Ordens, bandos e fintas para fazer a \"cruel guerra\": os governadores de Pernambuco, a câmara das Alagoas e as \"entradas\" nos Palmares na segunda metade do século XVII

July 17, 2017 | Autor: Arthur Curvelo | Categoria: Governance, Colonial Studies (Brazil), Colonial Brazil, Palmares, Alagoas, Pernambuco, Cámaras, Pernambuco, Cámaras
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Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográf ico Pernambucano

Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano - IAHGP Número 67. Recife, 2014. ISSN 0103-1945. CAPA: Retrato de Alfredo de Carvalho (1870-1916). Óleo sobre tazar da Câmara. Acervo do IAHGP. Fotografia: George F. Cabral de Souza.

tela de

Bal-

Editores Alexandre Furtado de Albuquerque Corrêa (UPE/IAHGP) Bruno Romero Ferreira Miranda (UFRPE/IAHGP) Conselho Editorial Antônio Jorge de Siqueira (UFPE/IAHGP) Bruno Augusto Dornelas Câmara (UPE/IAHGP) Ernst van den Boogaart (IAHGP - Países Baixos) José Luiz Mota Menezes (UFPE/IAHGP) Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (UFPE/IAHGP) Onésimo Jerônimo Santos (IPHAN/IAHGP) Yony de Sá Barreto Sampaio (UFPE/IAHGP) Conselho Consultivo Acácio Catarino (UFPB) Ana Lúcia do Nascimento Oliveira (UFRPE) Antônio Paulo Rezende (UFPE) Carla Mary da Silva Oliveira (UFPB) Daniel de Souza Leão Vieira (UFPE) Giselda Brito Silva (UFRPE) José Manuel Santos Pérez (Universidade de Salamanca - Espanha) Maria Ângela de Faria Grillo (UFRPE) Mariana de Campos Françozo (Universidade de Leiden - Países Baixos) Rômulo Luiz Xavier do Nascimento (UPE/IAHGP) Scott Joseph Allen (UFPE) Severino Vicente da Silva (UFPE) Suely Creusa Cordeiro de Almeida (UFRPE) Wellington Barbosa da Silva (UFRPE)

Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP Fundado em 1862  Rua do Hospício, 130, Boa Vista, Recife-PE, Brasil. CEP 50.080-060  55 81 3222-4952 @ [email protected]

DIRETORIA DO INSTITUTO ARQUEOLÓGICO, HISTÓRICO E GEOGRÁFICO PERNAMBUCANO – IAHGP PARA O TRIÊNIO 2014-2017 Presidente: José Luiz Mota Menezes 1º Vice-Presidente: Isnard Penha Brasil Júnior 2º Vice-Presidente: Ramires Cotias Teixeira 3º Vice-Presidente: Gilda Maria Whitaker Verri 1º Secretário: Reinaldo José Carneiro Leão 2º Secretário: Rafael Henrique Pimentel de Paula 1º Tesoureiro: Silvio Tavares de Amorim 2º Tesoureiro: Francisco Bonato Pereira da Silva Diretora de patrimônio: Fernanda Ivo Neves Comissão de Admissão de Associados: Antônio Corrêa de Oliveira Maria Cristina Cavalcanti Albuquerque Ramires Cotias Teixeira Comissão de História e Geografia: Carlos Bezerra Cavalcanti Gilvan de Almeida Maciel Maria José Borges Lins e Silva Comissão de Arqueologia e Etnografia: Fernando Guerra de Souza Marcus Joaquim Maciel de Carvalho Roberto Mauro Cortez Motta Comissão de Genealogia e Heráldica: Reinaldo José Carneiro Leão Tácito Luiz Cordeiro Galvão Yony de Sá Barreto Sampaio Comissão de Divulgação e Informática: Bruno Augusto Dornelas Câmara Bruno Romero Ferreira Miranda Jacques Alberto Ribemboim

Conselho Fiscal: Paulo Frederico Lobo Maranhão Roque de Brito Alves Tácito Augusto de Medeiros Suplentes Geraldo José Marques Pereira Luiz Jorge Lira Neto Yony de Sá Barreto Sampaio

Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográf ico Pernambucano

Número 67 Recife, 2014

Sumário

Nota

dos

Editores. .................................................................................9

ARTIGOS Os

holandeses e a consolidação do sistema econômico

Atlântico Sul Seiscentista Filipa Ribeiro da Silva ............................................................................ 11 do

A

mão que afaga.

Estratégias retóricas nas crônicas portuguesas Atlântico Sul Kleber Clementino.................................................................................. 39 da presença neerlandesa no

Inventário dos bens do casal: família, elite local e bens materiais em cimbres, nos sertões de Ararobá, Pernambuco (1762-1836) Alexandre Bittencourt Leite Marques e Ana Lúcia do Nascimento Oliveira ......................................................... 55 O Hospital Pedro II

do

Recife. Um

resgate histórico

e o tombamento estadual

Geraldo José Marques Pereira................................................................ 91 Será mesmo de Nossa Senhora o Morro da Conceição? Jamerson Kemps ................................................................................... 113 Os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco e a política entre o Primeiro Reinado e as Vésperas do domínio do Partido da Praia Paulo Henrique Fontes Cadena ............................................................ 141

Frans Post

e o carro de bois: o imaginário

Brasil Holandês Daniel de Souza Leão Vieira ................................................................ 165 da paisagem do

Ordens, bandos e fintas para fazer “a cruel guerra”: Os governadores de Pernambuco, a Câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do Século XVII Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo......................................... 193 ENSAIO Olinda: um roteiro José Luiz Mota Menezes ....................................................................... 225 Política

editorial e normas gerais para a apresentação de textos

....... 245

NOTA DOS EDITORES

Um dos principais compromissos do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP, desde as suas origens, é levar a cabo esforços para a divulgação das pesquisas sobre a história e a cultura de Pernambuco. Esse objetivo continua norteando todas as ações realizadas por este mais que sesquicentenário sodalício. A Revista que o leitor tem em mãos nasceu com o Arqueológico no século XIX. Seu primeiro número viu a luz em 1863. Desde então, colaboradores e editores trabalharam incansavelmente para manter vivo o periódico que é um marco incontornável da produção historiográfica brasileira. Períodos de grandes dificuldades resultaram em pausas na publicação da Revista, mas ela jamais deixou de circular, sendo por isso, um dos mais antigos periódicos de história em funcionamento no mundo. É com muita alegria que chegamos ao ano 152 de existência do Arqueológico e que podemos anunciar a publicação de mais um número da Revista. Este é o sexto número consecutivo publicado desde a retomada da periodicidade em 2009. Esta conquista não seria possível sem a colaboração dos associados do IAHGP e de pesquisadores de outras instituições que gentilmente submetem seus textos aos pareceristas do nosso periódico. Desde já, registramos nossos mais sinceros agradecimentos. A circulação de um periódico não-comercial como é o nosso depende, obviamente, de apoio material. Esta nova fase da Revista do IAHGP jamais ocorreria não fosse o apoio incondicional e constante da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE. Devemos um pleito de gratidão aos quadros dirigentes da CEPE que nunca hesitaram em fazer valer o dispositivo constitucional estadual que delega à imprensa oficial de Pernambuco o dever de produzir a Revista do IAHGP. Agradecemos ainda aos quadros técnicos que realizam de forma primorosa a confecção deste periódico.

Este número mais uma vez combina as colaborações de pesquisadores de diversas instituições e com perfis de atuação bastante variados. O período holandês, tema dos mais frequentes na história da Revista se faz presente novamente em três colaborações. Filipa Ribeiro da Silva aborda as intervenções dos holandeses na formação do sistema econômico no Atlântico Sul em meados do século XVII. Kleber Clementino analisa as crônicas portuguesas sobre o período enfocando as estratégias discursivas presentes nelas. Daniel Vieira retoma a abordagem à esta fase de nossa história a partir das imagens produzidas por Frans Post, concretamente a tela “O carro de bois” de 1638. O período colonial é enfocado também pelo artigo de Arthur Curvelo, que analisa a comunicação política entre os governadores de Pernambuco e a câmara das Alagoas do Sul durante o conflito em Palmares, na segunda metade do século XVII. Alexandre Bittencourt e Ana Nascimento trabalham com uma instigante documentação cartorária do sertão, especificamente com inventários post-mortem da vila de Cimbres na passagem do século XVIII para o XIX. O cenário político de Pernambuco na primeira metade do século XIX é analisado por Paulo Cadena com destaque para a atuação da família Cavalcanti de Albuquerque. Jamerson Kemps apresenta um enfoque atual das relações entre religiosidade e sociedade no Morro da Conceição a partir de um cenário historicamente construído. Completando o painel de textos temos o artigo de Geraldo Pereira – que discorre sobre a história do Hospital Pedro II no Recife no âmbito dos esforços para o seu tombamento como patrimônio histórico do Estado de Pernambuco – e o ensaio de José Luiz Mota Menezes que nos apresenta um instigante roteiro de leitura dos traços urbanos e arquitetônicos da cidade de Olinda. Desejamos que os textos aqui apresentados possam suscitar novas pesquisas e novas perguntas sobre a história de Pernambuco. Recife, dezembro de 2014. Os editores.

OS HOLANDESES E A CONSOLIDAÇÃO DO SISTEMA ECONÔMICO DO ATLÂNTICO SUL SEISCENTISTA, C. 1630-16541 Filipa Ribeiro da Silva2 Resumo: Este artigo analisa o papel desempenhado pelos mercadores privados das Províncias Unidas dos Países Baixos do Norte sediados no Brasil e pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais na consolidação do sistema econômico do Atlântico Sul durante o século XVII. Para tal, vamos examinar as trocas políticas, militares e comerciais estabelecidas entre as capitanias do Nordeste Brasileiro e Angola durante os anos de 1630 a 1654. Palavras-chave: Holandeses, Comércio, Atlântico Sul. The Dutch and the consolidation of the seventeenth-century South Atlantic complex, c.1630-1654 Abstract: This article looks at the seventeenth century South Atlantic and explores the role played by the Dutch private merchants based in Brazil and by the Dutch West India Company for the consolidation of the South Atlantic. To do so, we will focus on the political, military and commercial exchanges between the North-eastern Brazilian captaincies and Angola during the years 1630 and 1654. Keywords: Dutch, Commerce, South-Atlantic.

Artigo recebido e aprovado para publicação em abril de 2014.

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Professora Assistente do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau, SAR China.

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Introdução Nos últimos anos, a historiografia sobre a economia atlântica tem claramente demonstrado que ao longo do Período Moderno, o Atlântico Sul emergiu como um sistema econômico, social, cultural e político próprio, e em muitas ocasiões operando independentemente dos poderes coloniais sediados na Europa (ELTIS, 2000:307; ALENCASTRO, 2000:62; Idem, 2007:118-119). Por outro lado, a informação recentemente reunida na base de dados do Tráfico de Escravos Transatlântico (TSTD) e os estudos sobre o tráfico de escravos têm também evidenciado que a formação do sistema econômico do Atlântico Sul remonta à década de 1570 e a sua afirmação na globalidade da economia atlântica começa a tornar-se mais patente a partir de meados do século XVII (DOMINGUES, 2007:477-501; SILVA, ELTIS, 2008:95-129; RIBEIRO, 2008:130154; MENDES, 2008:63-94). Porém, a maior parte dos trabalhos sobre este sistema tem se concentrado essencialmente nos séculos XVIII e XIX, que correspondem ao período áureo das trocas no Atlântico Sul (CANDIDO, 2008a:1-30, 2008b:63-84, 2011a:223-244, 2011b:239-272; FERREIRA, 2006:66-99; LOPES, 2008:176; VERGER, 1997; FLORENTINO, 1997; RIBEIRO, 2006:9-27; FLORY, 1978; DONOVAN, 1990), sendo as grandes exceções a esta tendência mais geral os estudos de Alencastro e Puntoni, entre outros (ALENCASTRO, 2000; PUNTONI, 1999, 1992). Sabemos, por isso, pouco sobre o sistema do Atlântico Sul no período entre as décadas de 1570 e 1650 e sobre o impacto da chegada dos mercadores da Europa do Norte, em particular, das Províncias Unidas ao Atlântico Sul e o papel que terão (ou não) desempenhado na consolidação deste sistema econômico. A chegada dos mercadores das Províncias Unidas ao Atlântico Sul, e especialmente, da Companhia das Índias Ocidentais Holandesa (WIC), é, frequentemente, retratada na historiografia como um momento de intenso conflito, conduzindo a grandes perdas no comércio e noutros tipos de trocas no Atlântico Sul, e entre este espaço econômico e a Europa (BOXER, 1952; EMRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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MER, 2003, 1997:57-69; MELLO, 1975, 20033). Recentes trabalhos de pesquisa dedicados ao estudo de vários tipos de interações estabelecidos entre portugueses e holandeses no Atlântico têm vindo a alterar esta imagem das trocas Luso-Holandesas como essencialmente conflituosas, ao demonstrar que, em regra, conflito e cooperação surgiram associados, quer a nível estatal, quer entre privados. No entanto, com exceção para os estudos de Ebert, pouco é ainda sabido sobre a participação dos mercadores da Europa do Norte no comércio do Atlântico Sul, especialmente, no comércio bilateral estabelecido entre a Costa Ocidental Africana (em particular Angola), o Brasil e a América do Sul entre o final de Quinhentos e meados de Seiscentos (EBERT, 2003:49-76, 2008). Este artigo procura preencher esta lacuna na historiografia através do estudo do sistema econômico do Atlântico Sul durante o século XVII e do papel desempenhado pelos mercadores privados das Províncias Unidas sediados nas mesmas e no Brasil, bem como o papel desempenhado pela WIC na consolidação desse sistema econômico, tal como viria a ser conhecido e reconhecido nos séculos seguintes. Para tal, iremos examinar algumas das trocas políticas, militares e comerciais estabelecidas entre as capitanias do Nordeste Brasileiro e Angola durante os anos de 1630 e 1654. Para analisar esta temática, começaremos por dar uma breve panorâmica das estruturas legais que regulavam a participação dos mercadores privados das Províncias Unidas no comércio do Atlântico Sul. Passaremos depois à análise do período inicial de atividade deste grupo de mercadores do Atlântico Sul, através do estudo da sua participação no comércio do Brasil e de Angola. Seguir-se-á uma breve abordagem das relações políticas e comerciais estabelecidas entre o Brasil Holandês e Angola durante o governo da WIC sobre estes territórios. Aqui, daremos especial atenção às negociações políticas entre o governo Edição Holandesa: De Braziliaanse affaire: Portugal, de Republiek der Verenigde Nederlanden en Noord-Oost Brazilië, 1641-1669. Barel, Catherine (trans.). Boogaart, E. van den (ed.). Zutphen: Walburg Pers, 2005.

