Ordem Crítica. A América portuguesa nas “fronteiras” do século XVIII, Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. Apresentação da obra.

August 7, 2017 | Autor: Guilherme Luz | Categoria: Brasil Colonial, Século XVIII
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ORDEM CRÍTICA A América portuguesa nas “fronteiras” do século XVIII

ORGANIZADORES Guilherme Amaral Luz, Jean Luiz Neves Abreu e Mara Regina do Nascimento

Apresentação: Ordem crítica, lugares de fronteira. Prolegômenos a respeito da complexidade setecentista na América portuguesa. Guilherme Amaral Luz

Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.

Ordem crítica, lugares de fronteira. Prolegômenos a respeito da complexidade setecentista na América portuguesa. Guilherme Amaral Luz

Laura de Mello e Souza, ao fazer crítica à aplicação do conceito “Antigo Regime nos Trópicos”, para a análise da dinâmica política e administrativa das sociedades que se constituíram na América portuguesa ao longo do chamado “período colonial”, afirma que esbater o papel do Estado, valorizando os poderes intermediários, e manter, sem nuances, a designação de Antigo Regime para um modo que, como o lusoamericano, não conheceu o feudalismo, traz (…) problemas consideráveis. (SOUZA, 2006: 66)

No cerne da sua crítica, situa-se a aporia de se aplicar um conceito que, na sua gênese, não se separa de uma noção de Estado, cuja “essência” se apresenta como supressor dos “poderes concorrentes”, a uma estrutura polissinódica de poder. Ademais, Souza irá questionar a validade das categorias atreladas ao conceito de Liberalidade Régia, tais como o sistema atributivo e a economia do dom, conforme as perspectivas adotadas por autores como Fernanda Olival e António Manuel Hespanha, para considerar características da vida política do século XVIII, quando “dom, graça ou mercê tenderam a ser substituídos por valores mais pragmáticos” (SOUZA, 2006: 73). Laura de Mello e Souza investiga tais “valores pragmáticos”, a partir de um quadro referenciado como “conjuntura crítica no mundo luso-brasileiro de inícios do século XVIII”, associado a um conjunto de questões “internas” e “externas”, “regionais” e “imperiais”, ao qual se viam atentos os homens revestidos de poder, sobretudo, por meio da participação no Conselho Ultramarino (SOUZA, 2006: 78-108). É diante deste “quadro de crise” que surge, por exemplo, em 1721, o famoso Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720, cuja autoria vem sendo atribuída ao governador Dom Pedro de Almeida, mais conhecido como Conde de Assumar. Neste escrito, uma das imagens mais recorrentes para a denominação dos revoltosos é a da “hidra de muitas cabeças”, contra a qual, como Hércules, o governador deveria impor a ordem e a submissão. Tal como no contexto da expansão inglesa, analisado por Peter Linebaugh e Marcus Rediker, também na América portuguesa setecentista governantes usaram o mito de Hércules e da hidra para descrever a dificuldade de impor a ordem em sistemas de trabalho cada vez mais globais,

apontando aleatoriamente plebeus esbulhados, delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas, operários urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos como as cabeças numerosas e sempre cambiáveis do monstro. (LINEBAUGH & REDIKER, 2008: 12)

