conceitos da metafísica como metáforas. Esta estratégia é mencionada por Ritvo (1985 e 1988). Neste sentido, não podemos esquecer a análise feita sobre as teorias nietzscheanas do eterno retorno em La doctrina de los ciclos e de Platão sobre o tempo, como também não podemos deixar de lembrar o texto sobre a esfera de Pascal. Assim, abordaremos cada um deles.

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No escrito sobre Nietzsche, Borges procura levantar várias questões para se contrapor à doutrina nietzscheana do eterno retorno do mesmo mostrando a fraqueza dos argumentos do filósofo pela redução ao absurdo. Para sustentar sua tese Nietzsche afirma que o total da força no universo é finito e determinado e o tempo, onde o todo exerce sua força, é infinito. Portanto, é de admitir que esta mesma situação, enquanto combinação de forças finitas em um tempo infinito, já aconteceu inúmeras vezes. Através de um cálculo poderíamos demonstrar que o que está acontecendo agora já aconteceu e acontecerá. Não se trata de uma passagem perdida ou uma frase solta entre os papéis do filósofo. Trata-se de uma reflexão meditada em vários momentos da obra e reforçada com uma série de argumentos. Os elementos de origem são mensurados devidamente: força, tempo, combinatória. O cálculo cosmológico é ensaiado de diversos modos: Que nada retorne não poderia ser explicado pelo acaso, mas somente por uma intencionalidade posta na essência da força (NIETZSCHE, 1999). E é claro que Nietzsche não quer acrescentar a menor coisa à simplicidade da essência da força. Muito menos ainda uma intencionalidade que implicaria em um entendimento divino. Para Nietzsche a força é essencialmente simples e por isso mensurável na sua escassez tanto de quantidade quanto de possibi-

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Assim este instante: ele já esteve aí uma vez e muitas vezes e igualmente retornará, todas as forças repartidas exatamente como agora: e do mesmo modo se passa com o instante que gerou este, e com o que é filho do de agora. Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez −, um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as cosas. Esse anel em que és um grão, resplandece sempre outra vez. (NIETZSCHE, 1999, p. 442)

Deste modo, fica estabelecida (quase que) tragicamente a realidade finita e tediosa do Universo. Com uns poucos elementos e um sistema combinatório se afirma aquilo que é. Para polemizar com esta doutrina Borges começa fazendo os cálculos do número de mudanças possíveis em um Universo de dez átomos e a cifra do resultado é 3.628.800.

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lidades. Na tentativa de dar provas convincentes de sua teoria cosmológica Nietzsche opõe sua concepção do processo circular do todo às concepções teistas. Mostra também que é mais verossímil um mesmo lance de dados se repetir que a absoluta nunca igualdade. Fala do orgânico, das tendências, do equilíbrio, do caos, da diminuição e do aumento, quer dizer, refere a quase todos os estados de um sistema cosmológico para defender sua tese. E finalmente escreve:

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Se uma partícula quase infinitesimal de universo é capaz dessa variedade pouca ou nenhuma fé devemos dar à monotonia do Cosmos. Considerei dez átomos. Para obter duas gramas de hidrogênio precisamos bastante mais do que um bilhão de bilhões. Fazer o computo das mudanças possíveis nesse par de gramas – quer dizer, multiplicar um bilhão de bilhões por cada um dos números inteiros que o antecedem − é já uma operação muito superior à minha paciência humana. (BORGES, vol. 1, 1994, p. 385)

É claro que esta operação por mais complexa que possa parecer para nosso uso cotidiano do cálculo ainda não refuta a tese nietzscheana da finitude do Universo, mas Borges parece buscar relativizá-la. Mostrando números inintuíveis para a compreensão humana Borges parece buscar abalar seu efeito de verossimilhança. Quer dizer, o fato do lance de dados se repetir não é tão verossímil assim como pensava Nietzsche. Antes mesmo de saber se a tese é verdadeira ou falsa, Borges pretende derrubar o brilho e a contundência retórica pretendida pela teoria do filósofo do martelo.

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No passo seguinte, Borges apela para a teoria de conjuntos de Cantor e mostra que se aceitarmos sua tese (a de Cantor) podemos dizer que a quantidade de pontos que há no universo é a mesma que há em um decímetro. E ainda, se pudermos intercalar sempre mais um ponto entre dois pontos dados, então o número de pontos (no Universo ou em um decímetro) é infinito. Com a teoria de Cantor no papel a partir de Borges mostraríamos que a questão da simplicidade da força ou é uma decisão metafísica ou é uma questão numérica. Sendo numérica então é indeterminada e assim a teoria cosmológica de Nietzsche não se sustentaria senão apenas como uma decisão que poderia ser substituída por outra. Por outro lado, se for uma decisão metafísica, então o filósofo deveria dar argumentos para poder “decidir” porque essa decisão é melhor do que as outras, de Platão a Hegel. Outra estratégia utilizada por Borges se baseia na segunda lei da termodinâmica. A projeção de luz numa superfície negra transforma esta em calor. A química não se deixaria reduzir a um cálculo funcional ou à comutação de elementos onde as situações poderiam se repetir. Assim neste caso, como um simples papel queimando, qualquer outro processo de irreversibilidade anularia “o labirinto circular do eterno retorno” (BORGES, vol. 1, 1994, p. 391). Poderíamos nos perguntar também porque não nos lembramos das eternas repetições já acontecidas. Isso implicaria fazer da própria consciência um elemento simples no jogo da combinação? E cada lembrança produzida por um novo lance de dados seria acaso um novo elemento simples a ser combinado no lance seguinte? Se isso fosse aceitável então nenhuma repetição do mesmo seria possível. Se isso não fosse aceitável então deveríamos considerar a possibilidade de que algo como uma lembrança não seja um elemento do universo. Mas se pensarmos que não se trata de cosmologia e sim de ética, que aquilo que Nietzsche estava reivindicando era homens capazes de suportar as coisas tal qual são, mesmo assim, a questão que Borges quer mostrar não muda. O escritor traça um paralelo entre um parágrafo escrito por Nietzsche em 1883 e outros que falam sobre os pitagóricos e os estoicos mostrando que a ideia da repetição dos atos humanos e das coisas se reproduz numa espécie de história de repetições. Mas isso não é importante, o copyrigth é uma questão de direito e do que aqui se trata é da realidade, de questões de fato. Do fato da repetição dos atos e das coisas como metáfora Nietzsche buscaria um efeito ético. Viver de tal modo que quiséramos voltar a viver, e assim por toda a eternidade, o mesmo momento vivido. Com efeito, escreve Borges:

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Nietzsche queria ser Walt Whitman, queria minuciosamente se apaixonar do seu destino. Seguiu um método heroico: desenterrou a intolerável hipótese grega da eterna repetição e procurou deduzir desse pesadelo mental uma ocasião de júbilo. Buscou a ideia mais horrível do universo e a propôs à apreciação dos homens. (BORGES, vol. 1, 1994, p. 369)

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A leitura da realidade do tempo de Platão

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Borges aborda a leitura de Platão recorrendo a uma das definições mais antigas da metafísica, e talvez a que contém todas as outras. Trata-se da caracterização do tempo como a imagem móbil da eternidade. Borges comenta a noção de eternidade surgida da teoria dos arquétipos e avalia seus argumentos no que eles têm de virtuosos e deficientes. Em um segundo momento passa para a análise da noção cristã. A eternidade é pensada a partir da Trindade. Borges aplica o mesmo procedimento que no exercício anterior e revela sua impronta extraordinária. Falar da eternidade para explicar o tempo se descobre como um procedimento não menos árduo que o de definir o tempo pura e simplesmente. “A eternidade – escreve Borges − é uma grande invenção. Quer dizer que não é concebível, porém o humilde tempo sucessivo também não é” (BORGES, vol. 1, 1994, p. 365). A figura da imagem móbil da eternidade revela-se como metáfora. Mas metáfora de algo inconcebível, inexplicável, algo que não pode ser dito, senão apenas na sua instância metafórica. Assim, podemos perguntar com Santo Agostinho: O que é o Tempo? Se não perguntar eu sei, se perguntarem eu não posso dizer. Uma interpretação crítica análoga encontramos em Martin Heidegger, em O conceito de tempo (1924) onde escreve que:

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Trata-se de uma metáfora que remete a uma situação apavorante, sem dúvidas. O eterno retorno seria a metáfora nietzschiana para indicar algo pior do que a morte. Mas metáfora de que? Na mesma época, talvez nas mesmas tardes em que Borges pensava no sentido do eterno retorno do mesmo na sua casa de Buenos Aires, Heidegger escrevia na sua casa da floresta negra seu texto sobre Nietzsche apontando para o mesmo conceito, mas ele fazia isso em alemão. Deixemos momentaneamente aberta a pergunta pela referência da metáfora e vamos para outro caso.

[...] se o tempo encontrar seu sentido na eternidade, então deve ser compreendido a partir dela. Com isso ficam determinados o ponto de partida e o caminho desta pesquisa: da eternidade para o tempo. Este questionamento está em ordem pressuposto que dispomos do ponto de partida enunciado e que, portanto, conhecemos a eternidade e a compreendemos suficientemente. (HEIDEGGER, 1997, p. 7)

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Borges e Heidegger descobrem a eternidade como um início inadequado ou impossível para entender o tempo. A eternidade se apresenta como uma ficção e seus argumentos como um relato da literatura fantástica. As analogias traçadas entre Heidegger e Borges neste ponto não terminam por aí. Quando Borges pensa a origem da noção de eternidade recorre a uma espécie de fenomenologia do ânimo. Assim, ele escreve:

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Penso que a nostalgia foi esse modelo. O homem enternecido e desterrado que rememora possibilidades felizes, as vendo sub specie aeternitas, com esquecimento total de que a execução de uma delas exclui ou adia as outras. Na paixão, a lembrança se inclina para o que é intemporal. Congregamos as fortunas de um passado, em uma única imagem; os horizontes imensamente vermelhos que observo cada tarde, serão na lembrança um único pôr do sol. Com a previsão passa igual: as mais incompatíveis esperanças podem conviver sem estorvo. Dito seja com outras palavras: o estilo do desejo é a eternidade. (BORGES, vol. 1, 1994, p. 365)

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A eternidade é definida como a metáfora dos momentos felizes projetados no futuro. Estas linhas vão ao encontro da reflexão heideggeriana que declara que a eternidade é uma estratégia da metafísica para esquecer a morte. Da mesma morte que Borges nos lembra em Sentirse en muerte publicado em El idioma de los argentinos (1928) onde escreve que a ideia de eternidade poderia surgir do fato desagradável da vida ser bastante pobre para não ser imortal. Assim, inventamos uma ficção metafísica, que aparece na figura de uma metáfora, para poder suportar nossa finitude. Seria fácil achar outros paralelos, por exemplo, em El tiempo (1978) onde Borges escreve que “a totalidade do ser é impossível para nós. Assim nos dão todo, mas gradualmente”. Dito em termos heideggerianos, o ser dá-se no tempo. Mas o que interessa aqui não é tanto a semelhança com Heidegger quanto a operação de desarticulação da metafísica do escrito borgeseano através do desvelamento da metáfora. Cada conceito da metafísica é reenviado para a eventualidade cotidiana da nossa opaca finitude, desde essa posição se revela metafórico.

A leitura do Real de Pascal

No escrito de 1951, intitulado La esfera de Pascal, Jorge Luis Borges procura mostrar que todo o percurso da história do pensamento ocidental referido à realidade pode ser apresentado como uma história composta por umas poucas metáforas. Ele transita por alguns textos buscando explicitar a questão por meio da metáfora da esfera eterna.

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É com Xenófanes de Colofón, século VI a.C., que Borges inicia sua reflexão sobre a metáfora do Deus único a partir do pensamento da esfera. Xenófanes foi aquele que fustigou aos poetas que atribuíam carácter antropomórfico aos deuses propondo um só Deus. Através do Timeu de Platão é que Xenófanes obteve a caracterização da esfera como a figura mais perfeita e mais uniforme, porque todos os pontos da sua superfície equidistam do centro. Assim, ele teria representado a unidade absoluta da realidade segundo as características da esfera, ou seja, de um Deus esferoide. Em outro escrito antigo, o de Parmênides, é declarado que o ser é semelhante à massa de uma esfera bem redonda, cuja força é constante desde o centro em qualquer direção. Segundo os comentadores Calogero e Mondolfo (historiadores da filosofia ocidental) – comenta Borges −, Parmênides intuiu uma esfera infinita ou infinitamente crescente concedendo um sentido dinâmico a essa esfera inaudita. Também na cosmogonia de Empédocles encontramos que as partículas de terra, água, ar e fogo integram uma esfera sem fim, o Sphairos redondo. Uma totalidade unificada na esfera que contém todos os elementos se repete como metáfora em Xenófanes, Parménides e Empédocles, mas não para por aqui. Nos livros herméticos desde o Corpus Hermeticum até o teólogo Alain de Lille encontramos que: Deus é uma esfera ininteligível, cujo centro está em todas as partes e sua circunferência em nenhuma. Para os pensadores medievais o sentido dessa figura era evidente: Deus está em cada uma das suas criaturas, porém nenhuma o limita. Posteriormente, Giordano Bruno inferiu, em defesa do mundo copernicano, que: podemos afirmar com certeza que o universo é todo centro, ou que o centro do universo está em todas as partes e sua circunferência em nenhuma. Essa colocação ocorre em defesa do questionamento sobre a necessidade do sistema ptolomaico que é composto por esferas concêntricas. Entretanto, para Pascal também existe uma esfera espantosa, cujo centro está em todas as partes e sua circunferência em nenhuma. O pensamento da esfera apresenta todos os requisitos da metáfora. Por um lado, a estrutura sintagmática aparece autocontraditória: seu centro está em todas partes e sua circunferência em nenhuma. Por outro lado, seu sentido deve ser pensado como remetido outro significado que aquele de uma esfera estranha ou espantosa, cujo centro está em todas partes e sua circunferência em nenhuma. Neste caso, é a própria estrutura formal que nos autoriza a pensar em um sentido não literal do conceito. Por um lado, o pensamento da esfera apresentaria a possibilidade de sentido da estrutura que quer ser explicada, por outro lado, indicaria para aquilo que já não mais deve ser apresentado. O pensamento da esfera é metafórico não porque relembre um

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O esquecimento como metáfora

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segundo sentido, mas porque indica para a própria possibilidade de sentido, possibilidade esta que não pode ser dita senão através do esquecimento na imagem metafísica, de um pensamento negativo nas formas da teologia ou talvez da poesia, escrita metafórica por excelência.

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Se concedermos o argumento de que a filosofia deve pensar a realidade e o seu sentido, então devemos concordar com que o esforço empreendido pela metafísica para responder a pergunta originou um trajeto histórico que pode ser definido junto com Heidegger como a história de um esquecimento. Tudo se passa como se aquilo que se nomeia como a realidade se fizesse com conceitos metafóricos que se esforçam em apagar (no esquecimento) aquilo que pretendem indicar. O caminho inicial que trilhou a metafísica mostrou-se dominante em todo o curso dos textos filosóficos e depende do sentido concedido, fundamentalmente, pela filosofia platônica e aristotélica (HEIDEGGER, 1999, §1). A história da metafísica se caracteriza, portanto, por uma determinada compreensão de ser que o interpreta a partir da totalidade do ente. A metafísica realizou seu percurso histórico colocando estrategicamente o ente no lugar do ser. Desse modo, para dizer muito rapidamente e sem rodeios, na tradição, o ser foi pensado dentro das características e condições próprias do ente, procurando apreendê-lo através do pensamento da representação. A necessidade objetivante e presentificadora do pensamento humano acabou por encobrir a pergunta fundamental da filosofia, e isso ficou expresso na utilização de uma determinada imagem em cada caso. O procedimento da metafísica consiste em escolher um ente dentre todos os entes e colocá-lo como Ser ou fundamento. Com isso, antes que o ser pudesse acontecer de um modo próprio em sua verdade inicial, ele se encontra vinculado a imagens ônticas. Na metafísica moderna o ente interpretado como fundamento passa a ser o homem na medida em que esse ente é estabelecido como sujeito. O esquecimento na época moderna acontece na medida em que o domínio representativo do sujeito e do objeto se consolida. Através do sujeito tudo passa a se converter em objeto. Nesse momento da história do esquecimento do ser o ente é pensado a partir da subjetividade do sujeito. A resposta de Descartes à interrogação da questão do ser fica sob a responsabilidade do eu, sujeito pensante. Quando o filósofo estabelece o homem como sujeito pensante, o eu se transforma na possibilidade da totalidade do que é. Quer dizer, o sujeito é consolidado como o fundamento de toda verdade. Tudo deve poder ser

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representado perante o eu. Para o eu cartesiano as coisas se apresentam na representação e podem ser apreendidas na medida em que são convertidas em objeto para o sujeito. O sujeito está no lugar do ser instalando o que é. Assim, o sujeito se transforma em pano de fundo, na base, no último ponto a ser pensado e cuja condição de possibilidade deve ser esquecida. Por isso ele sobrevive como fundamento e toda operação metafísica detém o pensamento nesta figura. No caso do trajeto filosófico de Nietzsche se apresenta uma rejeição à metafísica e à concepção da filosofia fundada na tradição que pretende acabar com os seus fundamentos. O escritor Nietzsche questiona especialmente a concepção da vida tal como foi compreendida até então pelo homem. Essa crítica reagiu de maneira penetrante contra o platonismo e a doutrina religiosa do cristianismo (o platonismo para o povo), como sendo ambos os principais responsáveis pela compreensão errônea da filosofia ocidental. A partir daí, Nietzsche propõe uma transvaloração de tudo o que se considerou como bom e verdadeiro. Essas questões deveriam ser problematizadas porque todas elas foram encobertas pelo valor e pela transcendência. A vida do homem é apresentada em função de uma determinada concepção de valor e de avaliações morais. O homem ocidental possui a necessidade de representação e de valoração para que possa compreender a vida. Essa compreensão se dá através de um sentido transcendente. Para Nietzsche o sentido estaria dado pela metafísica a partir de um além, uma transcendência. A metafísica seria um encaminhamento para um mundo verdadeiro situado para além do mundo real, como degradado. Desde o início a metafísica colocou o problema da concepção da vida (aquilo que existe, o mundo, o ser no seu conjunto, etc.) como a questão do existente autêntico que sempre foi mostrando como a medida de toda determinação da condição de ser. Segundo a afirmação nietzscheana, no platonismo esse ser autêntico se encontra para além do mundo. Assim, existiria em Platão, por um lado, um mundo ultramundano de coisas eternas e, por outro lado, as coisas terrestres e finitas mostradas como meras cópias. O que Nietzsche percebe no platonismo é que existe uma operação de fundamentação hierárquica entre essas duas dimensões anteriormente citadas. Assim, a concepção platônica de vida e de mundo pressupõe uma outra dimensão, o mundo inteligível ou metafísico. Para que as coisas possuam um sentido deve haver um transcendente. A realidade do mundo deve pressupor o mundo inteligível. Desde Platão, toda a cultura ocidental estaria baseada na consideração de uma figura, de um conceito de verdade, de bondade, de ser, que nos permite medir e por sua vez fundamentar aquilo que existe no mundo. Esta figura aparece como a condição do existir mesmo das coisas. A esta “figura” Platão

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deu-lhe o nome de eidos. As ideias conferem forma a toda a existência das coisas perecíveis e limitadas. Desse modo, em todo o percurso metafísico da tradição, algo deve ser colocado como o real para que a coisa possa ser. As dimensões do inteligível e do sensível passam a caracterizar horizontes diferentes em que somente o mundo transcendental pode pensar o ser do ente, ou melhor, onde somente este pode outorgar sentido aos entes intramundanos. Assim, para caracterizar as coisas deve-se pressupor sempre que há algo que não muda, que não é passível de transformação. Para Nietzsche a superação da metafísica baseia-se em uma crítica a essa transcendência. Não existiria um fundamento do aquém no além e, portanto, não se poderia pensar a partir de uma relação de exterioridade numa oposição. O que existe para o filósofo é a vontade de poder que em cada caso é. Através dos conceitos nietzscheanos de força e vontade de poder a transcendência deixaria de existir e o que agora se mostraria seria a pura imanência do ser. Entretanto, segundo Heidegger, a inversão nietzscheana do platonismo permanece no interior da metafísica. Essa espécie de superação, que Nietzsche tem em vista, não passaria de um envolvimento definitivo com a metafísica. Na verdade, de acordo com Heidegger, Nietzsche marginaliza o “meta, a transcendência rumo ao supra-sensível em favor de uma firme permanência no elementar da sensibilidade”. Assim sendo, com isto “não se faz outra coisa do que dar acabamento ao esquecimento do ser, liberando e ocupando o suprasensível como vontade de poder.” (HEIDEGGER, 2002, p. 69). Com efeito, para Heidegger o problema em questão da metafísica, isto é, da realidade, não é apenas a relação de fundamentação hierárquica entendida em Nietzsche como crítica à transcendência, mas pensar o ser como presença, fixar o pensamento do ser em uma imagem, mesmo sensível. Assim, a vontade de poder se ergue como a causa primeira ou como a imagem primária. A verdade do ente é mostrada através da vontade de poder e do eterno retorno. Esses dois conceitos expressam a maneira como Nietzsche compreende o ser do ente no seu conjunto. Para Heidegger, é justamente através da vontade de poder e do eterno retorno que Nietzsche acaba por pensar os fios condutores de toda a problemática metafísica, a essência e a existência. Vontade de poder e eterno retorno se colocam como figuras substitutivas do ser como presença, isto é, do esquecimento. Mesmo quando o eterno retorno já não funcione como princípio ontológico senão como o apelo de uma vida ética, o termo reenvia para outro sentido que o torna possível em seu esquecimento. Mas o esquecimento é apenas um dos lados de uma dupla operação. É através da própria história do esquecimento do ser, impressa nas figuras da

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metafísica, que se torna possível investigar aquilo para onde se aponta. As figuras da metafísica, na mesma medida em que ocultam o sentido originário do ser o revelam. O que está em jogo, é a dupla operação da figura metafísica que no mesmo momento em que oculta o sentido o revela na sua história. É devido à ocultação que se pode revelar e somente pode revelar-se como aquilo que é, ocultando-se nas figuras da metafísica. Se o processo da história da metafísica fosse apenas unívoco, isto é, de esquecimento, o pensamento do ser se colocaria como o coroamento de um tempo linear e unidirecional. Mas porque não é apenas esquecimento senão também revelação aquilo que se inscreve na metafísica é, então, que podemos pensar os sentidos de ser. Em uma dimensão a figura oculta, em outra revela. É a dinâmica própria da metáfora. A metáfora é um tipo de metassemema. A definição geral de metassemema é a substituição de um significante por outro que comporta uma modificação do conteúdo semântico de um termo, essa modificação resulta da supressão e adição de semas. Formalmente a metáfora se liga, por um lado, a um sintagma onde aparecem contraditoriamente a identidade de dois significantes e, por outro lado, à não identidade de dois significados. Nos casos das imagens metafísicas que apresentamos anteriormente (esfera, força, Deus, sujeito) vemos funcionando dois níveis semânticos diversos. Um dentro da estrutura do próprio discurso (que remete a um tipo de significado e funciona como esquecimento) e o outro, na dimensão da história do ser (que remete a outro significado e funciona como revelação daquilo que é). A imagem metafísica se apresenta como fixando um sentido determinado à estrutura da presença, mas também como apresentando a possibilidade de sentido daquilo que não pode ser presente. A imagem metafísica é metáfora porque revela aquilo que oculta, e só pode funcionar desse modo.

A realidade em metáforas

Por meio de Borges, é possível dar conta da operação fundamental da metafísica como operação de metaforização, que no mesmo momento que funda e fecha um sentido na sua apresentação abre e enuncia a possibilidade daquilo que não pode ser apresentado de modo literal, e que só pode ser lembrado através do esquecimento, em um sentido heideggeriano e em outro freudiano. Trata-se de um esquecimento produtivo, tal como pensa Borges, é o esquecimento aquilo que permite a leitura. Esquecer o evento que provoca a narrativa acerca do que é a realidade coloca os conceitos em uma relativa independência com relação à situação do sujeito da linguagem que enuncia a pergunta.

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A pergunta e a resposta sobre a realidade

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A penúltima versão sobre a realidade

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A pergunta pela realidade se apresenta filosófica e cotidiana. Desnecessária do ponto de vista operacional, quando o único que fazemos é subsistir. Inevitável e recorrente do ponto de vista do funcionamento da linguagem humana e de ocasionais posições de sujeito que se estranham com aquilo que aparece. Nesse sentido, tudo se passa como se um curto-circuito ascendesse à possibilidade da interrogação tanto no dia a dia quanto nas nossas reflexões metafísicas. As respostas podem ser ociosas ou determinantes para a vida daquele que se interroga e suas consequências podem ser nulas ou indefinidas. Perguntar o que é a realidade pode parecer um ato de loucura e, ao mesmo tempo, uma declarada tarefa ontológica. Uma história da pergunta, dos modos de fazer a pergunta e das respostas acerca da realidade nos permitiria ver o horizonte no qual apareceram determinadas descobertas, invenções e maneiras de agir e outras não. O modo de perguntar e responder a pergunta acerca da realidade em cada época abre um leque de possibilidades de saber, conhecer e agir que obstaculiza outros. Algo pode ser descoberto, inventado ou feito segundo o modo que temos de responder à pergunta: o que é a realidade? Isso vale tanto para explicações cosmológicas ou geográficas quanto para o desenvolvimento de capacidades técnicas ou políticas. Assim, a realidade se impõe, enquanto resposta a uma pergunta, e possibilita e obstaculiza inclusive o modo de reformular a própria pergunta.

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Jorge Luis Borges (1994, p. 198-201), em seu relato La penúltima versión de la realidade revela o caráter inesgotável da empresa daquele que procura pensar a realidade e ensaiar suas classificações. Não é que Borges, no inicio do século XX negue a realidade, ou seja, um partidário de algum tipo de refutação berkelyana da realidade, mas introduz um modo de articular a questão que nos coloca diante da impossibilidade última da sua afirmação como tal. Mas essa parece ter sido também a constante do debate filosófico do século. Tal como reconhece Silvia G. Dapía (1999, p. 155) as tendências filosóficas pós-estruturalistas e pós-analíticas do final do século XX “rejeitam a ideia de uma realidade independente de um esquema conceitual, vocabulário, contexto ou paradigma.” Para exemplos, Dapía dá três referências, Rorty, Putnam e Dadvison que nós retomamos e estendemos para elaborar a questão proposta.

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Sem deixar de reconhecer uma realidade externa, Rorty (1989) questiona a existência de características essenciais que poderiam chegar a definir um mundo independentemente da sua descrição. A existência se dá em ou a partir de um “vocabulário”. Descrevemos a realidade com um vocabulário e substituímos a objetividade pelo consenso e a racionalidade pela coerência (RORTY, 1991). No caso de Putnam (1981), a crítica contra o essencialismo deriva num “realismo interno”. Não haveria nenhuma cisão entre sujeito e realidade, ambos se constituiriam mutuamente. As descrições da realidade sempre seriam necessariamente nossas descrições, isto é, sempre teriam elementos subjetivos. Nesse sentido, as descrições deveriam se ajustar aos dados obtidos experimentalmente, mas desde uma posição subjetiva. Isto deriva numa posição coerentista de justificação de descrições. Donald Davidson (1986) também rejeita a tradição realista, mas considera inadequado fazer depender a verdade meramente de esquemas conceituais, deste modo, dá ao mundo externo uma independência significativa com relação às nossas crenças. Por um lado, os eventos mentais são idênticos a eventos físicos, mas por outro lado, os eventos mentais não são redutíveis a eventos físicos. Em todos os casos, de Borges a Dadvison, a linguagem e o sujeito se apresentam como condições necessárias para formular e responder a pergunta acerca da realidade. A raiz da articulação desses dois elementos para nos interrogarmos pela realidade acreditamos que se encontra nos dispositivos conceituais da modernidade que vão de Descartes e Locke a Berkeley e Kant. É nessa direção que avançaremos no próximo capítulo.

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PARTE II2

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É verdade que na condição de viajantes distraídos e embebidos na paisagem circundante o questionamento sobre a existência autônoma do mundo e dos fenômenos que o constituem não povoa nosso imaginário cotidiano. No entanto, há uma opinião de bom senso circulando entre as pessoas que não pertencem ao mundo de Tlön Uqbar Orbis Tertius de que as coisas do mundo existem independentemente de sua percepção por um espírito. Este aparente truísmo muitas vezes fez ecoar na filosofia as perguntas acerca do modo em que são constituídas essas mesmas coisas, de onde isso provém e o que sustenta esta crença. Estas questões podem ser respondidas, dentre tantas outras possibilidades, a partir da concepção de uma subjetividade que admite um eu cognoscente. A isso se agrega o posterior reconhecimento de coisas exteriores a ele. Isto se articula numa relação opositiva de sujeito e objeto, de interioridade e exterioridade, subjetividade e objetividade e, por fim, de representante e representado. No entanto, existem algumas problematizações deste esquema como as que nos deixaram alguns dos filósofos modernos. Aqui nos referimos especial e genericamente a algumas posições céticas e solipsistas que resultaram de algum modo na relativização e até mesmo na supressão desta moldura objetiva do real. Que o leitor entenda neste ponto que não pretendemos esperar de nenhum autor em particular uma refutação ou um apoio definitivo dos pontos de vista realista ou solipsista. Antes de tudo e a partir de diferentes conceitos e dispositivos conceituais queremos balizar e fomentar o debate com contribuições particulares. Isto esmorecerá a rigidez da oposição fundacional da realidade moderna dando-lhe um contorno mais fluido e com bordas mais nuançadas. Percorreremos uma trilha de conceitos e dispositivos teóricos aceitando a instigante provocação de pôr em dúvida a existên-

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Uma realidade moderna

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O SUJEITO DA REALIDADE

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Todas as citações desta parte seguirão o modelo autor, data, página, sendo a data a da edição utilizada, com exceção das citações de Kant que seguirão as normas da Academia.