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da WIC no Brasil, em Luanda e nas Províncias Unidas. Para concluir, examinaremos os circuitos comerciais e as trocas que ligavam os dois territórios. É nosso objetivo principal salientar o papel desempenhado por estas relações na consolidação do sistema do Atlântico Sul. Os dados aqui apresentados e discutidos foram reunidos durante sete anos de cuidadosa pesquisa nos arquivos holandeses. Para o estudo dos mercadores privados envolvidos no Atlântico Sul utilizamos a coleção dos arquivos notariais da cidade de Amsterdã.4 A coleção da primeira WIC5 foi também essencial para elaboração deste trabalho. Juntamente com relatos de viagens e a informação disponível na TSTD, todos estes materiais foram fundamentais para reconstruir a participação das Províncias Unidas no Atlântico Sul. Comecemos, então, pela análise das estruturas legais que nas Províncias Unidas regulavam o comércio Atlântico durante o Período Moderno.

A

regulamentação das Províncias comércio privado no Atlântico

Unidas

sobre

Até 1621 o comércio entre as Províncias Unidas, a América do Sul e a Costa Ocidental Africana, incluindo o Brasil e Angola, era controlado por mercadores privados. Nas principais cidades portuárias das Províncias estava sediado um bom número de “companhias” privadas e vários mercadores independentes envolvidos nestes ramos de negócio (UNGER, 1940:194-217; ENTHOVEN, 2003:17-48). Naturalmente, nenhum destes “consórcios” tinha uma organização comercial formal comparável à da futura WIC, dado que na sua maioria, estas “firmas” somente contratavam mercadores e caixas para defender os seus interesses a bordo dos navios, em terra, e a bordo de uma espécie de feitorias-flutuantes (leggers) para co4

Stadsarchief Amsterdam (SAA) antigo Gemeente Archief van Amsterdam, Notariële Archieven (Not. Arch.).

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Nationaal Archief, Oude West-Indische Compagnie, (NA, OWIC).

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merciar no Brasil e na Costa Ocidental Africana ( JONES [Ed.], 1983:21-29, 45-96; FLEUR, 2000:28, 47, 83-103; SILVA, 2010:1938). O estabelecimento da WIC pelos Estados Gerais em 1621 iria pôr fim a este período inicial de livre comércio, dado que à Companhia seria concedido um monopólio sobre todo o comércio Atlântico (EMMER, 1981:71-95; HEIJER, 19946, BOOGAART, EMMER, 1979:353-375). Desde a sua formação, a Companhia teve sempre grande oposição por parte dos mercadores de Amsterdã, e das cidades portuárias do Norte das Províncias, que tinham importantes investimentos nas pescas do Atlântico Norte, no comércio do açúcar Brasileiro e do pau-Brasil, no comércio do sal com a América do Sul, e no comércio do ouro, marfim e escravos com a Costa Ocidental Africana. Na sequência desta contestação, alguns destes ramos comerciais viriam a ser retirados do monopólio da Companhia pouco tempo após o seu estabelecimento. Porém, o caráter bélico da Companhia iria causar grandes perturbações nas atividades comerciais nas referidas áreas. Por exemplo, durante vários anos após a tomada das capitanias do nordeste Brasileiro, a produção do açúcar iria diminuir, provocando grandes perdas para os donos das refinarias de açúcar nas Províncias Unidas (EBERT, 2003:49-76, 20087). Situação idêntica iria ser vivida em Angola. Nos anos imediatos à ocupação de Luanda, os oficiais da Companhia também não seriam capazes de assegurar um abastecimento regular de mão-de-obra escrava à cidade, e, consequentemente ao Brasil holandês (RATELBAND, 2003). Durante o mesmo período, os pesados encargos financeiros com as enormes campanhas militares organizadas pela Companhia para a tomada das possessões portuguesas também começariam a se fazer sentir ( JONG, 2005). A Companhia começaria então a ter falta de dinheiro em caixa para operacionalizar os negócios no Brasil, na África Ocidental, no Caribe, e na América do Norte, e a se debater com dificuldades para assegurar o transporte de mercadorias, pessoal, e armas entre os seus vários Capítulos 1, 2, e 3.

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Capítulos 3, 5 e 6.

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postos e colônias. Para minimizar estas perdas, a Companhia iria garantir aos seus acionistas permissão para participar no comércio com o Brasil, e com o Caribe em 1638. Em 1647, a Companhia iria também concordar com a abertura do tráfico de escravos entre Angola e o Brasil, o Caribe, e as Índias de Castela aos mercadores privados das Províncias Unidas (EMMER, 1981:79-81; DILLEN, 1970:169). Estas medidas seriam, porém, insuficientes para impedir a perda do controle sobre o Brasil e Angola por parte da Companhia, bem como a perda da sua cota no comércio do Atlântico Sul após o início da década de 1650, como os dados relativos ao tráfico negreiro disponíveis na TSTD mostram claramente.

Fonte: http://www.slavevoyages.org: 19-07-2012.

A participação das Províncias Unidas no Atlântico Sul: entre o comércio privado e o monopólio da wic

O

comércio privado das no Atlântico Sul

Províncias Unidas

No final do século XVI, as Províncias Unidas ofereciam residência a dois principais grupos de mercadores com interesses econômicos no comércio com o Brasil e Angola: um grupo Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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de mercadores cristãos de origem holandesa, flamenga, e alemã8 e outro grupo formado pelos judeus portugueses que se haviam estabelecido em Amsterdã, e em outras cidades.9 O primeiro grupo havia iniciado as suas atividades econômicas no Atlântico Sul no final da década de 1580, investindo maioritariamente no comércio do açúcar Brasileiro e do pau-Brasil, e no comércio do ouro, marfim, e peles com a África Ocidental. Durante este período inicial, a participação das Províncias no comércio de escravos era mínima, como os estudos de Postma, Eltis, Vos e outros já demonstraram (POSTMA, 1990, 2003:158-183; VOS, ELTIS, RICHARDSON, 2008:228-249). Entre os mercadores sediados nas Províncias, envolvidos neste inicial comércio negreiro encontraríamos os judeus portugueses. Muitos deles operavam já nos circuitos comerciais que ligavam a Península Ibérica e as Províncias Unidas a Angola e ao Brasil, antes do seu estabelecimento nas Províncias, na sequência da sua deslocação de Antuérpia devido ao bloqueio holandês, e da Península devido à perseguição desencadeada pelos tribunais inquisitoriais. De fato, muitos destes mercadores combinavam no seu portfólio investimentos em ambas as regiões do Atlântico Sul. Os mercadores cristãos de origem holandesa, flamenga e alemã surgiam envolvidos simultaneamente no comércio com a Costa Ocidental Africana e o Brasil. No que respeita aos judeus portugueses, estes surgiam não só envolvidos no comércio com o Brasil, mas também com as Índias de Castela, nomeadamente enquanto responsáveis pelo abastecimento de mão-de-obra escrava e estas colônias e pelo transporte de mercadorias, como açúcar, pau-Brasil, tabaco, prata, ouro, e pedras preciosas para a Europa (GELDERBLOOM, 2000:180181.224, 231, 238).10 Sobre os grupos mercantis das Províncias Unidas, ver, por exemplo: Antunes, 2004; Gelderbloom, 2000; Lesger, Noordegraaf, (Eds.), 1995.

8

Sobre os Judeus Portugueses nas Províncias Unidas, na Europa do Norte e no Atlântico em geral, ver: Israel, 1998, 2002; Kaplan, 2000; Swetschinski, 2000.

9

Para mais informação sobre as atividades desenvolvidas por estes mercadores em ambas as margens do Atlântico Sul, ver: Silva, 2011(capítulo 7).

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Embora os dados recolhidos não nos permitam afirmar categoricamente que estes mercadores estariam envolvidos em rotas comerciais bilaterais entre Angola e o Brasil, utilizando circuitos comerciais independentes daqueles operados a partir das Províncias e de outros portos Europeus, a informação recolhida deixa claro, como explicaremos em maior detalhe adiante, que entre estes mercadores privados já existia uma clara noção de que estes dois mercados do Atlântico Sul eram complementares. Esta ideia de complementaridade entre os mercados angolano e brasileiro tornar-se-ia bastante clara após o estabelecimento da WIC em 1621, e, particularmente, nos anos que precedem a conquista das capitanias do Nordeste Brasileiro em 1630. As rotas comerciais, as práticas adotadas e a logística desenvolvida pelos mercadores portugueses e brasileiros sediados no Brasil-Colônia desde a década de 1570 para comerciar no Atlântico Sul certamente ajudaram a desenvolver esta crescente consciência entre os oficiais da WIC acerca da complementaridade econômica dos mercados angolano e brasileiro.

As

políticas da wic para o

Atlântico Sul

Quando a Companhia traçou planos para a ocupação de grandes territórios, como o Brasil e Angola, o conselho dos Diretores (HEIJER, 1997, 2005:17-43) – também designados como os Dezenove Senhores – consideraram pela primeira vez a possibilidade de estabelecer um governo central para o Atlântico holandês, com sede no Atlântico Sul. Entre 1629 e 1630, quando a Companhia lançou o seu segundo ataque ao Brasil, mais precisamente sobre a capitania de Pernambuco, o Conselho dos Diretores, com a permissão dos Estados Gerais, começou a preparar um documento que definia o novo governo central das colônias Atlânticas holandesas, incluindo regulamentação relativa à organização comercial, militar, judicial, administrativa e fiscal – a chamada Ordem do Governo de 1629. Com o estabelecimento de um governo central com poder de tutela sobre todas as colônias e postos das Províncias no Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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Atlântico, o principal objetivo da Companhia era criar certa unidade administrativa, militar, judicial, comercial e fiscal que se estendesse a todos estes espaços (SCHILTKAMP, 2003:320321). A sede deste governo central seria no Brasil. Isto significa que qualquer colônia a ser estabelecida pela Companhia no Atlântico Sul ficaria sob a jurisdição do governo central sediado no Brasil. Assim, de acordo com a Ordem de 1629, todos os postos e colônias que futuramente fossem tomados aos portugueses, como iria suceder durante as décadas seguintes de 1630 e 1640, nomeadamente, São Jorge da Mina, Achem, Chama, e os territórios de São Tomé e Angola, ficariam, pelos menos em teoria, sob a jurisdição do governo central no Brasil. Na prática, a realidade viria a ser bastante diferente, como explicaremos mais adiante. Na verdade, seria o Governo Central sediado no Brasil, e o Conde Maurício de Nassau, na qualidade de governador-geral do Brasil holandês, que iriam traçar o plano para a conquista de Angola e de São Tomé aos Portugueses, e para manter os laços econômicos entre ambas as margens do Atlântico Sul. O principal argumento utilizado pelo Conde Nassau e o Governo Central para obter autorização do Conselho dos Diretores e dos Estados Gerais para a expedição fora a elevada procura de mão-de-obra escrava no Brasil holandês. Porém, a decisão de preparar e financiar esta enorme operação naval e militar pelo Conde Nassau e pelo Governo Central não fora tomada, em nossa opinião, independentemente da jurisdição que a Ordem de 1629 concederia ao Governo Central sediado no Brasil holandês sobre o Atlântico. Esta decisão não fora certamente tomada de leve consciência e sem um conhecimento detalhado dos laços entre estes dois territórios do Atlântico Sul.11 As ações do Conde Maurício de Nassau e do Governo Central no Brasil que se seguiram à tomada de Luanda e São Tomé, conduzindo a grandes disputas entre estas duas entidades, o Conselho dos Diretores e os Estados Gerais das Províncias Unidas são, em NA, OWIC 8: 18 Dezembro 1640: “Les XIX au gouverneur et au conseil de Recife” in JADIN [Ed.], 1975:I, 19 doc. 9.

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grande medida, reveladoras das intenções associadas à tomada destes territórios quer do ponto de vista administrativo, e militar, quer do ponto de vista político. Imediatamente após a ocupação de Angola e São Tomé, o Conde Maurício de Nassau e o Governo Central no Brasil solicitaram aos Estados Gerais a integração destes territórios sob a tutela do dito Governo, dada a elevada procura de mão-de-obra escrava na colônia, e as rotas diretas entre Angola e o Brasil, estabelecidas desde 1630, e utilizadas para satisfazer essa procura. Os Estados Gerais elaboraram um relatório sobre a questão e submeteram o documento à apreciação do Conselho de Diretores da Companhia para aprovação. Para estudar a questão, os Dezenove Senhores organizaram uma comissão. Em relatório datado de 6 de Fevereiro de 1642, a comissão votou a favor da proposta dos Estados Gerais. De acordo com este documento, Angola deveria ficar sob administração direta dos Dezenove Senhores. A colônia devia ser abastecida de provisões e bens de troca diretamente a partir das Províncias Unidas. O seu governo devia, assim, ser separado do Governo Central no Brasil, tal como, o era durante o domínio dos Portugueses. Do ponto de vista da Comissão, não fazia sentido abastecer Angola e São Tomé via Brasil, pois esta colônia também era abastecida pelas Províncias. Além disso, de acordo com a opinião da comissão, as viagens entre o Brasil e Luanda eram, mais longas do que a rota entre as Províncias e Angola. Por outro lado, o Brasil já se debatia com problemas financeiros, e a administração de outra colônia poderia ser demasiado danosa para o Brasil holandês.12 A comissão argumentou, assim, que Angola e São Tomé deviam ser abastecidos diretamente a partir das Províncias, e todas as instruções para seu governo deviam ser emitidas e enviadas pelos Dezenove Senhores. Em sua opinião, a procura de mão-de-obra escrava no Brasil não era um argumento suficientemente sólido para dar ao Governo Central no Brasil holandês NA, Staten Generaal (SG), 5773: 6 Fevereiro 1642: “Rapport de la commission formé par les XIX pour étudier le pro et le contre de la séparation de Loanda avec le Brésil” in JADIN [Ed.], 1975:I, 200-202, doc. 76.