Na América portuguesa, o mito de Hércules e da hidra também operou e as cabeças do monstro ora podiam ser os bugres do sertão, os abugrados paulistas, quilombolas, os novos enriquecidos das Minas, jesuítas ou tudo o mais que, integrado à ordem, constituísse a ela, constante ou eventualmente, alguma ameaça. No quadro da “crise”, portanto, não podemos deixar de considerar que a própria ordem colonial era constituída por personagens de fronteira. Por um lado, homens úteis (e mesmo imprescindíveis) para a conquista, a defesa e a exploração do território; por outro, sujeitos que constituíam as suas formas de poder e proteção social por vias relativamente pouco controladas pela esfera do Estado. Além disso, conforme Fernando Novais, é preciso que nos atentemos para a ambiguidade de fundo que marca a “vida em colônia” em termos de mobilidade populacional e clivagem entre estratos sociais no ultramar. Nesse sentido, diferentemente da sociedade estamental clássica (como aquela do “Antigo Regime”), a sociedade colonial (…) configura uma sociedade estamental com grande mobilidade, e é essa conjunção surpreendente e mesmo paradoxal de clivagem com movimentação que marca a sua originalidade. E isso precisa ser levado em conta para se desenhar o quadro das condições em que se manifestava a vida privada colonial: a sociedade da Colônia, ao mesmo tempo, estratificava-se de forma estamental e apresentava intensa mobilidade; o que, provavelmente, criava uma sensação de ambiguidade (…). Essa mesma ambiguidade, aliás, aparece quando consideramos em particular o estrato superior dos colonos, os senhores de terra e de escravos: a dominação direta sobre os homens (escravidão) e a posse de terras (ainda mais recebidas por doação) imprimiam-lhes na mentalidade uma configuração fortemente senhorial; mas, agentes de uma produção mercantilizada ao extremo, defrontavam-se no dia a dia com o mercado, o que lhes exigia um comportamento fundamentalmente burguês. Mais ainda: era através do mercado que obtinham os escravos, isto é, a condição senhorial. (NOVAIS, 1997: 30-1)

João Fragoso, Carla Maria de Almeida e Antônio Carlos Jucá de Sampaio, apoiados em José Subtil, defendem que, no século XVIII, “a monarquia tendeu a organizar mais diretamente a sociedade, impondo-lhe uma ordem, e os negociantes fizeram o mesmo com a economia” . Nesta nova configuração, a antiga “nobreza da terra”, que inventara a sua condição de fidalguia no ultramar, tenderá a competir pelo poder político com a nova elite de comerciantes (negociantes de grosso trato), quando não juntavam as suas forças por meio de alianças parentais e matrimoniais, com vistas à ampliação de redes clientelares (FRAGOSO, ALMEIDA & SAMPAIO, 2007: 25-7). Já Maria Beatriz

Nizza da Silva desenvolve o argumento que, a partir do “período Pombalino”, os comerciantes passariam a ser mais valorizados como legítimos homens da nobreza lusitana no ultramar. Citando Pereira Oliveira, em relação à “arte do comércio”, a historiadora portuguesa situa um pensamento segundo o qual “os governos iluminados, convencidos da importância desta arte, em nada cuidam tanto como em promovê-la e honrá-la” (NIZZA DA SILVA, 2005: 175). Deste modo, se, desde o início do século XVIII, o quadro de crise do mundo luso-americano abria as portas ao pragmatismo político; a partir de meados daquele século, este mesmo pragmatismo mexia nos (frágeis) equilíbrios sociais das elites coloniais com a crescente valorização dos enobrecidos pelo dinheiro da mercância. O pragmatismo político setecentista coloca-nos ainda diante de outro aspecto da crise: a crise do Absolutismo. De acordo com Koselleck, o Absolutismo nasce de uma concepção de “inocência do poder” frente à “guerra civil”. Em um contexto como o europeu das guerras de religião, a submissão ao Estado centralizado (personificado na figura do monarca) a por fim aos conflitos torna-se um imperativo moral. Cabe ao soberano absoluto manter a paz entre os súditos, colocando-se acima das suas desavenças, advindo disso a sua autoridade. Porém, o Iluminismo e, sobretudo, a Revolução Francesa, ainda segundo Koselleck, transformariam a ordem absolutista em “imoral” ao submeter a autoridade do monarca à “consciência moral do indivíduo”, ao “tribunal da razão”, à “verdade” (KOSELLECK, 1999: 23-38). Em Portugal, a partir de meados do século XVIII, o Absolutismo encontrou sua expressão no despotismo esclarecido. Distintamente da crítica à autoridade, a razão iluminista colocou-se à serviço dela. O reformismo ilustrado serviu à denúncia das teorias que faziam o poder real concorrer com o conjunto do organismo social e político. Em momento de crise econômica e de ameaças geopolíticas nas fronteiras de seu Império, a razão de Estado absolutista tratou de se renovar, e Portugal desafiou-se a manter preservada a sua ordem por meio de uma profunda reforma de seu ethos científico, filosófico, político e econômico. Antes de serem sintomas de uma tomada de consciência nacional (ou local) diante da opressão metropolitana, os motins, as sedições, as inconfidências e as revoltas que assolaram a América portuguesa no século XVIII apresentam-se como um choque entre mundos, entre sociedade e Estado numa época de profundas transformações. Trata-se de uma crise da representação política e dos pactos tradicionais que instituíam a base de legitimação do poder régio; no equilíbrio de forças entre as elites situadas no topo da hierarquia social da colônia; das relações entre Estado e Religião... A experiência desta crise, raiz do inconformismo inconfidente, trilhou nos caminhos da novidade e da tradição (ela própria “moderna”, à maneira dos ibéricos). A experiência da crise alimentou-se das luzes reformistas (para além do controle imposto sobre elas pela coroa) e proferiu “sacrílegas palavras” (CATÃO,