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Meditações de Descartes sobre a realidade

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cia de objetos exteriores à consciência. Entendemos ser este o mais radical dos questionamentos que os homens possam se colocar nesse momento da história do pensamento, justificado não somente pelo ponto de vista de sua antiguidade enquanto tema da reflexão filosófica, mas igualmente pela importância que o tema da realidade, de sua representação, enfim, de seu estatuto sempre despertou para a psicanálise, tanto do ponto de vista da teoria como da clínica. Desta forma, o tradicional e provocador problema filosófico da realidade, particularmente quanto ao problema de sua representação, será aqui retomado e investigado em baliza com o pensamento de Freud, tendo como ponto de partida ou pano de fundo a própria emergência com que pensou a constituição da subjetividade a partir de uma articulação, problemática é verdade, entre uma interioridade e uma exterioridade como pontos de sobreposição e desvelamento dessa constituição. De um modo geral entendemos que aqui a objetividade remete, antes de tudo, à crença na existência autônoma de coisas exteriores que comunicariam sua existência ao provocarem sensações por meio da sensibilidade humana. Contudo, esta articulação, tão festejada pelo bom senso, sem esquecer escolas da própria filosofia, não se sustenta sem problemas, não resiste facilmente a questionamentos. Por isso, o próprio bom senso, ainda que não recomende ou execute tal problematização, não pode evitar em definitivo que perguntemos por ela, ou ao menos que demandemos por sua justificativa. A questão que de fato permanece é que não se pode afirmar sem sombra de dúvidas que a cada representação que intuímos (aqui a igualaremos à sensação) lhe corresponda, de alguma forma, exteriormente um objeto representado, ou ainda, que remeta efetivamente a algo exterior a ela, até porque sabemos todos desde sempre que uma representação pode ser evocada enquanto lembrança ou mesmo alucinação, situações em que prescinde da presença de um objeto exterior como causa. Outra questão pendente, até mesmo para o crédulo na realidade exterior, é quanto à presença de um dispositivo ou critério eficiente para distinguir dentre as representações o que é da ordem da percepção real. Certamente o leitor já se deu conta da natureza problemática do tema.

Descartes realizou em 1641 na obra Meditações metafísicas, uma minuciosa inspeção do espírito, distinguindo entre entendimento, imaginação e sensação. Assim, tomando cada aspecto em consideração, poderiam se reco-

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nhecer coisas materiais a partir do modo de funcionamento do espírito e do uso de suas faculdades, sempre considerando que elas seriam a contrapartida das representações no mundo objetivo. Sua inspeção começou por distinguir a imaginação da pura intelecção, ou concepção, como também a chamou. Esta distinção lhe permitiu conceber ou reconhecer uma faculdade que opera para além das possibilidades da imaginação. A faculdade conceptiva ou concepção foi descrita como algo que, por exemplo, quando concebemos uma figura de mil lados, nos vemos diante de uma impossibilidade de imaginá-la, de representá-la sem que ocorra nisso uma produção confusa. Com isto, sem reduzir uma coisa à outra, antes as distinguindo, acabou por reconhecer no exercício da imaginação uma faculdade que se aplica igual e prontamente às coisas corpóreas, experienciáveis. Seu exercício se dá numa relação de dependência com seu objeto. Por este meio introduziu uma distinção capital para seus propósitos. A caraterização de um poder de conceber notadamente espiritual (no caso exemplificado, figuras que não possam ser imaginadas com precisão) aponta, em primeiro lugar, para uma independência em relação à sensibilidade. Em segundo lugar, destaca a curiosa “necessidade de particular contenção do espírito para imaginar” (DESCARTES, 1962, p. 182). Essa contenção do espírito (que, quando livre da sensibilidade, pode produzir operações ao infinito de modo a conceber figuras inclusive irrepresentáveis) é admitida como necessária para a viabilização ou adequação da imaginação e dos conhecimentos que proporciona. Por exemplo, quando imagina com proveito uma figura de três lados sobre a qual pode se debruçar e extrair conhecimentos seguros. Assim sendo, reconhecemos então que a distinção entre a faculdade conceptiva, ou intelecção (que prescinde de objetos exteriores) e a imaginação introduz ou leva em conta uma segunda ordem de distinção, a saber, a da infinitude da faculdade conceptiva em relação à finitude da imaginação. Foi no agravo deste aspecto que Descartes acrescentou, como fator ou elemento de contenção, algo diferente do espírito que lhe imponha limites, a saber, a matéria (qualificada como extensão), a começar pelo próprio corpo. Atribuiu à faculdade de concepção a própria essência autônoma do espírito, enquanto reservou à imaginação a tarefa de se relacionar com a segunda substância, diversa do espírito. Para efeitos de argumentação declarou que: a imaginação, enquanto uma maneira de pensar, em todo caso “difere somente da pura intelecção no fato de que o espírito, concebendo, volta-se de alguma forma para si mesmo e considera alguma das ideias que ele tem em si; mas, imaginando, ele se volta para o corpo e considera nele algo de conforme à ideia que formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos”

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(DESCARTES, 1962, p. 181). De forma que particularmente nesse modo de operação a imaginação se efetiva em presença de substâncias (que não ela) que impressionam os sentidos. Descartes avançou ainda na inspeção meticulosa do espírito de modo que depois do exame do entendimento, seguido do exame da imaginação, ocupou-se da sensação. Reconheceu a necessidade de verificação do que seria propriamente o sentir. Esclarecendo este modo particular de pensar, esperava obter a prova definitiva e suficiente da existência das coisas corpóreas ou dos objetos exteriores. Foi por intermédio deste modo de pensar que Descartes reforçou a sustentação de dois conhecimentos, a saber, o de estar unido a um corpo e, por conseguinte, o de que as coisas materiais existem. O primeiro justificou-se a partir do fato de poder sentir o prazer e a dor provocada por sua relação com outros corpos, além de, em si mesmo, sentir apetites, inclinações para alegria, tristeza, cólera entre outras paixões. O segundo justificou-se a partir do fato de que somado às noções de extensão, figura e movimento próprias da matéria, podia notar o calor, a dureza, o odor, as cores, os sabores e outras tantas qualidades, enfim, que lhe permitiam conjecturar coisas distintas do pensamento, a saber, os próprios corpos “de onde procediam essas ideias” (DESCARTES, 1962, p. 183). Para melhor funcionamento das suas argumentações Descartes destacou dois aspectos que lhe permitiriam auferir veracidade às suas conclusões. Primeiramente, destacou o fato de que aquelas qualidades “se apresentavam ao meu pensamento sem que meu consentimento fosse requerido para tanto” (DESCARTES, 1962, p. 183). Assim, relacionou e condicionou sua presença na sensação à sua objetividade, à sua condição de causa. O segundo ponto se apoiava na intuição bastante evidente, mas não definitiva para muitos, de que “as ideias que recebia pelos sentidos eram muito mais vivas, mais expressas e mesmo, à sua maneira, mais distintas do que qualquer uma daquelas que eu mesmo podia simular, em meditando, ou do que as que encontrava impressas em minha memória” (DESCARTES, 1962, p. 183) e que, portanto, não poderiam proceder de seu espírito. Com tais argumentos ofereceu um critério de distinção entre percepção e alucinação ou fantasia. Descartes finalmente agregou uma última distinção à faculdade sensível em proveito de suas teses, a de ser passiva. Passivamente, a sensibilidade recebe e representa objetos. Isto reforça a necessidade do dispositivo cartesiano de uma existência exterior objetiva dos objetos. Em complemento agregou-lhe uma capacidade ativa responsável por dar forma às representações e com ela totalizou as condições com que a faculdade de sentir se relaciona com os objetos extensos. De modo que o enlace cooperativo das duas substâncias ficou descrito e justificado.

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[...] as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações, somente na medida em que são maneiras de pensar, residem e se encontram certamente em mim. [...] E ainda agora não nego que essas ideias se encontrem em mim. Mas havia ainda outra coisa que eu afirmava, e que, devido ao hábito que tinha de acreditar nela, pensava perceber mui claramente, embora na verdade não a percebesse de modo algum, a saber, que havia coisas fora de mim donde procediam a essas ideias e às quais elas eram inteiramente semelhantes. (DESCARTES, 1962, p. 137)

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Há um jogo duplo na estratégia argumentativa de Descartes. Por um lado, de promoção de verdades acessíveis apenas à luz da razão, verdades metafísicas levadas ao extremo como o refúgio seguro do eu, da ideia de Deus e da existência da matéria. Por outro lado, de reforço à desconfiança nos sentidos como instrumentos de conhecimento. Portanto, em seu empreendimento não reside um legítimo ceticismo ontológico, segundo o qual nada poderia ser dirimido sobre o mundo físico-material. Na verdade, o resultado da iniciativa de Descartes e de seu método foi o reconhecimento ontológico da realidade exterior segundo sua extensão, sua forma e seu movimento. Além disso, deslocou a possibilidade de sua apreensão, não mais pelos sentidos, mas por uma renovada epistemologia que atribui ao espírito, ao entendimento (e à sua inspeção). O entendimento se ergueu como a fonte dos conhecimentos verdadeiros e seguros, vale dizer, evidentes, superando assim os prejuízos dos sentidos. Essa modalidade de conhecimento foi apresentada especialmente na segunda das Meditações na qual sustentou que a matéria ilustrada pelo exemplo da cera pode ser distintamente conhecida. Descartes afirmou também que para além da objetividade atribuída às qualidades primárias, como a extensão, o movimento e a figura da matéria, as qualidades secundárias não seriam mais do que subjetivas, portanto inessenciais à matéria. Articulando assim uma relação de complementação e hierarquização.

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Porém, lembremos que o próprio questionamento acerca da objetividade da realidade material-exterior foi promovido pelo próprio método cartesiano de aplicação da dúvida acerca dela. De fato, é dele, por ocasião da terceira de suas Meditações, o questionamento estratégico acerca da possibilidade de que:

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A realidade de Berkeley entre a abstração e a linguagem

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No entanto, sobre isto encontramos um comentário irônico apresentado por Sébastian Charles que consideramos oportuno. Referindo-se a Simon Foucher e retomando a distinção de Descartes entre qualidades primárias e secundárias, afirmou que esta distinção foi incapaz de resolver o problema do solipsismo, ou da existência de um mundo exterior, “pois, se os cartesianos reconhecem que a percepção das qualidades secundárias remete ao sujeito, deveriam igualmente aceitar reconhecer que as qualidades primárias são tão perfeitamente subjetivas quanto aquelas” (CHARLES, 2005, p. 14). O questionamento sugere que por mais engenhosa que tenha sido a argumentação de Descartes não se sustenta sem uma contrapartida de boa vontade de seus interlocutores. Além disso, parece também indicar que a dúvida cartesiana provocou, a despeito e mesmo contra as suas intenções, a quebra irreparável da ilusão materialista e que a fragilidade do argumento cartesiano sustentou de vez a desconfiança em relação à matéria e à exterioridade dos objetos. Por tudo isso é imperioso admitir desde já que o solipsismo sempre foi uma posição filosófica coerente e sua provocação legítima. Porém, tudo o que sucede com sua derivação decorre problemático. Evidentemente um cético se sente justificado a estender a dúvida cartesiana às próprias qualidades primárias da suposta matéria, à sua existência autônoma, reduzindo-a à subjetividade já atribuída às qualidades secundárias. O solipsista, e aqui nos referimos a Berkeley, ao recusar a autonomia do objeto exterior reconheceu e atribuiu ao próprio eu a tarefa de sustentação de uma realidade que não se resolve na oposição entre subjetividade e objetividade. No entanto, nem por isso permaneceu imune ou fora do alcance da crítica e da demanda de equivalente justificativa.

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Georges Berkeley, em seu projeto de investigação das condições de possibilidade do conhecimento, na obra Tratado sobre os princípios do conhecimento humano de 1710, propôs uma forma de superação dos erros a partir de um esclarecimento acerca dos equívocos e falsos princípios adotados por todos. Promovendo, como Descartes, uma inspeção do entendimento, encaminhou a resposta com uma crítica da capacidade de abstração por meio de uma reflexão “sobre a natureza e o abuso da linguagem” (BERKELEY, 2010, p. 28). A partir desta crítica pretendeu desfazer o equívoco frequente na história da filosofia moderna acerca da consideração de que a razão tem o poder ou a função de conceber “ideias abstratas”. Berkeley, ao argumentar

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sobre o problema do ceticismo e dos equívocos do conhecimento que o alimenta, reconheceu que sua admissão decorre de um mau uso e de uma má compreensão acerca da linguagem. Por isso propôs medidas corretivas para desfazer as distorções e com isso evitar toda ordem de equívocos em que a filosofia, assim como o senso comum, tem se embrenhado continuamente. Sobre este aspecto Smith (2005, p. 42) escreve que:

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Desta forma, a tese frequentemente sustentada de que a existência das coisas é independente do fato de ser percebida, ou seja, de que há coisas exteriores ao eu, tem na verdade sua justificativa na doutrina das ideias abstratas. Aqui, abstração equivale à distinção entre objetos sensíveis de seu ser percebido, produzindo duas modalidades distintas de existência e de seres. Daqui deriva a ontologia da matéria, de sua extensão, da sua figura e de seu movimento. Sabemos que desta crítica Berkeley extraiu uma conclusão precisa, a saber: o imaterialismo. Sabemos também que resultou de um questionamento das teorias da representação que admitem uma substância material representada ou percebida (perceber como equivalente a representar) admitindo uma ação solidária entre a matéria e sua percepção enquanto representação. Por fim, tal equívoco inerente às teorias da representação decorreu, segundo Berkeley, de uma má compreensão do funcionamento e de um mau uso da linguagem. Nos parágrafos sete a catorze da introdução de seu Tratado, Berkeley denunciou explicitamente que aquelas anomalias produzem e sustentam a doutrina das ideias abstratas. A princípio pela noção corrente de que sua finalidade é a de comunicar ideias, de forma que nomes gerais representariam ideias gerais abstratas, ou seja, de que os nomes gerais seriam signos de ideias gerais, o que para ele só é possível segundo regras internas da própria linguagem. Por exemplo, quando dizemos “o homem” não nos referimos a uma ideia geral abstrata de homem, mas ao conjunto de ideias particulares de cada um deles, todas em conjunto designadas convencionalmente pelo termo apenas considerado geral. Este procedimento retificaria assim, um velho hábito de considerarmos que há sempre um correspondente para todo termo geral, a saber, uma ideia geral abstrata. Enquanto na verdade um termo geral remete a um conjunto de ideias particulares.

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o grande problema seria o de que a filosofia separou indevidamente o ser das coisas do seu ser percebido. A famosa fórmula de Berkeley, esse est percipi, viria a corrigir esse defeito crônico da filosofia, que a conduz ao ceticismo. A separação do esse das coisas de seu percipi, no entanto, já pressupõe a doutrina das ideias abstratas.

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A realidade de Locke

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Berkeley, na sua crítica às ideias abstratas, questionou as teses de John Locke presentes na obra Ensaio sobre o entendimento humano, de 1690. Contrariou-o sustentando que as qualidades existem apenas em conjunto nos “objetos” e não podem ser separadas umas das outras, isto é, abstraídas de seu conjunto. Por exemplo, não se pode separar as qualidades de cor, de extensão e de movimento em um objeto extenso, colorido e que se desloca. Nem mesmo num segundo momento ou nível cabe ao entendimento organizar a ideia de cor a partir da observação do que há em comum entre todas as cores abstraídas concebendo a ideia de uma cor em geral, por exemplo, a “coridade”. Se esse procedimento fosse possível, denuncia Berkeley, se chegaria à noção geral abstrata não só de “cor”, mas de “homem”, de “humanidade”. Para ele, isto seria impossível uma vez que as qualidades dos objetos só se apresentam em conjunto e numa determinação particular. Assim, Berkeley acredita ter recusado a possibilidade de distinção das qualidades. No entanto, sua possibilidade foi sustentada por Locke de maneira enfática quando admitiu que as qualidades de fato se apresentam unidas nos objetos, mas que, a despeito disto, afetam os sentidos separadamente produzindo ideias não compactas e com isto conferem a possibilidade de serem distinguidas. De modo que a distinção pode ser feita de fato (e não de razão como mais tarde admitiu Hume) já na recepção da imagem e no exercício da percepção. Nisto haveria uma prova ou pelo menos um argumento em favor da objetividade dos corpos representados, já que a percepção no seu produto, enquanto faculdade representadora do objeto real seria distinta dele próprio num primeiro nível, e igualmente seria distinta da ideia abstrata geral (complexa) produzida no estágio seguinte pelo entendimento. No segundo capítulo do livro II do Ensaio, definindo as condições de nosso conhecimento, Locke distinguiu as ideias em simples e complexas. Começou por atribuir às próprias coisas que impressionam nossos sentidos a portabilidade de suas qualidades de forma unida e misturada de modo a nelas mesmas não admitirem separação. No entanto, cada uma delas é acessada por nossa sensibilidade por intermédio dos diversos sentidos. De modo que cada um deles canaliza pelo menos uma qualidade, por exemplo, que a mão sinta a maciez e o calor, enquanto os olhos sentem o movimento e a cor de um mesmo pedaço de cera. Por meio deste fracionamento, qualidades anteriormente unidas e misturadas num mesmo objeto passam a ser perfeitamente distintas e sem mistura. Assim, Locke identificou diferentes meios pelos quais ideias simples são acessadas por nossa mente e se tornam objeto de nossa percepção, por conta do que já apresentariam

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uma diferença em relação ao objeto representado. Também reconheceu que algumas representações entram em nossas mentes por apenas um sentido e outras por mais de um sentido, de modo que, por fim, todas as ideias simples distinguíveis são, como disse, “os ingredientes de nossas ideias complexas” (LOCKE, 1983, p. 167). Desta forma chamamos sensação o produto que os sentidos retiram dos objetos externos e encaminham para o entendimento e são assim a matéria-prima de nossas ideias complexas, de modo que o entendimento transforma as ideias simples provenientes de objetos particulares em ideias complexas, produzindo entidades como ideias gerais. Isto, como vimos, foi possível em função de Locke ter admitido que as ideias simples se apresentam sob a forma de sensação completamente separadas umas das outras, mesmo que concomitantes. Elas existiriam justamente para evitar que devido a esta separação, cada ideia particular tivesse que receber um termo particular (na forma de uma nomenclatura), o que demandaria a tarefa de nomeá-las ao infinito. De modo que, segundo Locke, “a mente transforma as ideias particulares recebidas de objetos particulares em gerais, obtendo isso por observar que tais aparências surgem à mente inteiramente separadas de outras existências” (LOCKE, 1983, p. 180). Por fim, definida a noção de abstração, podemos reconhecer com Locke que é através desta operação “que as ideias extraídas dos seres particulares tornam-se representações gerais de uma mesma espécie e seus vários nomes aplicam-se a qualquer coisa que exista em conformidade com essas ideias abstratas” (LOCKE, 1983, p. 180). De modo que ganhando existência e autonomia passam, por exemplo, a ideia abstrata brancura, a funcionar como um padrão para organizar as existências reais e particulares, segundo classes. Tal ideia geral seria, portanto, uma criação, um produto da operação do entendimento sobre ideias particulares recebidas pela percepção que em seguida auferem, por intermédio e uso da linguagem, um termo que a designa, por exemplo, brancura.

Contra a realidade de Locke

Voltando a Berkeley diremos agora que foi a partir da crítica que dirigiu a Locke que derivou e sustentou seu imaterialismo. E o fez denunciando que a generalização que qualquer termo indique não corresponderia a uma ideia positiva e independente, mas, de fato, a uma relação (pretensamente generalizante) estabelecida por um termo qualquer com um conjunto de ideias particulares. Para ele, os termos gerais (por exemplo, a mudança de movi-

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A hipótese da matéria

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mento é proporcional à força aplicada) não são símbolos de ideias abstratas de movimento ou de força, mas de um movimento específico. Esses termos se aplicam a um grupo ou uma classe de corpos que se comportam segundo sua descrição. Por conta disso, reforcemos a concepção e crítica berkeliana da noção de representação, apresentada na introdução do Tratado. Comecemos por sua consideração taxativa de que “uma ideia considerada em si é particular, mas ao representar ou significar todas as outras ideias particulares do mesmo tipo torna-se geral” (BERKELEY, 2010, p. 43). Por exemplo, uma linha representada por um geômetra é sempre em si particular, mas, no entanto, é geral segundo o significado e a função que recebe do geômetra, isto é, a de representar todas as linhas particulares, de modo que o que demonstra dela fica equivalendo ao de uma linha em geral, e isso pelo fato de ter sido convertida em signo, mas bem entendido, signo de todas as linhas particulares e não de uma linha abstrata geral existente em si mesma. Esta relação convencional de reenvio, de significação, é a responsável pela hipótese de algo diferente dela. As ideias que foram convertidas em signos do conjunto de particulares receberam de Berkeley a qualificação de “ficções ou artifícios mentais” (BERKELEY, 2010, p. 44) que teriam sido associadas às ideias particulares já na infância. No entanto é preciso advertir que ele não recusou a importância de tais ideias, seja para o conhecimento como para a comunicação. Apenas reconheceu que elas “não consistem na natureza ou na consideração positiva e independente de alguma coisa, mas na relação que ela possui com os particulares significados ou representados por elas” (BERKELEY, 2010, p. 46). Tudo isso permitiu a Berkeley, finalmente, responsabilizar a má compreensão e uso da linguagem, de suas palavras, pela origem desse equívoco ou erro, isto com a finalidade de demonstrar a impossibilidade das ideias abstratas. Assim, combateu o preconceito distinguindo palavra de ideia, desfazendo a noção de que um termo geral deve representar ou ter como correlato uma ideia abstrata determinada, de modo que a generalidade não seria uma propriedade da representação, mas antes uma relação arbitrária estabelecida por um termo, ou termos.

Vale recapitular. Uma cor ou uma linha para ser pensada em geral precisaria ser pensada separadamente de todas as demais determinações que a acompanham. Isto seria impossível para ele, pelo fato de considerar como certo que todas as qualidades de um objeto apenas existem nele em conjunto e

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inseparáveis. Berkeley reconheceu adicionalmente que o entendimento é incapaz de elaborar ideias sejam estas de qualidades ou de quantidades isoladas de uma determinação particular. Por exemplo, uma ideia de cor não pode ser representada aparte da de extensão, forma e tamanho, igualmente para uma linha, sem sua extensão, sua cor e forma. De modo que sua crítica à capacidade de abstração configura-se como a própria denúncia da impossibilidade de se conceber ideias gerais abstratas. Dessa forma todos os homens incorreriam no equívoco de utilizar termos gerais como se existissem em relação objetiva com certas ideias, ou como diz Cappello, “a predicabilidade dos termos gerais dá-se não por intermédio de uma ideia geral, mas pelo estabelecimento de uma relação que se efetiva na ampliação da extensão desse termo, ou seja, um termo geral corresponde a todas aquelas ideias particulares que reconhecemos possuírem qualidades semelhantes” (CAPPELLO, 2005, p. 58). Dessa forma, um termo geral não remete nunca a uma única ideia geral abstrata, de modo que sua universalidade não pode ser considerada como representante de uma realidade positiva. Antes, um termo é geral porque se refere a várias ideias particulares convencionalmente compreendidas nele. Com isso Berkeley denunciou que a hipótese segundo a qual cada representação o é de um objeto exterior por ela representado está justificada na crença de seu esquema homólogo, no qual um termo geral teria como correspondente uma ideia geral, ou seja, o reenvio atribuído a uma é aplicado à outra. Neste equívoco residiria e se sustentaria o materialismo dos filósofos e do senso comum. Bem, Berkeley seguiu argumentando que, por exemplo, uma linha em ou de cada representação de determinado corpo é sempre uma linha em e de cada representação desse corpo, nunca existindo fora dela de nenhuma forma. No entanto, consideradas individualmente em cada representação e reunidas em suas semelhanças podem ser reconhecidas e agrupadas, por exemplo, o branco recorrente de cada representação de objeto branco, a ponto de serem identificados em grupo por um único nome. Dessa crítica concluiu que a capacidade de abstração corresponde a uma impossibilidade lógica, erro em que Locke teria incorrido. De modo que um termo geral é sempre um termo também particular sem referente geral. Dessa forma, podemos dizer que o termo geral extensão (assim como forma e movimento), que são frequentemente tomados como termos que designam as características próprias da matéria, nem mesmo remetem efetivamente a ideias gerais abstratas. Por conta disto a matéria tradicionalmente recebe conceituação por um equívoco, uma vez que o termo matéria, além de ser ele próprio particular, não designa uma substância fora da percepção e nem mesmo uma ideia geral

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abstraída de percepções particulares. De modo que equivocadamente quando utilizamos o termo matéria pretendemos designar uma suposta ideia geral abstraída das particulares. De modo que a hipótese da matéria enquanto substância para além de qualquer representação se justificaria num mau uso da linguagem, ou ainda, como declarou já na primeira parte da obra, a doutrina das substâncias extensas e móveis concebidas, como suporte de acidentes ou qualidades fora da mente (e não concebida como uma combinação de qualidades sensíveis), depende da doutrina das ideias abstratas. Insistimos que a advertência de Berkeley esclarece que a mesma relação de reenvio que é admitida entre um termo e uma ideia geral supostamente produzida pelo entendimento, é transposta para outra relação de reenvio entre uma representação e seu objeto representado, a saber, a matéria. Tudo indica que seu interesse ao desmontar a primeira relação de reenvio, demonstrando a impossibilidade da ideia abstrata, foi o de desmontar a segunda relação de reenvio, desautorizando o estatuto ontológico que a matéria recebe dela. Mais ainda, foi na introdução do Tratado que demonstrou que a noção de matéria, que recebe tanto do filósofo como do senso comum, a identificação de uma substância não pensante ou substratum, nada mais é do que um termo que representaria uma ideia abstraída das percepções sensíveis (singulares), caracterizada especialmente a partir de qualidades como extensão, forma e movimento. Depois disso, demonstrou também sua impossibilidade com os argumentos de que a cor ou a linha em geral pressuporia primeiro poder separar a cor da linha e, num segundo nível, pensar uma cor e uma linha que não fosse nenhuma cor ou linha determinada: nem uma certa cor, nem outra qualquer determinada, mas uma cor que não é cor nenhuma. Entendemos que sua crítica à abstração contribuiu para seu objetivo na medida em que apontou ainda para o fato de que sua consideração amplia e multiplica o mundo dos objetos da percepção e do entendimento a ponto de criar entre eles relações de sentido, de referência, de reenvio, de sobredeterminação. Dessa forma, ela só ficou completa para seus propósitos quando conjugada com os argumentos da primeira parte da obra, onde associou a presença das ideias abstratas como condição de possibilidade de postulação de algo para além de seus limites, ou seja, de uma substância não pensante ou substratum das representações, de onde elas proveriam, ou ainda, de que elas seriam representações. Se entendido como bem-sucedido todo o dispositivo conceitual berkeleyano, podemos dizer agora que o imaterialismo decorrente de sua crítica lhe permitiu conceber o mundo das representações como autônomo e prescindindo de um para além de seus limites. Uma concepção tal da realidade

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demandou uma noção de consciência e de eu adequadas. Distinguiu o eu de seus objetos, concebeu-o como o agente que executa sobre eles operações como querer, imaginar ou ainda, recordar. O eu foi pensado por ele como de fato o “algo” no qual elas existem, ou ainda, por meio do qual elas são percebidas, o que define toda sua possibilidade de existência, como disse, “a existência de uma ideia consiste em ser percebida” (BERKELEY, 2010, p. 58). Assim Berkeley investigou os “objetos do conhecimento humano” e se apressou em responder que estes são as ideias. Sejam elas, as impressas nos sentidos, as percebidas quando se presta atenção às paixões ou operações da mente, ou finalmente, as formadas e combinadas pela memória e pela imaginação. Mas o que nos interessa aqui é o que se segue. Pois, como dito acima, além dessas ideias ou objetos do conhecimento, por intermináveis que sejam, há ainda algo, diz, “que os conhece ou percebe e que executa diversas operações relativamente a eles, como querer, imaginar ou recordar” (BERKELEY, 2010, p. 58). Com a postulação desse algo distinto se admite desde já, reforcemos, um “operador” desses objetos. Berkeley continua, “esse ser ativo, perceptivo, é o que chamo de mente, espírito, alma ou eu” (BERKELEY, 2010, p. 58). Portanto um algo de uma ordem distinta dos seus objetos. Mais do que isso, um algo no qual e por meio do qual os objetos ou ideias possam ou passam a ser percebidas, ou ainda, a existir, estabelecendo por fim uma relação de identidade entre existir e ser percebido. Portanto, uma ideia que não seja percebida, que não tenha sido produzida no e pelo eu não existiria de outra forma. Assim, a tese de que “ser é ser percebido” não demanda de forma alguma a suposição de algo externo como causa dos objetos da percepção. De modo que a existência de ideias não constituiu razão suficiente para supor a existência da matéria ou substância corpórea. Uma vez que isto equivaleria a admitir, como declarou, “que Deus criou inúmeros seres completamente inúteis, que não servem para nada” (BERKELEY, 2010, p. 70). Ora, Berkeley avançou ainda mais reconhecendo que nossas ideias, sensações ou coisas que percebemos são inativas, uma vez que, como disse, “o próprio ser de uma ideia encerra em si passividade e inércia” (BERKELEY, 2010, p. 73). De modo que uma ideia não pode ser causa de si mesma, de outra ideia, ou de qualquer coisa. A questão decorrente ficou sendo relativa à investigação da causa das ideias, da qual elas dependem, do que as produz e as altera. Excluída a causalidade material, restou-lhe atribuir “uma substância ativa incorpórea ou espírito” (BERKELEY, 2010, p. 74), na forma de um princípio ativo de movimento e mudança. Este foi tão somente reconhecido pelos efeitos que produz, posto não poder por definição ser representado.