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jurisdição sobre Angola e São Tomé, pois outras colônias que a Companhia pudesse vir a estabelecer no futuro também poderiam vir a necessitar de importar escravos africanos. Além disso, a Comissão acrescenta ainda que embora o tráfico negreiro fosse o principal comércio em Angola, existiam nesta região outros ramos comerciais que a Companhia desejava desenvolver. Por outro lado, segundo a Comissão, o Brasil não tinha como abastecer Angola e São Tomé sem os abastecimentos enviados a partir das Províncias. Na verdade, a experiência havia já demonstrado que esta função redistributiva não funcionava adequadamente, dado que os funcionários da Companhia em Angola enfrentavam problemas com falta de alimentos, munições e provisões, apesar das elevadas quantidades de provisões enviadas das Províncias para o Brasil. Além disso, a redistribuição das tropas transportadas das Províncias para o Brasil e daí para a Angola sofria problemas semelhantes, pois as tropas chegadas ao Brasil eram mantidas neste território. Consequentemente, o Brasil não conseguia assegurar a redistribuição dos militares para os vários postos da Companhia da África Ocidental e em Angola e em São Tomé não era possível assegurar a rotação dos soldados. Todos este argumentos seriam apresentados perante os Estados Gerais a 4 de Março de 1642.13 Os Estados Gerais aceitaram os argumentos da comissão e, contrariamente aos pedidos do Conde Maurício de Nassau e do Governo Central no Brasil, decidiu em favor da separação dos governos de São Tomé e Angola do Governo do Brasil, estabelecendo, assim, uma nova divisão administrativa para os postos da WIC na África Ocidental. De acordo com essa nova organização, a Costa Ocidental Africana ficaria dividida em dois distritos com governos separados. O Distrito do Norte incluía as áreas costeiras entre o Cabo das Três Pontas e o Cabo Lopo Gonçalves (atual Cabo Lopes); enquanto o Distrito do Sul englobava as regiões costeiras a partir do referido Cabo até ao NA, SG, no. 5773: 4 Março 1642: “Arguments des commissaires de XIX contre un mémoire des États-Géneraux sur le gouvernement des nouvelles conquêtes d’Afrique” in JADIN [Ed.], 1975:I, 237-239, doc. 84.

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Cabo da Boa Esperança, bem como as Ilhas do Golfo da Guiné. O governo do Distrito do Norte teria sede em Elmina e o do Distrito do Sul em Luanda. Cada governo teria jurisdição sob questões administrativas, judiciais, comerciais e religiosas.14 A estes dois distritos, o Conselho dos Diretores viria adicionar um terceiro: o Distrito de São Tomé, com o seu respectivo governo. Esta ilha e o seu governo seriam responsáveis, na visão dos Dezenove Senhores, pela ligação entre os outros dois distritos.15 Porém, este terceiro distrito não iria sobreviver por muito tempo. Logo, em 1645, as ilhas de São Tomé seriam incorporadas no Distrito do Norte, mas mantendo governo próprio.16 Esta nova divisão administrativa teria também implicações no que respeita ao abastecimento de alimentos, medicamentos, roupa, munições, armas, materiais para equipar e reparar navios, etc. Tudo seria fornecido diretamente pelas Províncias a estes governos. O abastecimento de mercadorias de troca para o comércio, de pessoal civil, naval e militar seria assegurado pelas várias Câmaras da Companhia, de acordo, com a sua quota de participação no capital da mesma. Na prática, nem tudo funcionaria da melhor forma. Esta nova divisão jurisdicional e a interferência dos Estados Gerais nos assuntos administrativos da WIC dado as suas implicações do ponto de vista político e diplomático para as Províncias, deu lugar a múltiplos conflitos entre as várias entidades envolvidas, que, na maioria dos casos, resultariam em grandes perdas para os governos da África VV. HH. Puissances, par leur lettre du 13 courant, nous ont chargés de hâter l’élaboration de l’instruction sur le gouvernement du district sud de la côte d’Afrique. Il s’étendra du sud de la ligne de ‘Equateur au cap de Bonne-Espérance, et comprendra notamment São Paulo de Loanda et l’île de São Tomé. Nous avons établi cette instruction ici, à la réunion de ce 19, selon votre demande, et nous en envoyons ci-joint la copie à VV. HH. Puissance. » NA, SG, 5773: 19 Março 1642: “Les XIX aux États-Généraux” in JADIN [Ed.], 1975:I, 250-251, doc. 96. NA, OWIC 9: 19 Abril 1642: “Les XIX à Jacob Ruychaver, commandeur à la Guinée” in JADIN [Ed.], 1975:I, 271 doc. 101.

14

NA, OWIC 9: 14 Junho 1642: “Les XIX aux directeurs de Loanda” in JADIN [Ed.], 1975:I, 296-302, doc. 112.

15

NA, OWIC 56, doc. 23: 28 Maio 1641: “Instruction du comte de Nassau et du conseil secret du Brésil pour l’admiral Jol, P. Moortamer, C. Nieulant and J. Henderson” in JADIN [Ed.], 1975:I, 34-42, doc. 27.

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Ocidental, do Brasil e de outros territórios no Atlântico. Por um lado, o abastecimento irregular de mercadorias de trocas aos fortes na Costa Ocidental Africana pelas referidas entidades causaria grandes perdas do ponto de vista comercial. Por outro lado, o abastecimento insuficiente de alimentos e munições e o deficiente sistema de rotação entre as tropas conduziria a grande descontentamento, que certamente viria a contribuir para as perdas militares e territoriais que a Companhia viria a sofrer não só na África Ocidental mas também no Brasil, no final da década de 1640 e no decênio seguinte.17 Os territórios de Angola e São Tomé foram provavelmente aqueles que mais sofreram as consequências diretas deste tipo de problemas. Inicialmente, os abastecimentos a estas áreas deviam ser assegurados pelo Governo Central no Brasil. Em 1642, após os Estados Gerais considerarem que esta prática era um enorme encargo para as finanças da Colônia ficou decidido que essas provisões passariam a ser enviadas diretamente das Províncias pelo Conselho dos Diretores. Porém, os Dezenove Senhores não libertaram formalmente o Governo Central no Brasil da obrigação de ajuda e assistência a Angola e a São Tomé.18 E, frequentemente, as Câmaras da Companhia nas Províncias também falhariam no abastecimento a estes territórios. O pedido e os argumentos utilizados pelo Conde Maurício de Nassau e o Governo Central do Brasil para solicitar jurisdição sobre os territórios de Angola e São Tomé são bastante reveladores da visão que o Governador-geral e o Governo Central tinham do Atlântico Sul sob o domínio da WIC. Para eles, o Atlântico Sul tinha uma lógica e unidade econômica própria, que, caso fosse preservada, iria beneficiar as colônias da Companhia na região. Porém, os Estados Gerais e o Conselho dos Diretores da Companhia não partilhavam da mesma opinião. Para mais informação sobre as disputas entre as Câmaras de Amsterdã e da Zelândia relativamente aos investimentos no Brasil e ao financiamento dos conflitos militares com Portugueses no Brasil-Colônia, ver, por exemplo: EMMER, 1981:7195 e DILLEN, 1970:160-170.

17

NA, OWIC 8: 3 Agosto 1643: “Les XIX au gouverneur et au Conseil du Recife (extraits)” in JADIN [Ed.], 1975:I, 466-467, doc. 165.

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Aquilo que parece ter estado aqui em jogo foi um conflito entre diferentes interesses políticos e econômicos: de um lado, tínhamos os interesses sediados no Brasil holandês e na Angola holandesa, e, de outro, os interesses enraizados nas Províncias; sendo os primeiros representados e defendidos pelos oficiais da Companhia nesses territórios, e os segundos pelos Dezenove Senhores nas Províncias. Enquanto os Dezenove Senhores estariam, pelo menos em teoria, a proteger os interesses dos mercadores de açúcar e dos donos das refinarias de Amsterdã (na prática e a longo-termo, as políticas adotadas pelo Conselho viriam a prejudicar os interesses destes grupos), o Governo Central no Brasil e o Conde Maurício de Nassau defendiam os interesses na Companhia na Colônia, nomeadamente as atividades dos colonos e dos mercadores portugueses que faziam negócio com os holandeses, e os novos colonos e mercadores que começaram a produzir e comerciar com a colônia já durante o governo da Companhia. Ao seguir práticas já existentes e rotas comerciais já em funcionamento, Nassau estava indiretamente a encorajar certa autonomia econômica para a colônia da WIC, que poderia ajudar a melhorar a sempre precária situação financeira e econômica do território. Embora, o Conselho dos Diretores fosse a favor do desenvolvimento das colônias e que estas se tornassem autossuficientes; por outro lado, temia que a colônia pudesse se tornar demasiado autônoma e eventualmente demasiado poderosa. O poder pessoal que o Conde Nassau tinha adquirido na Europa antes da sua partida para o Brasil, e a sua crescente autoridade e influência entre os funcionários navais e militares que serviam na Colônia, bem como, em Angola e São Tomé, foi, em nosso ponto de vista, outro fator que levou a Companhia a descartar o pedido subscrito pelo Conde Nassau e o Governo Central para obter a jurisdição sobre Angola e São Tomé. As disputas e os argumentos trocados entre o Governo Central no Brasil, o Conselho dos Diretores e os Estados Gerais colocam também, em evidência, a diferente visão e entenRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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dimento de uma mesma realidade por parte de funcionários a servir nas colônias e aqueles que serviam na Europa, e o conhecimento da situação real por parte desses dois grupos de funcionários da Companhia. Aqueles que serviam nas colônias da WIC pareciam ser muito mais conscientes do papel desempenhado pelas relações comerciais entre os dois territórios do Atlântico Sul, não só durante o domínio da WIC, mas também em épocas anteriores, quando os dois territórios ainda estavam em controle dos comerciantes Portugueses e de mercadores privados a operar nestes mercados. Os elementos recolhidos nos arquivos notariais de Amsterdã, na coleção da WIC e na TSTD não só mostram claramente uma continuidade nas relações comerciais Angola-Brasil sob o domínio holandês, mas também sugerem um crescente dessas trocas durante o domínio da Companhia sobre o Brasil e Angola, como iremos explicar em detalhe na seção seguinte.

As

rotas comerciais holandesas no

Atlântico Sul

Durante o período inicial de atividades Holandesas no Atlântico Sul, os mercadores das Províncias parecem ter utilizados três tipos de rotas no seu comércio de longo-curso: rotas diretas ligando as Províncias ao Novo Mundo, nomeadamente ao Brasil; circuitos triangulares ligando as Províncias às Américas, mas com escala na Costa Ocidental Africana, em particular junto ao Cabo Lopes, Loango, Kongo e Angola; e rotas diretas ligando as Províncias ao Golfo da Guiné e às zonas litorais circundantes; e ainda rotas diretas em direção às regiões costeiras do Cabo Lopes, Loango, Kongo e Angola. A maior parte destes circuitos incluía também navegação de cabotagem para garantir a troca de mercadoras – uma prática comum entre os mercadores das Províncias envolvidos no comércio atlântico. Assim, e contrariamente aos mercadores sediados em Portugal, no Brasil e em Angola que no final do século XVI já haviam desenvolvido circuitos bilaterais entre o Brasil e Angola, e entre esta Colônia e outros portos ao longo da Costa Ocidental Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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Africana, completamente separados dos circuitos europeus, os mercadores das Províncias baseavam suas atividades somente em circuitos bilaterais entre a Europa e ambas as margens do Atlântico Sul, e os chamados circuitos triangulares ligando a Europa à Costa Ocidental Africana e às Américas. Porém, após a tomada das capitanias do Nordeste Brasileiro pela WIC, novas rotas comerciais seriam estabelecidas. A partir de 1630, os Dezenove Senhores iriam defender que o comércio com o Loango e o Kongo fosse feito via Brasil. Esta decisão iria contribuir para a abertura de duas novas rotas comerciais: um circuito que ligava as Províncias ao Brasil holandês; e uma segunda rota que ligava a Colônia Holandesa à costa do Loango, Kongo e Angola. No primeiro circuito, provisões, munições, pessoal e produtos de troca eram enviados das Províncias para o Brasil; enquanto açúcar, pau-Brasil, e tabaco constituíam a maior parte da carga na torna-viagem, juntamente com funcionários da Companhia e alguns passageiros de regresso às Províncias. A segunda rota que ligava os portos de Pernambuco aos da Costa Ocidental Africana tinham várias funções. Por um lado, eles abasteciam os funcionários da Companhia no Loango, Kongo e Angola de mercadorias de troca, alimentos e armas. Por outro lado, este circuito também garantia o fornecimento de escravos Africanos necessários aos produtores de açúcar no Brasil-Colônia. Este circuito garantia ainda o transporte de marfim, e plantas tintureiras para a Europa, via Brasil. Por último, esta rota assegurava ainda a comunicação entre os governos da Companhia nos vários portos e colônias do Atlântico. Além dos referidos circuitos, várias outras rotas ligavam o Brasil holandês aos portos sob domínio da Companhia na Costa Ocidental Africana. Na década de 1630, as rotas principais ligavam os portos de Pernambuco aos da Senegâmbia, nomeadamente à Ilha de Gorée, bem como aos portos de Mori e da Mina na Costa do Ouro. Existia também uma importante rota que ligava Pernambuco ao Cabo Lopes. Este era, geralmente, o local na Costa Ocidental Africana, onde os navios da Companhia que operavam no comércio costeiro do Golfo do Biafra e na Costa dos Escravos aguardavam as frotas brasileiras para as abastecer com os escravos adquiridos nestes mercados e destinados a colônia holandesa. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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Entre 1641 e 1648, a Companhia também promoveu o desenvolvimento de rotas diretas ligando as Províncias a Angola e a São Tomé. Os circuitos mais importantes ligavam as Províncias a Luanda e ao porto da ilha de São Tomé. Estas rotas tinham duas funções principais: i) abastecer de provisões, munições e alimentos o pessoal militar e civil da Companhia a servir nestes territórios; e transportar os produtos africanos comprados nestas áreas costeiras com destino às Províncias, nomeadamente açúcar são-tomense e marfim angolano, e plantas tintureiras. Porém, dado que o principal “produto” disponível nesta costa era mão-de-obra escrava destinada ao mercado de trabalho brasileiro, as rotas diretas com destino a Europa nunca se tornaram muito intensas. De fato, as torna-viagens para a Europa eram frequentemente feitas com escala no Brasil, onde os escravos africanos eram desembarcados e as cargas completadas com açúcar brasileiro, pau-Brasil, e tabaco. Durante o domínio da WIC sobre Angola e São Tomé (16411648), Luanda tornar-se-ia o principal centro abastecedor de escravos africanos para satisfazer as necessidades dos produtores de açúcar no Brasil-Colônia, quer de origem luso-brasileira, judaica, holandesa, ou flamenga. Tal como a informação disponível na TSTD mostra, na década de 1640, a rota mais importante ligava Pernambuco a Luanda.