2005), fortemente embebidas das teorias corporativas do poder, marcadamente jesuíticas, “brigantinas”, neotomistas e constitucionalistas. Nesse movimento, o conservadorismo muitas vezes foi a arma da revolta, enquanto novas ideias, instrumentos do poder constituído. Da década de 1980 em diante, a historiografia (brasileira, brasilianista e portuguesa) vem mostrando um século XVIII composto de fronteiras ao mesmo tempo espaciais e temporais. Como fronteira, não poderia deixar de ser “lugar” de ambiguidades e de equívocos: polissêmico, híbrido, combinatório e transitório. Como fronteira é o lugar também do encontro de tradições diversas e concepções de mundo e sociedade onde se entrelaçam o político, o social, o religioso e o mundo das ideias. Os textos reunidos nesta coletânea não visam sintetizar o conjunto dos fenômenos que se estabeleceram a partir da complexidade social, territorial, cultural e política da América portuguesa setecentista. Mais propriamente, destinam-se a abordar aspectos dessa complexidade em situações muito particulares, explorando temáticas clássicas e recentes sobre aquela historicidade. Dentre as temáticas aqui trabalhadas, destaca-se o próprio reformismo ilustrado, revisitado pela análise política de Marieta Carvalho e Oswaldo Munteal Filho, e nos seus desdobramentos nas reformas do ensino, conforme o estudo de Luiz Carlos Villalta, Christianni Morais e João Paulo Martins. O reformismo ilustrado, seus alcances e limites também acaba sendo problematizado nos estudos de Beatriz Domingues e Jean Luiz Neves Abreu. No primeiro caso, investigam-se os modos distintos em que a Ilustração ibérica colocou o pactismo e o neotomismo à prova em Portugal e na Espanha dos setecentos. No segundo, estuda-se o impacto das novas teorias científicas sobre as práticas e saberes médicos em circulação na América portuguesa. A vida religiosa e suas práticas cotidianas são problematizadas mais frontalmente em um dos ensaios aqui reunidos. O de Célia Maia Borges busca romper com as dicotomias entre catolicismo oficial e popular, bem como entre sociabilidade e devoção, para demonstrar a complexidade da experiência religiosa em Minas colonial no final do século XVIII, problematizando, mais detidamente, os irmãos do Santíssimo e das Ordens Terceiras, a partir de documentação relativa, principalmente, a São João Del Rei. O espaço fronteiriço do “sertão” das Minas é tratado no texto de Marcia Amantino, que problematiza a colonização daquele território dentro de um quadro estratégico mais amplo e diante de conflitos com grupos indígenas e quilombolas. A profunda relação entre os universos da religião e da política torna-se ainda mais clara no texto de Leandro Catão. Este historiador, que no seu doutoramento já havia demonstrado o papel da reação pró jesuítica nas inconfidências de Curvelo, Mariana e Sabará no século XVIII (CATÃO, 2005), expande o foco territorial de suas pesquisas para as Capitanias de Goiás e de Mato Grosso. Na fronteira entre o