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O espírito é, portanto o agente, o suporte, numa palavra, o sujeito das faculdades do entendimento e da vontade, de modo que o entendimento está relacionado aos sentidos, à percepção de ideias, enquanto a vontade está relacionada à produção e à atuação sobre elas. No entanto, a despeito do poder que o espírito, ou eu, exerce sobre as ideias, reconhecemos facilmente que muitas de nossas ideias não dependem de forma alguma de nossas vontades. Esta constatação indica que se a sequência de ideias, por exemplo, do dia e da noite, entre tantos outros exemplos, se apresenta aos nossos sentidos a despeito de nossa vontade então devemos reconhecer que as ideias impressas em nossos sentidos “não são produtos de minha vontade. Existe, portanto, alguma outra vontade ou espírito que as produz” (BERKELEY, 2010, p. 76). Isto indica duplamente a limitação de nossa vontade e uma causalidade diversa de nossas ideias ou sensações. Isto adicionalmente explicaria o porquê de as ideias dos sentidos serem mais fortes, mais vívidas e mais distintas do que as imaginadas ou recordadas. Nosso autor continua atribuindo às ideias características como as de serem estáveis, coerentes, ordenadas e regulares, “cuja admirável conexão testemunha suficientemente a sabedoria e a benevolência de seu autor” (BERKELEY, 2010, p. 76). Ora, esse “Autor da natureza” nos fornece por impressão as ideias dos sentidos e também as “Leis − fixas − da natureza”, das quais, por serem estáveis e uniformes, dependemos para nossa sobrevivência. Ato que mais uma vez testemunha a bondade e sabedoria de tal “espírito governante cuja vontade constitui as leis da natureza” (BERKELEY, 2010, p. 77). Ora, recordemos a obstinada insistência dos materialistas em relação à admitida diferença entre ideias da percepção e da imaginação, atribuindo às primeiras, mais fortes, ordenadas e coerentes, não serem totalmente criação da mente, antes a condição de representantes de coisas, de cópias de objetos exteriores a ela. Em resposta, afirma Berkeley, mesmo não sendo obra da mente humana, “isso não constitui um argumento de que elas existam fora da mente” (BERKELEY, 2010, p. 78). Com isto, não deixou de atribuir-lhe uma causa, contanto que não seja material. Nesta perspectiva, a conclusão, apoiada num explícito monismo espiritualista, é a de que, continua, “nem nossos pensamentos, nem as paixões, nem as ideias formadas pela imaginação existem fora da mente” (BERKELEY, 2010, p. 58) e nisso oferece o estatuto definitivo de existência. O que se segue é a consideração de que nada possa existir para além dessa condição de ser percebido, sem alguma relação com o seu ser percebido. Isto é, de que objetos, tais como casas, rios e montanhas possam ter uma existência real,

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objetiva e independentemente de serem percebidos por um eu, o que pressuporia um mundo material exterior, diferente e independente dele, em uma palavra, que sejam objetos que podem ser representados ou não. Smith (2005) alerta que subjazendo a essa questão está o estatuto filosófico que o conceito de ideia recebeu de Berkeley especialmente no Tratado. Nesta obra, como visto, ela é apresentada como um objeto imediato da mente ou do eu. No eu a ideia corresponde à sensação impressa nos sentidos, constituindo as coisas sensíveis. Disso conclui que a própria existência, como diz Smith, “ou são mentes ou são “ideias” dependentes destas” (SMITH, 2005, p. 53). Por conta da própria distinção entre ideia e mente, não faz sentido postular a possibilidade de uma ideia da mente. Sobre isso, ainda no Tratado Berkeley definiu um espírito ou mente, “como um ser simples, não dividido e ativo” (BERKELEY, 2010, p. 74). Em consequência disso “quando percebem ideias, chama-se entendimento; quando produz ou de algum modo atua sobre as ideias, denomina-se vontade” (BERKELEY, 2010, p. 74). Justamente por isso não se pode ter ou formar uma sensação ou ideia da mente, já que estas, para ele, sendo passivas e inertes não podem representar aquilo que age, que atua. Já que elas, conclui, “não encerram em si nenhum poder ou ação” (BERKELEY, 2010, p. 73). Esta distinção severa entre os conceitos de ideia e mente permitiu-lhe reconhecer que a impossibilidade ou dificuldade de se conhecer a mente humana, de representá-la, não decorre de uma imperfeição sua, mas pelos motivos consequentes com a definição de cada um. Por conta disso, o espírito pode ser concebido como “a única substância ou suporte em que os seres não pensantes ou ideias podem existir. Mas, que essa substância que suporta ou percebe ideias deva ela mesma ser uma ideia ou semelhante a uma ideia, é evidentemente absurdo” (BERKELEY, 2010, p. 150). De forma que sendo inerte uma ideia não pode ser causa de si ou de outra ideia, mas deve ser resultado de uma substância ativa e incorpórea, o espírito, aquele que age, “que não pode ser percebido por si, a não ser unicamente pelos efeitos que produz” (BERKELEY, 2010, p. 74-5), a saber, as ideias. Daí em diante, Berkeley esteve pronto para extrair as consequências mais radicais de seu pensamento: a de que o mundo em sua variedade não possui existência fora de uma mente. Repudia, por fim, a consideração ou abstração que postula qualquer tipo de existência independente de um espírito. Tudo isso para, por fim, declarar que se segue que “não há nenhuma outra substância a não ser o espírito, ou aquele que percebe” (BERKELEY, 2010, p. 61). Ou ainda, tudo o que existe é sua autoria, sua fonte, o que desautoriza toda tentativa de aplicar a oposição entre subjetividade e objetividade, entre mundo interior e exterior. Tudo se reduz a pura interioridade.

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Desta forma estamos diante de um fato curioso: o solipsismo, admitido de forma positiva, só pode ser sustentado pela noção particular de mente, de espírito ou de eu, por ele concebida. Resta por gravidade conferir-lhe igualmente uma imaterialidade, ou seja, a condição de um agente distinto na forma e na função, mas não substancialmente diferente de seus produtos, as ideias ou representações, sem que mais nada seja necessário supor, ou abstrair, para conferir estatuto de realidade ao mundo. Como se vê, só há um eu concebido fora da experiência que não precisa mais do que de si mesmo para existir.

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Kant contra o idealismo de Descartes e Berkeley

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Na sua Refutação do idealismo, na Crítica da razão pura, de 1787, Kant pretendeu pôr fim à discussão berkeliana e cartesiana em um mesmo movimento com duas saídas. De acordo com Kant, o idealismo dos seus predecessores pode ser classificado da seguinte maneira: ou se considera a existência dos objetos fora de nós, no espaço, como simplesmente duvidosa e indemonstrável; ou como decididamente falsa e impossível. No primeiro caso temos o idealismo problemático de Descartes. No segundo caso temos o idealismo dogmático de Berkeley. Descartes só admitia como indubitável uma única afirmação, a saber; eu sou. Já para Berkeley, considerava-se impossível em si o próprio espaço e as coisas nele eram entendidas como meras ficções. Segundo Kant, o idealismo dogmático seria inevitável em função da concepção da noção de espaço. Quer dizer, se se considera o espaço como propriedade que deve ser atribuída às coisas em si, então tanto o espaço como tudo a que serve de condição é um não ser dado que não tenho acesso senão apenas às minhas sensações. Porém, o fundamento deste idealismo teria sido derrubado facilmente se, como quer Kant, se considerasse o espaço e o tempo como formas puras de toda intuição possível, tal como se desenvolve na estética transcendental da primeira crítica, e assim os objetos seriam aparecimentos, fenômenos, mas nunca não coisas em si. Por outro lado, o idealismo problemático, só alega incapacidade de demonstrar, por uma experiência imediata, uma existência que não seja a do próprio eu. Segundo Kant, essa concepção é racional e conforme a uma maneira de pensar rigorosamente filosófica. O método consistiria em não permitir um juízo decisivo antes de ter sido encontrada prova suficiente. A prova exigida deveria mostrar que temos experiência e não apenas imaginação das coisas exteriores. A estratégia de Kant consistiu

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em demonstrar que, mesmo a nossa experiência interna só é possível mediante o pressuposto da experiência externa. (KANT, KrV B, p. 274-275). Entendamos melhor esta posição de Kant. O idealismo transcendental é, segundo Kant, um realismo empírico, quer dizer que “considera que toda percepção demonstra algo real no espaço, ou melhor, é o próprio real” (KANT, KrV A, p. 375). Nesse sentido, a prova a ser proposta contra o idealismo material ou idealismo empírico se fundará na necessidade lógica de algo Outro (como não eu) para afirmar o eu e inverter a ordem da argumentação com relação ao interno-externo. Espaço e tempo são condições de possibilidade do objeto e não predicados das coisas em si mesmas. Assim, contrariando o idealismo material, Kant assegurou na sua crítica que “só a experiência exterior pode ser propriamente imediata” (KANT, KrV B, p. 276) e é a partir dela que podemos falar da nossa própria existência e da experiência interna. Para Kant, o eu sou, não pode ser uma substância, senão que apenas “exprime a consciência que pode acompanhar todo o pensamento, é o que imediatamente contém em si a existência de um sujeito, mas não é ainda nenhum conhecimento, portanto não é também nenhum conhecimento empírico, ou seja, nenhuma experiência” (KANT, KrV B, p. 277). O eu que deve poder acompanhar todas as minhas representações como minhas é apenas uma função lógica, uma exigência do próprio funcionamento do aparelho cognitivo que permite a experiência do conhecer. Assim, Kant sustenta contra Descartes e Berkeley que “a consciência de mim próprio na representação eu não é uma intuição, mas uma representação simplesmente intelectual da espontaneidade de um sujeito pensante” (KANT, KrV B, p. 278) que não se afirma senão em relação a objetos externos ou não eu. Porém, para determinar a realidade propriamente dita deste ou daquele dos objetos externos específicos há ainda um problema. Segundo Kant, “da necessidade da existência de objetos exteriores para a possibilidade de uma consciência determinada de nós mesmos não se conclui que toda a representação intuitiva das coisas exteriores implique a existência dessas mesmas coisas, porquanto esta representação pode ser simplesmente um efeito da imaginação (em sonhos ou também na loucura)” (KANT, KrV B, p. 278279). Kant introduz o problema do sonho e do delírio que tão caro foi para os pensadores modernos desde Descartes. A minha sensação ou percepção neste momento pode não ter vínculo com um objeto real no espaço, porém, mesmo nesse caso, a imagem produzida na minha sensação se realiza unicamente mediante a reprodução de antigas percepções externas, que só são possíveis mercê da realidade dos objetos exteriores que em algum momento

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A realidade e a loucura de Kant

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se me apresentaram como tais. Mesmo a loucura ou a simples imaginação dos objetos em uma fantasia pessoal requer de que alguns objetos tenham se apresentado em algum momento. Do contrário deveríamos postular ideias inatas ou uma autoprodução interna ex nihilo. Para averiguar se esta ou aquela suposta experiência especificamente é ou não simples imaginação, Kant propõe uma espécie de teste de realidade, a saber: será preciso submeter o evento às determinações particulares da experiência e o seu acordo com os critérios de toda a experiência real (KANT, KrV B, p. 278-279). Se o evento concorda com as condições da experiência (esquematismo dos conceitos e princípios do entendimento), então o evento é real. Dito por outras palavras, caso você não saiba se o que está vendo é ou não real então deve pedir ajuda para um especialista em determinar as condições da experiência. O próprio Kant abordou o tema não só como um problema do conhecimento científico senão também sob a forma da loucura e sugeriu alguns modos de distinguir as visões daquilo que seria propriamente real.

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Kant distinguiu três tipos de ilusões, a saber: empírica, lógica e transcendental. A ilusão empírica, diz respeito ao uso empírico do entendimento e tem como exemplo as ilusões de ótica, isto é, quando “a faculdade de julgar é desviada do caminho pela influência da imaginação” (KANT, KrV B, p. 352). A ilusão lógica, reflete um mero descuido para com as regras lógicas do raciocinar. E, finalmente, a ilusão transcendental, que diferentemente das duas anteriores, “não cessa caso seja desvendada, e a sua nulidade seja claramente discernida pela crítica transcendental” [...] (KANT, KrV B, p. 353354). Trata-se de uma ilusão que não pode ser evitada, “do mesmo modo como não podemos evitar que o mar nos pareça no meio mais elevado do que na margem, já que vemos aquele através de raios de luz mais elevados, ou ainda do mesmo modo como o próprio astrônomo não consegue evitar que a lua lhe pareça maior ao surgir, ainda que sem deixar enganar-se por essa ilusão” (KANT, KrV B, p. 353-354). Com isso, Kant indicou a inevitabilidade da ilusão transcendental tanto quanto da empírica, mas destacou que a segunda poderia ser corrigida enquanto a primeira, mesmo se corrigida, permaneceria iludindo. A ilusão transcendental produz um efeito de realidade sobre supostos objetos de ideias de razão. A causa de tal ocorrência, segundo Kant, está no fato de a razão conter regras e máximas que “fazem com que a necessidade subjetiva

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de uma certa conexão de nossos conceitos para o entendimento seja tomada por uma necessidade objetiva da determinação das coisas em si mesmas” (KANT, KrV B, p. 353). O equívoco provocado pela ilusão está em fazer parecer possível o conhecimento das coisas em si mesmas. Pois, como sabemos, para Kant não é possível conhecer as coisas tais como elas são, mas apenas como aparecem. Isto porque o conhecimento sobre os objetos se constitui a partir de uma estrutura cognitiva no ser humano, que precede toda a experiência. O conhecimento sobre os objetos se dá em conformidade com as formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e do entendimento (categorias). Além disso, a razão contém e produz também princípios e conceitos a priori que não se restringem ao âmbito da experiência, e que, ao procurar pela totalidade das condições frente a um condicionado dado, não encontram nos sentidos um objeto que lhes corresponda (KANT, KrV B, p. 383). Para compreendermos melhor o funcionamento da razão é importante que tenhamos em vista que a razão pura, enquanto sede da ilusão transcendental, tem um uso lógico e um uso puro. O uso lógico ou formal abstrai todo o conteúdo, restando-lhe apenas a forma lógica da inferência mediata. Kant distinguiu o uso lógico do entendimento do uso lógico da razão. A razão, diferentemente do entendimento, lida com um juízo intermediário, ou seja, para chegar à conclusão ela requer algo a mais − uma terceira representação. Como faculdade da unidade das regras sob princípios (KANT, KrV B, p. 359), a razão visa reduzir a diversidade do conhecimento obtido pelo entendimento, assim produzindo a maior unidade de princípios possível. Desta forma, no uso lógico, o princípio da razão é: “buscar o incondicionado para os conhecimentos condicionados do entendimento, completando-se assim a unidade deste último” (KANT, KrV B, p. 364). O uso puro, entretanto, assume, em prosseguimento ao uso lógico, que “dado o condicionado, também é dada (i. é., contida no objeto e em sua conexão) a inteira série das condições subordinadas umas às outras, a qual, portanto, é ela própria incondicionada” (KANT, KrV B, p. 364). Trata-se aqui do uso puro ou transcendental da razão, que apostando no incondicionado, distancia-se dos fenômenos do mundo empírico. Kant advertiu que os conceitos ou ideias da razão derivados dos modos do raciocínio contêm o incondicionado, mas este não pode nunca ser tomado como se constituísse um objeto da experiência (necessariamente condicionada). Desta forma, a tentativa de pretender um conhecimento da alma, de Deus ou do mundo, como se o seu estatuto fosse o mesmo que o de um objeto empírico torna-se um verdadeiro equívoco. O resultado desta tentativa seriam argumentos destituídos de sentido e seus resultados poderiam ser considerados análogos aos das produções delirantes da loucura.

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Freud no final da modernidade

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Em Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica, de 1766, Kant levou adiante a discussão sobre o absurdo semântico (Perez, 2008) de dar consistência e de considerar seriamente o tema a respeito de espíritos. Tanto o visionário quanto o metafísico voltado aos temas transcendentes teriam em comum a produção de conceitos quiméricos e apartados daquilo que é possível conhecer. Criariam discursos sobre objetos de ficção sem qualquer realidade efetiva.

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A esta altura julgamos procedente verificar se a psicanálise freudiana pode nos fornecer argumentos razoáveis para justificar a existência de corpos (ou fontes) exteriores (e interiores também) causadores de sensações e representações que não sejam um delírio ou uma alucinação e em que medida ensejam a constituição da subjetividade. Pretendemos reconhecer as armas com que Freud enfrentou a querela filosófica do realismo versus solipsismo, ou mais especificamente da distinção entre mundo interior e exterior. De fato, nosso interesse consiste em investigar as diferentes oportunidades em que sua psicanálise buscou uma forma de dar conta de nossa relação com a realidade. Para isso, nossa pesquisa segue doravante em duas direções. Primeiro, investigando em um conjunto de obras, apresentadas sem nos comprometermos com uma ordem cronológica linear, os argumentos mais pontuais sobre o que Freud nomeou teste de realidade, na maioria delas atribuindo ao eu a função de aplicá-lo. Segundo, investigaremos sua particular concepção da gênese e estatuto do eu. As obras da primeira direção da pesquisa são: O mal-estar na civilização, Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental, Monografia sobre as afasias, Projeto para uma psicologia, Interpretação de sonhos, Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos, Os instintos e suas vicissitudes, Sobre o narcisismo, O inconsciente, A negativa, Uma nota sobre o bloco mágico, A perda da realidade na neurose e na psicose, Esboço de psicanálise, Psicologia de grupo e análise do ego e O eu e o isso. Os argumentos oferecidos por Freud, como o leitor terá a oportunidade de encontrar adiante, não se prestam a oferecer um definitivo critério de distinção entre percepção e memória. Muitas vezes se mostraram insuficientes, não alcançando o critério distintivo almejado desde o início da modernidade. No entanto, e cremos ser esta sua contribuição mais eficaz, enfrentou-o por meio de uma concepção alternativa de eu, evitando e se distanciando do estatuto substancial que lhe conferiram os filósofos modernos como Descartes e

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Berkeley. Não nos arriscamos declarar antecipadamente se essa providência resolveu a tradicional querela entre realistas e solipsistas. Ainda a título de introdução, nessa perspectiva alternativa de eu a partir da postulação de sua gênese empírica, cremos que a pergunta pela causa e pela fonte da representação passa a fazer ainda mais sentido, principalmente se consideramos a natureza da representação, como ela é e de que tipo e quais associações lhe são prediletas (imagem acústica, imagem visual, imagem de movimento, representação-palavra ou representação-objeto, representações do eu ou do objeto interno). A esse respeito, e interligada à questão anterior, outra pergunta se impõe quando se trata dos contornos do eu freudiano: mais do que a identificação da fonte produtora da representação, se interna ou externa, interessam-nos os fatores que interagem e reorganizam os estímulos entre si. É por isso que o eu não foi concebido como um elemento substancial e autônomo que tira de si mesmo sua produção (como o é em Berkeley), pois, para Freud, até mesmo quando o sujeito alucina o faz com material anteriormente percebido, na repetição de processos e vivências do aparelho, sobretudo em uma parceria entre o mundo interior e exterior. Neste ponto, Freud se aproxima da tese kantiana da necessidade da percepção externa para o reconhecimento do interno. Portanto, é a partir da própria redefinição do estatuto do eu-agente berkeliano (substancial/ subjetivo/suporte/ sujeito das faculdades) para o eu-intrasubjetivo freudiano (um eu que recebe fundação, digamos, num meio caminho entre o interior e o exterior e que se mistura à paisagem do mundo) que se desloca o problema da realidade. É nesta dobradiça, entre a filosofia moderna e o advento da psicanálise, que aparece a possibilidade de reformulação do problema ontológico em questão. Reunidas ambas as direções de investigação, esperamos poder indagar se a teoria psicanalítica nos fornece de fato uma alternativa de abordagem do problema filosófico do discernimento entre realidade e não realidade, percepção e memória ou alucinação; se sim, em quais parâmetros. Assim, ousaremos trilhar um percurso que nos indique, se não a solução, pelo menos o enfrentamento do que nomeamos acima a mais radical de todas as dúvidas que nos aflige, a existência de algo para além, ou para aquém, dos conteúdos de nossa consciência.

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PARTE III3

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A elaboração de um teste de realidade foi um desafio autoimposto por Freud. Isto fez com que o médico de vocação naturalista deva conceber na sua reflexão teórica um agente (prático), no caso o eu, cuja função seria a de distinguir, segundo critérios, uma realidade interior de outra exterior. Assim, o eu foi situado entre duas fontes de realidade, entre dois pontos distintos e distantes, mas diretamente relacionados com ele, inclusive na forma da determinação. Como ponto de partida de nossa investigação nos deteremos em algumas passagens da obra tardia O mal-estar na civilização, de 1929. Nesse texto Freud discorreu sobre o estatuto do eu enquanto instância constituída de representações e segundo uma localização determinada na fronteira entre diferentes registros. Com o propósito de apontar para as linhas de demarcação do eu, Freud escreveu que “o ego é continuado para dentro, sem qualquer delimitação nítida” (FREUD, 1929 (1997), p. 11). Portanto, em certa medida ele é a fachada de uma entidade primitiva e inconsciente que chamou de Isso. Já no outro extremo, no exterior, o eu, “parece manter linhas de demarcação bem claras e distintas” (FREUD, 1929 (1997), p. 11) como condição do aparelho já constituído. No entanto, apesar da distinção mais acentuada em relação ao exterior, no conjunto as fronteiras do eu nunca são efetivamente distintas e nem mesmo permanentes. Isto também ficou claro quando alegou que em sua fase inicial a “criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos” (FREUD, 1929 (1997), p. 12). Contudo, isto, que de início outra coisa não é senão uma reação ao que chamou de “uma massa geral de sensações” (FREUD, 1929 (1997), p. 13), não apresenta e nem traz consigo um dispositivo ou critério de diferenciação entre os estímulos provenientes do próprio corpo e os do exterior. Na tentativa de dar conta dessa questão, Freud começou por postular

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Do teste de realidade em Freud

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O TESTE DA REALIDADE

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As citações desta parte seguirão o modelo autor, data, página, com data de publicação da obra e da edição utilizada.

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o critério da observação, não ainda da intensidade, mas da frequência ou do ritmo dos estímulos. Admitiu que por meio do sofrimento o bebê identifica, por um lado, estímulos constantes de seus próprios órgãos corporais a todo e qualquer momento, como a fome, estímulos emitidos constantemente por seu estômago e, por outro lado, uma segunda categoria de estímulos provocados pelo seio materno que de tempos em tempos lhe escapa, mas que pode retornar por meio de providências “como resultado de seus gritos de socorro” (FREUD, 1929 (1997), p. 13). Por esta diferenciação a inicialmente indistinta massa geral de sensações passa oportunamente a ser reconhecida em suas procedências. Contudo, parece ainda não estar bem estabelecida a eficácia que se espera deste argumento. Isto porque Freud se limita a descrever a operação segundo a qual o bebê oporia à segunda categoria de estímulos e de representações “um objeto, sob a forma de algo que existe “exteriormente” e que só é forçado a surgir através de uma ação especial” (FREUD, 1929 (1997), p. 13). Até aqui parece não haver dificuldade em admitir a possibilidade do bebê operar a distinção das duas categorias de estímulos. No entanto, aparece como problemático conceder a capacidade de distinção entre o interior e o exterior, ou ainda, de relacionar a cada uma delas algo sob forma de fontes distintas. Essa distinção não pode ser apresentada como imediata senão como uma abstração ou uma reflexão derivada. Queremos dizer com isto que estímulos com ritmos distintos, e por isto diferenciados, apesar de produzirem sensações qualitativamente distintas, não trazem consigo informações evidentes e precisas sobre sua causa ou sua fonte. O próprio Freud reconheceu que “uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos” (Freud, 1929 (1997), p. 12). O problema aqui é o que significa aprender. Como aprender qual é a fonte dos estímulos sem aplicar o conceito abstrato de causalidade levando em consideração uma teoria da causalidade dos eventos? Acaso haveria algo inato que permitiria ao bebê conectar de uma determinada forma eventos diversos? Aparentemente consciente da precariedade do argumento, Freud avançou apoiado na hipótese de um princípio biológico de conservação próprio do organismo. Embora não tenha atribuído exclusividade, declarou que “outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações, isto é, para o reconhecimento ou discernimento de um exterior, de um mundo externo, é proporcionado pelas frequentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu irrestrito domínio” (FREUD, 1929 (1997), p. 13). Com ele reconheceu uma propriedade biológica do aparelho

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psíquico, ainda incipiente, que consiste na capacidade de afastar ou isolar de si tudo o que possa produzir desprazer, de modo que a instalação progressiva do teste de realidade funcionaria como instrumento de capacitação para evitar o desprazer. No esquema anteriormente apresentado reside o impulso ou motivação para o deslocamento do eu (de sua atenção) em direção ao exterior, pela via dos órgãos dos sentidos. Para isto, o eu confronta a realidade em suas ameaças. O valor deste argumento consiste no fato de destacar que toda estimulação é em si mesma desagradável, provocando desconforto e desprazer em um sistema (tanto o nervoso como o psíquico) disposto e orientado no exercício de um mecanismo nomeado arco-reflexo. Esta estrutura expressa uma tendência para o repouso, ou ainda, para retornar a ele após ser bem-sucedido em escoar toda estimulação sofrida, depois de tomar providências para alcançar esta meta. Assim, entendemos o sentido do princípio do prazer, no exercício de sua vocação e domínio. Na verdade, o argumento de que a partir desta qualificação dos estímulos pela consciência decorreria “uma tendência a isolar do ego tudo o que pode tornar-se fonte de tal desprazer” (FREUD, 1929 (1997), p. 13), não indica por qual meio o bebê teria reconhecido a fonte do estímulo. Especialmente porque o desprazer e o prazer produzidos no eu decorrem, grosso modo, como efeitos da produção e da supressão, respectivamente, tanto dos estímulos de origem endógena como exógena, lembrando que o advento de “um puro ego em busca do prazer” (Freud, 1929 (1997), p. 13), responsável pelo encontro e reconhecimento do objeto exterior, equivale, em última ou primeira instância à busca de ausência de estímulos. Consideremos o estranho e ameaçador que é para o eu toda e qualquer estimulação que o alcance. Até porque a noção de prazer pode ser reconhecida como negativa, como ausência de estímulo ou como tendência ao repouso. Esta tendência foi apresentada em pelo menos dois momentos de sua produção teórica, a saber, no Projeto de uma psicologia, 1895 e em Além do princípio do prazer, 1920. Quando, segundo seu interesse, o eu age escoando estímulos, atua no sentido de buscar prazer livrando-se do desprazer. No entanto, permanecem incompreensíveis as circunstâncias em que ele passa a executá-lo. Como disse Freud, trata-se de uma retificação “através da experiência” (FREUD, 1929 (1997), p. 13). A justificativa de sua capacitação nos parece apenas descritiva e não propriamente genética como o próprio Freud pretendeu e definiu nessa mesma obra como sendo a característica da pesquisa psicanalítica. No entanto, na tentativa de preencher essa fenda na teoria Freud avançou postulando um segundo princípio de funcionamento mental, o prin-

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Freud e o funcionamento da mente

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cípio de realidade que compartilha com o de prazer a tarefa de orientar o funcionamento do aparelho psíquico, vale dizer, de promover a capacidade de articular pelo eu necessidades internas com recursos externos. É pela experiência daquilo que proporciona prazer ou desprazer que se pode separar do eu o mundo ameaçador e estranho. Dito por outras palavras, o critério do prazer-desprazer permitiria distinguir os estímulos que ele pode afastar (por serem exteriores) daqueles que não pode afastar (e que residem no interior do organismo). Desta forma o bebê se habilita para promover a separação entre eu e mundo exterior, considerando que “originalmente o ego inclui tudo” (FREUD, 1929 (1997), p. 14). Deste modo, o vínculo abrangente entre o eu e o mundo não seria outra coisa do que um resquício de um passado cujo sentimento primário foi totalmente inclusivo. Com isso coexistiria em nosso demarcado eu atual, um conteúdo ideacional correspondente ao sentimento oceânico do ilimitado e de vínculo com o universo. A postulação daquele princípio teria sido no mínimo inconsistente se o próprio reconhecimento e distinção da realidade ou exterioridade pelo eu ainda não estivesse devidamente justificada e esclarecida. Antes de tirarmos conclusões apressadas, retornemos a um texto de 1911 onde o par de princípios acima referidos foi apresentado pela primeira vez e com detalhes que podem oferecer mais luz à nossa investigação.