Fonte: http://www.slavevoyages.org: 19-07-2012.

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Em suma, a partir de 1630, o Brasil holandês foi utilizado pela Companhia como uma placa giratória para o comércio com a Costa Ocidental Africana, especialmente com as áreas ao sul do Cabo Lopes, como o Loango, o Kongo e Angola. Desta forma, o abastecimento de produtos de troca europeus, provisões e munições a estes territórios, bem como o fornecimento de produtos Africanos e escravos adquiridos nessas regiões, era garantido aos mercados consumidores da Europa e das Américas através do Brasil. O pessoal militar e civil ao serviço da Companhia na costa do Loango, Kongo e Angola também era transportado via Brasil. Portanto, a Companhia mantinha circuitos bilaterais ligando os seus postos e estabelecimentos no Atlântico Sul, em separado dos circuitos de ligação à Europa. A perda do Brasil por parte da Companhia holandesa pôs termo a estes circuitos que ligavam o Brasil holandês à costa africana, pelo menos para os navios operando sob pavilhão holandês. Os circuitos ligando o Brasil a Angola e ao Golfo da Guiné seriam reativados na década de 1650 por iniciativa de mercadores luso-brasileiros. Estes mercadores traziam bebidas alcoólicas (cachaça), tabaco e algum ouro para comprar escravos africanos nos postos comerciais dos diferentes poderes europeus instalados na costa africana, em particular no Golfo do Benim e a chamada Costa da Mina. Estes circuitos viriam a adquirir especial importância durante a existência e funcionamento da segunda WIC (1674-1791) (HEIJER, 2003:139-170). Os mercadores privados sediados nas Províncias com interesses no Atlântico Sul começaram a operar novos circuitos ligando o Loango, Mpinda, e Angola à ilha de Curaçao (a nova plataforma comercial da WIC para o seu comércio transatlântico), ao Suriname, e, por vezes também à América do Norte. O complexo econômico do Atlântico Sul controlado pelos holandeses havia terminado. Estas novas rotas tinham por base as tradicionais rotas triangulares e garantiam as trocas essenciais entre o Atlântico Sul e o Atlântico Norte.

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Conclusão Os circuitos bilaterais entre o Brasil holandês e a Costa Ocidental Africana, mais precisamente o Loango, o Kongo e Angola, desempenharam um papel importante na consolidação de um conjunto de práticas comerciais e trocas entre estes dois territórios, que tiveram início anteriormente quando estes espaços estavam sob o controle dos Portugueses, como aliás a informação reunida na TSTD sugere.

Fonte: http://www.slavevoyages.org: 19-07-2012.

Através do aproveitamento de ligações comerciais entre o Brasil e Angola pré-existentes ao estabelecimento holandês nesses espaços, a presença e domínio da WIC sobre estes dois territórios não só contribuiu para estimular o desenvolvimento dos circuitos entre as capitanias do Nordeste, o Loango e Angola, como também, para fortalecer os laços entre essas regiões. Além disso, a presença holandesa no Brasil também forçou os mercadores luso-brasileiros, luso-angolanos e portugueses a deslocaram-se para as capitanias do sul do Brasil, o estuário do Rio Kwanza e a região de Benguela, em Angola, e a utilizar de uma forma mais regular e intensa os circuitos comerciais que já tinham começado a emergir a partir da década de 1570. O poder naval da WIC e os seus ataques frequentes aos navios portugueses a circular entre o Atlântico Sul e o Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 11-38, 2014

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Atlântico Norte poderão ter sido também importantes razões para promover o desenvolvimento dos circuitos bilaterais já existentes, bem como de novos circuitos de ligação entre o Brasil e a costa angolana. Na verdade, após a conquista de Pernambuco pela WIC, os produtores de açúcar luso-brasileiros foram forçados a plantar cana nas regiões ao sul da Bahia e nos arredores do Rio de Janeiro (SANTOS, 2005; ABREU, 2005; SCHWARTZ, 1998; MAURO, 1997). Além disso, devido à tomada de Angola e São Tomé pelos holandeses, os mercadores luso-brasileiros foram também obrigados a encontrar novos mercados abastecedores de mão-de-obra escrava de forma a satisfazer a procura de trabalho dos produtores de açúcar do Brasil. O desenvolvimento de produção local no Brasil garantiu a estes mercadores o abastecimento regular de produtos de troca, como álcool, tabaco, e mais tarde ouro, que podiam ser trocados por mercadorias e mão-de-obra na costa ocidental africana (CURTO, 2005).19 Por outro lado, o conhecimento dos mercadores sobre as exigências dos mercadores consumidores africanos desempenharam também um papel importante no estabelecimento destas novas rotas comerciais. A Bahia e o Rio de Janeiro emergiriam durante o período aqui estudado como os dois principais portos de partida para estas rotas comerciais bilaterais entre as capitanias a Sul do Nordeste brasileiro e Angola. Alguns autores, como David Eltis, argumentam que durante o domínio holandês do Brasil e Angola foram feitas várias tentativas para desenvolver o transporte de escravos africanos a partir de Moçambique com destino ao Brasil, e existem, de fato, referências a algumas viagens (SMITH, 1974:233-259; BOXER, 1949:474-497).20 Porém, a duração da viagem e as exigências logísticas destas viagens tornavam-nas pouco lucrativas. Após a tomada das capitanias do Nordeste Brasileiro e Angola à WIC, as rotas diretas ligando o Brasil à costa angolana e ao Golfo da Guiné tornar-se-iam uma característica fundamental do Atlântico Sul luso-brasileiro, Ver também: Ribeiro, 2008:140-145.

19

Idem.

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também designado como “o complexo Angola-Brasil” (ALENCASTRO, 2007:118-119). A partir das décadas de 1670 e 1680, estas rotas iriam desempenhar um papel chave no abastecimento de escravos africanos a fim de satisfazer a elevada procura de mão-de-obra no mercado laboral brasileiro.

Referências Fontes

manuscritas

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Fontes

impressas

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NA, SG, no. 5773: 4 Março 1642: “Arguments des commissaires de XIX contre un mémoire des États-Géneraux sur le gouvernement des nouvelles conquêtes d’Afrique” ”. In: Jadin. L’ancien Congo et l’Angola. v. 1, p. 237-239, doc. 84. NA, SG, 5773: 19 Março 1642: “Les XIX aux États-Généraux”. In: Jadin. L’ancien Congo et l’Angola. v. 1, p. 250-251, doc. 96. NA, OWIC 9: 19 Abril 1642: “Les XIX à Jacob Ruychaver, commandeur à la Guinée” ”. In: Jadin. L’ancien Congo et l’Angola, v. 1, p. 271, doc. 101. NA, OWIC 9: 14 Junho 1642: “Les XIX aux directeurs de Loanda”. In: Jadin. L’ancien Congo et l’Angola. v. 1, p. 296-302, doc. 112. NA, OWIC 56, doc. 23: 28 Maio 1641: “Instruction du comte de Nassau et du conseil secret du Brésil pour l’admiral Jol, P. Moortamer, C. Nieulant and J. Henderson”. In: Jadin. L’ancien Congo et l’Angola. v. 1, p. 34-42, doc. 27. NA, OWIC 8: 3 Agosto 1643: “Les XIX au gouverneur et au Conseil du Recife (extraits)”. In: Jadin. L’ancien Congo et l’Angola. v. 1, p. 466-467, doc. 165.

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A MÃO QUE AFAGA Estratégias

retóricas nas crônicas

portuguesas da presença neerlandesa no

Atlântico Sul1 Kleber Clementino2

Resumo: O presente artigo tem o propósito de examinar de que maneira as crônicas portuguesas seiscentistas do “Brasil holandês” abordaram algumas das tensões surgidas entre as lideranças do movimento restaurador (1645-1654). A perspectiva adotada é a de que tais obras não se propuseram apenas a registrar a memória daquelas lutas para a posteridade, antes perseguiram objetivos políticos imediatos a cada contexto histórico em que foram produzidas, enaltecendo determinados personagens e eventos, atenuando passagens delicadas, retratando adversários como anti-heróis sem dignidade. A análise se debruça sobre as obras O Valeroso Lucideno, de frei Manuel Calado do Salvador, e História da Guerra de Pernambuco, atribuída a Diogo Lopes Santiago, extraindo delas os elementos que permitem construir a argumentação e apresentar as conclusões. Palavras-chave: Crônicas, Brasil holandês, Pernambuco. The hand that caresses: rhetorical strategies in Portuguese chronicles on Dutch presence in the South Atlantic Abstract: The present paper aims to examine in which way the seventeenth century Portuguese chronicles of the “Dutch Brazil” approached some of the tensions between the leaders of the movement to restore Pernambuco to the Portuguese domain (1645-1654). One has adopted the perspective that such books did not intend only to record the memory of such battles to posterity,



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Artigo recebido em março de 2014 e aprovado para publicação em abril de 2014.

Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da UFPE, linha Norte-Nordeste no Mundo Atlântico. Bolsista CAPES. Orientadora: Dra. Marília de Azambuja Ribeiro.

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but rather seek immediate political goals regarding each historical context, praising some characters and events, attenuating delicate passages, portraying adversaries as anti-heroes with no dignity. The analysis scrutinizes the works  O valeroso Lucideno, written by friar Manuel Calado do Salvador, and História da Guerra de Pernambuco, attributed to Diogo Lopes Santiago, extracting from them the elements which allow to build up the argumentation and so to present the conclusions. Keywords: Chronicles, Dutch Brazil, Pernambuco.

“Toma um fósforo, acende teu cigarro. O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja”. Augusto dos Anjos, “Versos íntimos”.

Intitulei este escrito “a mão que afaga”, por um lado, para prestar uma singela homenagem ao grande poeta paraibano Augusto dos Anjos, que tanto admiro, e, por outro, porque a frase parece encapsular com exatidão o raciocínio que almejo desenvolver ao longo do texto: que as crônicas portuguesas da presença neerlandesa no Atlântico Sul seiscentista, longe de equivalerem a páginas memorialísticas a erigir uma narrativa imparcial, foram antes compostas e divulgadas como armas políticas, disparadas em meio aos conflitos em que se embrenhavam as elites portuguesas do Atlântico Sul. Não se pretendia, por meio delas, meramente registrar a memória daqueles feitos para a posteridade, mas sobretudo erigir e decalcar determinada memória, expressão de segmentos de uma elite que estava longe de ser coesa. Sendo armas, a depender dos desenvolvimentos da batalha, às vezes convinha sacá-las e dispará-las contra um inimigo ou muitos, às vezes convinha metê-las na bainha, estender a mão e sacudir a bandeira da trégua.

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As

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crônicas olhadas diferentemente

A passagem neerlandesa pelo Atlântico Sul de colonização ibérica é tema historiográfico de extensa revisitação. Embora haja ainda polêmicas sobre os episódios que a antecedem e envolvem, a união das coroas ibéricas sob o monarca espanhol, a luta pela emancipação política das Províncias Unidas e sua expansão colonial a leste e a oeste do planeta foram examinadas com atenção pela historiografia. Mais especificamente, a ocupação holandesa do Norte Açucareiro e as lutas que os expulsaram têm sido estudadas com base em diversas fontes, de caráter oficial e privado, pelo menos desde meados do século XIX. Contamos, hoje em dia, com uma representação relativamente estável do que foi aquela passagem, conhecemos seus próceres, compartilhamos uma periodização verossímil... O “Brasil holandês” exibe, por assim dizer, uma historiografia consolidada. Há um elemento desse período, de indiscutível importância, o qual, contudo, parece ter merecido menor apreciação dos estudiosos. Este elemento é a literatura portuguesa composta na esteira dessa experiência colonial neerlandesa no Atlântico Sul. Ela é abundante, pulsante, controversa e está a reclamar adequada problematização historiográfica. E é exatamente isto a que se propõe a pesquisa de doutorado que embasa este artigo: abordar essas crônicas em sua pluralidade, no diálogo que estabelecem entre si e, ao longo do tempo, com os diferentes contextos políticos em que foram escritas, num intervalo de 50 anos (16301679); abordá-las não como documentos que retratam objetivamente um evento histórico e nos permitem assim recontá-lo, mas atribuir a elas próprias a condição de evento histórico. Reconhecê-las em sua subjetividade, nos possíveis compromissos que demarcaram as linhas de sua composição e a versão que pretender difundir, enxergando a dinâmica das perspectivas em que foram escritas, no interior de uma tradição interpretativa que remonta ao filólogo alemão Chladenius (KOSELLECK, 2006)3. Koselleck aponta em Chladenius um pioneiro no reconhecimento não apenas da subjetividade do historiador, mas na proposição de que também as fontes

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Olhá-las consoante esta concepção conduz a revelações interessantes, permite uma imersão em águas pouco navegadas. A primeira onda que nos atinge é a da diversidade desses escritos: e são diversos não exatamente na temática, mas nos compromissos assumidos por seus autores e no diálogo que estabelecem com os diferentes contextos políticos do recorte temporal aqui proposto. Não é possível, senão com muitas ressalvas, reunir a todas elas e lhes dar uma classificação comum, falar de uma “voz portuguesa”, porque são escritos em grande medida facciosos, isto é, são manifestos, não do povo português, nem mesmo da elite portuguesa na península ou no ultramar, mas de um “partido”, de um grupo de interesses a que se filiava o autor. Por exemplo, diversos indícios apontam que frei Manuel Calado do Salvador redigiu O Valeroso Lucideno ou a mando ou em homenagem a João Fernandes Vieira – ninguém menos que o “Lucideno” do título – como panfleto político de seu partido, no contexto da década de 1640, em vista das vacilações que a causa da Restauração Pernambucana encontrava na corte e nas negociações com os neerlandeses em Haia, quando a entrega do Nordeste era vista como o mais seguro caminho diplomático (MELLO, 1998), e, sobretudo, diante dos muitos adversários que protestavam contra a liderança de Fernandes Vieira, acusando-o de tirania. A narrativa de Calado é uma interminável reiteração desta filiação àquele partido, atacando e ridicularizando adversários, – como o mestre de campo Conde de Bagnuolo, o bispo D. Pedro da Silva e o comerciante Gaspar Dias Ferreira, entre tantos outros, – retratando-os com ruins tintas e funestos pincéis, negando-se a inscrever quaisquer passagens que lhes saíssem meritórias. Se, no entanto, passamos à análise da História da Guerra de Pernambuco, do mestre de gramática Diogo Lopes Santiago, supostamente composta cerca de 20 anos depois4, verificamos semelhante facciosismo, porém expressam “pontos de vista” sobre os eventos, sendo esta a única forma possível de apreendê-los. 4

A datação da História da Guerra de Pernambuco, que teria sido escrito em algum momento do intervalo 1661-1675, foi realizada pelo professor José Antônio Gonsalves de Mello, a partir de elementos intratextuais.