corporativismo jesuítico e o despotismo esclarecido pombalino, foram sendo construídos os discursos e o imaginário político contestatório setecentista. Jogo do qual não escaparam mesmo as fronteiras físicas entre as capitanias e também entre os impérios espanhol e português na América do Sul. Os dois últimos textos desta coletânea, respectivamente de Adriana Romeiro e Guilherme Amaral Luz, tratam da temática mais geral a respeito do governo colonial no século XVIII a partir de problemáticas originais. Romeiro focaliza o tema do “enriquecimento ilícito” dos governadores, que, no uso de suas funções administrativas, envolviam-se ou eram acusados de se envolver em práticas mercantis nem sempre permitidas pela legislação. Seu texto situa a preocupação da coroa e do Conselho Ultramarino com tais práticas ao mesmo tempo que lança hipóteses a respeito das murmurações sobre os governadores a partir da cultura política da época. Luz, por seu lado, aborda o estilo retórico presente nos textos destinados à acusação e à defesa de práticas políticas associadas ao governo e à rebeldia no contexto das Minas setecentistas. Busca compreender o papel da mobilização dos afetos em alguns desses escritos, selecionando, para análise mais vertical, os textos atribuídos ao Conde de Assumar sobre a Revolta de Vila Rica e a sátira epistolar Cartas Chilenas, atribuída ao Inconfidente Tomás Antônio Gonzaga. Por fim, vale dizer que os textos reunidos nesta coletânea são resultados de estudos originais dos seus autores e coautores, muitos dos quais contando com auxílios e bolsas de instituições de fomento à pesquisa. Em particular, a própria organização da obra decorre de um projeto intitulado “Religião, Natureza e Costumes: gestos, saberes e discursos na América portuguesa (século XVIII)”, coordenado por mim em parceria com os professores Jean Luiz Neves Abreu e Mara Regina do Nascimento. Esta pesquisa conta com apoio do CNPq, por meio do seu Edital Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, e com bolsas de Iniciação Científica concedidas no interior dos programas mantidos pela Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia, em parceria com o CNPq e com a FAPEMIG. Assim, gostaria, em nome da equipe do projeto, agradecer a todos esses parceiros pelas condições financeiras necessárias à realização do projeto e, principalmente, pelo respaldo acadêmico-científico dado ao trabalho. Agradeço também, nominalmente, aos cinco bolsistas graduandos em História da UFU, cujos trabalhos foram importantíssimos para os resultados alcançados: Ana Maria Bertolino, Durval Saturnino Cardoso de Paula, Erik Luiz Wutke Ribeiro, Jéssica Honório de Oliveira Silva e Rafael de Lima Fonseca. Agradeço, enfim, em nome dos organizadores, a todos os autores colaboradores desta coletânea. Que a parceria continue e se desdobre em outras ocasiões, com o mesmo sucesso obtido desta vez.

Referências Bibliográficas CATÃO, L. P. Sacrílegas Palavras: Inconfidência e jesuítas nas Minas Gerais durante o período Pombalino. Tese de Doutorado (História). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. FRAGOSO, J. L. R; ALMEIDA, C. M. C.; SAMPAIO, A. C. J. (ed.). Conquistadores e negociantes. Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. KOSELLECK, R. Crítica e crise, Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. LINEBAUGH, P. & REDIKER, M. A hidra de muitas cabeças. Marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário, São Paulo: Companhia das Letras, 2008. NIZZA DA SILVA, M. B. Ser nobre na colônia, São Paulo: Editora da UNESP, 2005. NOVAIS, F. Condições de privacidade na colônia. In: SOUZA, L. M. (ed.). História da vida privada no Brasil. Vol. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SOUZA, L. M. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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