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Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud se ocupou fundamentalmente da tarefa de expor a distinção entre os que seriam os dois princípios reguladores do funcionamento psíquico e com isto dar maior consistência aos processos psíquicos primário e secundário sob seus domínios. Desta forma, o interesse maior de sua teoria não residiu na resolução de um problema epistemológico, mas em oferecer subsídio para a compreensão da relação do paciente com sua história de vida e dos importantes distúrbios patológicos que decorrem desta relação. Isto foi feito a partir de um procedimento que mais tarde nomeou de metapsicologia. A propósito, não foi por outro motivo que também nesta obra declarou que “os neuróticos afastam-se da realidade por achá-la insuportável − seja no todo ou em parte” (FREUD, 1911 (1969), p. 237). Assim também, reconheceu que a psicose alucinatória constitui um exemplo eloquente da recusa e afastamento da realidade, evidenciando, entre outras coisas, uma “incapacidade” de distinguir uma alucinação de uma percepção real. Por conta disso, o propósito deste breve artigo era “trazer a significação psicológica do mundo externo e real para a estrutura de nossas teorias” (FREUD, 1911 (1969), p. 237). Para

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tanto, passou a investigar a gênese da relação do homem com a realidade. Esta obra constituiu ainda, quanto ao conceito de teste de realidade, “o momento de seu estabelecimento” (PORCHAT, 2005, p. 35), fundamental para dar conta também de seu funcionamento e aplicação ao longo da vida adulta. Freud parte da indicação de “dois momentos”. Esta distinção temporal nos parece importante para que reconheçamos não só as dificuldades inerentes a cada um, como as suas possibilidades e consequências. Efetivamente, o primeiro deles necessariamente leva em conta o aparelho psíquico em sua condição mais primitiva e elementar. Nesta fase o que caracteriza o aparelho é, segundo Freud, sua condição inerme, por conta do que seu dispositivo de defesa contra estímulos seria o próprio mecanismo do arco-reflexo. Esta condição nos permite reconhecer, mais uma vez recorrendo a Porchat, que nesta fase se trata de “um aparelho que tende à alucinação e não ao reconhecimento da realidade externa” (PORCHAT, 2005, p. 43) e que por isso mesmo “fornece o significado inicial do conceito de teste de realidade” (PORCHAT, 2005, p. 43). Tal dispositivo constitui sua primeira arma “adquirida” de defesa contra estímulos. Deste modo, persegue dois objetivos, o primeiro seria o de impedir a satisfação pela via da alucinação, nos moldes que veremos adiante, e em consequência disto possibilitar ao eu o encontro (na verdade reencontro) de objetos de satisfação no exterior. Para avançar na sua argumentação Freud admitiu como ponto de partida o que chamou de processos mentais inconscientes, reconhecidos como os mais antigos, mais primários, vale dizer, primeiros na ordem do desenvolvimento psíquico do homem. Mais ainda do que isso, próprios de uma fase de desenvolvimento onde atuavam, segundo sua ficção teórica, com anterioridade e exclusividade. Acrescentou que estes processos primários eram desde sempre regidos por um princípio que chamou de “princípio de prazer-desprazer, ou simplesmente, princípio de prazer” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Mostrar seu modo de funcionamento reforçou os argumentos que justificavam e explicavam o desenvolvimento de todo processo psíquico e, particularmente, do eu como instância em constituição. Assim, mais uma vez, indicou em que medida as exigências das necessidades internas impulsionam a produção da maquinaria psíquica. De fato nesta obra Freud não reapresentou em detalhes argumentos explicativos, por exemplo, do modo de constituição das representações (o que fez em 1891 na Monografia sobre as afasias), da montagem ou constituição do eu no sistema de memória (o que fez em 1895 no Projeto para uma psicologia) e nem mesmo da inscrição de um circuito de satisfação (também apresentado no Projeto) que permite seu reinvestimento para fins de realização de desejo. No entanto, parece que apoiado no conjunto de argumentos anteriores, Freud pode afirmar que

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Uma realidade desagradável

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diante da ocorrência dos estímulos ou das demandas internas, ou seja, “quando isso aconteceu, tudo que havia sido pensado (desejado) foi simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece com nossos pensamentos oníricos a cada noite” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). De modo que a despeito de outras funções, o próprio ato de imaginar já pode ser compreendido como correspondendo à tentativa de atender ao desejo. Ora, esta providência parece estar plenamente de acordo com o modo de funcionamento do processo primário, o de “afastar-se de qualquer evento que possa despertar desprazer (aqui temos a repressão)” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Assim, neste procedimento temos a tentativa inicial de atender à “tendência a afastar-se de impressões aflitivas” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Tal ocorrência demanda a consideração do sistema de memória como elemento constitutivo do dispositivo do teste de realidade, mesmo quando pensamos o aparelho psíquico em sua condição mais primitiva e elementar. No entanto, o mesmo sistema de memória que possibilita a orientação de uma ação motora adequada e bem-sucedida, oferecendo os registros de caminhos preferenciais na descarga de estímulos, por vezes, é também o que oportuniza a alucinação. Portanto, não é ainda a memória em si o único elemento decisivo para a distinção entre as fontes de estimulação. Por conta disso, o recurso à alucinação deverá ser ainda inibido em alguma medida por sua aplicação. Foi a partir do fracasso real da providência alucinatória, visando aplacar a demanda endógena, a partir do desapontamento experimentado pela ausência da satisfação almejada e pela insistência do estímulo endógeno e, portanto, da incessante experiência do desprazer, que Freud identificou uma consequência em dois itens. De início o abandono da alucinação e, secundariamente a emergência de uma nova. Esta nova alucinação é evidentemente tomada por parte de um eu primitivo que consideramos, por força da teoria, minimamente já constituído e capacitado para a tarefa que de um modo geral consiste em “decidir tomar uma concepção das circunstâncias reais no mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma alteração real” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Uma iniciativa deste tipo foi justificada a partir de um novo princípio de funcionamento psíquico, chamou-o princípio de realidade.

Segundo Freud, “o que se apresentava na mente não era mais o agradável, mas o real, mesmo que acontecesse ser desagradável” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Evidentemente a escolha pelo agradável, ou pelo resultado

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agradável, estava articulada no reinvestimento do circuito facilitado por uma experiência anterior de satisfação de dois modos: de início de maneira alucinatória, depois como atitude apoiada no reconhecimento e discernimento de um registro mnemônico, doravante não mais reinvestido alucinatoriamente, mas como identificado ao seu objeto exterior-causa, ao qual o eu deve se dirigir e providenciar seu retorno, portanto seu reencontro. De fato, Freud descreveu uma iniciativa de operação por parte do eu, segundo um progressivo reconhecimento e distinção das sensações ou representações reinvestidas de maneira alucinatória. Isto seria possível, uma vez tendo se dirigido ao exterior particularmente com o recurso dos órgãos sensoriais e da consciência que a eles está ligada, a partir da qual experimentou e reconheceu novas qualidades sensoriais. Por exemplo, as causadas pela presença do seio materno ou o toque da mãe e a imagem do seu rosto. Inclusive, com o acréscimo de novas qualidades sensoriais além do prazer-desprazer, a partir das quais são possibilitadas comparações mais eficazes. Aqui o leitor poderá perceber que a lógica de funcionamento do aparelho psíquico, longe de apresentar uma tendência à conservação e integração (e que aguarda do ambiente uma facilitação), não abandona nunca o propósito do princípio do prazer. Para isso, procede a uma valorização do aparelho perceptivo-consciência constituindo inicialmente o aparelho psíquico enquanto dispositivo do teste de realidade, bem como aplicando-o segundo critérios de distinção entre sensações de origem interna e externa, ao longo da vida. Assim, se volta à realidade exterior, se submetendo ao princípio de realidade, ao processo secundário e por meio deles, acrescentemos, cumpre as determinações do princípio do prazer. De modo que o teste de realidade atua a serviço da pulsão de conservação (as pulsões do eu, como descrito na primeira tópica) apenas como função derivada e a contragosto dos propósitos fundamentais do aparelho psíquico. Com este argumento, pretendemos sustentar a tese de que toda constituição da subjetividade assim como a manutenção ou conservação da vida se dão por uma articulação entre interior e exterior que se opõe por um período determinado de tempo à pulsão de morte que subsiste em todo organismo. Assim, o discernimento necessário poderia derivar de início do recurso de lançar mão do circuito de registro da experiência sensível bem-sucedida, proporcionada anteriormente pela iniciativa de algum provedor externo diante do choro ou dos movimentos involuntários do bebê. Isto teria ocorrido primeiramente por pura tentativa de interpretação dos pais e não por uma ação comunicativa deliberada por parte do bebê. Na mesma obra Freud

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reconheceu que apenas mais tarde a criança “aprende a empregar intencionalmente estas manifestações de descarga como método de expressar suas emoções” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Tal reconstituição hipotética das ocorrências iniciais foi pensada ou concebida da seguinte maneira e nos seguintes termos: “o bebê revela seu desprazer, quando há um aumento de estímulo e uma ausência de satisfação, pela descarga motora de gritar e debater-se com os braços e pernas, e então experimenta a satisfação que alucinou” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). Na verdade, experimenta inicialmente um rebaixamento, ainda que momentâneo, de tensão, o que deve ser vivido como prazer. Já a alucinação pode ocorrer a partir desse registro, bem como de um segundo, a saber, da satisfação experimentada pela oferta do seio pela mãe, quando esta interpretou o choro como fome. Na verdade, em princípio, trata-se de uma experiência em pelo menos duas etapas, uma motora que parece absolutamente involuntária (fadada ao fracasso, já que o escoamento da tensão experimentado apresenta-se passageiro) e outra alucinatória (igualmente fadada a novo fracasso), possibilitada pelo processo primário orientado pelo princípio do prazer. Vale reforçar que a alucinação procede, em tese, tanto em relação ao resultado efêmero provocado pela descarga motora ao gritar e debater-se, como em relação à oferta de amamentação dos pais. Reconheçamos que de fato Freud não deixou claro se a satisfação alucinatória depende dos efeitos da própria ação motora. Quer dizer, se é posterior e em relação a ela, que, quem sabe, teria o poder de aplacar ao menos por instantes a fome e por isso, oferecer ou provocar a alternativa posterior de reinvestimento quando o mesmo estímulo reincide mais tarde. Notemos que até esse momento, e segundo nossa especulação, nem mesmo a primeira mamada seria necessária para propiciar o processo alucinatório. No entanto, não resta dúvida acerca da iniciativa materna que, fazendo oferta do seio e do leite que o acompanha, proporciona o apaziguamento da fome por um período mais longo, provendo o bebê de maneira mais efetiva do registro da experiência necessária ao reinvestimento posterior. De qualquer forma, em um caso ou noutro, não ficou indicado o que há de distintivo em ambas as experiências que faculte ao eu distinguir suas procedências e com isto passar a assumir deliberadamente a função eficaz de busca do prazer no escoamento da excitação. Contudo, Freud advertiu que sua hipótese só faz sentido “desde que se inclua o cuidado que (o bebê) recebe da mãe” (FREUD, 1911 (1969), p. 238). É inegável que com a introdução deste agente parental deu um passo importante, para não dizer fundamental,

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na consideração da exterioridade como fator de constituição da interioridade da subjetividade humana, embora não possamos ainda dimensionar toda sua importância e nem mesmo sua relação com outros fatores. A título de problematização das justificativas de Freud, ou de possíveis interpretações delas, gostaríamos de apontar que o argumento biológico que reconhece na fuga da dor um dispositivo de sobrevivência, na verdade não diz tudo isso, não sustenta e nem se apoia em mais do que no reconhecimento de uma intolerância em relação a estímulos constantes. Por conta disto, sua extensão à condição de um princípio de conservação da vida só se sustenta de fato desde que lhe seja anexada do exterior a iniciativa provedora da mãe, esta sim interessada (não trataremos aqui de justificar seus motivos) na preservação do bebê. O que se pode dizer com segurança é que o bebê, ao funcionar segundo o mecanismo do arco-reflexo, acaba por se livrar, por um meio ou por outro, do desconforto da excitação, enquanto a mãe, esta sim, deseja nutri-lo visando sua sobrevivência. Arriscamos afirmar que a coincidência e a simultaneidade destas ocorrências é que produz ou proporciona, segundo entendemos, a conservação e o funcionamento prolongado do organismo do bebê rumo à vida adulta. No entanto, o expediente da alucinação insiste em condenar o aparelho psíquico ao fracasso, impulsionando-o a um procedimento conjugado de supressão do estado alucinatório com a valorização da “importância dos órgãos sensoriais, que se acham dirigidos para esse mundo externo e da consciência a eles ligada” (FREUD, 1911 (1969), p. 239). Deste contato outras qualidades sensoriais são acrescidas como material da sensibilidade e com as quais a consciência passa a trabalhar, embora não especifique quais são além do par prazer-desprazer “que até então lhe haviam interessado exclusivamente” (FREUD, 1911 (1969), p. 239). Tal iniciativa produz a ocorrência da providência que se fez acompanhar não só da potencialização da sensibilidade-consciência como de uma ampliação de seu campo de abrangência, gerando a própria complexificação do inerme e incipiente aparelho psíquico, por meio de uma nova e especial função: a atenção. Sobre ela, Freud disse que “sua atividade vai encontrar as impressões sensórias a meio caminho, ao invés de esperar por seu aparecimento” (FREUD, 1911 (1969), p. 239). Ao mesmo tempo um sistema de notação foi introduzido. Trata-se de uma sofisticação da memória necessária para o atendimento de demandas internas e externas, e isto por meio “da tarefa de assentar os resultados desta atividade (a atenção) da consciência” (FREUD, 1911 (1969), p. 239). A esta altura, podemos reconhecer a implantação já em adiantado do dispositivo do teste de realidade. De modo que o desenvolvimento das tais funções psíquicas sofisticadas (a memória, a percepção, a atenção, entre

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outras), decorrentes da repressão anterior, ou melhor dizendo, da inibição dos mecanismos produtores do desprazer no aparelho psíquico, proporcionou o que Freud chamou de julgamento imparcial. De modo que cronologicamente a memória parece ser o fator de acionamento da montagem das demais funções psíquicas que serão responsáveis pelo julgamento imparcial. A memória terá uma função de destaque na tarefa de “discernir se determinada ideia era verdadeira ou falsa, isto é, se se achava ou não em concordância com a realidade” (FREUD, 1911 (1969), p. 239). Há aqui uma curiosidade que merece ser destacada. Se esta sofisticação da consciência e do eu (na verdade, do aparelho psíquico como um todo) corresponde, segundo muitos, a um processo adaptativo, então deve estar próximo de algo dado, como já indicamos, em torno de uma “regra biológica”, seja qual for seu estatuto. No entanto, dois pontos merecem realce. Primeiro, que o postulado princípio básico de funcionamento tanto do sistema nervoso como do aparelho psíquico é, segundo a meta que estabelece, a do escoamento de tensões, isto é, do princípio do prazer. Portanto, não haveria por si mesmo algum interesse primordial em adaptar um organismo que apenas tem como tendência sua exaustão, o repouso, ou ainda o retorno ao estado inorgânico precedente (argumento que Freud finalmente formulou em 1920). De modo que todo desenvolvimento (ou adaptação) que se seguiu pode ainda manter-se a serviço do princípio do prazer. Segundo, lembremos que algumas páginas adiante, no mesmo artigo, Freud declarou que coisas como a ciência, a educação e a arte teriam a tarefa de conquistar o princípio do prazer, de substituí-lo pelo princípio de realidade, inclusive de reconciliá-los, mas jamais de promover sua superação definitiva ou supressão. Olhados em conjunto, estes dois argumentos levantam uma suspeita: a adaptação resultante decorreria, não necessariamente da condição biológica do bebê (pelo menos quando esta é pensada como conservadora), mas de seu exterior, mais precisamente da ação provedora familiar que incide e persiste sobre ele sob as mais diversas formas culturais. De modo que o verdadeiro processo que promove o desenvolvimento do eu acrescido de sua adaptação, sobrevivência e sofisticação, talvez provenha majoritariamente dos interesses de agentes do mundo exterior, cujos propósitos de “superação” do princípio do prazer ficam claros pela oferta ou introdução do princípio de realidade e da cultura dele resultante, apoiada na sofisticação das funções psíquicas. Arriscamos relacionar tais exo-interesses numa solução de continuidade e solidariedade com o mecanismo de “repressão” que Freud postulou neste mesmo artigo. No entanto, tudo isso além de não suprimi-lo, ainda não

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deixa de atender ao interesse primordial do princípio do prazer, oferecendo quando muito motivos para estender a vida e suportar tensões (nisso intervém o princípio de constância) sempre a contragosto do aparelho psíquico. Cabe aqui um parênteses para dizer que Freud só formulou o termo princípio de constância mais tarde, em Além do princípio do prazer de 1920, porém sua teorização data do Projeto de1895. Nesta oportunidade foi denominado como tendência à constância, o que também nos ajuda a entender a meta primordial do princípio do prazer, já que o aparelho neuronal de 1895 também buscava escoar todas as tensões e permanecer em repouso. Contudo, este modelo do arco-reflexo teve de admitir um armazenamento mínimo de energia para dar conta da estimulação interna (pulsional). Por isto, sua tendência primária à inércia sofreu uma modificação: a energia do aparelho permanece mais baixa possível e, assim, emerge o que foi chamado de princípio de constância em 1920. Como já dito, a contragosto da condição original, a ideia do princípio de constância é preservar o máximo possível a anterior tendência à inércia, alterando-a apenas no indispensável à reorganização do aparelho para lidar com a estimulação interna, para a qual a fuga motora do movimento reflexo (mexer-se, espernear, chorar) não é eficaz. Assim, podemos concluir que a condição biológica do organismo mantém sua meta do escoamento e com ela a exaustão. Mesmo sob a ocorrência da adaptação sustenta o mesmo propósito que persevera. Neste sentido, a adaptação do organismo e mesmo toda ordem de sofisticação que se segue seriam, como dissemos acima, efeitos de uma cooperação entre providências do interior e do exterior, cujo resultado é superar a admitida condição inerme do aparelho psíquico armando-o para alcançar com eficiência e prudência seus objetivos originais: livrar-se de toda excitação. Em consequência desse procedimento do aparelho, Freud reconhece novos elementos operacionais. A saber: O lugar da repressão, que excluía da catexia como produtora de desprazer algumas das ideias emergentes, foi assumido por uma passagem de julgamento imparcial, que tinha de decidir se determinada ideia era verdadeira ou falsa, isto é, se se achava ou não em concordância com a realidade, decisão que era determinada efetuando-se uma comparação com os traços de memória da realidade. (FREUD, 1911 (1969), p. 239)

Pois bem, relativizado o domínio irrestrito do princípio do prazer, neste nível a descarga motora passou a ser, não substituída, mas conduzida por meio de uma operação racional, uma incumbência do eu, no controle da motricidade, visando promover uma ação providencial que derive do

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pensar, que iniba a descarga pura, vinculando catexias livres, representando finalmente (ou aparentemente) uma conquista do princípio do prazer pelo de realidade. Dito por outras palavras, neste nível “a descarga motora foi empregada na alteração apropriada da realidade; foi transformada em ação” (FREUD, 1911 (1969), p. 240). O mecanismo se exerceu segundo um processo do pensar, por meio de apresentação e de articulação de ideias. De fato, houve uma verdadeira transformação do ego-prazer em ego-realidade adiando a descarga imediata e sem sucesso. Posto que a tensão de pronto se restabelece e enquanto não houver uma intervenção efetiva do ambiente externo da criança o eu aprende a tolerar tensões, mas não deixa de almejar nem de promover seu escoamento. Desta forma, pela plena disposição das funções psíquicas ocorre uma sobreposição do chamado processo primário pelo secundário, a qual opera distinguindo as representações de estímulos de origem interna das externas. Além disso, se produz o encadeamento ou associação de representações que possibilita ao aparelho psíquico operar um tipo de funcionamento que dispõe e tolera uma carga mínima de estímulos, qual seja, o princípio de constância. Desse nível de funcionamento ocorre o adiamento da descarga da excitação. Em lugar de catexias móveis de pronto escoamento aparecem catexias vinculadas para escoamento postergado. Nesse ponto, mais uma vez Freud fez menção à sua teoria das representações (elaborada e apresentada em 1891) admitindo que por conta dessa substituição de processos mentais, o pensar “ultrapassava (as) simples apresentações ideativas e era dirigido para as relações entre impressões de objetos e que não adquiria outras qualidades perceptivas à consciência até haver-se ligado a resíduos verbais” (FREUD, 1911 (1969), p. 240). Ou seja, se no início nossa atividade mental se resumia a impressões de objetos, posteriormente opera relacionando-as a resíduos verbais, o que possibilita compreender de maneira mais ampla a qualificação consciente deles, posto que o processo inicial fosse admitido como inconsciente. Posto isto, na mesma obra Freud ainda tirou consequências da distinção entre princípio do prazer e de realidade, entre processos primários e secundários e da repressão que os permeia, justificando uma função mental que persiste à “transformação” de um princípio em outro, a saber: a capacidade de fantasiar. Com isto, ofereceu compreensão das atividades artísticas, dos jogos infantis, entre outras coisas, que o teste não impede de ocorrer, ainda como o sonho, o estado hipnótico, a paixão, a identificação com o líder e a influência pela massa (como FREUD apresentou em 1921).

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Isto porque esta capacidade, por ter sido “conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais” (FREUD, 1911 (1969), p. 240), ou pelo menos e em alguns casos a necessidade de subordinação a eles. Por conta disso, quanto às consequências psíquicas dessa concepção, devemos admitir uma relativização de sua importância e ainda mais de sua eficácia, reconhecendo inclusive, provavelmente como constitucional do aparelho psíquico, a disposição à neurose, justamente nessa relação nuançada e delicada do eu e da consideração, reconhecimento ou negação da realidade. Desta condição, um segundo nível de realidade foi apresentado, a realidade psíquica, que cria novas condições de base para refletirmos sobre as relações do eu com o mundo exterior. Mas esta merece outra consideração em outro lugar. Ainda sobre a capacidade de fantasiar vale a pena recorrer a um argumento apresentado por Freud em O mal-estar na civilização, particularmente no segundo capítulo. Nesse texto discute as possibilidades de satisfações substitutivas por meio de processos psíquicos internos reforçando o interesse primordial de nos tornarmos “independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos” (FREUD, 1929 (1997), p. 29). Com isso, reiterou a tese do dispositivo de fuga da realidade que reina soberana no aparelho psíquico e que se mantém sempre ativo através de ilusões. Reconheceu que essas ilusões se originam no que chamou “a vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isenta das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo” (FREUD, 1929 (1997), p. 30). Com isso, não só reafirmou a condição inicial inerme do aparelho psíquico como também adicionalmente acusou as insuficiências e os limites de sua superação.

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A realidade e os primórdios da montagem de um aparelho

Pela importância na montagem do aparelho psíquico visitaremos o manuscrito de 1895 intitulado Projeto de uma psicologia. Certamente por influência de Herbart, Freud assumiu nesta obra a ideia de que a tendência do aparelho psíquico seria a de escoar todo aumento quantitativo de tensão, de estímulos recebidos. Sob esta tendência reconheceu a presença de dois processos psíquicos, primário e secundário, atuando no interior de um aparelho, cuja arquitetura estratificou em φ (fi), Ψ (psi) e ω (ômega). O funcionamento do sistema φ – Ψ − ω prevê a atuação de estímulos distintos oriundos de duas direções ou fontes, uma exógena proveniente da periferia do sistema nervoso

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que alcança Ψ transmitido por φ e outra endógena, que alcança Ψ diretamente do interior do corpo. Por conta disso, Ψ foi fracionado em do manto, para o primeiro caso, e do núcleo, para o segundo. Feita estas distinções, um primeiro complicador apareceu, pois se a primeira fonte, em tese, não oporia obstáculo ao exercício pleno da tendência do aparelho à descarga, já a segunda sim. Vale antecipar que tal tendência seria possibilitada pelos processos psíquicos primários, de modo que a boa articulação entre os dois processos psíquicos depende do reconhecimento e da identificação da origem das duas fontes de estímulos e da consequente consideração delas. Desta forma é requerida uma organização psíquica sofisticada e competente. Isto porque a anulação da fonte interna, diferentemente da externa, para a qual basta um reflexo motor, exige uma ação complexa, específica e estratégica dirigida ao mundo exterior. Neste caso, estaria dada a justificativa para o desenvolvimento de tais processos complexos e mais, sua ocorrência dependeria do reconhecimento do mundo exterior, para o qual deve voltar sua atenção. Além do mais, sendo Ψ o núcleo do eu seria também o lugar onde se daria a conversão, a passagem do somático ao psíquico, onde os estímulos ganhariam expressão psíquica sob a forma de representações, tanto dos estímulos internos como dos externos, no núcleo e no manto do eu. Portanto, a distinção é de total interesse do eu e só a ele compete. No entanto, esta explicação ainda carece de detalhes, por exemplo, quanto à distinção do modo pelo qual as duas fontes exercem pressão sobre o psíquico. Freud reconheceu, e com isso já forneceu uma pista, que a estimulação endógena poderia ser de menor intensidade, embora de atuação contínua, enquanto a exógena poderia ser mais intensa, mas pontual e intermitente. De fato um critério importante para o eu em sua aplicação do teste de realidade. Como indicado acima, o eu foi situado no sistema Ψ do núcleo e sua função inicial é conservar em seu interior uma quantidade mínima de energia ditada pela tendência à constância, necessária para tomar as providências relativas à satisfação das necessidades demandadas do interior do corpo. Funcionalmente ele atua articulando os processos associativos, ou seja, comparando suas representações estáveis provenientes do núcleo (de memória) às representações variáveis e fluidas do manto. Contudo, lembremos que o exercício e o sucesso destas funções ficaram dependentes da operação de inibição do processo primário. Assim, o eu se prepara para a iniciativa de inibir o processo primário-alucinatório, tanto no caso da repetição da vivência de satisfação como da vivência de dor, isto é, impede a alucinação tanto do objeto do desejo como o hostil, respectivamente. A importância desta providência é impedir o funcionamento do aparelho sem que leve em conta a presença real dos objetos, ou seja, suas

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condições objetivas de existência. O procedimento do eu consiste em impedir que um percurso de escoamento e de satisfação, anteriormente facilitado, possa ser reutilizado de maneira alucinatória, gerando desilusão e, portanto, desprazer, para isso prescindindo de nova experiência no mundo exterior. Sobre isto Freud disse que “quando, no estado de desejo, ocupa de novo a recordação de objeto e então recorre a uma eliminação; neste caso tem de faltar a satisfação porque o objeto não tem existência real, mas só existe como ideia fantasiosa” (FREUD, 1895 (2003), p. 202). Assim, o eu deve inibir ou reprimir, ou ao menos dificultar oferecendo caminhos laterais e alternativos que não se deem por reinvestimentos de percursos pretéritos, oportunizando novas experiências e novos procedimentos que, diante da presença de um objeto real, aplaquem a demanda interna e por esse meio anule o desprazer resultante da soma de tensão acumulada. De forma que, insistiu Freud, “se existir um eu, ele tem de inibir processos psíquicos primários” (FREUD, 1895 (2003), p. 203). Para a obtenção deste resultado é necessário que esta organização, além de ser ela própria habilitada para a inspeção da realidade, disponha ao longo de sua vida de um critério seguro para distinguir uma alucinação (ou recordação) de outra representação da ordem de uma percepção atual. Para isto, é preciso um sinal que venha “de um outro lugar” (FREUD, 1895 (2003), p. 202), que não seja Ψ. Ele indicou que “é provável que sejam os neurônios ômega os que forneçam este signo, o signo de realidade” (FREUD, 1895 (2003), p. 203). Não é a toa que, para Freud, o sistema ômega está encarregado da questão da qualidade, pois as propriedades conscientes do aparelho são “o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos no sistema nervoso, isto é, dos processos w” (FREUD, 1895 (2003), p. 355). De fato, segundo a função consciente, cabe a eles fornecerem a Ψ todo signo da eliminação da tensão do estímulo externo ou interno. Isto foi explicado pela seguinte argumentação: admitido que em toda percepção externa há uma excitação qualitativa que alcança ômega, pelo próprio princípio regulador do aparelho, dele será escoada. Assim, o signo de realidade ou de qualidade (notícia ou mensagem, como Freud também o chamou) será o traço de memória que restou em Ψ por ocasião do seu escoamento. Acrescido do fato de que a percepção externa seria distinta da interna por esta apresentar menos intensidade. Contudo, Freud admitiu uma possibilidade de falha na aplicação deste critério, no caso em que um objeto de desejo seja recordado com abundância, alucinado em ômega com intensidade, o que redunda na produção em Ψ de signos de eliminação ou de realidade similares aos produzidos por uma percepção externa. Neste caso, a distinção entre fontes interna e externa permaneceria

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comprometida. Em reforço a essa problematização, há aqui uma observação de Gabbi Jr.. Para ele, a dificuldade de diferenciar entre estímulo interno e externo permanece. Citamos Gabbi Jr:

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A eliminação de ômega não pode ser tomada como indicativa de que a origem da quantidade é externa. Dado que Ψ e ômega se comportam como vasos comunicantes, a origem do aumento poderia muito bem ser interna. O quadro se complica um pouco mais porque, devido aos órgãos dos sentidos, há um vínculo especial também entre fi e ômega. (GABBI, 1895 (2003), p. 65)

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Ainda sobre a suspeição em relação à eficácia do critério, Gabbi Jr. (2003) introduz o caso em que a ação específica provedora da demanda do estímulo endógeno tenha sido realizada inicialmente por outro elemento, um agente externo, a ponto de se tornar um objeto de desejo. Nesse caso, o signo de realidade passa a ser da presença do outro. É esse o caso em que diante de nova demanda o objeto seja recordado. Mais ainda, que o circuito registrado seja várias vezes ativado e com isso promova a eliminação em ômega. Portanto estaríamos nesse caso diante de um falso signo de realidade. Freud não se deteve diante da dificuldade que reconheceu. Seguiu buscando um critério anunciando um segundo fator distintivo. Tratar-se-ia de evitar o equívoco que decorreria da possibilidade de que uma recordação ou ocupação alucinatória insistente seja prontamente inibida pelo eu. Ela seria inibida porque sua reiteração por si mesma mantém ou aumenta a produção do desprazer. Esta ocorrência estimularia a distinção e a consequente tomada de providências junto ao mundo exterior visando acessar o objeto aplacador. Na pior das hipóteses, mesmo ao não evitá-la totalmente, mas rebaixando sua intensidade, oportunizaria a possibilidade de reconhecer sua fonte. Aqui cabe a pergunta: qual é o estatuto do eu? Ele recebeu primeiro a tarefa de promover armazenamento de energia. Para isso, segundo a ficção teórica de Freud, foi necessária a transformação de alguns neurônios ϕ em Ψ e isto em decorrência dos estímulos endógenos. Deste modo, a função de armazenamento foi assumida pela parte nuclear do eu. De uma maneira bastante precisa, Gabbi Jr. (1895 (2003), p. 66) afirma, que “a parte nuclear do eu não pode ter uma gênese. Ela é dada com a própria vida”. Nisso estamos de acordo, particularmente em relação à postulação de um eu primitivo. No entanto, isto não se aplica para o restante dessa organização, a parte do manto, responsável pela inibição dos processos primários, uma vez que supõe um aprendizado e por ele uma gênese. Nisto identificamos um tipo de dificuldade teórica. Ao mesmo tempo foi admitido que o eu recebe constituição e se habilita para sua função com aquilo (a experiência) que deverá estar habilitado para distinguir. Este

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aparente impasse ficou evidente quando Freud declarou que o eu é sempre constituído pela experiência. Ou seja, ele aprende e passa a inibir inibindo ou ainda pior com o resultado de sua inibição, de modo que sua constituição progressiva e sua habilitação para a função inibidora é ao mesmo tempo resultado e promotor da inibição. Demoraremos um pouco nesta reflexão visando uma melhor compreensão acerca da possibilidade de gênese do eu. Até o nascimento, por ser continuamente nutrido umbilicalmente, o bebê não sofre carência ou demanda. Portanto, não deve proceder nele a eventualidade do estímulo e de sua representação e, por isso, nem consideração nem distinção de fontes, uma vez que ele e a mãe formam uma unidade da qual ele não está sabendo. Após o nascimento a ocorrência da fome e de outras necessidades vitais demanda o sistema nervoso, incita-o a acionar sua função de escoamento de estímulos, mais do que isso, enseja nele funções específicas contando com diferentes níveis de permeabilidade e impermeabilidade de suas células. Nesta fase, os estímulos endógenos provocam no sistema nervoso excitações que só podem ser tratadas por meio de reflexos como gritos e movimentos desconexos, até porque o bebê só dispõe deles nesse período. Não é preciso esforço para reconhecer que sua consequência é o fracasso, pois não produz descarga em definitivo nem elimina a fonte de estímulo, embora, como apontamos acima, proporcione uma forma de eliminação de estímulos e aplacamento de desprazer. É, pois, desta maneira que o grito participa da primeira montagem da vivência de satisfação, eliminando tensões por enervação enquanto “aguarda” a ação específica a ser realizada. É desnecessário lembrar que o bebê não dispõe de um eu organizado suficientemente para tomar tal providência. No entanto, diz Freud, “esta trilha ganha uma função secundária, na medida em que chama a atenção do indivíduo prestativo para o estado apetitivo e necessitado da criança, e serve daí em diante à compreensão, estando, portanto, incluída na ação específica” (FREUD, 1895 (2003), p. 240). Desta forma, o grito executa, ainda que de maneira imperfeita, a função primária de promover a eliminação da tensão e com isso demarcar caminhos de eliminação e com ela satisfação. Após a intervenção do agente externo, novos registros se somarão aos do circuito anterior e corresponderão ao que Freud chamou de circuitos desiderativos, que doravante precisarão ser distinguidos. Isto feito, o agente auxilia nos primeiros passos para a disponibilização do exercício de uma função secundária ou derivada, ou seja, o registro e o uso desses caminhos. Notemos que a cooperação e enlaçamento entre as fontes interiores e exteriores se dá, ao menos em parte, à revelia do bebê. Doravante o mesmo grito permitirá à criança atrair deliberadamente, quando isso for possível, a

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Estímulos e respostas em Freud

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atenção do adulto. Foi assim acrescentado um novo agente, uma nova ação externa na constituição da subjetividade do bebê. Por esta via se abriu a possibilidade de superação do isolamento inicial. Da chamada vivência de satisfação Freud supôs a constituição de uma representação do objeto externo que acompanhou, na verdade produziu, a experiência de escoamento da tensão endógena – a satisfação da fome. O que se segue é uma sofisticação, isto é, o estabelecimento por parte do bebê de uma associação, possivelmente por contiguidade e ou simultaneidade, entre o choro e os movimentos produzidos com o resultado obtido. A vivência de satisfação estabelece também uma relação de causalidade, o que faz da representação do ocorrido algo disponível para futuras situações semelhantes. Em síntese, estamos no meio de uma concepção de aparelhamento psíquico cujo cerne é a representação, de modo que todo reconhecimento da realidade exigiria sempre do eu uma capacidade de distinguir entre dois tipos de representação, a percebida atualmente e a rememorada. Apesar disso, ambas ainda são representações e não se distinguem em definitivo por um critério que reconheça qualidades ou signos de qualidades. Deste modo, o dispositivo bem como o critério para aplicação do teste de realidade continuam sendo retomados outras tantas vezes.