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atendendo a um contexto político diferente – o que implica, por exemplo, atenuar ou mesmo expurgar trechos de crítica a certos personagens, numa evidente operação de reconfiguração da memória (MELLO, 1986; CLEMENTINO, 2013). Compreendê-las assim, portanto, esclarece muito sobre o tipo de história que registram, os episódios que narram e que ocultam, os personagens que enaltecem e que denigrem – e como esta representação, consolidando-se, passou a compor o quadro do “Brasil Holandês” cristalizado na posteridade. Abre-se-nos, mais ainda, a possibilidade de vislumbrarmos as estratégias retóricas5 empregadas por aqueles escritores, visando a moldar a narrativa que lhes interessava a eles e a seus patronos. Transformando arengas em fraternidades, convertendo crimes em gentilezas, fabricando e imortalizando heróis.

Com

algemas de amor

A insurreição de parte da elite pernambucana, sob o comando de Fernandes Vieira, a quem todos elegeram “governador da empresa”, iniciou-se em 13 de junho de 1645. Nem se pode dizer que tenha sido dos inícios mais honrosos, pois começou pela fuga e esconderijo dos cabeças do movimento, A tradição da narrativa pensada como exercício retórico remonta à Antiguidade, encontrando sua mais consistente formulação no tratado De oratore, de Cícero. Nele, o célebre romano pretendia que, em lugar de aplicar-se a uma narrativa exaustiva, minuciosa, comprometida com a apresentação de episódios cotidianos e de “pouca importância”, caberia ao historiador selecionar para sua narrativa apenas eventos e personagens que, por sua grandeza, merecessem ecoar pela posteridade. Em alguns casos, gestos de “vileza” poderiam também ser contados, para ensinar o que não imitar. Respeita-se o princípio pedagógico dos exempla, e os historiadores agora deveriam valer-se de topoi discursivos, formas de dizer ou estratégias retóricas capazes de emocionar e engajar o público e, emocionando-o, educá-lo. Ainda na Antiguidade, autores como Salústio, Tito Lívio e Tácito seguiriam a trilha aberta por Cícero, sendo a concepção da escrita histórica como um exercício retórico continuada no Medievo por um autor como Froissart e, no Renascimento, por diversos autores, entre os quais um historiador tão importante para Portugal quanto João de Barros (DOSSE, 2012; LOPES, SARAIVA, s/d; BOURDÉ, MARTIN, s/d)

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descobertos pela espionagem neerlandesa. Pelos próximos 50 dias, esses insurgentes se embrenhariam pelas matas Várzea adentro, ziguezagueando de engenho em engenho, angariando (ou coagindo) apoios, recolhendo mantimentos e armas, caçados pelas tropas neerlandesas, até a primeira batalha entre as duas forças, no Monte das Tabocas, atual município de Vitória de Santo Antão, em 3 de agosto. Os insurgentes venceram-na, segundo as crônicas, com intervenção divina direta, pois a Virgem Maria e Santo Antão, caminhando entre as fileiras, distribuíram pólvora, protegeram os portugueses e ofuscaram com seu brilho a visão dos artilheiros neerlandeses. Dali se iniciou uma contramarcha em direção ao Cabo de Santo Agostinho e depois aos Apipucos, quando, a 17 de agosto, surpreenderam-se os batavos no engenho de Ana Pais, atual bairro de Casa Forte, os quais, depois de renhida peleja, foram derrotados e rendidos (SALVADOR, 1648:179 e ss). Paremos um momento. Esta sucessão triunfante de acontecimentos atropela episódios que, se não tão heróicos e românticos, guardam também sua importância. Analisemo-los. Em 1645, Portugal estava em trégua com as Províncias Unidas, resultado do arranjo diplomático alcançado depois da Restauração Portuguesa de 1640. O status quo no Nordeste Açucareiro, na África e no Oriente deveriam permanecer inalterado até a resolução do imbróglio diplomático ou o reinício do conflito. Qualquer ação em contrário seria aleivosa, ato de corso, indignidade e baixeza incompatíveis com a dinastia reinante em Portugal. Assim, formalmente, João Fernandes Vieira e seus aliados não eram insurretos apenas perante os governadores neerlandeses, mas também perante o reino português, já que violavam compromissos internacionalmente firmados pelo rei. Não lhe cabia esperar apoio régio a sua empreitada, e sim castigo. Em vista disso, as autoridades holandesas no Recife mandaram emissários ao governador geral na Bahia, Antônio Teles da Silva e, protestando consoante os termos da trégua, exigiram que prendesse Fernandes Vieira e “aquietasse” Pernambuco. Oficialmente, é com esse propósito, segundo a crônica, que Teles da Silva envia André Vidal de Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Negreiros e Martim Soares Moreno à frente de tropas e com a anuência do governo holandês no Recife. Os dois mestres de campo, Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros, se encontram em 16 de agosto de 1645, no Cabo de Santo Agostinho, e o diálogo que travam é, no mínimo, inusitado: Disse então o mestre de campo André Vidal de Negreiros: eu venho aqui por mandado do senhor Antônio Teles da Silva, governador e capitão general deste Estado, para prender a vossa mercê e a todos os que foram cabeças deste motim e alevantamento, e levá-los presos para a Bahia (...). Ao que João Fernandes Vieira respondeu dizendo: pois também vossa mercê há de saber que eu e esta multidão de gente que trago comigo, todos vimos a prender a vossa mercê e ao senhor mestre de campo Martim Soares Moreno (...) e a todos os soldados que consigo trazem, e amarrá-los com algemas de amor e com grilhões de obrigação, para que nos ajudem a vingar os agravos, crueldades, traições e aleivosias (...) com que os pérfidos holandeses nos têm tratado (...) (SALVADOR, 1648:217).

Calado, em algumas passagens, indica que Antônio Teles da Silva apoiava a insurreição em Pernambuco e a fomentava, supostamente em desobediência às ordens do monarca, embora não afirme textualmente que a expedição de Negreiros era uma farsa – coisa que a historiografia tem como ponto pacífico6. Há um quê de deboche em toda passagem, a teatralização um tanto burlesca de uma conciliação; imaginando a cena, é como se todos assistissem a ela com mal contidos sorrisos. Apesar de ser o propósito expresso de Negreiros trazer Vieira preso à Bahia, o “canto da sereia” do madeirense e suas “algemas de amor” teriam cativado o paraibano, desanuviando seus olhos para as

6

Sobre isso convém consultar MELLO (2000) e também MELLO (1998:39 e ss.). Em ambas, argumenta-se que não só o projeto era apoiado por Antônio Teles da Silva, mas ainda que tanto ele quanto André Vidal de Negreiros receberam ordens de Lisboa para fomentar a insurreição desde 1642. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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atrocidades perpetradas pelos neerlandeses, de vez que ele termina o diálogo prometendo examinar as denúncias de Vieira e, ipso facto, aliando-se aos insurretos. Ficavam, assim, ao mesmo tempo salvas as aparências (pois Negreiros, a rigor, desobedecia às ordens de Teles da Silva) e ridicularizados os inimigos. Exemplo do tipo de retórica mobilizada por Calado em sua crônica, em que recursos estilísticos e a própria fórmula tradicional do diálogo – recorrentes na historiografia antiga e na Península Ibérica (DOSSE, 2012; LÍVIO, 2010; LOPES, SARAIVA: s/d) – colaboram para a edificação de um discurso de intrigante polifonia, amainando conflitos subterrâneos, oferecendo uma descrição simultaneamente idealizada e farsesca do episódio, pela qual, na superfície, emerge apenas o amor por Portugal e a harmonia entre os chefes da insurreição em Pernambuco, na Bahia e, embora não dito, em Lisboa – e, abaixo da linha d’água, espreita-se a estratégia do comando luso a ludibriar e minar seus inimigos.

Um

momento delicado

Calado não está sozinho neste esforço de representação das relações luso-neerlandesas. Aqueles que financiavam e animavam a composição destas obras perseguiam propósitos políticos muito concretos, tais como a legitimação, o reconhecimento, a lembrança, a mercê, a regalia7. Pretendiam construir, perante o conjunto do império português, a imagem de conquistadores, de generosos restauradores do domínio luso, justos, fiéis, portadores, enfim, de todos os distintivos próprios da nobreza. Controvérsias e desinteligências entre suas fileiras serviriam apenas para manchar este retrato, expondo facetas pouco admiráveis daqueles próceres; daí sua atenuação, daí seu apagamento, daí esta romantização do relato, este aparamento de arestas que vimos, conteúdo de uma retórica política em ação. 7



Aludo ao conjunto de conceitos em torno da noção de economia das mercês, tão explorado pela historiografia recente, tal como em HESPANHA (1998).

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Outro episódio ilustrativo em que se flagra, talvez com ainda mais nítida evidência, tal operação discursiva seja o da troca do comando militar da insurreição, ocorrido no primeiro semestre de 1648. Desde o início do movimento até ali, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros eram os mestres de campo generais ad hoc, governando, afirmam Calado e Santiago, por espontânea aclamação da elite local (SALVADOR, 1648; SANTIAGO, 2004), – e todos os homens de bem, insistem os cronistas, aplaudiam sua liderança, disputando-as apenas os covardes e os traidores amigos de Holanda. Não obstante, em 1647, El-Rei despachou Francisco Barreto de Menezes mais 300 homens para substituir a liderança e reforçar as tropas. Barreto, na travessia do Atlântico, teve sua nave interceptada pelos batavos, permanecendo algumas semanas preso em Recife. Escapou em janeiro de 1648 e, segundo Diogo Lopes Santiago, foi, juntamente com seu tenente Felipe Bandeira de Melo, bem recebido e alojado pelos mestres de campo, tornando-se os três “camaradas de casa e mesa” (SANTIAGO, 2004:459). Em abril, às vésperas da primeira Batalha dos Guararapes, chegaria da Bahia a ordem do governador-geral, já então o conde de Aguiar, para que se entregasse a governança da guerra a Menezes. Somente esta breve apresentação do episódio basta a transmitir a delicadeza da situação. Por que, convém desde logo perguntar, El-Rei ordenaria substituir o comando? Gonsalves de Mello dá-nos muitas indicações de quão numerosa era a lista dos desafetos de Fernandes Vieira, os quais maquinavam, reclamava ele, para “desluzir minhas ações” e mesmo para assassiná-lo8; tantas acusações, que expressam queixas certamente anteriores a 1647, alcançando as régias orelhas, ajudam-nos a compreender melhor tanto a nomeação de Barreto de Menezes quanto o empenho de Vieira em desmentir as denúncias e dar mais lustre ao seu nome, trazendo para seu círculo frei Manuel Calado e encampando o projeto do MELLO (2000, pp. 243 e ss). Também convém consultar a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) (1913), edição na qual são transcritos os manuscritos compilados por Alberto Lamego, contendo cartas anônimas que denunciam Fernandes Vieira, acusando-o de abuso de poder e outros crimes.

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Lucideno, bem como, mais tarde, o da História da Guerra de Pernambuco e do Castrioto Lusitano. Convinha, é óbvio, lidar com esta transferência de comando com discrição e habilidade, de modo a representá-la com o mínimo de dano à imagem dos mestres de campo. Encontramos, no texto de Santiago, precisamente esta precaução, ao lado de discernível esforço para reverter o episódio em benefício dos descomissionados. Primeiramente, descreve a entrega do governo nos termos de um erro suportado com mansuetude: Os mestres de campo governadores, em consideração d’alguns respeitos, e por não entender o conde (de Vila Pouca) que lhe não obedeciam às suas ordens, entregaram o governo a Francisco Barreto de Meneses, averiguando entre si primeiro, por serviço de sua majestade, [se] deviam ficar eles na mesma guerra, pelo conhecimento que dela tinham, e por serem experimentados, e que assim convinha, posto que Pernambuco não tomou isto a bem porque requeria a terra pessoa mais experimentada nela e prática no estilo da guerra daquela campanha, e de anos bastantes, para suportar vontades tão diversas de tantas castas de gente que há naquelas capitanias, e de gente tão belicosa.

É pacífica, obediente, como cabe a um soldado – embora, insinua-se, houvesse todos os motivos para desobedecer. Ele personifica até mesmo uma “voz pernambucana”, cujo timbre, com unanimidade, se teria zangado face à demissão de seus comandantes eleitos. Em lugar de chefes impopulares, substituídos, ao menos em parte, em decorrência dos muitos incômodos que provocavam, o cronista retrata uma injustiça cometida contra dignos oficiais e reconhecida por todos os soldados e moradores, nesta intrigante proposopeia do “Pernambuco”, que “não tomou isto a bem”. Na sequência, Santiago lista as conquistas de Negreiros e Vieira enquanto mestres de campo e, desfechando sua peroração, compara-os ao “valoroso Fernão Cortés”, que, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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tendo conquistado bravamente a Nova Espanha, foi destituído do comando por um desinformado Carlos V. Cortés, comenta com fina malícia Santiago, recusou-se a render o cargo e prendeu quem o vinha prender, Pánfilo de Narváez, até que o rei recebesse mais honestos memorandos. Carlos, melhor informado, “dissimulou com a cousa e desobediência” e encarregou Narváez de conquistar a Flórida (SANTIAGO, 2004:479-481). Santiago, portanto, constrói um edifício retórico que, sem negar a tensão envolvida no episódio, manipula-a em favor de seus personagens. A tensão da substituição é canalizada na forma de um “sentimento pernambucano” favorável a Vieira e Negreiros e voltado contra seus difamadores e contra Francisco Barreto de Menezes; a própria entrega do posto, por meio da comparação com o caso espanhol, reveste-se de magnanimidade, de vez que haveria justiça na eventualidade de uma resistência. Como para confirmar o terreno arenoso em que se movia Menezes, coroando a narrativa que desenvolve, Santiago, linhas adiante, apressa-se em dizer que não só Vieira e Negreiros permaneceram na guerra, mas que o novo mestre de campo general lhes restituiria ad hoc, perante todo o oficialato, o comando das tropas na ocasião da Batalha dos Guararapes, “por não ser prático na campanha”. Devolução que só realça-lhes o prestígio, de vez que ambos aceitaram o encargo “alegremente” (SANTIAGO, 2004:485).