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Diferentemente desta obra de 1895 em que a comunicação entre φ e ω que é feita por meio de Ψ, em Além do princípio do prazer, retomando a tópica que formulou em A interpretação de sonhos, Freud associou a consciência com o sistema perceptivo, segundo o esquema: φ - ω – Ψ. Arranjo que se justifica na proposição de que “a consciência surge em vez de um traço de memória” (FREUD, 1920 (1969), p. 36). Foi nessa obra que recorreu à ilustração da vesícula indiferenciada, um organismo que se diferencia para se prestar ao recebimento de estímulos. Especulativamente, admitiu que num procedimento que resultou em sua sobrevivência, esse organismo constituiu um escudo protetor do qual derivou os órgãos dos sentidos que, segundo definiu “consistem essencialmente em aparelhos para a recepção de certos efeitos específicos de estimulação, mas que também incluem disposições especiais para maior proteção contra quantidades excessivas de estimulação e para a exclusão de tipos inapropriados de estímulos” (FREUD, 1920 (1969), p. 38). Por conta disso, ficou instituído um sistema Pcpt.-Cs (percepção-consciência). A complicação deriva do fato de que esse sistema complexo recebe igualmente estímulos do interior do organismo. A condição especial desse sistema, situado na fronteira do que se pode chamar de exterior e interior

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A interpretação da consciência

Um tratamento especial desta questão foi igualmente dado por Freud na obra Interpretação de sonhos, de 1900. Nela definiu a consciência, como fizera desde o Projeto, como um órgão para a apreensão de qualidades psíquicas provenientes de excitações de duas fontes. Disse Freud: “em primeiro lugar pode receber excitações da periferia de todo o aparelho, do sistema perceptivo e, além disso, pode receber excitações de prazer e desprazer, que mostram ser quase a única qualidade psíquica ligada às transposições de energia do interior do aparelho” (FREUD, 1900 (1969), p. 603), o que mais uma vez faz da liberação de prazer-desprazer a regulação de todo o processo. Ora, este duplo sentido de acesso foi concebido de uma maneira bastante particular de modo a oferecer novas bases para o teste de realidade. Assim, definiu as condições de possibilidade para que processos que no sistema Ψ, que envolvem o Pré-consciente tenham acesso ao Consciente. Isto aconteceria porque eles seriam desprovidos de qualidades psíquicas. De modo que para que o sistema Pré-consciente pudesse ser reconhecido pela Consciência precisaria promover uma ligação de seus processos com o sistema mnemônico dos signos linguísticos. Estes últimos sim providos de qualidade. Desta forma, Freud afirmava que “por intermédio das qualidades desse sistema, a consciência, que fora até então um órgão sensorial apenas para as percepções, tornou-se também um órgão sensorial para parte de nossos processos

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demanda uma diferença entre as próprias condições de recepção de cada estímulo, de cada fonte. Na verdade, seu modo de funcionamento, e de todo aparelho em geral, depende em grande parte da distinção dessas fontes e da diferenciação de seus estímulos. No sentido exterior, via sistema de percepção, a própria noção de um escudo já dá a dimensão da proteção contra quantidades excessivas. Assim, é do interior que provém excitações que atingem diretamente o sistema de forma incontrolável porque, embora sejam quantidades menores, afluem continuamente. É a fonte pulsional do aparelho. Foi devido a algumas de suas características que Freud reconheceu a produção de sentimentos da série prazer-desprazer. Disse ele: “As excitações que provêm de dentro, entretanto, em sua intensidade e em outros aspectos qualitativos − em sua amplitude talvez − são mais comensuradas com o método de funcionamento do sistema do que os estímulos que afluem desde o mundo externo” (FREUD, 1920 (1969), p. 39). Apoiado nessa produção de sentimentos, Freud lhes atribui a função de índice do que ocorre no interior do aparelho, indicando sua distinção. De modo que a importância de efetuá-la, e aqui estamos novamente diante da aplicação do teste de realidade, reside na própria providência ou na adoção de uma maneira específica de lidar com elas.

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de pensamento. Assim, existem agora, por assim dizer, duas superfícies sensoriais, uma voltada para a percepção, e a outra, para os processos de pensamento pré-conscientes” (Freud, 1900 (1969), p. 603), por conta do que as ocorrências conscientes a serem distinguidas pelo teste de realidade seriam de dois tipos: de representações de percepções e de representações de origem interna. Mais uma vez, Freud especulou sobre a possibilidade de distinguir estas duas categorias de representações. Recorreu novamente ao mecanismo de recalque que, segundo definiu, “afeta muito mais facilmente as lembranças do que as percepções porque as primeiras não podem receber nenhum investimento extra advindo da excitação dos órgãos sensoriais psíquicos” (FREUD, 1900 (1969), p. 604). Desta forma, a suscetibilidade à repressão indicaria a distinção da natureza da representação que acede à Consciência. Apresentado sumariamente o critério da distinção, nosso interesse agora nos remeteu à obra Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos, de 1915, justamente pelo destaque que o fenômeno da alucinação nela recebeu, bem como do critério pelo qual pode ser distinguida da percepção. Strachey nos informa em linhas gerais, na apresentação do texto, que Freud retomou nesta obra considerações teóricas apresentadas no Projeto. Por exemplo, sobre a articulação entre processo primário e secundário, sendo que do primeiro não se pode esperar a distinção entre alucinação e percepção. Para isso, se faz necessária a intervenção do segundo, como já vimos, que atua sob forma de inibição do primeiro. A energia necessária e suficiente para essa tarefa deve advir de um eu minimamente constituído por meio do qual as indicações da realidade acessam o aparelho perceptual. A tese de uma regressão em relação às aquisições psíquicas quando dormimos, por exemplo, levou-o ao exame da alucinação e desta ao teste de realidade. Isto porque o sonho, como concebido, decorre de uma regressão topográfica, ou seja, “um processo iniciado no Pré-consciente, e reforçado pelo Inconsciente, segue um curso às avessas, através do Inconsciente até a percepção, que exerce pressão sobre a consciência” (FREUD, 1915 (1969), p. 234), ou seja, um retorno à fase inicial de satisfação do desejo onírico que se dá de maneira alucinatória. Assim, continua Freud, “e, como uma alucinação, encontra-se com a crença na realidade de sua satisfação” (FREUD, 1915 (1969), p. 236). Entendemos que articular o sistema Pré-consciente ao Consciente não superou em definitivo o problema, já que como vimos, uma recordação pode tornar-se consciente sem pertencer ou provir do sistema Pré-consciente. Isto quer dizer que uma representação do Pré-consciente sustentada pelo Inconsciente pode regredir até à percepção e assim ser considerada ou aceita como real, portanto indistintamente.

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De acordo com a relação entre essas percepções e a ação muscular do organismo. Uma percepção que desaparece por meio de uma ação é reconhecida como externa, como realidade; nos casos em que tal ação não proporciona o mesmo, a percepção se origina dentro do próprio corpo do indivíduo ‒ não é real. (FREUD, 1915 (1969), p. 239)

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Mais uma vez, consciente da dificuldade do problema a enfrentar, Freud reapresentou (pois já havia feito isso no capítulo VII da Interpretação) o que agora chamou de ficção. Freud considera que a capacidade de distinção não está presente desde o começo e que de início os objetos que produzem satisfação são alucinados quando uma demanda se apresenta. Capitalizando esta possibilidade declarou que “essa falha deve ter feito com que logo criássemos algum dispositivo com a ajuda do qual fosse possível distinguir tais percepções carregadas de desejo de uma real satisfação e evitá-las no futuro” (FREUD, 1915 (1969), p. 238). A desistência da satisfação alucinatória dos nossos desejos, impulsionada pelo seu fracasso em cumprir a meta do aplacamento, foi mais uma vez vinculada ao dispositivo que recebeu o nome de teste de realidade que permitiria ao eu o reconhecimento correto da fonte ou causa de cada sensação ou representação, tanto a alucinada como a percebida. No entanto, nas obras em que teorizou sobre os sonhos, não fez mais do que mencioná-lo. Reforçando um argumento que apresentou em Os instintos e suas vicissitudes, de 1915, declarou, acrescentando um critério inédito para a aplicação do teste, que a orientação de um ser que por meio de percepções distingue o que é interno do externo, o faz:

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Em Os instintos e suas vicissitudes, Freud distinguiu mais uma vez dois tipos de estímulos que atingem e atuam no aparelho psíquico. Os estímulos pulsionais de fonte interna ao próprio organismo e os demais, de fonte externa. As suas diferentes formas de atuação no aparelho psíquico, constante e ocasional, respectivamente, demandam consideração e providência distintas a fim de aplacá-las. Para isso, é fundamental o reconhecimento de seus modos de atuação, tanto quanto de suas fontes, até porque, como sabemos, para que haja satisfação de um estímulo é necessária uma providência no mundo externo que, por seu meio, altere sua fonte. Os estímulos demandam a atuação de um “agente” que se dirija ao exterior e dele regresse com providências. É aqui que o teste de realidade se faz necessário. Vejamos seu relato: Imaginemo-nos na situação de um organismo vivo quase inteiramente inerme, até então sem orientação no mundo, que esteja recebendo estímulos em sua substância nervosa. Este organismo muito em breve estará em condições

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de fazer uma primeira distinção e uma primeira orientação. Por um lado, estará cônscio de estímulos que podem ser evitados pela ação muscular (fuga); estes, ele os atribui a um mundo externo. (FREUD, 1915b (1969), p. 125)

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Até aqui podemos admitir sem dificuldades que o ser inerme acabe por associar a ação ocasional à cessação do estímulo e até mesmo desejar repeti-la para obter o resultado esperado, o fim do desprazer. No entanto, a possibilidade de indicação de sua fonte ainda não foi devidamente esclarecida, até porque ter consciência de algo, como já visto, pode proceder de ambas as direções. Bem, deixemos que Freud continue:

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Por outro, também estará cônscio de estímulos contra os quais tal ação não tem qualquer valia e cujo caráter de constante pressão persiste apesar dela; esses estímulos são os sinais de um mundo interno, a prova de necessidades instintuais. A substância perceptual do organismo vivo será assim encontrada na eficácia de sua atividade muscular, uma base para distinguir entre um de fora e um de dentro. (FREUD, 1915b (1969), p. 125)

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Com isso ainda atribuiu explicitamente ao sistema Consciente − Pré-consciente a função de aplicar o teste de realidade, já que deve dispor de “uma inervação motora que determine se se pode fazer com que a percepção desapareça, ou se ela oferece resistência. O teste de realidade nada mais é do que esse dispositivo” (FREUD, 1915 (1969), p. 239). Ele está assim “entre as principais instituições do ego” (FREUD, 1915 (1969), p. 239). Aqui, o critério anterior da intensidade deu lugar, ou compartilhou, ao da insistência, da presença-ausência.

A realidade do narcisismo

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Mas foi em Sobre o narcisismo, de 1914, que de maneira inédita encontramos a possibilidade de, sob a ótica do amor objetal, alcançarmos uma superação do solipsismo, pelo menos o libidinal. A importância deste texto para nossa pesquisa, quanto à temática que traz, começa já na noção de que o narcisismo se caracteriza por ser um estado psíquico a meio caminho entre o autoerotismo e o amor objetal, portanto na circunvizinhança do teste de realidade. Trata-se de uma obra na qual, ao introduzir a distinção entre libido do ego e libido objetal, ocupou-se da relação do eu com as demandas pulsionais e com os objetos externos. Trata-se “da concepção de um narcisismo primário e normal” (FREUD, 1914 (1969), p. 81), disse Freud, mas que de toda forma está na base da possibilidade (ou não) do reconhecimento e do relacionamento com a realidade.

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Com isto reconheceu que “há uma catexia libidinal original do ego, parte da qual é posteriormente transmitida a objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com as catexias objetais, assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodes que produz” (FREUD, 1914 (1969), p. 83). Ela é, portanto o próprio elo de ligação com o mundo exterior, uma energia que flui do eu ao exterior, com o qual estabelece uma relação pendular (a catexia circula de um polo a outro em mão-dupla) definindo a relação de proximidade ou distanciamento da realidade. Há outra situação emocional que Freud atentou mais tarde em Luto e melancolia, de 1925, que é a da perda de um objeto no caso do luto, que ocorre sob a influência do teste de realidade, pois exige da pessoa desolada que ela própria deva separar-se do objeto, visto ele não mais existir. Ao luto é confiada a tarefa de efetuar esta retirada do objeto em todas aquelas situações nas quais ele foi o recipiente de elevado grau de catexia. Isto em função de uma catexia elevada e não passível de satisfação, que foi concentrada no objeto pela pessoa desolada. Do luto espera-se que desfaça os laços que a liga à pessoa perdida. Lembremos que a libido ou energia sexual tem seu estado inicial no autoerotismo e depois avança em seu percurso rumo aos objetos exteriores. Para sustentar este arranjo Freud postulou uma catexização libidinal primária do próprio eu, a saber, o conceito de narcisismo primário. Mas a implicação mais grave disso tudo, a nosso ver, foi a admissão de que “uma unidade comparável ao ego não pode existir no indivíduo desde o começo, o ego tem de ser desenvolvido” (FREUD, 1914 (1969), p. 84), ou seja, tem de constituir-se como um objeto de amor, inicialmente, para sob a forma de um reservatório de libido, projetá-la ou dirigi-la ao mundo exterior, tarefa que no entanto demanda sua atenção e seu reconhecimento prévio, sem a qual a circulação de libido não se daria. Adicionalmente, desta unidade inicial depende, por outro lado, a possibilidade de perda da realidade por ocasião da retirada (total) ou recolhimento da libido objetal. Sabemos que há uma necessidade vital de superar o narcisismo primário pela ligação da libido a objetos exteriores (quando um organismo não morre reconhecemos que isso ocorreu). Disse Freud, “essa necessidade surge quando a catexia do ego com a libido excede certa quantidade” (FREUD, 1914 (1969), p. 92). Ou seja, mais uma vez postula um princípio regulador que orienta o funcionamento do aparelho quando ocorre um aumento de quantidades e provoca sua transformação em qualidade psíquica de desprazer. Assim, o amor objetal evita o desprazer do eu e por esse meio seu adoecimento. O amor pelo objeto nada mais é do que uma forma, especial é

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verdade, de um escoamento de excitações, a própria economia da libido. Freud estava consciente da complexidade que esse processo comportava. De acordo com o autor pode-se dizer que “é indiferente que esse processo interno de elaboração seja efetuado em objetos reais ou imaginários” (FREUD, 1914 (1969), p. 92). E ainda, “a diferença não surge senão depois − caso a transferência da libido para objetos irreais (introversão) tenha ocasionado seu represamento” (FREUD, 1914 (1969), p. 92), como ocorre, por exemplo, no delírio de grandeza. A questão da escolha do objeto sexual foi também explicada em termos das experiências de satisfação. Sobre isso, disse que “as primeiras satisfações sexuais autoeróticas são experimentadas em relação com funções vitais que servem à finalidade de autopreservação” (FREUD, 1914 (1969), p. 94). Por conta disso, evidentemente os primeiros objetos sexuais das crianças são sempre aqueles que em primeiro lugar as nutrem. Na verdade, como sustentamos anteriormente, que proporcionam a sensação de escoamento da tensão endógena suprimindo seu desprazer. Mais uma vez é o esquema do arco-reflexo que empresta força ao argumento. Com isso, ele se encontra em condições de definir o caráter primário do narcisismo ao colocar lado a lado os dois objetos possíveis e disponíveis para toda criança, ter a si mesmo e à mãe como objeto de amor. Assim, o autista poderia ser pensado inicialmente como o sujeito que não tem problemas de insatisfação com sua demanda própria de amor e, portanto, permanece nesse estágio. Ao se aproximar do final da segunda parte da obra, Freud ofereceu mais um argumento, dessa vez de outra natureza, em favor do amor objetal. Ao refletir sobre ele entre os gêneros, reconheceu que a mulher apenas supera seu narcisismo a partir da maternidade. Disse ele, “na criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as confronta com um objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo, pode então dar um amor objetal completo” (FREUD, 1914 (1969), p. 96). A mulher tem a experiência de ver fora aquilo que foi produzido dentro dela, isso leva a uma situação de estranhamento e de reconhecimento no objeto externo. A depressão pós-parto pode ser pensada como o modo de lidar com esse estranhamento inicial e o amor maternal como o modo de identificação narcísica. Por fim, já apoiado não apenas no corpo ou sua fisiologia, mas em papéis sociais e identificações, a conclusão é de que “o desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo primário” (FREUD, 1914 (1969), p. 106). Isto é, trata-se de uma fuga em direção à realidade exterior, “esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação provocada pela realização desse ideal” (FREUD, 1914 (1969), p. 106).

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Como estamos tendo a oportunidade de constatar, o problema do solipsismo bem como sua possibilidade de superação recebeu de Freud abordagens e considerações de diferentes ordens e profundidades. Neste sentido, há ainda mais uma questão que merece ser aqui apresentada. Trata-se da importância que atribuiu ao teste de realidade, como fundamental para o mecanismo de defesa, por exemplo, na histeria de ansiedade na obra O inconsciente, de 1915. Naquela oportunidade Freud declarou que se valendo do teste de realidade, o mecanismo de defesa põe-se em ação e “consegue projetar para fora o perigo instintual. O ego comporta-se como se o perigo de um desenvolvimento da ansiedade o ameaçasse, não a partir de uma direção de um impulso instintual, mas da direção de uma percepção, tornando-se assim capaz de reagir contra esse perigo externo através das tentativas de fuga representadas por evitações fóbicas” (FREUD, 1915c (1969), p. 189). Para afirmar isto se apoiou nas características do sistema Ics. que, devido a elas, demanda, negativamente, a distinção entre interior e exterior. São elas: “a isenção de contradição mútua, o processo primário, a intemporalidade e a substituição da realidade externa pela psíquica” (FREUD, 1915c (1969), p. 192). Portanto refere a uma fase mais primitiva de funcionamento mental, cuja função básica é a promoção da descarga de estímulo e para isso “não seria capaz, em condições normais, de provocar quaisquer atos musculares adequados, à exceção dos já organizados como reflexos” (FREUD, 1915c (1969), p. 193). A conclusão é que esta função de pronto escoamento deve, para o bem do organismo, ser interrompida por outro sistema, o Pré-consciente, cuja função é a de inibir a descarga livre e imediata, ou seja, vinculá-la. Julgamos importante registrar aqui que nesta fase do pensamento freudiano, entre 1895 e 1914 aproximadamente, o conceito de eu sofreu uma omissão, na qual Freud deixou de citá-lo e vemos muitas das suas funções sendo delegadas a outras instâncias. Sobre esta questão, Monzani (1989) considera que o conceito de eu só foi retomado a partir de 1920, enquanto para Strachey tal fato já ocorrera por volta de 1910 com as formulações sobre o narcisismo (Cf. “Introdução” de O ego e o id). Lembremos que, por exemplo, em A interpretação de sonhos, igualmente os mecanismos que antes eram atribuídos ao eu foram vinculados aos comandos do pré-consciente e à censura psíquica. Nela atribuiu ao Pré-consciente a tarefa de corrigir o processo primário, flagrantemente assumindo a função que anos antes coube ao eu, como vimos também, no Projeto, de 1895. Embora ele não tenha explicitado o porquê desta dispersão temporária de algumas funções do eu, este movimento, como vimos, está presente em O inconsciente, quando a inibição (uma função precursora do conceito de repressão) e a vinculação de quantidades são executadas pelo sistema Pré-consciente.

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Além desta, em O Inconsciente, o sistema Pré-consciente desempenhou funções especiais como promover a comunicação entre diferentes representações, ordenando-as no tempo e estabelecendo censura. Para este desempenho deve estar sob o domínio do princípio de realidade, vale dizer, munido de dispositivo para a aplicação do teste de realidade. E este seria realizado justamente na relação dos sistemas Ics. e Pré-consciente. É bom lembrar que o tratamento desta relação foi, na quinta parte da obra, postergado por Freud, limitando-se à apresentação do que alegou serem os pontos mais prementes, dentre os quais o teste de realidade. De modo que sua justificativa não foi muito além de sua indicação. Admitindo, parece-nos, que o teste de realidade consiste, neste caso, numa distinção entre lembranças, reconheceu que “a lembrança consciente, outrossim, parece depender inteiramente do Pré-consciente. Isso deve ser claramente distinguido dos traços de memória nos quais se fixam as experiências do Ics., correspondendo provavelmente a um registro especial como o que propusemos (e depois rejeitamos) para explicar a relação entre as ideias conscientes e as inconscientes” (FREUD, 1915c (1969), p. 193). Seria, portanto, por meio desta distinção bem-sucedida que um grupo de ideias sob certas condições poderia influenciar outro e dar-lhe caminhos alternativos à pronta descarga motora. De modo que ao executar suas funções o Pré-consciente opera modificações no mundo exterior. Assim, é na medida em que eles se comunicam que o princípio de realidade conquista o princípio do prazer e integra o indivíduo ao mundo exterior.

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Uma vez apresentada a relação que chamamos pendular que Freud postulou entre fatores internos e externos na constituição da subjetividade do bebê, julgamos oportuno passarmos às especulações relativas às condições de possibilidade de construção de grupos sociais para delas extrairmos resultados. Sabemos que na obra Psicologia de grupo e a análise do ego, de 1921, concebeu o grupo social como possível, entre outras coisas, a partir de alterações da mente individual. Para justificar isto retornou a seu interesse pretérito pelo hipnotismo, recurso que lhe permitiu acrescentar que um indivíduo só se associa a outro por meio de um modelo, que se apresente como um terceiro aliado ou oponente. Passemos às considerações destes argumentos. Nesta obra, apresentou uma perspectiva de constituição da subjetividade que representou, segundo nosso entendimento, uma continuidade e ao mesmo tempo um deslocamento de perspectiva teórica e por isso mesmo uma boa alternativa de abordagem do teste de realidade. Nela reelaborou

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as próprias condições de possibilidade de constituição da subjetividade e de toda experiência possível. Trata-se de uma obra que apresenta uma investigação e oferece hipóteses sobre a estrutura e o funcionamento do aparelho psíquico relativamente próxima de 1923, ou seja, às vésperas da publicação de O ego e o id, e por isso antecipa em muitos pontos a segunda tópica. Nela, Freud declarou que a psicologia de grupo interessa-se pelo indivíduo na verdade como membro de uma raça, de uma nação, enfim, de um agrupamento. Sabe o leitor que depois de apresentar e analisar as teses relativas ao que chamou de mente coletiva de Le Bon e Mc. Dougall passou a apresentar as suas próprias. Acreditamos que esta obra nos auxiliará na investigação do problema que nos interessa porque o coloca sob novas bases. Suspeitamos que talvez a recusa de que as noções de indivíduo e grupo constituam polos antagônicos, mas antes em cooperação, nos coloque em melhores condições de enfrentar o problema do teste de realidade. Tratou inicialmente de explicar as alterações psíquicas que o indivíduo sofre ao participar ou ao ser introduzido em um grupo. Para isto postulou (mais uma vez) uma característica fundamental da vida psíquica das pessoas, ou ainda, um fenômeno que seria irredutível e primitivo, a saber, a sugestão ou sugestionabilidade. De modo que trinta anos depois de ter se dedicado a este tema reformulou o conceito de sugestão, sublinhando sua natureza. Recorreu ao conceito de libido explicando, ao mesmo tempo, a sugestão e a psicologia de grupo que nela se sustenta. Definiu-o como “uma magnitude quantitativa daqueles instintos que tem a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra amor” (FREUD, 1921 (1969), p. 101), implicando o amor sexual, o amor próprio, o amor aos filhos, aos amigos e até mesmo à humanidade, não deixando de fora a devoção a ideias e objetos, todas reunidas como expressão dos mesmos impulsos instintuais. Por conta disto, admitiu que, de um modo geral, as relações amorosas devem constituir a essência da mente grupal. Mas há muito ainda por ser dito. Encaminhou esta questão discutindo a formação de diferentes grupos, especialmente os que possuem um líder e que, além disso, ou por isso mesmo, são altamente organizados, permanentes e, sobretudo artificiais, a exemplo das igrejas e dos exércitos. Estes foram considerados artificiais, e com isso quis dizer estáveis, pela atuação de uma força externa que promove sua montagem e impede sua desagregação. A presença de uma liderança ou de um chefe que ama a todos igualmente foi considerada necessária. Este líder amoroso é o que sustenta o amor de uns pelos outros no grupo. Há, portanto, aqui duas direções libidinais, uma vertical de cada membro com seu líder e

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uma horizontal entre os próprios membros. Apontada sua mútua dependência, restou explicar seus lugares estruturantes. Sobre isto, Freud disse que “os laços mútuos entre os membros do grupo via de regra desaparecem ao mesmo tempo que o laço com seu líder” (Freud, 1921 (1969), p. 109), posto ser este o arrimo da estrutura. Sua busca insistente pela prova de que os laços libidinais sustentam um grupo a partir da identificação com um líder, leva-nos à suspeita de que não deve haver laço libidinal anterior ou espontâneo entre os homens. De fato, o contrário é o que parece verdadeiro, que “os homens dão prova de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida, e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar” (FREUD, 1921 (1969), p. 113). De nosso ponto de vista, somente a formação de um grupo, temporária ou permanente, pode desvanecer tal intolerância, já que nela ocorre uma limitação do narcisismo pela construção de laços libidinais entre seus membros e com isto o impulso para a construção do amor objetal e quem sabe, no limite, a modificação do egoísmo em altruísmo. Portanto, um grupo se erige e se sustenta por “novos tipos de laços libidinais entre os membros do grupo” (FREUD, 1921 (1969), p. 114). Mas qual sua natureza? Lembremos do argumento de Freud de que (provavelmente) derivam de laços amorosos que foram desviados de seus objetivos originais, diretamente sexuais. Freud segue investigando, para além, ou aquém desta forma de catexia de objeto, se haveria outro mecanismo que produziria este efeito. Experimenta, por exemplo, o que chamou de “identificações”, justamente porque as reconheceu como as mais remotas e primitivas formas de laço afetivo entre pessoas, relacionando-as desta vez ao complexo de Édipo, na medida em que cada indivíduo nesta relação toma o pai como seu ideal. O complexo comporta também uma catexia objetal sexual para com a mãe. De modo que ambos afetos compõem a vida afetiva inicial da criança. De fato, a hostilidade pelo pai surge quando começa a ocorrer um cruzamento destes afetos. Em certas situações a identificação se torna hostilidade para com o pai, noutras é a precursora de uma vinculação objetal com ele, desta vez numa atitude feminina. Formalizando estas circunstâncias, Freud declarou que no primeiro caso a criança deseja ser como o pai, no segundo tê-lo. Assim, definiu, “a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo” (FREUD, 1921 (1969), p. 116). Operação que permite, pela introjeção do objeto desde o exterior, a instituição da consciência como instância crítica dentro do eu. Freud chamou-a de “ideal do eu” que, por suas características, pode-se ver nela