Amizades

inimigas

As tropas portuguesas, no retrato de Santiago, cultivavam, pois, um ambiente de amistosidade, encabeçadas por um oficialato leal, obsequioso, coeso. As fontes que estão para além das crônicas, contudo, oferecem diferente versão no tocante aos elementos desta representação, ajudando-nos a apreciar outras facetas da estratégia retórica mobilizada por Santiago e o compromisso consoante o qual foram produzidos estes relatos, ultrapassando a possibilidade de uma leitura unidimensional deles. Problematizando-os, em suma. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Tão logo ascendeu a posições de riqueza e comando na capitania, Fernandes Vieira passou a ser alvo de denúncias por seus supostos abusos, e as queixas prolongaram-se durante a insurreição e para além de 1654. André Vidal de Negreiros e Henrique Dias – outro herói ubíquo nas crônicas de Calado e de Santiago – foram alvo de imputações análogas. Na denúncia do “capelão”, dirigido ao governador geral, Antônio Teles da Silva, bem como em outros papéis dos anos seguintes, Vieira é acusado de roubar, intimidar, chantagear e mesmo coagir os moradores de Pernambuco a redigir papéis com louvores a si, além de “acutilar a muitas pessoas”9, valendo-se de seu poderio para estar sempre impune; Henrique Dias, sob suas ordens, tomaria à força escravos pertencentes a homens que já contribuíam com o esforço de guerra, guardando parte da presa para si; de Vidal de Negreiros diz-se que prendia e torturava desafetos e acoitava parentes criminosos, como André Curado Vidal, responsabilizado por pelo menos 12 homicídios (ACIOLI: 1997, p. 42). O próprio anonimato que predomina nas denúncias revela o temor perante a facção de Vieira e Negreiros, ao mesmo tempo indicando que o partido ou os partidos adversários permaneciam aguerridos e dispunham também de certa medida de força e de voz. Pois é assim que convém ler esta “guerra de papéis”: versões que se opõem, que esgrimam, que anseiam por impor-se àquela “opinião pública” seiscentista de que fala Evaldo Cabral de Mello (MELLO, 1998:122). Repercussão não há dúvida de que tiveram. Algumas das acusações alcançaram a alta administração, sendo discutidas no Conselho Ultramarino, aliás com divergências nas conclusões dos membros, prevalecendo, na decisão régia, a recomendação do conselheiro Salvador Correia de Sá, de que havia nelas exageração, fruto da aleivosia dos adversários de Fernandes Vieira (que, cumpria recordar, governava em tempo de guerra, sendo natural que provocasse descontentamentos), ficando na alçada do mestre de campo enviado para substituí-lo a decisão de afastá-lo ou conservá-lo na guerra (MELLO, 2000:244-246). 9

ACIÓLI (1997:42). Vejam-se também, para a coletânia de alguns escritos contra Fernandes Vieira, os papéis do Dr. Alberto Lamego em RIHGB (1913:33 e ss.).

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O mestre de campo era justamente Francisco Barreto de Menezes. O retrato dele oferecido na História da Guerra de Pernambuco é discretamente favorável e, embora insinue pouco talento para o comando militar, enfatizando sua inexperiência para o posto, é compensado pela sensatez e visão de render a chefia à gente experimentada da terra, o que teria angariado o respeito de todos, sem com isso ofuscar sua glória. Entretanto, em documentos posteriores à Restauração, fortemente contrastantes, figura outro Barreto de Menezes. Um papel anônimo intitulado Pernambuco Afligido, estudado pela Dra. Virgínia Almoêdo de Assis, disparam-se-lhe acusações de malversação do Erário e mesmo, escandalosamente, de defloramento de moças de família (ASSIS, ALMOEDO, 2009:87 e ss.). Menezes seria vaidoso, autoritário, um notório atrabiliário, cioso ao extremo de suas prerrogativas. E suas relações com os “régulos” de Pernambuco, Vieira, Negreiros e seu partido, estariam longe dos beijos e abraços das páginas de Santiago. Fernandes Vieira queixara-se à coroa do pouco respeito que Menezes, empossado governador-geral do Brasil em 1657, lhe demonstraria; o mesmo fez Henrique Dias, magoado por ser tratado “com pouco respeito e palavras indecentes” (ACIOLI, 1997:92). Mais grave que todos, o conflito entre ele o governador de Pernambuco André Vidal de Negreiros, empossado em 1657, acerca das regalias e jurisdições de cada cargo, esteve muito próximo de fazer estourar a guerra entre Pernambuco e Bahia, de onde vieram tropas a mando do governador-geral, a fim de fazer valer sua autoridade. O azedume das relações entre Menezes e Negreiros transpira, outrossim, nas cartas do primeiro, como nesta, endereçada à regente D. Luísa de Gusmão: Os excessos com que a meu respeito está ali ofendendo os vassalos de Vossa Majestade, desprezando as ordens deste governo, me tiveram quase levado pessoalmente a Pernambuco, e se o regimento que aqui achei me não proibira sair desta praça (...) sem dúvida fora ensinar André Vidal todas as obrigações a que faltava [e] o trouxera preso (apud ACIOLI, 1997:91). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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O que, novamente, realça a estratégia retórica de Santiago, na pintura que faz da idílica amizade entre os chefes do movimento. Não é o caso de dizermos que a boa convivência retratada em suas páginas nunca existira, mas sim que a exposição daquela versão e a exclusão de outras, a escolha daquelas tintas suaves tem em vista a construção da imagem de uma cúpula coesa no serviço de El Rei, contra o invasor herege. Introduzir na narrativa eventuais dissensões entre os líderes era meter nódoa ao retrato, dar munição aos “partidos” adversários, e não convinha.

À

guisa de conclusão: os documentos, a falsidade

As fontes não apenas falam, elas muita vez escolhem cuidadosamente o que proferem. Cuidadosamente, interessadamente, estrategicamente. A tarefa do historiador não se resume a interpretar sua fala, mas também a devassar o segredo que sussurram, as notícias que, pretendendo ocultar, revelam. A entrelinha é o habitat do historiador, o confronto de vozes é a sua música. Até certo ponto, o documento, mesmo aquele que se proclama honesto e aberto, é uma espécie de adversário que se nos escorrega, que tanto quer dizer quanto encobrir, atirando lençóis sobre as porções do passado que o constrangem. Determina-nos diligentemente a direção exata para onde olhar e não raro teme que enxerguemos a completude do quadro – temor inútil, aliás, porque isso não é possível. Mas, com sorte, às vezes, é possível desarmá-lo, o documento, em suas estratégias, em seus compromissos, em seus jogos de esconde-esconde. A história do “Brasil Holandês” tem, como disse, desde muito sido contada e recontada, com base em documentos administrativos, no epistolário, na iconografia e nas crônicas de então. O mergulho no período, contudo, revela que esta própria produção documental tem uma história, veio à luz não na tranquilidade dos gabinetes dos memorialistas, mas em meio ao fogo cerrado das arengas que fragmentavam a política do império português no Atlântico Sul. Obras como O Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 39-54, 2014

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Valeroso Lucideno e a História da guerra de Pernambuco são discursos políticos de facções que almejavam disseminar determinada representação daqueles episódios, em vista de seus projetos também políticos de predomínio sobre as regiões em que se encastelavam. Toda a amizade a que Diogo Lopes Santiago alude entre Vieira, Negreiros e Barreto de Menezes, por exemplo, “amigos de casa e mesa”, jantando e gargalhando juntos, e que outros textos e as cartas dos próprios envolvidos contestam, não pode ser meramente proscrito ao título de “falsidade” do documento, como se dizê-lo bastasse e encerrasse o assunto. As “verdades” que constam dos documentos têm seus porquês e as “incorreções” e “falsidades” também têm. As versões que procuram disseminar se valem, ora da fidedignidade, ora da distorção, empregando-as em vista de finalidades semelhantes. Talvez, depois de tanto tempo perseguindo a verdade, examinar a mentira não nos caísse tão mal.

Referências Bibliografia ACIÓLI, Vera Lúcia Costa. 1997. Jurisdição e conflito: aspectos da administração colonial. Recife: Editora Universitária da UFPE; Maceió: Editora da UFAL. ASSIS, Virgínia M. Almoedo de; ALMOÊDO, Andreia. 2009. “A violência contra a mulher no Brasil – um estudo de longa duração”. In: ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de (org.). Histórias do mundo atlântico: Ibéria, América e África entre margens do XVI ao XXI. Recife: Editora Universitária UFPE. BOURDÉ, Guy & MARTIN, Hervé. s/d. As escolas históricas. Sintra: Publicações Europa-América. CLEMENTINO, Kleber. 2013. Distinção e semelhança: estudo comparativo de duas crônicas das guerras holandesas na América Portuguesa. Anais do XVII Simpósio Nacional de História da Anpuh. Natal: ANPUH.

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INVENTÁRIO DOS BENS DO CASAL: Família, elite local e bens materiais em Cimbres, nos sertões de Ararobá de Pernambuco (1762-1836)1 Alexandre Bittencourt Leite Marques2 Ana Lúcia do Nascimento Oliveira3

Resumo: Na passagem do século XVIII para o XIX, diversas famílias passaram a ocupar sítios e povoados pertencentes à jurisdição da vila de Cimbres, então Comarca do Sertão. Algumas dessas famílias pertenceram à elite local e tiveram alguns de seus membros ocupando cargos públicos, trabalhando como homens de negócios ou então exercendo as duas funções ao mesmo tempo. Tomando como objeto de estudo duas famílias distintas que residiam no termo de Cimbres, o presente trabalho tem por objetivo analisar - através de variadas fontes como inventários post mortem, relatos de cronistas e documentos administrativos – a vida em família e os bens materiais acumulados que, dentre outras coisas, contribuíram para torná-las membros de uma elite local. Palavras-chave: Sertões de Ararobá, Elite Local, Famílias. Homestead Inventory of a couple: family, local elite and material possessions in Cimbres, in Ararobá hinterland in Pernambuco (1762-1836) Abstract: During the transition from the eighteenth to the nineteenth century, several families have moved to villages and sites belonging to the jurisdiction of the town of Cimbres, in the Hinterland District. Some of these



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Artigo recebido em março de 2014 e aprovado para publicação em maio de 2014.

Mestre em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e Professor da Rede Pública de Ensino do Governo do Estado de Pernambuco.

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Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Arqueóloga e Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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families belonged to the local elite and had some of its members occupying public office, working as businessmen or else, exerting both functions at the same time. Taking two different families who lived at the end of Cimbres as an object of study, this paper aims to examine - through various sources such as post mortem inventories, accounts of chroniclers and administrative documents – the family life and the material goods accumulated, which among other things, contributed to make them members of a local elite. Keywords: Hinterland of Ararobá, Local elite, Families.

Introdução Nas primeiras décadas do século XIX veio a falecer Dona Clara Coelho Leite dos Santos, moradora do “sítio Pesqueiro”, e também Gonçalo Antunes Bezerra, residente no “sítio Alagoinhas”. Habitando em diferentes localidades situadas no termo da vila de Cimbres, nos sertões de Ararobá de Pernambuco, essas duas pessoas tiveram em comum o fato de pertencerem a uma elite local e de terem deixados seus bens inventariados e partilhados para com seus herdeiros.4 Entretanto, mesmo sendo parte da elite, essas pessoas e seus respectivos parentes possuíam determinadas diferenças entre si, como, por exemplo, acúmulos de bens materiais. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo analisar o patrimônio e a vida em família desenvolvida durante a passagem do século XVIII para o XIX, tomando como objeto de pesquisa duas famílias distintas que habitavam duas localidades diferentes inseridas na jurisdição de Cimbres.

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Existe uma ampla e complexa discussão a respeito do conceito de “família”. No presente trabalho, adotaremos o conceito antropológico-social utilizado por Ta-nya Maria Pires Brandão, que conceitua a “família” como um “vínculo de parentesco, estabelecido a partir dos laços de sangue e de casamento”. Tomando como amostra a Capitânia do Piauí, Brandão também analisa que o caráter elitista da família colonial da América portuguesa se dá através das condições econômico-financeiras suficientes para deixar bens materiais a seus descendentes. (BRANDÃO, 2012: 117, 122). Para uma discussão do conceito de família, ver os textos de Leila Mezan Algranti (ALGRANTI, 1997), de Françoise Choay e de Allain Collomp (CHOAY, 2001; COLLOMP, 2009).

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O recorte espacial compreende os antigos sítios de Pesqueira e Alagoinhas, pertencentes ao termo ou município da vila de Cimbres.5 Outrora um povoado chamado de Ararobá, e depois Monte Alegre, a vila foi erguida em um antigo aldeamento indígena organizado por missionários religiosos e possuía seus limites jurídico-administrativos estendidos por um vasto território do interior da Capitania de Pernambuco, então chamado de sertões de Ararobá (MACIEL, 1980). Já o recorte temporal da pesquisa tem como baliza cronológica o ano de 1762, data em que Cimbres é elevada a categoria de vila através de um Edital, até 1836, ano em que ela perde a categoria de sede do município para Pesqueira. Utilizamos como fontes de pesquisa variados documentos de âmbito judicial, político e pessoal como, por exemplo, inventários post-mortem, testamentos, cartas, petições, alvarás, provisões, editais e relatos de alguns cronistas (Henry Koster, Martius e Gardner). Devidamente analisados, os bens arrolados nos inventários (móveis da casa, ferramentas, escravos, plantações, animais, bens de raiz), bem como a lista de herdeiros (com os nomes e quantidades de filhos, estado civil, idade) podem fornecer informações a respeito dos modos de vida e do uso e acúmulo da cultura material das famílias.6 Já os documentos do legislativo, que integram o Livro da Criação da Vila de Cimbres (1762-1867)7, contribuem para a percepção 5

A área de abrangência de uma vila era chamada de município ou termo. De acordo com Graça Salgado, o município ou termo era considerado a menor divisão administrativa da Colônia, sendo dirigida por um órgão colegiado, a Câmara Municipal, que exercia as funções político-administrativas, judiciais, fazendárias e de polícia (SALGADO, 1985: 69). Para Cláudia Damasceno Fonseca, na América portuguesa a vila era o núcleo urbano principal, onde se reunia a câmara. Já o termo da vila era o território de jurisdição dos oficiais camarários, que incluía geralmente várias outras localidades, como sítios, povoações, arraias (FONSECA, 2011).

Os inventários post mortem pesquisados no presente trabalho fazem parte do Acervo Orlando Cavalcanti, pertencente ao Instituto Arqueológico Histórico Geográfico de Pernambuco (IAHGP).

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O livro é uma compilação de vários tipos de documentos manuscritos - petições, ofícios, cartas, etc - que foram produzidos no período de 1762 – 1867. No ano de 1985, cópias impressas do Livro da Criação da Vila de Cimbres passaram a

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da trajetória da gente dos sertões. Por fim, os relatos dos cronistas fornecem suas impressões a cerca da vida nas propriedades e moradias dos colonos.8 Ao pesquisar a vida familiar e a posse de bens materiais em Cimbres, é necessário lançar alguns questionamentos para que se possibilitem leituras sobre o objeto de estudo. Perguntas como: quem eram essas famílias? Quais as semelhanças e diferenças entre elas? Como se dava a forma de habitar? Que tipos de bens materiais foram adquiridos ao longo dos anos? São essenciais para compreender o cotidiano dos colonizadores nos sertões de Pernambuco. Procurando analisar essas indagações, instituímos um paralelo entre as habitações, a cultura material e as famílias no intuito de reconhecer os aspectos da sociedade sertaneja, levando em conta as características variadas das estruturas familiares e das formas que a habitação possui. Como bem afirma Allain Collomp, “tais razões determinam que não se separe o estudo das condições habitacionais (as tipologias das construções, os planos dos espaços internos, o mobiliário e seu uso) do estudo das pessoas aparentadas que moram no interior das casas” (COLLOMP, 2006: 489). Também para Leila Algranti, mesmo com a dificuldade encontrada em reconhecer as características originais de determinadas residências coloniais em virtude do desaparecimento das construções ou das graduais reformas às quais foram submetidas ao longo do tempo, o reconhecimento dos diversos cômodos, suas funções e o modo como tais espaços podem ser utilizados ajudam a “desvendar a intimidade dos colonos no interior do domicílio...” (ALGRANTI, 1997: 90).

integrar a coleção Documentos Históricos Municipais, publicada pelo Centro de Histórias Municipais (Livro da criação da vila de Cimbres). 8

Sobre o histórico de alguns cronistas e viajantes que visitaram o Brasil como Henry Koster, George Gardner, Tollenare, Spix e Martius, ver o livro de Mário Souto Maior e Leonardo Dantas Silva (MAIOR; SILVA, 1993).

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Duas

famílias da elite colonial no termo de Cimbres

A partir da criação da vila de Cimbres nos sertões de Ararobá, no ano de 1762, logo começaram a aparecer sítios e povoações inseridos na área de abrangência política-jurídica-administrativa da dita vila. Possivelmente era necessário expandir cada vez mais a população, a cultura e a economia dos colonizadores nas territorialidades pertencentes a Cimbres para poder eliminar as áreas designadas pelos colonizadores como selvagens, bravias, ocupadas por índios selvagens, caracterizadas como inadequadas para os padrões de civilidade.9 Sendo assim, o estabelecimento de sítios e povoações tinha por finalidade levar a civilização para os locais distantes das vilas, isto é, aqueles considerados matos desertos e vazios: os sertões (Foto 1).10

De acordo José Carlos Reis, o “processo colonizador” colocava os não europeus como o ‘outro’, isto é, aqueles que deviam ser “civilizados”, europeizados. Este “outro” aparece como “sub-homens, sub-raças, bárbaros, primitivos, inferiores, homens-criança, homens-fera, homens-natureza, pagãos, selvagens, indígenas, homens-floresta, incultos, iletrados, supersticiosos...”. Logo, os que possuíam os valores europeus eram tidos como racionais. Segundo Eni Orlandi, “falar sobre o ‘outro’ para instituir a imagem de ‘si’, cria sua tradição (sou-sempre-já), além de sua imagem (como deve ser)”. (REIS, 2011: 30; ORLANDI, 2008: 52). Em relação à dicotomia entre bárbaro e civilizado nos sertões de Pernambuco, ver Kalina Silva (SILVA, 2010).

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Segundo Cláudia Fonseca, o Estado português procurava se impor nas áreas que correspondiam os sertões da América portuguesa, isto é, ele intervinha nas áreas do interior através do desenvolvimento de vilas e povoações, pois na visão etnocêntrica dos colonizadores os sertões seriam os “espaços caóticos” (sem lei e administração), portanto era necessário levar a “civitatis” (conjunto de habitantes regidos por regras e leis) através do estabelecimento de núcleos urbanos. Ela também afirma que se deve ter cuidado ao avaliar um surgimento de um povoado como “espontâneo”, pois mesmo os mais “insignificantes” deles, fundados por humildes colonos, poderiam de alguma forma ter sidos influenciados pelo processo de intervenção do Estado na região. (FONSECA, 2011).

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Foto 1: Fachada atual da edificação que abrigou o antigo Senado da Câmara da Vila de Cimbres, construído no final do século XVIII

Fonte: foto de Alexandre Bittencourt, 2011

Para Mary Del Priore e Renato Venâncio, a família colonial era à base de existência dos lugarejos do interior do Brasil, na qual grupos domésticos podiam viver isolados de outras famílias graças a uma produção praticamente autossuficiente. Geralmente a ocupação desses locais se dava em regiões originalmente ocupadas por povos indígenas (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2006). Segundo José de Almeida Maciel, o estabelecimento da vila de Cimbres e seu termo se deram em áreas ocupadas por grupos indígenas como, por exemplo, os Xucurús e os Paraquiós (MACIEL, 1984). Os primeiros habitavam principalmente a Serra do Ororubá, já o segundo grupo indígena habitava, dentre outros lugares, a Serra do Gavião, nos contrafortes do Ororubá. Nesse sentido, a criação dos sítios, povoados e vila nos sertões de Ararobá seguiu um processo já corriqueiro e bem difundido em outras localidades da América portuguesa, que geralmente se iniciava com instalação de uma família colonial, em terras Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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outrora frequentadas por grupos indígenas, propiciando uma série de atividades desenvolvidas pelos colonos. Os aspectos dos sítios, povoados e vilas não eram estáticos. Pelo contrário, algumas razões contribuíam para explicar a constante mudança de construção nos espaços, entre elas, considerações de ordens econômicas e demográficas (COLLOMP, 2009). Na medida em que a pecuária e o algodão foram se expandindo nos sertões de Pernambuco foi havendo uma transformação dos espaços naturais em espaços construídos, pois agora os locais atraíam cada vez mais pessoas interessadas na economia agropastoril. Razão menos aparente, mas tão importante quanto, era o aumento populacional causado pela ampliação dos núcleos familiares nos espaços sertanejos, que também culminavam em seguidas mudanças no ambiente natural. Os quadros abaixo se referem aos números de habitantes de algumas freguesias no interior da Capitania de Pernambuco, na penúltima década do século XVIII, e mostram o aumento populacional ocorrido em algumas vilas: QUADRO 1 – Lista do número de habitantes de vilas do interior de Pernambuco ANO 1782 FREGUESIA Cimbres Bezerros Cabrobó

HOMENS 512 1004 2684

MULHERES 628 832 2276

FONTE: Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste governo: a saber, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, o seguinte. Freguesias de que se compõem as cinco Comarcas Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro. 25 de setembro de 1782. A.H.U., PE, p.a., Caixa 73. LAPEH – UFPE.

QUADRO 2 – Lista do número de habitantes de vilas do interior de Pernambuco ANO 1788 FREGUESIA Cimbres Bezerros Cabrobó

HOMENS 824 1568 2934

MULHERES 860 1462 2655

FONTE: Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste governo: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, divididas nas cinco Comarcas Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro. 25 de setembro de 1788. A.H.U., PE, p.a., Caixa 88. LAPEH – UFPE.

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Ao analisar os quadros percebemos que em seis anos houve um aumento no número de homens e mulheres moradores de algumas freguesias nos sertões. A vila de Cimbres passou a contar com 312 homens a mais, Bezerros saltou para 564 e Cabrobó teve um aumento de 250 homens. Já com relação ao sexo feminino, Cimbres foi para 232 mulheres a mais, Bezerros sofreu um acréscimo de 630 e Cabrobó 379. Na medida em que a população crescia, provavelmente era necessário se apropriar de novas áreas naturais para transformá-las em espaços construídos no intuito de abrigar novos moradores, sejam eles nascidos nas próprias vilas e povoados ou vindos de outras localidades. Sendo assim, os dados populacionais podem sugerir que o aumento de números de habitantes nas freguesias dos sertões poderia contribuir para uma alteração cada vez maior dos espaços naturais do entorno desses núcleos urbanos. Após o estabelecimento dos colonizadores nas áreas consideradas por eles como selvagens e perigosas, com o passar dos anos foi havendo um aumento populacional nas localidades. Sendo assim, nas áreas do entorno da vila de Cimbres, os espaços naturais passaram a sofrer cada vez mais transformações, pois a partir do aumento populacional começou a surgir a necessidade de novas habitações nestes espaços. Para Allain Collomp, nas vilas e povoados “as superfícies construídas pertencentes a uma unidade familiar não eram imutáveis. A utilização de cada parte podia mudar ao longo de gerações e na medida das necessidades” (COLLOMP, 2009: 488). Uma das causas das mudanças no espaço era o aumento do número de indivíduos dentro de uma mesma família estimulados por casamentos. No termo de Cimbres, dois exemplos de famílias colonizadoras estavam estabelecidos na área de abrangência jurídico-administrativa da vila e deram início ao povoamento de dois sítios da região. De acordo com o inventário de Clara Coelho Leite dos Santos, cujo inventariante foi seu esposo o sargento mor Manoel José de Siqueira, a falecida habitava o chamado sítio do Pesqueiro, que foi “adquirido por dote que fizera Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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o Capitão mor Antonio dos Santos Coelhos da Silva...” (O Capitão Antonio era pai de Clara). Já o inventário do finado Gonçalo Antunes Bezerra, que tinha por inventariante sua esposa Antonia Maria de Jesus, consta que ele morava no sítio Alagoinhas. Segundo pesquisas realizadas por José de Almeida Maciel e Dorgival Gallindo, o sítio Alagoinhas foi ocupado pelo homem de negócio Gonçalo e Antonia, no ano de 1805, a partir da compra da propriedade que pertencia ao irmão de Gonçalo, chamado de João Antunes (GALLINDO, 1931; MACIEL, 1980). Sobre o dito acima, os inventários post-mortem nos ajudam a ter informações a respeito da constituição de ambas as famílias como, por exemplo, o número e nome de filhos e genros, suas respectivas idades e estado civil. É o que nos mostra os trechos abaixo transcritos dos inventários do finado Gonçalo Antunes Bezerra, então morador e proprietário do sítio Alagoinha, e da falecida Clara Leite Coelhos dos Santos, moradora e proprietária do sítio do Pesqueiro: QUADRO 3 – Listagem de herdeiros de Gonçalo Antunes Bezerra Filhos legítimos 1. Luiz Alves Bezerra [espaço], casado 2. Gonçalo Antunes Bezerra [espaço], casado/ morto 3. Antonio Fernandes Sampaio Leite [espaço], casado 4. José Paz Bezerra [espaço], casado 5. Rita Nunes Bezerra, casada com José Gomes Ribeiro 6. Maria de Santiago Bezerra, casada com Cypriano José da Silva 7. Izabel Nunes Bezerra, casada com Estevão de Oliveira Lima 8. Antonia dos [ilegível] Bezerra, casada com Manoel Alves Bezerra 9. Lisarda Nunes Bezerra, casada com Jacinto da Silva Torres 10. Donenciana Bezerra, casada com José Joaquim Chalegre 11. Ignacia Nunes Bezerra, casada com João Francisco Chalegre 12. Joaquim Antunes Bezerra [espaço], filho natural e casado FONTE: Inventário de Gonçalo Antunes Bezerra - IAHGP -Acervo Orlando Cavalcanti – Cx. 61. Folha 1.

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QUADRO 4 – Listagem de herdeiros de Dona Clara Coelho Leite dos Santos Filhos e herdeiros anos Antonio dos Santos Coelho de Sirqueira, de idade de nove Manoel, de idade de dois meses Francisco, de dois meses D. Anna Leite de Sirqueira, de idade de doze anos D. Thereza de Jesus Leite, de idade de onze anos D. Maria Benedita de Sirqueira, de idade de sete anos D. Francisca Leite de Sirqueira, de idade de quatro anos D. Clara Leite Coelho dos Santos, de idade um ano D. Ritta, de idade de dois meses FONTE: Inventário de Dona Clara Coelho Leite dos Santos - IAHGP -Acervo Orlando Cavalcanti – Cx. 107.