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a precursora do supereu. Parte-se assim de um caminho que tem início na imitação e que pela identificação dela decorrente produz, para surpresa, tanto empatia quanto intolerância. Para todos os efeitos, Freud concluiu que os membros de um grupo sustentam um laço a partir de identificações deste tipo apoiada em algo comum, a saber, o laço com o líder. Por cada um ter colocado-o enquanto objeto como seu ideal do eu, que deve ser anterior aos laços horizontais, que cada eu pode identificar-se com outros, ou seja, só depois disto estarão aptos para se identificarem entre si e se tomarem como objetos de amor, até mesmo sexual. Por conta disto, parece que sem a identificação com o líder tudo o mais seria estranho entre pessoas cuja natureza não parece comportar nada de gregário. De forma que, no passo seguinte, amar ou se apaixonar corresponde a uma projeção idealizada sobre o objeto amado, isto é, à projeção de seus próprios ideais, de seu próprio eu em direção a ele. Sobre isto Freud declarou que “quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto” (FREUD, 1921 (1969), p. 122), ele substitui no exterior nosso eu ou parte dele, habita-o. Portanto, o que faz um grupo ou seus membros se tomarem como objeto é a projeção mútua de ideais comuns fundados na identificação anterior com um líder. A esta altura Freud procurou dirimir “se o objeto é colocado no lugar do ego ou do ideal do ego” (FREUD, 1921 (1969), p. 124). Tendo dito tudo isto, a relação entre hipnose e estar amando estava pronta para ser formulada. Ela se dá por uma sujeição do hipnotizado que coloca o hipnotizador como seu ideal do eu. Por isto, ele passa a ser o objeto exclusivo de sua atenção. Neste ponto Freud afirmou, para depois recusar em 1923, em O ego e o id, que a submissão se dá em especial porque a função de verificar a realidade das coisas do ideal do eu estaria prejudicada. Isto porque o amado é sempre introjetado por seu amante de modo inadvertido, de modo que a paixão e o amor podem ser reconhecidos como uma decorrência do fracasso do teste de realidade. Neste caso, a inoperância de uma instância crítica faz com que o eu se equivoque em seu julgamento, que no limite tome uma ilusão por uma percepção real. A partir daí Freud postulou que a relação hipnótica pode ser compreendida, a despeito da limitação numérica, como uma formação de grupo de pelo menos dois membros, já que ela ilustra o comportamento do indivíduo em relação ao líder, inclusive por apresentar ausência de inclinações diretamente sexuais. Em seguida, passou a discutir a influência da sugestão, agora tanto por parte do líder como dos membros entre si, o que caracteriza em definitivo a perspectiva intersubjetiva que a esta altura reconheceu na constituição do psiquismo humano. Bem, Freud adota a hipótese de Darwin sobre o pai da

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A realidade do juízo

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horda para explicação acerca de como o líder foi erigido a tal condição. Este pai primevo, disse Freud, “impedira os filhos de satisfazer seus impulsos diretamente sexuais, forçara-os à abstinência e, consequentemente, aos laços emocionais com ele e uns com os outros, que poderiam surgir daqueles de seus impulsos inibidos em seu objetivo sexual” (FREUD, 1921 (1969), p. 135). Desta forma, desde lá até a família, passando pelo clã totêmico, é a possibilidade e a força do amor equivalente do pai pelos filhos que deve sustentar cada fase da formação de grupos. Apoiado nisto, a figura do hipnotizador pode ser assimilada à do pai para quem toda atenção (desviada) do mundo convergiu um dia. Portanto, ocorre nessa oportunidade um despertar novamente de uma condição pretérita de submissão, uma suspensão da vontade individual, condições para a vida grupal, ou seja, para a única possibilidade de vida para o homem. Em decorrência, devemos admitir com Freud que mesmo hoje “o líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão irrestrita pela autoridade” (FREUD, 1921 (1969), p. 138). De forma que “o pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego” (FREUD, 1921 (1969), p. 138). Em verdade, há algo a ser advertido aqui, uma vez que cada indivíduo é membro efetivamente de vários grupos ou subgrupos ao mesmo tempo e por isto teve seu ideal do eu construído a partir de modelos muito diversos. Portanto, devemos considerar que em sua constituição subjetiva ocorrem variadas identificações e colocações de objetos no lugar do seu ideal do eu. Vimos, portanto, por esse viés, que a constituição da subjetividade se dá justamente no entrecruzamento entre a demanda interior e seu atendimento a partir do exterior. Interior e exterior se interpenetram sem possibilidade de atribuir a um deles ou mesmo a ambos a condição de elementos primários. Mesmo sem deixar de falar de interior e exterior como distintos, fica difícil sustentá-los como originários. Com base nisso, podemos concluir que a subjetividade foi por Freud pensada numa polaridade cooperativa do dentro e do fora, uma cooperação que cria novas bases para pensarmos, em particular, o problema do teste de realidade, embora nesta obra ele não tenha se debruçado sobre sua justificativa.

Ainda ao longo da década de vinte, inclusive com a formalização da segunda tópica e da reviravolta na teoria das pulsões, o tema do teste de realidade ganhou novas configurações, por exemplo, na obra A negativa, de 1925. Na sua apresentação, Strachey declarou que nela Freud demonstrou

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que o teste de realidade depende de uma estreita relação genética do eu com os instrumentos da percepção sensorial. Antes de avançarmos, consideremos que ele aparece sob a forma renovada ou renomeada de “julgamento intelectual” que consiste, de maneira geral, em afirmar ou negar os conteúdos de nossos pensamentos. Sua importância mais uma vez motivou-o a investigar sua gênese. Convém ainda lembrar o leitor das vinculações que Freud estabeleceu entre o julgamento e o mecanismo da repressão. O julgamento tem certamente mais de uma função, com destaque, a de dar conta do discernimento acerca do que seria o correspondente objetivo de uma representação. Para justificar a possibilidade de cumprimento desta tarefa, Freud apontou para uma fase primitiva do eu, chamou-a eu-prazer. Com isto referiu à consideração qualitativa de tudo o que foi primeiramente experienciado pelo eu como bom ou mau, útil ou prejudicial, que poderia ser expresso da seguinte maneira: “Gostaria de comer isso, ou gostaria de cuspir isso” (FREUD, 1925 (1969), p. 266), em outros termos, introduzir algo em seu interior ou expulsá-lo para o seu exterior. Deste modo, já delibera sobre o que pretende que esteja dentro ou fora dele, atitude que requer a sua distinção. Apresentado este argumento, e mais uma vez consciente da limitação de sua justificativa, Freud mostrou uma segunda função do julgamento intelectual. Trata-se de um desdobramento ou desenvolvimento a partir do eu-prazer inicial que se transforma em eu-realidade. Neste segundo nível de aplicação do teste de realidade, o que importa não é mais integrar ou expulsar algo de si, mas de, já distinguindo entre memória e percepção, julgar a possibilidade de reencontrar na realidade, valendo-se do que é percebido, algo de que dispõe apenas como representação, como memória de uma satisfação proporcionada por um objeto útil já experienciado, como o seio materno, por exemplo. Para justificar este progresso intelectual, Freud lembrou que originalmente, justificado em um ponto de vista empirista, todas nossas representações foram adquiridas através de percepções, ainda que tal argumento só tenha validação a posteriori. Argumento semelhante foi oferecido por Kant em sua Refutação do idealismo (especialmente na terceira observação) na Crítica da razão pura. Neste texto, Kant descartou o problema do solipsismo reconhecendo que “a experiência interna em geral só é possível pela experiência externa em geral” (KrV B, p. 278-279). Argumentando, Kant reconheceu que nem toda representação intuitiva de objetos externos corresponda à existência efetiva deles, pois pode perfeitamente ser efeito da imaginação, como no sonho ou na loucura. Contudo, essa possibilidade só se dá disse, “pela reprodução de antigas percepções externas”. (KrV B, p. 278-279). Instituiu assim uma extensão ou cooperação entre interioridade e

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exterioridade como condição da experiência. Com este argumento se distanciou de Berkeley. Quanto ao segundo problema levantado por este último, o de saber se uma representação enquanto experiência pode ser distinguida de outra enquanto imaginação, Kant se sai pela tangente devolvendo insolúvel a provocação. Disse que, isso “é o que é necessário descobrir segundo suas determinações particulares e pelo seu acordo com os critérios de toda experiência real” (KrV B, p. 278-279). Por sua parte, Freud afirma que, “assim, originalmente a mera existência de uma representação constitui uma garantia da realidade daquilo que era representado” (FREUD, 1925 (1969), p. 267). Na verdade, uma garantia para o epistemólogo que fez do empirismo sua profissão de fé, mas jamais extensível ao infante que teve sua fome aplacada por um seio provedor. Contudo, o argumento problemático veio a seguir. Continuou Freud, “a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o início” (FREUD, 1925 (1969), p. 267). Ora, é justamente a superação desta condição que precisa ser justificada, dada a importância da antítese ou distinção e do bom discernimento de seus termos para todas as consequências esperadas. Na verdade, o argumento que se seguiu não foi menos desalentador. De forma meramente descritiva, Freud declarou que ela teria surgido do fato de que a atividade do pensamento (que tem como conteúdo representações) teria a capacidade (em absoluto não justificada) de produzir diante da consciência, de forma recordativa ou alucinatória o que teria sido percebido anteriormente, dela se valendo e sem a ela se limitar. Isto nos coloca diante do fato de que a providência por (re)encontrar objetos úteis de satisfação foi mantida dependente de um eficaz teste de realidade. Neste momento, Freud retomou a tese lançada nos Três ensaios de teoria sexual, de 1905, ao afirmar que “objetos que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (FREUD, 1925 (1969), p. 268). Com a célebre afirmação de 1905 de que o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro, quis dizer que esta busca, diga-se de passagem, incessante, se dá em mais de um sentido, uma vez que também reconheceu que a pulsão sexual tinha, desde seu início, um objeto fora do próprio corpo, como por exemplo, o seio, o que justifica a aplicação do teste de realidade como instrumento de seu reencontro. Possibilitado por estes últimos argumentos, acrescentamos agora que se a satisfação pelo encontro do objeto depende do exame de realidade, não é menos verdadeiro o sentido inverso, ou seja, que a própria existência do teste depende do sucesso deste encontro, um termômetro que só funciona, ou só sabemos se funcionou, quando atendido ou preenchido pela realidade. Não pensamos assim, na possibilidade de uma anterioridade cronoló-

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gica do dispositivo que é em seguida aplicado, mas em uma aplicação imbricada em sua constituição, portanto o teste de realidade corresponderia a um procedimento atualizado e justificado no próprio uso. Retomando os argumentos de A negativa, encontramos uma terceira função ou capacidade do pensamento que foi, por fim, apresentada como contribuição decisiva para a distinção entre o que nele é da ordem do interno e do externo. Freud lembrou que há casos em que a reprodução de uma representação não é fiel, isto é, não é idêntica à experimentada anteriormente, seja por omissão, seja por acréscimos ou fusões. É justamente sobre os limites destas deformações que o teste de realidade se aplica. Neste caso, mais ainda, deve tratar-se de uma função altamente desenvolvida. Por conta disso, o julgamento intelectual, admitindo que o teste tenha sido eficaz, permite a passagem, como disse, do pensar ao agir. Ele é assim uma forma de atenção ao mundo exterior e isto se dá pela íntima ligação entre o eu e a extremidade sensorial a que está associado (Pcpt. – Cs.). Ele é assim, como disse, o resultado de um progresso do eu-prazer em direção ao eu-realidade que, em outros termos, promove igualmente uma conquista do princípio do prazer pelo princípio de realidade. Trata-se de um eu que quanto ao seu conteúdo representacional foi composto de uma cooperação, a partir de uma ação recíproca dos estímulos instintuais primários, mas também nutrido de fora pela terminação sensorial. Ainda na mesma época, na obra Uma nota sobre o bloco mágico, de 1924-5, Freud buscou em instrumentos auxiliares de nossa memória, uma analogia para ilustrar sua hipótese de funcionamento do aparelho perceptual, examinando de início a folha de papel e a lousa. Mas foi com o bloco mágico que realizou plenamente seu intento, ilustrando a capacidade receptiva de traços renováveis, além da inscrição de traços permanentes, de modo que admite a possibilidade de todo aprendizado com base na memória. No entanto, para isto, teve que resolver uma incompatibilidade de princípio entre as funções de recepção e armazenamento num mesmo sistema. Dada sua importância, duas observações neste ponto não podem passar despercebidas. Primeiro, a premissa de uma permeabilidade da memória acompanha o conceito desde o início de sua teorização e está presente praticamente em todas as versões sobre a relação entre percepção e memória, (como por exemplo, nos aparelhos psíquicos do Projeto, da Interpretação de sonhos e na Carta 52 a Fliess, 1896). Freud preocupou-se em garantir a possibilidade de uma renovação permanente da memória, sem perder de vista sua duração no tempo, o que permite a aprendizagem. Muito embora não seja admissível a um mesmo sistema receber estímulos e reter ao mesmo tempo. Por sua vez, a percepção precisa manter-se aberta ao recebimento

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de novas impressões enquanto a memória demanda um trabalho periódico de retranscrição, sofrendo rearranjos em função e decorrência de novas circunstâncias. Certamente por isso, como vimos, no Projeto, concebeu dois sistemas funcionalmente distintos, mas intimamente ligados, Ψ e φ, um para a memória e outro para a percepção. Segundo ponto, o aparelho psíquico precisa aprender a conservar as ações que levaram à satisfação no passado e, ao mesmo tempo, manter-se ligado às novas percepções, pois disto depende o reencontro com o objeto. Feitas as considerações, voltemos ao fato de que por meio do bloco mágico, apresentou mais uma vez sua concepção acerca do modo de funcionamento do aparelho perceptivo, descrevendo o que (de certa forma) corresponde ao mecanismo da atenção, isto é, do inspecionar ou voltar-se para o mundo exterior. Apresentou a tese de que o aparelho psíquico emite e recolhe periodicamente, a partir de seu interior, catexias em direção ao sistema Pcpt. – Cs., o que só é possível devido a sua natureza, como descrita acima, permeável. Vale notar, e isto é muito importante, que tal descrição está conforme o que encontramos na obra sobre o narcisismo quando, no plano da economia libidinal entre eu e objetos externos, Freud usou a imagem da emissão e recuo dos pseudópodes de uma ameba (metáfora visual da qual ele não abriu mão), repetindo-a mais tarde em Esboço de psicanálise, para acomodar uma mesma ideia, a de uma permeabilidade e mobilidade próprias de uma organização como o eu, cujos limites são dinâmicos e sujeitos a “rearranjos” externos e internos. Durante toda a vida, o ego segue sendo o grande reservatório do qual investimentos libidinais são enviados aos objetos e para o interior do qual retornam, tal como um corpo protoplasmático procede com seus pseudópodes (FREUD, 1938 (1969)). É, pois, por conta dessa característica que o sistema terminal permanece franqueado para acolher ou operar percepções e conscientizar-se delas (re) abastecendo constantemente o sistema (mnemônico) Ics.. Sobre isto, Freud escreve, “é como se o inconsciente estendesse sensores, mediante o vínculo do sistema Pcpt. – Cs., orientados ao mundo externo, e rapidamente os retirasse assim que tivessem classificado as excitações dele provenientes” (FREUD, 1924 (1969), p. 259), portanto uma inspeção e uma classificação que admite e reconhece a origem externa dos estímulos a serem considerados e ponderados. Postulou assim e mais uma vez a estreita ligação entre o eu e os instrumentos da percepção: o eu como agente da incursão na realidade, sob forma de catexias exploratórias periódicas no mundo exterior. Assim, é mais uma vez, neste contexto complexo que depende a instituição e a aplicação do teste de realidade.

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Foi ainda no mesmo ano, 1924, que Freud retomou este tema em A perda da realidade na neurose e na psicose. A distinção entre interior e exterior, memória e percepção, fantasia e realidade, foi assumida por Freud como um problema do funcionamento psíquico. Na verdade, podemos ver que a demonstração de um teste de realidade válido ou confiável é para a psicanálise justamente um problema antes de tudo clínico. Nesta obra apontou que o que diferencia uma neurose de uma psicose é “o fato de em uma neurose o ego, em sua dependência da realidade, suprimir um fragmento do id (da vida instintual), ao passo que, em uma psicose esse mesmo ego, a serviço do id, se afasta de um fragmento da realidade” (FREUD, 1924b (1969), p. 205). Há, portanto, de um modo geral, uma relação de preservação e outra de perda da realidade, respectivamente, do que depende o funcionamento e a saúde psíquica do paciente. Contudo, em ambos os casos a consequência é a criação de uma nova realidade, uma realidade psíquica, certamente como resultado da maneira final, conciliatória, de como o eu se posicionou diante da realidade e do id. De onde se infere a importância de seu reconhecimento. O termo “realidade psíquica” vem aqui para dar conta do déficit do termo “realidade” fundado em uma relação de oposição interno-externo. Continuando, Freud afirmou que tanto neurose quanto psicose são “a expressão de uma rebelião por parte do id contra o mundo externo, de sua indisposição − ou, caso preferirem, de sua incapacidade − a adaptar-se às exigências da realidade, à necessidade” (FREUD, 1924b (1969), p. 207). Este arranjo acaba por produzir uma justificativa de certa forma invertida, pois as relações com o mundo exterior se dariam, em função das exigências de um agente interno, mediadas por uma realidade psíquica interior dela decorrente. Pois reconheceu que em ambos os casos, tanto na neurose como na psicose, a iniciativa de lidar com a realidade exterior evitando ou recusando seus fragmentos, isto é, reduzindo o contato com ela, é possibilitada pela sobrevivência do que chamou de mundo de fantasia, mais uma vez definido como “de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade” (FREUD, 1924b (1969), p. 208), portanto, por um procedimento eximido das exigências da vida, justamente por meio de algo entre um uso indevido ou uma desativação do teste de realidade. Ao expor este arranjo e suas consequências Freud deixa entrever os limites da eficiência do teste de realidade além da própria labilidade da fronteira entre as instâncias psíquicas. Como se pode ver, na consideração deste mundo de fantasias, desta particularidade psíquica, ensejou a produção de uma “nova realidade”. Sobre isto, Freud declarou que tanto na neurose como na psicose há a ocorrência não apenas de uma perda da realidade, mas especialmente de uma produção

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Perguntas sobre a realidade

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de uma realidade substituta. Esta perspectiva foi retomada especialmente em Esboço de psicanálise, muitos anos mais tarde, em 1939. Nela considerou o repúdio ou negação como procedimento de defesa do eu contra uma realidade externa quase sempre intolerável. Particularmente no sexto capítulo refletiu sobre as funções do eu enumerando suas três relações de dependência; do id, do superego e da realidade. Esta última recebeu função de auxiliar ou aliada na manutenção da saúde do eu, na medida em que se apegando a ela, ele se prepara para resistir às pressões das outras duas instâncias. Ocorre que aparecendo como reforço do eu contra ambos acaba por prejudicar suas relações com o aparelho como um todo. A introdução desta situação paradoxal remeteu ao reconhecimento e análise, dentre outras coisas, de um tipo de resistência que alguns neuróticos apresentam e que constitui grave obstáculo aos esforços terapêuticos do analista. Diante de tal resistência, a julgar por suas condutas, Freud afirma que “o instinto de autopreservação (do paciente) na realidade foi invertido” (FREUD, 1939 (1969), p. 194), isto é, passou a visar a manutenção da doença ou, no limite, sua autodestruição. E isto porque seu eu já “não é mais capaz de cumprir a tarefa que lhe foi estabelecida pelo mundo externo (inclusive a sociedade humana)” (FREUD, 1939 (1969), p. 194). Nesta ocorrência, reconheceu que para sua correção de rumo e seu pronto restabelecimento a aplicação adequada do teste de realidade se faz necessária.

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Vimos, por este primeiro viés de análise, que a constituição da subjetividade se dá no entrecruzamento entre a demanda interior e seu atendimento a partir do exterior. O eu, quanto ao seu conteúdo representacional, fora composto de uma cooperação entre estímulos instintuais primários e a extremidade sensorial do aparelho, sendo nutrido de fora pela periferia perceptiva e, de dentro, pelas fontes endógenas. Melhor dizendo, não encontramos apenas uma oposição essencial entre estes dois mundos, interior e exterior, na teorização de Freud e sim uma relação hesitante, mas recíproca, o que não significa dizer que o elo que os une esteja isento de algumas descontinuidades, como procuramos apontar até aqui. Freud defendeu uma continuidade iluminadora desta relação, entre a psicologia individual e a psicologia dos grupos, como vimos em Psicologia das massas. A diferença entre estes dois mundos seria apenas formal, na medida em que, desde o início da vida psíquica de um indivíduo o outro sempre esteve presente e atuante, seja na condição de modelo, de objeto, de aliado ou inimigo. Não é preciso esforços para reconhecer que nestes termos a psicologia individual é simultaneamente psicologia social. Sendo assim, torna-

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-se difícil conceber um instante inaugural onde o mundo interno individual não fosse habitado ou visitado, desde sempre, pelo mundo externo e seus mais diversos representantes. Contudo sabemos que o eu não é inato ou dado desde o início, embora algumas vezes sugira isto, ele requer uma gênese psíquica. Seja como for, sentimo-nos autorizados para interrogar acerca do que ocorreria antes disso, quando não existiria este agente ou instância que inspeciona, explora e transita entre a realidade externa e a realidade psíquica. É justo que o leitor se pergunte pelo que ocorre no intervalo que precede a constituição do eu, quando ainda não há possibilidade de identificação com os modelos da realidade objetiva. Na tentativa de oferecer subsídio para esta demanda, passemos à problematização do estatuto do eu para avaliarmos sua contribuição, procurando tornar este instante menos enigmático.

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CONSTRUÇÃO INTRASUBJETIVA DO EU

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O exame da noção de realidade em Freud vem mostrando algumas dificuldades na perspectiva de uma discussão moderna sobre os problemas do solipsismo, vale dizer, da objetividade de nossas representações. Ora, a dificuldade que estamos enfrentando até aqui pode estar decorrendo de uma inadequada colocação do problema. A relação inaugural entre sujeito e realidade, nosso principal objeto de investigação, seria ela mesma decorrente de processos lineares e homogêneos ou um fenômeno que se verifica em diferentes momentos e planos de profundidade? Afinal de contas, a abertura inicial do eu, ou como a psicanálise denomina: a diferenciação eu-mundo, em última instância, verifica-se pela entrada do outro no psiquismo. Este fato coincide com a própria constituição do eu. Pois bem, posto o problema, reconhecida sua importância e esboçadas algumas respostas, passemos à investigação. Comecemos por reconhecer que se bem do ponto de vista ontogenético o bebê encontra no reconhecimento do outro a sua primeira e grande tarefa de constituição da vida psíquica, também devemos destacar que a demonstração desta premissa é colocada em questão pelo argumento solipsista. Nisso reside nossa dificuldade, mas também o ponto de partida para conceber um estatuto para o eu sob um ângulo que leve em conta a ambiguidade e a ambivalência que caracterizam as relações estruturais na formação do aparelho psíquico e do eu como sua agência. Admitindo que o nascimento do eu esteja essencialmente atrelado ao ingresso do outro na vida mental, como é patente desde o início da metapsicologia freudiana, a compreensão de seu estatuto a partir da procedência da fonte dos estímulos − se interna ou externa – longe de ser desconsiderada, deixa de ser uma preocupação de primeira ordem. Isto porque, desde o início, os processos

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Do Eu como causa do mundo para o Eu como fronteira de diferentes mundos

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As citações desta parte seguirão o modelo autor, data, página, com data de publicação da obra e da edição utilizada.

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narcísicos e as relações de objeto imprimem um delicado enlace entre interior e exterior na formação da instância do eu. A pura oposição, ao criar mais problemas do que resoluções, sugere a ideia de enlace. Como esboçado acima, não obstante diversos esforços, a teoria freudiana não conseguiu oferecer um critério definitivo ou infalível para a identificação e distinção entre estímulos externos e internos, sobretudo no sentido de diferenciar de modo confiável entre representações internas e realidade objetiva, entre percepção e recordação, percepção e alucinação, uma vez que o eu parece depender do próprio teste para tomar posição acerca destes impasses. Isto porque Freud, ao mesmo tempo em que continua a formular a questão partindo do quadro categorial dicotômico herdado da modernidade introduz um novo modo de pensar a constituição da realidade. Dito por outras palavras, o fracasso que reconhecemos atribuímos à limitação que impõem as categorias modernas, enquanto de fato sua contribuição de uma nova ontologia veio como acréscimo das exigências da clínica. Assim como, diante dos casos de histeria, Freud introduziu uma terceira causalidade (psíquica, inconsciente) entre a causa natural e a consciente (Perez, 2012), temos aqui um equivalente sob a forma de uma nova ontologia (realidade psíquica). Vamos retomar algumas das obras de Freud já investigadas e discutir os fatores que propiciam uma reorganização permanente entre os domínios externos e internos na origem do eu, bem como o desenvolvimento dos mecanismos que levam ao reconhecimento do objeto externo, o objeto da satisfação. Entendemos, retomando a tese acima exposta, que a diferenciação sujeito-mundo ocorre através do contato do indivíduo com seus primeiros modelos de identificação. É interessante lembrar que este “outro” corresponde não a qualquer parte da realidade, mas propriamente às porções mais significativas do mundo externo da criança. São as figuras parentais, grosso modo, os representantes da realidade externa no psiquismo infantil. Isto significa que o eu não é pensado como mero espelhamento da realidade, mas como enlace. A noção de identificação e a teoria do narcisismo figuraram como conceitos chave para a compreensão da psicogênese do eu e do objeto, sob o prisma de fundo de uma torção, ou deslocamento, no papel da interioridade e da exterioridade na constituição destas instâncias. Pretendemos, ao final, mostrar que o fenômeno da identificação ocorre em diferentes planos, como o intersubjetivo, o representacional/imagético e o não representacional, como no âmbito das pulsões e do predomínio de sensações corporais, de modo que estes registros sustentam íntimas relações entre si. Mas antes é preciso dar conta de alguns impasses que se sobressaltam ao levarmos o problema filosófico do solipsismo à perspectiva psicanalítica das primeiras relações.

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É inevitável encontrarmos em Freud algumas imprecisões conceituais com relação às suas duas versões do conceito de narcisismo e às formulações sobre o mecanismo da identificação, imprecisões que resultam em parte do método teórico freudiano e, em parte, são inerentes à própria natureza dos processos psíquicos em questão. Contudo, na literatura psicanalítica pós-freudiana as ambiguidades destes conceitos foram lidas como contradições do pensamento freudiano. Por um lado, demandaram novas contribuições teóricas como é o exemplo de Kohut, Grunberger e André Green. Por outro lado, foram interpretadas como vertentes distintas e com isto pautaram concepções antagônicas sobre o estatuto do objeto e das relações narcísicas tendo como elemento comum uma oposição entre eu e objetos. Uma primeira linha de interpretação admite a existência de um narcisismo primário absoluto, precursor das relações de objeto. É o caso de Rene Spitz e Heinz Hartmann. Em outra corrente interpretativa formulam um amor de objeto nos primórdios do psiquismo e, neste sentido, dispensam o conceito de narcisismo primário. Essa é a posição de Michel Balint, Fairbairn e a própria Melanie Klein, que admitiu apenas o narcisismo secundário, como o retorno da libido nos objetos interiorizados. Assim, fica claro que o critério mais utilizado pelos pós-freudianos para discutir a concepção de psiquismo foi modulado pela presença ou ausência de um objeto no início da vida psíquica, a saber, a questão da objetalidade versus anobjetalidade. Estas posições traduzem ora uma visão monádica ora uma visão intersubjetiva do aparelho psíquico, de uma oposição entre eu (narcisismo) e mundo externo (objeto), sendo, neste sentido, segundo entendemos, herdeiras diretas das aporias do solipsismo filosófico entre eu e realidade objetiva. Queremos acrescentar que estas posições, longe de expressarem ingenuidades de seus autores, são problemáticas também na medida em que não se perguntam pela natureza deste objeto ou sobre os processos que vigoram no intervalo que precede a psicogênese do eu, embora o conceito de objeto desempenhe diferentes funções e significados no pensamento freudiano. Um retorno radical às primeiras relações objetivas do aparelho psíquico nos levará ao plano da pulsão e às relações entre um eu incipiente (o eu frágil e débil no vocabulário freudiano) e aqueles objetos parciais que, ao início, são inespecíficos e atuam em um registro que prescinde da constituição do esquema corporal próprio e da representação de um objeto total. O autoerotismo é um destes registros. Quando Freud se referiu à escolha de objeto (e a ela deve ser reservado o sentido da procura pelo objeto, vale dizer do objeto de desejo), o fez para diferenciá-la da busca frenética pela satisfação pulsional em si, descarga da tensão acumulada através dos objetos parciais, a exemplo das manifestações

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sexuais infantis ou adultas perversas. Entendemos que esta procura extrapola o registro exclusivo da pulsão (que tem sua maior expressão no polimorfismo sexual infantil) e passa a ser construída no curso do desenvolvimento psicossexual, concomitante ao desenvolvimento do eu, à passagem pelo complexo de castração, complexo de Édipo e à superação do narcisismo primário. Queremos ressaltar que o objeto de amor e o objeto de desejo têm um sentido específico na teoria freudiana e, assim como o eu, demandam ambos uma ontogênese psíquica. Em Pulsões e seus destinos, encontramos a afirmação de que “o amor não é uma pulsão parcial entre outras” (FREUD, 1915 (1989), p. 128), estabelecendo uma distinção entre as relações amorosas e as relações entre pulsões e seus objetos. Mais adiante Freud escreve que “os vínculos de amor e de ódio não são aplicáveis às relações das pulsões com seus objetos, senão que estão reservados à relação do eu-total com os seus” (FREUD, 1915 (1989), p. 132). Freud formulou assim uma diferença entre as relações de cunho amoroso/hostil e as relações pulsionais, reservando para as primeiras a denominação de vínculo. Referiu ainda aos objetos do plano da pulsão e os objetos amorosos do eu. A dimensão estritamente pulsional da sexualidade foi revelada nas características fundamentais da sexualidade infantil (a erotização do corpo sem uma representação de conjunto, o prazer de órgão, a plasticidade e a contingência do objeto etc.). Como dissemos, a procura pelo objeto prolongará e transformará as experiências entre o organismo e o mundo objetivo, desenvolvidas inicialmente no plano das pulsões, mas a partir do qual serão moldadas as outras dimensões da sexualidade, relativas à fixação a uma identidade objetal, à unificação narcísica do esquema corporal, à escolha de objeto, à ambivalência de amor e ódio, etc. Como se pode observar, a própria introdução do conceito de pulsão, como primado da sexualidade e da constituição psíquica, não se submete à relação de oposição moderna entre exterior e interior e abre a possibilidade de um novo tratamento da questão da realidade. Reconheçamos que as relações entre estes domínios identificados por Freud, pulsões e seus objetos ou eu total e objetos de amor (o registro da pulsão e o registro do desejo, respectivamente) não se definem por uma distinção cronológica e não ficam restritos à passagem da sexualidade infantil à adulta. Tanto é assim que aspectos sexuais infantis sobrevivem na sexualidade após a puberdade nas fixações e regressões. Embora estes registros correspondam a etapas do desenvolvimento da libido e integrem elementos da clássica série autoerotismo/narcisismo/amor de objeto, eles descrevem antes modos de investimentos libidinais entre id e objetos, entre eu e objetos. Não propomos uma distinção absoluta ou estanque entre pulsão e dese-

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jo, embora seja admissível, uma vez que as moções pulsionais travam conflitos entre si e com a realidade, enriquecem ou esvaziam a busca pelo objeto. Enfim, as pulsões convivem com o registro do desejo, inspirando e determinando de diferentes formas a história sexual como um todo. Mas precisamos indicar algumas diferenças entre as experiências oriundas da pulsão e aquelas relativas ao desejo. Esta distinção forneceria, a nosso ver, ferramentas para elucidar questões referentes à projeção do eu corporal no desenvolvimento de seus aspectos intersubjetivos, do que trataremos a seguir. Tudo isto porque a distinção entre estes domínios, e principalmente entre objetos da pulsão e objetos amorosos, facilita a visualização da gênese identificatória do eu que, como definiu Freud em 1923, é um precipitado de identificações. Esta importante distinção não foi cabalmente explicitada por Freud, mas pode ser inferida na leitura de suas obras. Em reforço, lembremos que a delimitação entre o registro da pulsão e do desejo foi também recomendada por André Green (1983/1988), Simanke (1994), Bocchi e Simanke (2012), justamente para evitar impasses conceituais, como quando se discute o lugar do objeto na teoria da constituição do psiquismo (se o objeto é secundário às pulsões ou se ele é também constitutivo) ou no debate sobre a origem do reservatório da libido (se no eu, se no id) e sobretudo, na rejeição do conceito de narcisismo primário absoluto ou na radicalização de uma vertente freudiana anobjetal, afinal, questões que aproximam ou afastam o conceito de narcisismo de um solipsismo subjetivo. O cerne da questão é que a consideração dos objetos da pulsão sexual mostra que há um objeto na origem das primeiras representações, desde o princípio da vida psíquica, mas que não é ainda o objeto das relações narcísicas, tampouco das relações edípicas. De fato, o primeiro objeto e sua função estariam integrados ao próprio conceito de pulsão: “o objeto [Objekt] da pulsão é aquilo pelo qual uma pulsão pode atingir sua meta” (FREUD, 1915 (1989), p. 118). Entretanto, em concordância com os Três ensaios sobre a teoria sexual, de 1905, fez questão de manter o sentido de uma indeterminação inicial para o objeto afirmando que “é provável que de início a pulsão sexual seja independente do seu objeto” (Freud, 1905 (1997) 26) e, talvez apoiado nisto, reforçou que este é o elemento “mais variável da pulsão; não estando originariamente ligado à ela” (FREUD, 1915 (1989), p. 118). Assim, por decorrência, entendeu que o movimento da pulsão na direção de objetos específicos começa a se dar, por assim dizer, pelo fato de que “um mesmo objeto pode servir simultaneamente à satisfação de várias pulsões” (FREUD, 1915 (1989), p. 118). De modo que o agente prestativo externo que é o objeto gratificador na vivência de satisfação, também pode ser o objeto hostil (vivência de dor), o leite satisfaz as pulsões de autoconservação (as carências

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orgânicas, cujo modelo é a fome) enquanto o seio satisfaz as pulsões sexuais orais, tudo isto no sentido genuinamente freudiano (do primeiro dualismo pulsional) de que as pulsões de autoconservação ensinam o caminho do objeto às pulsões sexuais. Com isto quis dizer que o objeto não é um dado natural, não surge ex abrupto e nem em um único momento. Na verdade Freud insistiu na psicogênese do objeto como algo imprescindível para a fantasia, para a determinação da escolha do objeto sexual e para a emergência do desejo, “definido como um impulso propriamente psíquico em direção a um objeto” (SIMANKE, 1994, p. 128-129). Vale dizer que o movimento em direção aos objetos percebidos como separados do eu sempre representa, em última instância, a tentativa imaginária de restaurar o narcisismo perdido (na medida em que esta escolha for narcísica) ou de compensar o desamparo infantil (na medida em que ela for por apoio). Somente estes objetos podem ser chamados com mais propriedade de objetos amorosos. No entanto é uma forte tendência da escola inglesa de relações objetais pensar um objeto de amor primário desde a origem do psiquismo, a exemplo de Balint e Fairbairn. Provavelmente justificada num mal-entendido de que há objetos mais arcaicos de que o próprio objeto de desejo e, logo, que há objetos primários em relação aos objetos de amor. De nossa parte, entendemos que o objeto das identificações formadoras do caráter do eu, o objeto perdido no luto ou na melancolia e que depois é identificado ao eu, o objeto na vivência de satisfação e o chamado objeto de amor ou da atração sexual surgem a partir das experiências do aparelho psíquico com a realidade e serão esculpidos na história sexual infantil, não sendo, portanto, o mesmo objeto que está presente no plano da pulsão. Segundo entendemos, o ponto central desta discussão, no que diz respeito ao problema filosófico do solipsismo, é que a concepção do objeto da pulsão inviabiliza a formulação de um organismo inicialmente fechado, de uma intrasubjetividade monádica ou autossuficiente, e igualmente neutraliza algumas oposições esquemáticas que obscurecem tanto o debate sobre o narcisismo primário, tais como, a oposição eu / objeto, narcisismo / mundo externo, anobjetalidade / objetalidade, como a própria discussão solipsismo / realismo. Por fim, podemos dizer que este seria o problema inadequadamente colocado a que nos referimos acima. Pois, a existência dos objetos pulsionais atesta que desde que existe pulsão no aparelho – ou seja, desde o início da vida −, existe um objeto, um objeto que satisfaz a meta pulsional, mesmo que este coincida com a própria fonte da pulsão. Em Pulsões e destinos de pulsão, Freud definiu a meta pulsional como a busca pelo “prazer de órgão”. Esse prazer imediato e sensorial, próprio do contato com as zonas erógenas

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(fonte da pulsão), é também o que melhor exprime a natureza do prazer na criança. Em face da confusão inicial entre eu e mundo e à dispersão das pulsões sexuais parciais, objetos não corporais também cumprem a função de objeto auto erótico na sexualidade infantil, como a chupeta, roupas de cama, partes do corpo do outro − e não apenas o corpo do bebê (pele, lábios ou a mucosa intestinal), como mostra a observação. Podemos dizer que Freud pensou o narcisismo a meio caminho entre o autoerotismo e a escolha de objeto. Em Totem e tabu, de 1913, reapresentou a noção de uma fase intermediária em que as tendências sexuais antes independentes aparecem “reunidas em uma unidade e encontram seu objeto; o qual não é, de todo modo, um objeto exterior alheio ao indivíduo, senão seu próprio eu, constituído já nesta época” (FREUD, 1913 (1953), p. 95). Note-se que o narcisismo é concomitante ao surgimento de uma unidade no eu, o eu constituído, descrito celebremente em Introdução ao narcisismo, de 1914, como a “nova ação psíquica” que se agrega ao autoerotismo. Esta primeira concepção do narcisismo durou até 1917 e deixou entrever um objeto na origem do eu, e uma gênese concomitante entre ambos. Isto tudo em lugar de uma oposição distintiva entre eles. A libido narcísica aglutina uma imagem de si e leva à concepção do primeiro objeto amoroso em sentido total (semelhante a um objeto externo), o mais enaltecido e grandioso, como disse Freud em O eu e o id. Na escolha narcísica, o eu se torna o primeiro objeto exclusivo da sexualidade, embora o seio seja o primeiro objeto da pulsão sexual ele provém das pulsões de autoconservação. Já na XXVIa. Conferência de introdução à psicanálise, intitulada “A teoria da libido”, Freud eliminou a diferença entre fase auto erótica e narcísica: “o autoerotismo era a prática sexual do estágio narcisista de colocação da libido” (FREUD, 1916-17 (1989), p. 378-379). O narcisismo primário foi recuado a uma etapa anterior à existência do eu; as implicações dessa alteração ficaram visíveis em 1923, quando o narcisismo primário passou a significar uma total indiferença entre eu e id e o narcisismo secundário foi redefinido como o narcisismo do eu. É preciso reconhecer o que esta mudança representou na teoria do narcisismo, se quisermos entender esta aparente radicalização do conceito. A existência de um narcisismo mais arcaico que o eu, e qualquer relação eu-objetos, proporcionou uma leitura de inclinação anobjetal na segunda versão do narcisismo freudiano, predominante a partir de 1920 (LAPLANCHE, 1985). Em Psicologia das massas, Freud fez referência a um narcisismo absoluto cujo protótipo seria a vida intrauterina: “com o nascimento passamos do narcisismo absolutamente autossuficiente à percepção de um mundo exterior variável e ao início da descoberta do objeto” (FREUD, 1921 (1989),

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p. 103). Por conta disto perguntamos se seria o narcisismo primário uma tentativa de continuação desse estado original. Ora, não seria por acaso que, mesmo sem um sucesso pleno, “periodicamente voltamos atrás e ao dormir regressamos ao estado anterior de ausência de estímulos e evitação do objeto” (FREUD, 1921 (1989), p. 103). Esta perspectiva coincidiu com a interpretação de Green, para quem o narcisismo tem aspectos da pulsão de morte e, por isso, representa uma necessidade do recolhimento face à dependência de um objeto variável, intermitente e que frustra com frequência. O retraimento esboça assim um sistema fechado pretensamente autossuficiente, o que não significa alcançá-lo. Segundo ele, o narcisismo primário absoluto foi pensado por Freud não como uma vivência, e sim segundo a concepção de uma tendência ou estado ideal a ser atingido (GREEN, 1988, p. 38). Vale ressaltar também que no Esboço de psicanálise Freud disse que o narcisismo primário absoluto é um estado que “dura até que o eu começa a investir com libido as representações de objetos” (FREUD, 1938 (1989) p. 148). Fica assim subentendido que o narcisismo seria tão somente o estado psíquico da libido quando esta não se encontra nos objetos. Isto também fica patente nas aproximações que Freud busca em Formulações sobre os dois princípios do suceder psíquico, ao conceber uma organização indiferente ao mundo externo (sob o influxo do princípio do prazer), mas, segundo Freud, o latente não forma um sistema totalmente fechado: “ele quase realiza esse sistema psíquico” (FREUD, 1911 (1989), p. 224-225). Esta ideia reaparece em Pulsões e destinos de pulsão, a saber: “imaginemos um ser vivo quase completamente fechado, ainda não orientado ao mundo [...]” (FREUD, 1915 (1989), p. 114). Não obstante as declarações resta-nos entender em que sentido tudo isto é possível, já que Freud insistiu na imagem de um organismo indiferenciado quase tão perfeito como uma cápsula autista. Entendemos que ainda que exista uma completa indiscriminação eu-mundo, esta não implica na ausência total de um objeto, uma vez que, como vimos, um significado objetal é inerente à pulsão. Sendo assim, a inclinação anobjetal que flerta com a segunda tópica se desvanece na medida em que Freud apenas pode estar supondo um estado de não objeto, no sentido de objeto amoroso, e não da pulsão. Até porque é indispensável à teoria freudiana da libido que o narcisismo seja anterior à escolha do objeto sexual, por isso também sua insistência na série autoerotismo/narcisismo/amor de objeto. E ainda mais, reconhecemos que o mundo exterior é indiferente para a satisfação das pulsões sexuais de início, mas somente no sentido de que não se precisa de um objeto sexual externo: “a criança prefere uma parte de sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna indepen-

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dente do mundo externo, que ela ainda não consegue dominar” (FREUD, 1905 (1997), p. 60). Porém, o mundo externo não é indiferente para o desenvolvimento do eu (frágil) no sentido freudiano do desamparo infantil. Na discussão das relações entre eu-prazer e eu-realidade, empreendidas em Formulações sobre os dois princípios do suceder psíquico e Pulsões e destinos de pulsão, é possível ver que o mundo externo não pode ser indiferente ao organismo/sujeito psíquico, e mesmo o seu reconhecimento é mais do que necessário à sobrevivência, ele se impõe ao eu. Na obra Pulsões e destinos de pulsão, Freud descreveu a passagem do eu-realidade inicial para o eu-prazer, antes de se tornar eu-realidade definitivo, processo que elucida algumas relações originárias do aparelho psíquico com o exterior à luz da relação entre as polaridades sujeito (eu) − objeto (mundo exterior), prazer-desprazer e amor-ódio. Como vimos, o tema do eu-realidade e do eu-prazer também foi abordado em Formulações sobre os dois princípios do suceder psíquico, todavia sem maiores elucidações e com a diferença que o eu-prazer se transformava diretamente em eu-realidade. Revendo esta formulação, em 1915, Freud postulou outro estágio do eu antes deste se tornar eu-realidade definitivo, cujo esquema foi apresentado da seguinte maneira: eu realidade inicial/eu puro prazer/eu realidade definitivo. Ao eu realidade inicial correspondia um critério de distinção entre “dentro e fora, segundo uma boa marca objetiva” (FREUD, 1915 (1989), p. 130), também no princípio da diferenciação entre eu e não eu. Nesta oportunidade Freud se pautou na possibilidade da resposta motora para o escoamento da estimulação (casos como o reflexo que evita a superfície quente, a contração da pupila perante uma intensidade luminosa etc.). Recordemos que, como dito acima, este escoamento de estímulos aplica-se à eliminação de estímulos exteriores, enquanto que em relação às sensações internas (a demanda pulsional do aparelho psíquico) a expectativa é de uma ação específica empreendida no ambiente, no qual a criança não tem nenhum domínio. Como se vê, a ação muscular atua muito cedo como critério demarcatório entre interno e externo. Por uma parte, (o ser vivo primitivo) registra estímulos dos quais pode retirar-se mediante uma ação muscular (fuga), e a estes atribui um mundo exterior. Porém, por outra parte, registra outros estímulos frente aos quais uma tal ação resulta inútil, pois conservam seu caráter de esforço (Drang) constante. Estes estímulos são a marca de um mundo interior, o testemunho de necessidades pulsionais. A substância perceptiva do ser vivo haverá adquirido assim, na eficácia de sua atividade muscular, um sinal para separar um “fora” de um dentro (FREUD, 1915 (1989), p. 115). No entanto, a despeito de sua eficácia, este critério objetivo será substituído por outro a partir do narcisismo primário; etapa em que, segundo

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Freud, na mesma obra, coincidem as polaridades sujeito-objeto e prazer-desprazer. Nesta fase, o mundo externo é indiferente para a satisfação, porque o eu parcial investido pelas pulsões auto eróticas é capaz de satisfazê-las em si mesmo sem recorrer ao exterior, ao menos por um determinado tempo. Durante a vigência destas condições, emerge o “eu-prazer purificado que põe o caráter do prazer acima de qualquer outro. O mundo exterior se divide em uma parte de prazer que é incorporada ao eu e um resto que é alheio a ele. E do próprio eu separa-se um componente lançado ao exterior e sentido como hostil” (FREUD, 1915 (1989), p. 130-131). A partir deste reordenamento, o eu-sujeito coincide com o prazer e o mundo externo com o indiferente (que será desprazer na medida em que enviar estímulos ao eu). Neste formato, o eu incorpora sensações de prazer como sendo ele mesmo e atribui a ausência de prazer ao que não é ele, de modo que pelo que se pode chamar de introjeção, dá sentido às ideias de interior e exterior. Contudo, apesar da satisfação autoerótica, o eu puro prazer recebe seus primeiros objetos externos a partir das vivências das pulsões de autoconservação e as necessidades vitais. Esse objeto, em geral os pais ou quem quer que cuide da criança, não pode estar presente o tempo todo e sua intermitência (ou perda) naturalmente acarreta frustração (desprazer), uma vez que o bebê se encontra em estado de total dependência, por conta do que, como disse Freud, “não deixa de sentir, ao menos por um tempo, como desprazerosos, certos estímulos pulsionais internos” (FREUD, 1915 (1989), p. 130). Enfim, Freud postulou um eu-prazer intermediário para que o ingresso do objeto não rompa de imediato com o eu-realidade narcísico. Após estas operações, o critério da ação muscular no reconhecimento da fonte externa dá lugar ao critério do prazer a fim de manter ou restabelecer as equivalências do estado narcísico. Com isso, perde-se a objetividade do antigo critério: o eu, agora, é composto de uma parte prazerosa que foi incorporada do mundo externo (como os traços mnêmicos do objeto de satisfação) e outra parte estranha que pode ser sentida como hostil, quando expelida. Se o critério do prazer, de um lado, fortalecia a polaridade eu/não eu, intensificando-a com a incidência da oposição prazer-desprazer, por outro lado, os componentes do eu projetados invalidam a fuga ou escoamento (pela via da ação muscular) que funcionava para o eu realidade inicial. Embora, como já dissemos, este critério é insuficiente para justificar o reconhecimento da fonte externa causadora da sensação, pois ele funcionava em termos de uma distinção objetiva. No entanto, os mecanismos de introjeção e projeção promovem um cenário intrasubjetivo mais complexo, com certa imbricação entre aparelho psíquico e realidade, uma vez que sensações ex-

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ternas resultam da projeção de um mal-estar interno, e vice-versa. Como se pode ver, começa a ganhar corpo uma ambiguidade que marcará as relações identificatórias mais precoces. Este desenvolvimento nos permite reconhecer que na situação do eu realidade inicial, a oposição sujeito-mundo recebeu de Freud o estatuto de um dado natural, uma vez que o eu é o prazer e o restante (mundo externo) é indiferente. Já no eu-prazer, a oposição sujeito-mundo resulta de um processo psíquico que visa restabelecer a equivalência entre eu-mundo e prazer-desprazer, que passa a ser ameaçada pela entrada do objeto. De modo que, o que antes era indiferença torna-se alheio, externo e odiado e temos neste caso talvez uma primeira alternativa para o reconhecimento da fonte externa para, conforme a necessidade, buscá-la ou evitá-la. Sobre isto, Freud reconheceu que a chegada do objeto no narcisismo primário assinala também o sentido originário do odiar, que se dá na relação do eu com o mundo provedor de sensações desprazerosas, protagonizadas por este outro, nem sempre disponível. O reconhecimento da fonte de estímulos externos, antes parcialmente inferido nos critérios da ação muscular e do prazer-desprazer, parece gradativamente serem transferidas para o eu. Freud descreveu esta passagem indicando que “assim que a etapa puramente narcisista é complementada pela etapa objetal, o prazer e desprazer passam a significar relações do eu com os objetos” (FREUD, 1915 (1989), p. 131). Isto porque, como os primeiros objetos da vida psíquica são enviados pelas pulsões de autoconservação do eu, o vínculo com o objeto hostil é mais primitivo que a relação entre eu e objetos das pulsões sexuais. Para Freud “o ódio é, como relação com o objeto, mais antigo que o amor; brota da repulsa primordial que o eu narcisista opõe no começo ao mundo exterior provedor de estímulos” (FREUD, 1915 (1989), p. 133). Sob esse aspecto a gênese do ódio contém, em parte, o protótipo da primeira relação com a alteridade. E isto porque, segundo Freud já anunciara, “o exterior, o objeto, o odiado, haviam sido idênticos no princípio” (FREUD, 1915 (1989), p. 131). Ele seguiu dizendo que se o objeto é fonte de prazer uma tendência motora irá incorporá-lo ao eu, de modo que “então falamos também da ‘atração’ que exerce o objeto” (FREUD, 1915 (1989), p. 131), por conta do que passamos a amá-lo ou “sentimos a ‘repulsa’ do objeto e o odiamos” (FREUD, 1915 (1989), p. 131). Por fim, o movimento de reconhecimento das fontes causadoras das sensações, que de início dependia de dispositivos ainda imaturos do eu (em suas primeiras experiências), torna-se mais complexo visando a busca ou evitação deste objeto. De toda forma, este reconhecimento não é jamais uma opção, mas uma exigência de trabalho do aparelho psíquico, que foi detalha-

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do mais à frente quando Freud empreendeu a análise do pensar. Posto isto, acrescentemos que também nas obras, Formulações sobre os dois princípios do suceder psíquico e Pulsões e destinos de pulsão, Freud reconheceu que a modificação do eu realidade inicial em eu-prazer é favorecida pelo autoerotismo, o que permite o atraso da sexualidade em educar-se pelo princípio de realidade, como foi destacado na teoria pulsional. Recorremos a este argumento para destacar a necessidade da teoria freudiana de pensar a formação do eu em diferentes etapas (autoerotismo/narcisismo/amor de objeto ou eu realidade inicial/eu prazer/eu realidade definitivo), estágios (libido narcísica, libido objetal) e organizações psicossexuais do desenvolvimento (oral, anal, fálica, genital). Estes são todos processos que requerem uma integração gradual, preparada pelo longo caminho até a sexualidade adulta (imagem frequentemente utilizada por Freud). Lembremos que as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais reclamam um objeto desde o início (como a pulsão de domínio e a pulsão de saber) e assim preparam novos progressos. Estas são as pulsões que primeiro se curvam ao princípio de realidade, mas também sabemos que elas têm um duplo papel, o de perturbar e ao mesmo tempo reforçar o narcisismo. O cuidado que o outro, ou agente, disponibiliza a partir do mundo externo neutraliza as necessidades das pulsões libidinosas (não autoeróticas), impedindo que a fome ou impulsos sádicos, por exemplo, conduzam direto ao eu realidade adulto. A satisfação destas pulsões e, sobretudo, o desamparo infantil promovem o narcisismo do eu, pelo menos provisoriamente, ou enquanto o sujeito ainda não está preparado para assumir as vicissitudes do contato com o objeto externo e a realidade objetiva, por isto tantos estágios se interpõem entre a extensa gênese do eu e a busca pelo objeto total externo (os vínculos, pessoas, ideais etc.). Assim, as formas primitivas eu-realidade e eu-prazer dão um sentido mais operatório às identificações primárias, que permeiam as diversas fases do eu em formação, nas quais a substância perceptiva do ser vivo registra a presença de um eu e um não eu, recordemos, a princípio, com o sinal muscular e, em seguida, com um eu-prazer narcísico, cuja relação primordial com o não eu (indiferente) é acentuada e legitimada pela oposição prazer-desprazer e com o objeto, pela ambivalência de amor e ódio. Talvez a imagem de uma organização autossuficiente (autista) possa também ser pensada como um não registro das primeiras percepções do aparelho, até porque ele não é necessário até um certo momento da vida do bebê. Isto porque as pulsões autoeróticas prolongam provisoriamente o narcisismo, poupando-o de um encontro inevitável − quando as necessidades vitais exigem um objeto externo através de uma ação no mundo. E aí sim, porções

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desta realidade objetiva são apresentadas ao eu de forma contundente. Como sabemos, o eu se forma na interação com os objetos de identificação (mãe ou quem cuida da criança), mas também na interação imediata com o corpo. Em O ego e o id, o eu surge do núcleo do sistema perceptivo em contato com a realidade externa e não qualquer outra realidade, mas sim aquela que contém os pais. Sobre isto, Freud afirmou que “é fácil perceber que o eu é parte do id alterada pela influência direta do mundo exterior, com mediação de P-Cs [sistema perceptivo]: por assim dizer, é uma continuação da diferenciação de superfícies” (FREUD, 1923 (1989), p. 27). O desenvolvimento do eu foi pensado como a continuação de uma diferenciação originária do id, acompanhada por um aumento da complexidade do aparelho psíquico, tanto em termos de diferenciação tópica e do surgimento das funções psicológicas, como do ingresso e da consolidação do papel do outro na experiência subjetiva. Na sequência, Freud acrescentou que o corpo também contribui para esta modificação no id, fornecendo uma modalidade incipiente de percepção, a saber, que “o eu é, sobretudo, uma essência-corpo [...] o corpo próprio e principalmente sua superfície é um sítio do qual podem partir simultaneamente percepções internas e externas. É visto como um objeto outro, porém proporciona ao tato duas classes de sensações, uma das quais pode equivaler a uma percepção interna” (FREUD, 1923 (1989), p. 27). Com isto, Freud reconheceu que a superfície corporal produz sensações distintas que equivalem às percepções externas e internas e, assim, de uma forma muito singular o corpo pode objetivar-se para si mesmo. Este estranhamento em relação ao corpo coincide com os estágios do desenvolvimento psicossexual em que o narcisismo unifica diferentes sensações numa imagem de si, investindo-a repetidas vezes, mas também faz barreira ao autoerotismo, captando diferentes traços na imagem de um mesmo objeto. Assim, objetivar-se, corresponde a “quando o ego contrai os traços do objeto, por assim dizer, se impõe ele mesmo ao id como objeto de amor, busca reparar sua perda dizendo: ‘Olhe, pode amar a mim também, sou tão parecido com o objeto [...]” (FREUD, 1923 (1989), p. 32). O eu se constitui assim com base nesta imagem unificada, como Lacan descreveu mais tarde com recurso ao estágio do espelho. Mas guardemos que na diferenciação inicial entre eu e mundo há uma interação permanente entre sensações internas/representações corporais e sensações externas/representações de objeto. Estas sensações distintas são equiparáveis e substituem-se no curso dos processos identificatórios da formação do esquema corporal (bem como na projeção de uma autoimagem) e continuam sendo comparáveis e intercambiáveis até alcançar o reconhecimento das percepções externas. Uma ilustração deste intercâmbio primitivo aparece no comentário de

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Freud sobre a transformação da dor física em dor mental, particularmente no exemplo da criança que não consegue avistar a mãe por alguns minutos, e a dor emerge como uma reação ao perigo real da perda do objeto:

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O único fato do qual temos certeza é que a dor ocorre em primeiro lugar e como uma coisa regular sempre que um estímulo que incide na periferia irrompe através dos dispositivos do escudo protetor contra estímulos e passa a atuar como um estímulo instintual contínuo [...]. Se a dor provier não de uma parte da pele, mas de um órgão interno, a situação é ainda a mesma. Tudo que aconteceu é que uma parte da periferia interna ocupou o lugar da periferia externa. (FREUD, 1926 (1976), p. 196)

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Temos aqui um mecanismo semelhante, senão o mesmo fenômeno descrito em O ego e o id, da dupla formação do eu, via núcleo da percepção e via corpo, por uma “diferenciação de superfícies” (FREUD, 1923 (1989), p. 27). A diferença é que, em 1926, Freud as nomeou como “periferias” externa e interna. A particularidade que nos interessa é relativa ao fato de que o corpo pode ser estimulado tanto pelo mundo externo como pelo mundo interno (com os mesmos resultados para a percepção subjetiva do indivíduo). Seja via pele, seja via órgão interno. Como disse Freud, “a situação é ainda a mesma. Tudo o que aconteceu é que uma parte da periferia interna ocupou o lugar da periferia externa” (FREUD, 1926 (1976), p. 196). O inverso também acontece durante os estágios intermediários do eu, simplesmente porque ele é uma projeção das identificações desses dois lados, onde há equivalências e substituições entre as faces interna e externa do eu. Como podemos observar já desde o Projeto, os investimentos corporais (e a fome é o mais poderoso) moldam as primeiras representações de objeto no manto do eu, assim como todo movimento do organismo também gera uma representação de movimento no manto. Portanto, existem caminhos de ligação e de identificação, desde os primeiros desenvolvimentos entre eu/corpo e eu/realidade objetiva, entre a periferia interna e a periferia externa do eu e a percepção. No entanto, até este ponto da argumentação não temos um eu intersubjetivo no pleno sentido do termo, não há um eu formado para incorporar objetos ou identificar-se com seus modelos.

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Inibição e realidade

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Dado que o eu não existe desde o início e cabe a ele a inibição e facilitação dos processos psicológicos do sistema de memória, perguntamos: de que modo se daria essa inibição? Como antecipado acima, a primeira inibição do processo primário é realizada por uma regra biológica, a defesa primária, segundo a qual as ocupações que gerariam desprazer no manto são inibidas ou evitadas. Depois deste primeiro condicionamento, o eu passa a executar os demais processos inibitórios do aparelho com o auxílio de outra regra biológica, a da atenção e o seu potencial para a aprendizagem. A primeira inibição dos processos primários, feita pela lei da defesa primária, coincidiria com o estabelecimento da tendência à constância, ou seja, a retenção de alguma quantidade no núcleo do eu e que é a reserva necessária para ele influir nos demais processos associativos do aparelho; o que também explica a ocupação constante no interior do eu. Como consequência da defesa primária, além de evitar as vias desprazerosas, o eu aprende a ficar atento à entrada de novas percepções. O exemplo aqui são todas aquelas situações nas quais o recém-nascido eliminou tensão na ausência do objeto externo alucinando a presença do seio. O resultado imediato é a frustração de sugar no vazio ou o estado de desamparo. Segundo Freud no Projeto, todos os movimentos executados são seguidos de imagens de movimento em Ψ, que funcionam como uma notícia de eliminação reflexa. Os signos de qualidade são as notícias de eliminação a partir do sistema ω. Por sua vez a atenção determina quais caminhos serão percorridos através das ocupações laterais do eu, a saber, aqueles que favoreçam a ação do adulto no ambiente externo (por exemplo, abrir os olhos, chorar, virar o pescoço, espernear). Nisto temos também um princípio implícito de seleção de vias neuronais determinado pelo critério prazer-desprazer. No Projeto, o ponto de vista mecânico diz respeito ao montante de excitação nas representações do eu. Ao introduzir as regras da defesa primária e da atenção, adquiridas filogeneticamente, Freud acrescentou o ponto de vista biológico. No limite, a repetição dos processos primários na vivência de satisfação e na vivência de dor, provocando a satisfação alucinatória do desejo e a defesa patológica respectivamente, poria em risco a sobrevivência do bebê. As intensidades da excitação e o registro das primeiras experiências não são suficientes para explicar por que a repetição de eventos desprazerosos deixa de acontecer. Certamente tais eventos deixam de ocorrer porque comprometem o princípio evolutivo da preservação da vida, portanto é um princípio biológico que explica como a criança deixa de alucinar. Mas isto

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não é tudo, porque não é a biologia que garante a existência dos processos psicológicos normais, ou seja, a diferenciação entre perceber e alucinar. Da forma como concebidas ambas as restrições biológicas têm um sentido adaptativo e são inatas, embora a existência do eu não. Este surge de condições inatas, como aquelas que impediram a alucinação pela primeira vez, mas terá que ter suas representações constantemente atualizadas pela experiência para que o encontro com o objeto da satisfação seja viabilizado. A partir da primeira inibição, o eu cria novos processos que não estavam predeterminados, como as condições para o pensamento e, mais tarde, a linguagem. Além disso, a ele caberá a distinção entre percepção e memória. A emergência da defesa primária ocorre em função da repetição do que Freud definiu como vivência de satisfação. De modo que a experiência originária da satisfação da primeira carência orgânica estrutura todos os processos psicológicos normais (a atenção, a linguagem, o julgar, as defesas normais etc.). Isto porque deixa registros definitivos no aparelho neuropsíquico. Isto é, deixa as primeiras facilitações dos traços de memória. Quando o núcleo do eu se ocupa pela primeira vez na primeira fome do lactante provoca respostas reflexas do bebê tais como o choro e a agitação. Pois, como dito acima, a tensão tende inicialmente a ser eliminada pela via motora através do esperneio e do grito. Em função disso, reforçamos agora que as alterações internas não suprimem a fome, mas fazem com que um adulto preste atenção na carência da criança, tendo, portanto, uma função de comunicação. O conjunto destas alterações no mundo externo constitui a ação específica (como a oferta do leite, da água ou a higiene). Quando a mãe oferece o seio ao bebê, este executa uma série de movimentos, como mexer a cabeça, abrir os olhos e a sucção do peito materno. Só assim a fome desaparece e surgem as primeiras representações do aparelho. Proporciona assim, a vivência de satisfação e com ela um conjunto das representações facilitadas entre o manto e o núcleo do eu, entre o registro das representações de movimento e do objeto da satisfação. Freud disse que três coisas acontecem em Ψ depois da satisfação: o fim do desprazer dentro do núcleo, a primeira representação do objeto da satisfação (o modelo do que será para Freud o objeto perdido da primeira infância) e a constituição das imagens motoras que cancelaram a fome. As duas últimas representações estão no manto e uma facilitação entre elas e o núcleo foi registrada, porque elas foram formadas junto com a diminuição do desprazer no núcleo. Este circuito voltará a ser acionado em outro ou novo estado de tensão, e aqui temos a noção de desejo para Freud. A imagem mnêmica do seio se tornará o objeto de desejo originário, diferente dos objetos parciais da pulsão cujo surgimento não depende da constituição desta representação. Por consequência, a tendência a repetir a vivência de satisfação é o que Freud

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chamou de estado de desejo e a ocupação desse circuito corresponde à realização de desejo. Na segunda vez em que este processo ocorrer, não haverá somente a necessidade, mas também a busca pelo objeto de desejo, pois a representação deste ficará associada com o término do desprazer. Sobre isto Freud disse que quando a fome reaparece as representações dos movimentos e a do objeto de desejo são ocupadas ao mesmo tempo, pois “com o reflorescimento do estado de esforço ou desejo, o investimento toma as duas recordações e as anima” (FREUD, 1895 (1989), p. 364). Se não houver nenhuma inibição nesse processo (como se constata nos processos primários), a representação do objeto de desejo será intensamente investida, com isso, ω liberaria os signos de qualidade. Como advertiu Freud, uma lembrança muito intensa tem um efeito similar ao de uma percepção, o bebê acaba alucinando o seio. Neste caso as representações de movimentos serão liberadas (por exemplo, a sucção), mesmo na ausência do objeto externo. O resultado é sugar no vazio, o que intensifica ainda mais o desprazer. Segundo Freud, nestas circunstâncias o bebê fica em desamparo, o que repercute em um alto gasto energético para o aparelho, além de impedir que os caminhos que efetivamente levariam ao encontro com o objeto externo sejam percorridos. Sendo assim, tendo em vista a sobrevivência do indivíduo, será necessária uma modificação no curso dos processos associativos que, no primeiro momento, como dissemos, aconteceu em função da tendência inata do aparelho para evitar o desprazer (representada pela lei da defesa primária). Quanto às posteriores vivências de satisfação, temos o seguinte:

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A vivência de satisfação arranjou para este núcleo [do eu] uma associação com uma percepção (a imagem de desejo) e uma notícia de movimento (da parte reflexa da ação específica). No estado apetitivo de repetição, no estado de expectativa, realizam-se a educação e o desenvolvimento do eu inicial. Ele aprende inicialmente que não tem o direito de ocupar as imagens motoras de modo que a eliminação se efetue, enquanto não forem realizadas certas condições do lado da percepção. Depois ele aprende que não tem o direito de ocupar a representação de desejo acima de uma certa medida, porque, caso contrário, iludir-se-ia alucinatoriamente [...]. (FREUD, 1895 (1989), p. 417, grifos nossos)

O que foi dito aqui é que a tendência inata do aparelho ensinou o eu a não sugar em vão, antes que haja indicadores da presença do objeto externo. O eu está envolvido no estabelecimento das operações que garantem a tolerância mínima do desprazer até que a satisfação possa acontecer e os signos de qualidade do sistema ω possam ser liberados na presença do seio materno.

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Esta providência corresponde ao processo secundário, ou seja, a inibição através do eu impede que a imagem mnemônica seja investida em demasia, evitando que sua notícia de eliminação seja interpretada como uma percepção externa. Assim, as mensagens de eliminação de ω funcionam como sinal de realidade para o eu, permitindo o estabelecimento da diferença entre uma percepção e uma recordação.

Pensar a realidade

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Adentraremos agora, especificamente, nos processos que levarão ao reconhecimento da existência do objeto externo por parte do eu. A atenção é fundamental para o aprendizado do eu, porque o desprazer não cessa somente com as inibições das ocupações do manto, mas requer que o objeto seja encontrado no mundo externo. Assim, as percepções seriam sobreinvestidas como uma forma de justapor a imagem do objeto percebido à imagem do objeto desejado em um processo de comparação entre os atributos de ambos, iniciando uma contínua busca pelo objeto do desejo que dará origem aos processos do pensar. Quando coincidem os dois complexos de representações dos objetos da percepção atual e o do objeto do desejo, o pensamento atinge sua meta. Se todo o pensar visa a descarga de quantidades, o que o especifica é o modo como esse objetivo é atingido. O pensamento consiste numa forma bem-sucedida de adiamento da satisfação de desejo, pois percorre o mesmo circuito originário da vivência de satisfação sob o regime do processo secundário contando com o auxílio da atenção e das ocupações laterais da instância do eu. Segundo Freud, em A interpretação dos sonhos, por mais complexo e indireto que o pensamento se torne, seus processos são, em último grau, tudo o que se interpõe entre a formação do desejo e a sua realização. Assim como tudo o que acontece no aparelho, o pensamento também é uma realização de desejo. Nas repetições da vivência de satisfação que levam à realização de desejo, o fluxo das excitações é alterado pelas ocupações que partem do núcleo-eu da seguinte maneira: uma quantidade mínima de excitação vai para a memória do objeto, outra para a representação do grito e uma quantidade fica à disposição da atenção para a entrada de novas percepções, porque uma delas pode corresponder à visão do objeto desejado. Em resumo, ao invés da ocupação maciça do objeto de desejo (e a consequente alucinação), a atuação do eu provê condições para que o bebê possa abrir os olhos e chorar, o que o aproxima do encontro com o objeto gratificador. Para Freud, o processo secundário que permitiu, digamos, este rodeio na satisfação só foi possibilitado pela ação inibidora do eu, que mantém a

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imagem mental do objeto minimamente ocupada enquanto persegue as associações que faltam. Assim, pensar é uma descrição psicológica dos processos secundários, e é descrito no contexto do reinvestimento daquele circuito representacional criado na vivência de satisfação, cuja tentativa de reprodução Freud chamou de estado de desejo. Consideremos um exemplo de estado de desejo: quando o bebê está com fome, a percepção do objeto externo coincide com a representação mnêmica do primeiro objeto da satisfação, ou seja, a criança está diante do seio. Neste caso, Freud disse “a eliminação é coroada de êxito” (o resultado é a amamentação, portanto, realização de desejo). No entanto, os casos mais frequentes são aqueles onde não existe essa coincidência. Ao invés da visão do seio, a criança se depara com outros objetos, a sua mão, a chupeta, o rosto da mãe ou a visão lateral do peito etc. Nestas situações, é necessário desenvolver mecanismos que criem condições para a satisfação, mas levando em conta a presença real do objeto. Freud reconheceu que se trata de buscar a identidade entre a representação mnêmica do objeto e a percepção; essa “discordância dá o impulso para o trabalho do pensar” (FREUD, 1895 (1989), p. 373). Quando a criança se depara com a visão lateral do seio, tem assim, uma correspondência parcial entre o complexo mnêmico (a + b) e o perceptivo (a + c), isto é, entre o que o bebê se recorda e o que ele tem à sua frente. Freud indicou que a meta do pensamento é partir de (c) para encontrar o aspecto (b) que está faltando (visão frontal do seio), através de um processo de decomposição e comparação dos atributos de ambos os objetos (o do mundo externo e o da memória). Nesta situação, todas as percepções passam pela operação que compara os aspectos discordantes entre a representação do objeto desejado e a percepção atual, cuja meta é a identidade, ou seja, verificar se a percepção coincide ou não com o objeto da primeira satisfação. Se a imagem do seio é lateral, a meta é encontrar sua visão frontal, tal como foi registrada na primeira experiência de satisfação. Esse processo foi chamado de julgar. Notemos que há um papel central da memória e da atenção na aprendizagem, assinalando que, nos dois casos, o indivíduo conta com as ações bem-sucedidas do eu e com a experiência do aparelho. Nisto temos a descrição do pensar reprodutivo, a forma mais primitiva de pensamento. Este tipo de pensar busca um meio de reproduzir a vivência de satisfação, intercalando imagens motoras (representações de movimento) entre as diferentes representações de objeto que o indivíduo tem à sua frente. Ainda outra situação pode ocorrer no estado de desejo, a da total discordância entre o objeto de desejo e a percepção atual. Ao invés da visão lateral do peito, tem-se algo totalmente inédito, como as mãos ou o rosto

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do outro. Neste caso Freud notou que “então se origina um interesse para ‘reconhecer’ esta imagem perceptiva” (FREUD, 1895 (1989), p. 376). Isto é o que denominou de “puro ato de pensar” (pensar recognitivo), que parte da diferença para também buscar uma identidade, no entanto, sem uma finalidade prática imediata, pois não busca a satisfação e sim o reconhecimento do objeto. As identidades encontradas podem ser úteis em ocasiões futuras, com a finalidade de conhecer este objeto da satisfação que pertence à realidade externa, funcionando como esquemas de antecipação e, inclusive, fornecendo material perceptivo para o trabalho do pensar reprodutivo, qual seja, mais facilitações e novas associações para quando for necessário procurar novas identidades de percepção. Entendemos que esta longa exposição é de fundamental importância para compreendermos o pensamento de Freud, particularmente para recusar o imaterialismo que deriva da provocação solipsista. Vejamos bem, temos um eu não inato, mas que surge de condições reguladoras do funcionamento do aparelho psíquico e, como uma janela a meio caminho da constituição e da experiência, passa a executar a busca pelos objetos externos através da aprendizagem. E mais do que isso, um eu que estenderá esta busca mesmo para os casos em que a satisfação imediata não está em jogo, tendo em vista precisamente reconhecer este objeto. Quando o objeto percebido é totalmente diferente do objeto de desejo, o puro pensar explora todas as vias que partem desse novo objeto para familiarizar-se ao máximo com ele. Na verdade, a diferença entre estes processos de pensamento é sutil e a dificuldade de entendê-la é acentuada pela terminologia múltipla que Freud empregou, mas pode ser entendida nos termos de que, enquanto o pensar recognitivo busca uma identidade a partir das ocupações corporais, o pensar reprodutivo o faz por ocupações psíquicas. Ou como destaca Gabbi Jr. (2003), no pensar reprodutivo, busca-se um meio para a descarga (repetir a vivência de satisfação) e, por isso, ocupa-se uma representação psíquica existente (a do objeto do desejo e de imagens de movimentos de cabeça que, por acaso, foram efetivos uma primeira vez). O pensar recognitivo não visa uma meta diretamente pulsional, visa apenas conhecer uma percepção. Deste modo, não é a satisfação que predomina agora, mas um tipo especial de experiência do objeto. A busca pela satisfação, cuja finalidade era reencontrar uma identidade entre imagem do seio e a percepção no pensar reprodutivo, acaba levando a uma meta independente, o conhecimento do mundo externo, aprendendo sobre certas partes do corpo do outro e, mais tarde, na medida em que houver novas sensações corporais, levando também ao reconhecimento de suas feições, de sua voz, etc.

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Então os complexos perceptivos decorrentes do semelhante serão em parte novos e incomparáveis, suas feições no domínio visual, mas outras percepções visuais, por exemplo, os movimentos de sua mão, coincidirão no sujeito com a recordação de impressões visuais próprias, bastante similares, decorrentes do próprio corpo e associadas com recordações motoras vividas por ele mesmo. Outras percepções do objeto ainda quando ele grita, despertarão a recordação do próprio grito e com isso vivências dolorosas próprias. (FREUD, 1895 (1989), p. 376-377)

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A teoria do pensar nos permite deduzir uma base para as identificações corporais mais primitivas, através da relação entre identidade de pensamento e identidades corporais. Nas tentativas de conhecer o objeto, o eu liga os novos complexos perceptivos, identificando-os com as representações de movimento já conhecidas. Assim, o “reconhecer” depende da associação das novas percepções com as ocupações provenientes do corpo, “isto é, pode ser rastreada até uma mensagem do próprio corpo” (FREUD, 1895 (1989), p. 377). Nas percepções de movimento, o sujeito tenta imitá-los, e aí está o valor de imitação que Freud atribuiu a uma percepção, pois “imita-se o próprio movimento, ou seja, inerva-se uma imagem motora própria, despertada pela discordância [entre recordação do seio e objeto da percepção], tão fortemente que se executa o movimento” (FREUD, 1895 (1989), p. 379). Assim, o interesse por reconhecer o objeto externo também é explicado pelo fato de que o objeto fornecido pela percepção é semelhante ao sujeito, e por meio dele “o homem aprende a reconhecer” (FREUD, 1895 (1989), p. 376). Esta afirmação pode ser entendida na medida em que este objeto externo é, ao mesmo tempo, o primeiro objeto da satisfação, o primeiro objeto hostil e o outro que auxilia. Assim, as primeiras percepções reconhecidas são as condutas corporais semelhantes, percebidas no outro. Na verdade, a dependência deste objeto motivará toda busca posterior, sobre a qual emerge o campo intersubjetivo, a educação pelo princípio de realidade e o social propriamente.

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Como as vivências de satisfação e de dor deixam registros diferentes no eu, a percepção deste outro é, ao início, cindida e parcial, mas elas serão comparadas e integradas ao longo do desenvolvimento. Outro ponto crucial na argumentação de Freud, é que as representações de objeto só adquirem significado a partir de sua associação com as sensações corporais já existentes. Do mesmo modo, a compreensão da palavra, como na representação do grito, também reencontra cadeias associativas de sensações corporais próprias. Citemos Freud:

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Para Freud, a fragilidade do início da vida é uma via de acesso do eu às relações interpessoais, o que fica claro na noção de desamparo. Esta contém elementos que mais tarde foram discutidos no conceito de supereu, na medida em que, como reconheceu Freud, “o desamparo inicial do ser humano é a fonte primordial de todos os motivos morais” (FREUD, 1895 (1989), p. 363). Tal ideia só foi plenamente desenvolvida em Psicologia das massas e no O ego e o id. Nesta última, encontramos o argumento de que o supereu é o “monumento que lembra a fragilidade e a dependência com que o eu se encontrou no passado” (FREUD, 1923 (1989), p. 49) e, como a criança que obedecia aos pais, o eu se submete ao imperativo categórico do seu supereu. Esta formulação também foi apresentada em Introdução ao narcisismo, quando Freud apontou o ideal do eu como sendo “uma via para a psicologia coletiva”. Em síntese, o trabalho do pensar utiliza associações estabelecidas desde a primeira vivência de satisfação, sendo uma forma atenuada de realização de desejo e que termina com a percepção do outro, seja para a satisfação da fome ou para a compreensão de seus traços e para a compreensão da linguagem. O julgar se apoia na “existência de experiências corporais, sensações e imagens motoras próprias” (FREUD, 1895 (1989), p. 378). As operações do pensar ampliam assim uma parte do eu, já que novos vínculos associativos são registrados no manto, sejam estas as imagens-movimento, outras imagens corporais, as feições do outro ou até mesmo representações acústicas de palavras. Note-se que o processo do pensar “parte da total dessemelhança e acaba por encontrar uma identidade inesperada” (GABBI JR., 2003, p. 78), qual seja, a de reconhecer o outro. O “reconhecer” passa por um processo de identificação entre o próprio corpo e o corpo do próximo (GABBI JR., 2003, p. 80). Embora Freud, em 1895, não tenha se reportado à identificação como operação psicológica entre eu e outro, podemos antever nos processos de pensar um sentido assimilatório entre eu e não eu (entre facilitações forjadas pelo eu em detrimento das outras que são inibidas), ou entre a parte nuclear/constante do eu e a parte do manto que se cria a partir das primeiras experiências e, em outro nível, entre percepções do próprio corpo e as percepções do corpo do outro. O que talvez possa ser pensado como uma primeira descrição do que depois foi abordado em Psicologia das massas e, principalmente, no O ego e o id, como identificação primária, como fator explicativo dos traços que os primeiros objetos deixam no eu.

CONCLUSIO

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Entendemos ter chegado o momento de retornar à questão mantida ao longo da investigação, a saber: o ingresso dos primeiros modelos de identificação (realidade) no psiquismo e, por fim, explicitar a alternativa alcançada a partir da psicanálise. A identificação pode ser vista como uma chave de ligação entre sujeito e realidade, prescindindo do caráter pretensamente originário do antagonismo entre o interno e o externo, que entendemos ter sido a primeira parte do problema. A segunda parte foi como se dá tal distinção (interno/externo) e como o sujeito reconhece o mundo do qual tem experiência. Aparentemente parece ser mais fácil acolher a tese solipsista (de Descartes e Berkeley) do que justificar todo o crédito da existência do mundo externo em relação a um eu, demonstrando que a realidade objetiva existe por si só. Em outras palavras, não encontramos outra coisa do que dificuldades em justificar um teste de realidade confiável, divisor de águas entre representações internas e todo o resto, entre uma recordação e uma percepção ou uma alucinação. Reconheçamos agora que a mesma dificuldade pode ser encontrada na psicanálise que, como vimos, não chegou à formulação de um critério conclusivo sobre esta questão. Porém, o próprio Freud reconheceu ser este um problema do funcionamento psíquico, por conta do que, a exemplo do que encontramos na história da filosofia moderna, só pode ser dirimido, com todas as dificuldades e limitações, pela inspeção do espírito. Todavia, o que distingue a inspeção do espírito de Berkeley e Descartes é que o eu deles é um dado primário, enquanto que para Freud o eu é uma construção resultante da própria experiência. No entanto, em todos os casos inevitavelmente haverá sempre uma suspeita em relação à hipótese de que uma representação mantenha correspondência com um objeto exterior representado. A despeito disto Freud não deixou de destacar que o eu tem de reconhecer uma realidade da qual ele proveio e foi fundado, com a qual permanece em constante permuta. Por isso a sua contribuição a essa questão foi a necessária e providencial mudança de foco na colocação do problema: de um eu como background para um eu como efeito.

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A REFORMULAÇÃO DA PERGUNTA E O HORIZONTE DA ONTOLOGIA

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Focando agora a segunda parte do problema oriundo da tese solipsista, podemos dizer que o reconhecimento do objeto depende de que as representações externas, isto é, as percepções que se tem do objeto, sejam reconduzidas e identificadas às sensações corporais. Desta forma, reafirmamos o significado compartilhado do processo de (re)conhecer. Falávamos há pouco da importância de antever duas linhas de raciocínio na origem do eu, o eu-corpo e o eu-intersubjetivo. Queremos dizer agora que o eu não se forma exclusivamente da imagem de si e das representações de objeto. Seu contato com o corpo gera um tipo de identificação que não é exatamente intersubjetiva, mas cujo movimento “rastreia” as representações externas (como as feições do rosto do outro, seu corpo e os sons por ele emitidos) até um investimento corporal. Tal identificação é semelhante ao que Freud descreveu no eu corporal, como a superfície que proporciona sensações dúbias, que equivalem às percepções externas e internas ao mesmo tempo oferecendo a possibilidade do corpo poder objetivar-se para si mesmo. Após o surgimento de uma “unidade comparável ao eu”, no narcisismo, o apego a esta imagem produz uma espécie de espelhamento que ajuda a entender a imbricação entre as representações de objeto, as representações do corpo e as do eu narcísico. Portanto, como alternativa para pensar a querela do solipsismo vs realismo, propomos não perder de vista a sobreposição entre o eu, as identificações de ordem corporal e as de natureza objetal na teoria freudiana, o que entendemos como uma subjetividade formada a meio caminho entre o interior e o exterior. As análises do objeto da pulsão e a recolocação do problema do que é da ordem do objetal no narcisismo primário serviram para mostrar que não existe uma oposição entre eu (narcisismo) e objeto (mundo externo), mas o contrário. Isto porque, como vimos, mesmo antes da constituição do eu já existe um direcionamento ao mundo dos objetos externos, e um modo de se ligar a eles, processado em diferentes planos. Pode-se dizer que o lugar do objeto está demarcado na própria definição de pulsão, desde a relação direta do id com objetos parciais, e também do eu que posteriormente medeia as relações do aparelho psíquico com a realidade, ligando-se libidinalmente aos seus primeiros objetos, em identificações primárias (identidades corporais) e identificações possibilitadas pela introjeção da ambivalência de amor e ódio. Estes processos identificatórios foram designados como identificações primárias e identificações secundárias (ou tardias), para demarcar um processo complexo na base da formação conjunta do eu e da representação dos objetos. Para estes dois termos, a análise da identificação mostra as diferentes possibilidades de um estar com o outro, a saber: quando o eu quer

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ser como o objeto (idealização do complexo de Édipo); quando ele quer ter o objeto (criança deseja a exclusividade de um dos pais); ou quando este é devorado pelo objeto (na paixão), na qual o objeto é introjetado no eu como na melancolia. Esta formulação mostrou a inviabilidade de, a partir da visão psicanalítica, pensarmos na relação entre exterioridade e interioridade de modo irredutível e estático, mas, de outro lado, também sua dificuldade para demarcar os limites do que é objetivo e subjetivo. Justamente porque estes limites são paulatinamente construídos ou conquistados no desenvolvimento. Há boas razões para pensar que em Freud o desenvolvimento do eu seja pensado de modo seriado, dividido em diferentes fases e estágios que se interpõem entre sua fundação e a busca pelo objeto total externo (vínculos, pessoas, ideais etc.). Na verdade, o reconhecimento da autonomia das fontes externas começa incipiente e fragmentado, pois depende de um eu que se desenvolve em suas primeiras experiências, mas depois parece se impor a ele, por exemplo, na busca ou evitação deste objeto. Este campo de forças é alimentado, de um lado, pela repulsa do eu narcisista ao mundo exterior provedor de estímulos e, de outro lado, pela tendência motora a incorporar as fontes de prazer, e como vimos, a imitar movimentos, a comparar seus aspectos com os traços deste objeto. Assim, falamos da atração que exerce um objeto e passamos a amá-lo ou sentimos a repulsa e o odiamos. A intenção que nos guiou em todo este percurso foi a de mostrar como o eu se desenvolve com uma marca indelével do mundo interno e do mundo externo e se amplia nas diversas relações entre seu interior e as experiências deste mundo, uma duplicidade a que ele está sujeito, mas que também lhe concedeu sua fundação. Voltando ao nosso objetivo inicial, esperamos ter demonstrado a necessidade de reformular o problema da oposição irredutível entre os termos interior e exterior que vai da tese solipsista ao teste de realidade e, como um segundo passo, levantado parâmetros para entender como o eu, da maneira como foi ressignificado e do estatuto que recebeu de Freud, pode reconhecer uma realidade da qual, em última instância, ele faz parte. No entanto, temos de reconhecer que o que parece ser uma solução ou reforço para o argumento materialista não tem o mesmo valor resolutivo para a psicanálise. A psicanálise não se apoia unicamente no exame de realidade supostamente infalível, ou ainda, na possibilidade de conhecimento da realidade, uma vez que Freud assumiu explicitamente ser este um problema do funcionamento psíquico e da emergência de uma realidade psíquica. Transferimos ao leitor a tarefa de conferir o papel e a importância de Freud no interior da história da filosofia quanto à sua iniciativa de deixar para trás toda forma substancial e autônoma de fundação da subjetividade e da realidade, bem como, quanto ao ultrapassamento do dispositivo teórico da modernidade.

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PARTE 1: A LINGUAGEM DA REALIDADE

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PARTE 2: O SUJEITO DA REALIDADE

PARTE 3: O TESTE DE REALIDADE

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PARTE 4: CONSTRUÇÃO INTRASUBJETIVA DO EU

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SOBRE OS AUTORES

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Professor Titular de filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, pesquisador PQ Id no CNPQ com “O PROJETO ANTROPOLÓGICO E A FILOSOFIA PRÁTICA EM KANT”. Em 2012 realizou um estágio de pós-doutorado na Bonn Universität (ALEMANHA) onde desenvolveu parte do projeto sobre antropologia em Kant e avançou na tradução das “Reflexões de Antropologia” de Kant (trabalho iniciado com Valerio Rohden em 2008). No ano de 2007 realizou outro estágio de pós-doutorado na Michigan State University (EEUU) com o apoio da Capes onde trabalho na antropologia pragmática de Kant e na organização do livro “Kant in Brazil” com Frederick Rauscher. Concluiu o doutorado em 2002 com a tese “Kant e o problema da significação” e o mestrado em 1996 com a dissertação “Significação dos conceitos e solubilidade dos problemas (acerca do esquematismo transcendental na Crítica da razão pura de Immanuel Kant como procedimento de doação de sentido aos conceitos)”, ambas na Universidade Estadual de Campinas (BRASIL) com o apoio da Capes. Obteve o título de licenciado em filosofia em 1992 na Universidade Nacional de Rosario (ARGENTINA). Publicou 34 ARTIGOS em periódicos especializados nacionais e internacionais, 3 trabalhos completos em Anais de Congressos, 24 capítulos de livros, 6 livros organizados e 5 livros como autor único, além de vários artigos para jornais de notícias e revistas culturais. Orientou 14 dissertações de mestrado concluídas, além de 29 trabalhos de especialização, 18 trabalhos de iniciação científica e 20 trabalhos de conclusão de curso de graduação na área de filosofia. Atualmente orienta 5 teses de doutorado, 3 dissertações de mestrado, 2 trabalhos de iniciação científica. É membro da Sociedade Kant Brasileira. Também atua como psicanalista

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Daniel Omar Perez

Francisco Verardi Bocca

Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela PUCCAMP (1985); bacharel e licenciado em Filosofia pela UNICAMP (1997); mestre em Filosofia pela UNICAMP (1994) e doutor em Filosofia pela UNICAMP (2001). Pós-doutor em Filosofia pela UFSCar (2009). Em estágio pós-doutoral na

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Universidade de Paris VII - Denis Diderot (2014). Professor Titular do Curso de Filosofia e do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Compõe e coordena a Linha de Pesquisa Filosofia da Psicanálise, atuando nos seguintes temas: filosofia da história, psicanálise, literatura e ética. No biênio de 2008 a 2009 ocupou a coordenação geral do G. T. Filosofia e Psicanálise da ANPOF. Pesquisador bolsista-produtividade pela Fundação Araucária - PR. Josiane Cristina Bocchi

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Psicóloga pela USP (1999). Concluiu aprimoramento profissional em Psicologia Clínica pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, no Depto de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica (2002, HC/USP). Mestre em Ciências pela USP Ribeirão Preto (2005). Realizou estágio doutoral na Paris 7, pela École Doctorale Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse; (2008-2009). Doutora em Filosofia pela UFSCar (2010), na área de epistemologia da psicologia e da psicanálise. Fez pós-doutoramento no Depto de Psicologia (UFSCar, 2010-2012), onde foi docente colaboradora (2011-2012). Tem experiência profissional em psicologia da saúde, psicologia hospitalar e psicoterapia psicanalítica. Sua linha de pesquisa ou temas de interesse voltam-se para a psicopatologia, os fundamentos da psicanálise e a interface entre psicanálise e neurociências. Atualmente, professora assistente doutora no Departamento de Psicologia da UNESP (Campus Bauru).

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itor Ed SOBRE O LIVRO Tiragem: 1000 Formato: 16 x 23 cm Mancha: 12 X 19 cm Tipologia: Times New Roman 12 Arial 7,5/8/9/12/6/18 Papel: Pólen 80 g (miolo) Royal Sumpremo 250 g (capa)

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