Analisando a primeira relação se percebe que todos os nomes dos filhos e filhas aparecem acompanhados respectivamente do termo casado ou do nome do esposo. Através dessa descrição se pode notar que a constituição da família de Gonçalo Antunes foi ampliada graças aos casamentos realizados por seus filhos. Já em relação aos herdeiros do casal Manoel e Clara, apesar de possuírem pouca idade no ano da morte da mãe, provavelmente anos mais tarde, ao atingir idade suficiente, também se casaram e tiveram rebentos. Ora, provavelmente o aumento do número de pessoas exigiu também uma expansão de novas moradias na localidade. Para Collomp, “novas construções surgiam no mesmo pátio para abrigar os pais velhos que se afastavam do trabalho agrícola ou um filho que se casara”. Além disso, saído do lar paterno por conta do casamento, a nova residência do filho devia ser estabelecida perto dos pais, “no seio da comunidade” (COLLOMP, 2009: 488-489). Em um pequeno povoado rural como o de Alagoinhas, por mais distante que fosse da vila principal, Cimbres, os moradores necessitavam encontrar formas variadas para realizar a união matrimonial. Possivelmente, pelo número reduzido de habitantes, alguns recorriam aos casamentos consanguíneos com primos e primas. Já outros pretendentes dependiam da vinda de pessoas de fora do povoado. De acordo com pesquisas feitas por Dorgival Gallindo e José de Almeida Maciel, o casamento da filha de Gonçalo Antunes, Izabel Nunes Bezerra, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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deu-se com um primo da mesma. Já as outras filhas se casaram com homens de negócios vindos de outras regiões de Pernambuco (GALLINDO, 1931; MACIEL, 1980). Ainda em relação ao casamento, este tinha sua importância na sociedade colonial. De acordo com Leila Mezan Algranti, “o casamento sacramentado conferia status e segurança aos colonos, tornando-o desejável tanto pelos homens como pelas mulheres” (ALGRANTI, 1997:87). Nesse sentido, além de simplesmente aumentar o número de habitantes em determinadas localidades, certos casamentos poderiam trazer benefícios econômicos e acrescimento social e material para os noivos. É o que podemos notar no casamento entre Manoel José de Siqueira e Clara Coelho Leite dos Santos. O casal era descendente de duas famílias poderosas de Cimbres, que além de ocuparem cargos públicos, também eram pessoas de negócios e possuíam significativos bens materiais. Segundo José de A. Maciel, Manoel era filho do Mestre de Campo Pantaleão de Siqueira. Já sua esposa era filha do Capitão mor Antonio Santos Coelho da Silva, considerado um dos homens de negócios mais ricos da Capitania de Pernambuco (MACIEL, 1980). Para se ter uma ideia da riqueza acumulada pelo casal, ao ler o inventário de dona Clara, produzido no dia 30 de junho de 1814, percebemos uma grande quantidade de bens materiais, entre eles, dinheiro, ouro, pedras finas, prata, cobre, ferro, escravos, móveis de casa, lavras de terras, gado vacum, gado cavalar e propriedades de terras. Apesar dos zelos interligados entre Igreja e Estado Moderno para a valorização do casal legalmente instituído e no combate das atividades extraconjugais, naquilo que Mary Del Priore chamou de “normatização do corpo social” (DEL PRIORE, 1995: 38), havia nos sertões casos de relacionamentos fora do casamento. É o exemplo do próprio Gonçalo Antunes que deixou em sua lista de filhos legítimos Joaquim Antunes Bezerra, descrito no inventário como filho natural. Segundo Leila Algranti são verificados em alguns domicílios coloniais filhos naturais “que muitas vezes são criados com os legítimos” (ALGRANTI, 1997:87). No caso de Alagoinhas, Gonçalo Antunes possuía um Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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rebento fruto de uma relação extraconjugal e o colocou em sua lista de filhos legítimos no inventário, concedendo-lhe direito na partilha dos bens inventariados. Nesse sentido, na medida em que os casamentos iam sendo realizados e filhos eram gerados, aumentava-se gradativamente o número de pessoas morando na localidade. Por tanto, para os habitantes do termo de Cimbres era necessário cada vez mais aumentar o número de casas e ampliar o consumo de matérias-primas para suprir as necessidades básicas de sobrevivência, como habitação, segurança, alimento.

A

morada, os móveis da casa e outros artefatos

No inventário do falecido Gonçalo Antunes Bezerra é possível perceber a descrição de sua esposa em relação a constituição física da residência do casal: “Declarou a inventariante haver na mesma propriedade Alagoinhas uma morada de casas de taipa cobertas de telha, onde mora a inventariante que avaliaram em sessenta mil reis que dá”.11 Nota-se que a inventariante fez questão de declarar que a residência possuía uma cobertura de telhas (Foto 2). Esse tipo de descrição estava relacionado com o valor material que o bem ocupava na sociedade, pois havia certa diferença entre as pessoas que moravam em casas de taipa com o teto feito de palha em relação as que habitavam a taipa coberta de telhas de barro. Para alguns estudiosos, as casas de taipa das residências rurais que possuíssem seu telhado formado por palha eram consideradas moradias de pessoas humildes. Já as casas de taipa cobertas de telhas eram caracterizadas como uma habitação de família mais abastadas (Cf. SYMANSKI, 1998; LEMOS, 2006; COLLOMP, 2009).

IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

11

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FOTO 2: Fachada atual da outrora morada de Gonçalo Antunes feita de taipa e coberta de telha no ano de 1805

Fonte: foto de Alexandre Bittencourt, 2010

Em seus relatos sobre a vida dos sertanejos nas capitanias do norte do Estado do Brasil, Koster descrevia as casas como “pequenas e construídas com barro e bastante abrigadas para o clima, e cobertas com telhas quando podem adquirir, ou geralmente com folhas de carnaúbas” (KOSTER, 2003: 208). Sendo assim, percebe-se nessa passagem do cronista que não era qualquer família que poderia ter condições de possuir uma morada coberta de telhas. Para ele, os sertanejos que viviam bem geralmente possuíam residências cobertas de telhas, já as famílias situadas em lugares desolados frequentemente habitavam choupanas feitas com cobertura de vegetação.12 De acordo com Leila Algranti, na América portuguesa, tanto no campo quanto na cidade, as casas térreas dos homens po Nos sertões do Ceará-Mirim Koster presenciou a situação desoladora de famílias que moravam em choupanas (KOSTER, 2003:131).

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bres livres do período colonial eram pequenas choupanas com até dois cômodos. Já as pessoas com algumas posses dispunham de casas com mais aposentos, normalmente enfileirados: “o da frente com janela para a rua, servindo de sala, e os demais acessíveis por um corredor lateral, que serviam de quarto de dormir, consistindo por vezes nas chamadas ‘alcovas’ sem janelas” (ALGRANTI, 1997:99). Mesmo sendo constituído de taipa, o aspecto desse tipo de moradia muitas vezes não representava a opulência dos moradores. Pelo contrário, existiam famílias que embora residissem em casas de taipa possuíam significativa quantidade de escravos, objetos de ouro e prata, terras. É o caso da inventariante Antônia Maria de Jesus, esposa do falecido Gonçalo Antunes, que declarava ter o casal entre outros bens: [...] cordão de ouro com o peso de duas oitavas [ilegível], que avaliaram a mil e quatrocentos a oitava, que comporta em três mil e [ilegível] réis [ilegível]”, [...] uma coroa de prata da Senhora da Conceição com o peso de sete oitavas [ilegível], que avaliaram cada oitava a cento e vinte réis, que comporta em novecentos réis [ilegível], [...] a crioula Caetana, casada com o pardo João, e que apresenta a idade de trinta e dois anos, que avaliaram em duzentos e oitenta mil réis. Já a morada de taipa era avaliada em sessenta mil réis que dá.13

Através desse arrolamento de bens, nota-se que o valor do imóvel chega a ser inferior ao preço de um escravo, o que demonstra o baixo valor financeiro da residência. Fábio Kühn, ao realizar estudos sobre as casas rurais do Rio Grande do Sul no período colonial, afirma que os inventários revelam que na maioria das vezes o valor da residência era bem abaixo em relação a outros tipos de bens, como escravos, ob IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

13

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jetos. Ainda segundo Fábio Kühn, geralmente as habitações coloniais possuíam um baixo valor financeiro, na qual muitas não chegavam a atingir o valor de duzentos mil réis (KÜHN, 2011). Sendo assim, as descrições dos bens de Gonçalo Antunes somadas às informações trazidas por Fábio Kühn em relação as características das casas coloniais no meio rural, corroboram a dedução da possível opulência da família Antunes Bezerra na região, mesmo que a morada dessa família possuísse baixo valor financeiro. Os moradores do termo de Cimbres também fizeram uso de matéria-prima encontrada nos espaços naturais dos sertões de Pernambuco. Além da construção de residências, eles fabricaram variados tipos de artefatos. No inventário de Dona Clara Coelho Leite dos Santos, proprietária do sítio do Pesqueiro, são descritos alguns móveis da casa como sendo feitos de matéria-prima encontrada na região como, por exemplo, uma “mesa de madeira imburana”, além de variados objetos feitos de cedro e amarelo.14 Já no sítio Alagoinhas, de Gonçalo Antunes, foi encontrado a presença de dois bancos de cedro em sua morada. Segundo o relato feito pelo cronista Henry Koster, ao percorrer os sertões da América portuguesa, o cedro é um tipo de madeira nobre encontrada na caatinga, sendo comum ser aproveitado na constituição de certas habitações dos sertões (KOSTER, 2003). Em relação a origem do nome desse vegetal, tudo indica que ele foi batizado pelos colonizadores portugueses para fazer uma alusão a uma outra árvore conhecida na Europa. Ainda hoje em algumas regiões do continente europeu existe uma árvore cuja madeira é considerada nobre e que é chamada de cedro. Segundo outro cronista, Von Martius, os colonos portugueses que chegaram ao Brasil necessitavam procurar novas plantas em lugar daquelas que faziam uso em Portugal e designavam esses novos vegetais por nomes antigos de acordo com sua analogia externa, forma, cor, cheiro, sabor.

IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

14

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Um hábito mais prolongado, e por assim dizer, familiaridade destes colonos com a natureza, não podia deixar de lhes aguçar os sentidos, para da grande abundância que lhes oferecia, irem cada vez mais escolhendo maior número de cousas análogas e aparentadas com aquelas que possuíam na Europa (MARTIUS, 1854: 21-22).

Nesse sentido, possivelmente o espécime vegetal encontrado no semiárido brasileiro recebeu o nome também de cedro por conta da boa qualidade de sua madeira para fazer artefatos. Além do cedro, outros tipos de madeira encontradas nos sertões eram usados como matéria prima para a fabricação de moradas, móveis e outros tipos de artefatos. Em suas andanças por terras pernambucanas, Koster descreveu as características de uma variedade de árvores encontradas do litoral ao sertão, cuja madeira era utilizada na elaboração dos diversos tipos de cultura material, entre elas: o pau-ferro, cujo “miolo rompe os machados”; o cedro, que possuí madeira “dura e muito usada para construção”; o mulungu, cujo “os ramos criam raízes nas terras secas” e juntamente com a aroeira “é possível fazer uma boa sebe” (KOSTER, 2003:377-381). A presença dessas vegetações na flora dos sertões de Ararobá indica que os colonizadores as utilizavam para construção de edificações, fabricação de artefatos e elaboração de alimentos e medicamentos no povoado. Em relação ao uso da habitação, sua função primária é servir de abrigo para as pessoas em suas diversas atividades. Tais atividades, relacionadas sobretudo à alimentação, trabalho, economia, práticas religiosas, descanso e lazer, são, em grande parte, realizadas com o auxílio de diversos tipos artefatos. Nesse sentido, graças aos inventários de Gonçalo Antunes e de Clara Coelho, foi possível perceber os tipos de bens existentes em suas respectivas propriedades, como por exemplo: móveis, utensílios de uso domésticos, imagens sacras, ferramentas, armas, roças. A presença dos objetos sacros proporcionou o conhecimento dos aspectos religiosos do termo de Cimbres: segundo o Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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inventário de Gonçalo Antunes Bezerra existiam na casa alguns artefatos usados para adornar imagens de santos como por exemplo: Uma coroa de prata com o peso de duas oitavas”, (...) um resplendor de prata [ilegível], com o peso de quatro oitavas, uma coroa de prata da Senhora da Conceição com o peso de sete oitavas.15

Da mesma forma são verificadas a presença de imagens na morada de Dona Clara e seu esposo: Declarou o inventariante haver ficado por falecimento da dita sua mulher em ouro lavrado uma imagem do senhor crucificado (...) uma redoma com imagem da senhora da conceição de pedra com seu cordão de ouro fino (...) outra redoma de vidro com imagem da conceição... 16

Já o inventário da esposa de Gonçalo, Antônia Maria de Jesus, também cita a presença de um “oratório que avaliaram em oito mil réis”.17 O mesmo se dá com o de Ana Clara que consta com um “oratório de médio tamanho pintado de dourado com duas imagens e uma do Senhor crucificado e outra de São Francisco das Chagas”.18 De acordo com Dorgival Gallindo, graças à imagem da Nossa Senhora da Conceição e a construção de um quarto com oratório, a casa de Gonçalo Antunes costumava, em certas épocas do ano, servir de templo para os moradores do povoado, IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

15

IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

16

IAHGP. Inventário post mortem de Antônia Maria de Jesus. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa. 64.

17

IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

18

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“onde rezavam a família e os vizinhos as suas novenas e aonde de tempos em tempos um padre celebrava o Santo Sacrifício da missa e fazia batizados e casamentos” (GALLINDO, 1931:5). Segundo Luiz Mott, famílias coloniais da América portuguesa consideradas um pouco mais abastadas eram proprietárias de um quarto especial para orações e lá instalavam um oratório. Para essa gente o oratório funcionava como uma espécie de relicário, onde eram abrigados objetos sacros abençoados por um vigário ou missionário que porventura fosse realizar uma visita à residência (MOTT, 1997:155). Em relação a necessidade da vinda de um padre para realizar missas em povoados distantes, Henry Koster já relatava esse hábito existente nas regiões onde as moradas eram muito afastadas umas das outras. Segundo ele, esses padres obteriam licenças do Bispo de Pernambuco para viajar aos locais isolados dos sertões, promovendo, com isso, cultos em localidades onde o acesso a serviços religiosos era bastante difícil por conta da grande distância entre os lugarejos e as igrejas mais próximas. Geralmente esses padres eram agraciados pelos moradores por seus serviços prestados, chegando a ganhar, quando havia homem rico que tinha orgulho de receber um sacerdote, cerca de oito a dez mil réis. Para Koster, os padres tinham sua missão no mundo: guardar e preservar o ritual religioso, através dos batizados e casamentos realizados nas distantes paragens (KOSTER 2003:139). Tudo isso ajuda a fortalecer a ideia de que provavelmente Gonçalo Antunes era um homem abastado na região, a ponto de receber um homem religioso em sua própria residência para celebrar missas. Já sobre a presença de oratórios dentro das casas coloniais, além de promover as práticas religiosas, o quarto para orações das casas brasileiras do inicio do século XIX também tinha a função de fiscalizar a habitação segundo as normas da igreja. “Eram ainda locais legítimos para uma sexualidade legalizada, consentida pelo casamento e vigiada pelas normas da Igreja como atesta a presença de oratórios nesses recintos...” (SYMANSKI, 1998:92). O casal deveria ser levado a seguir uma moral sóbria e vigilante em relação à vida conjugal. De acordo Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 55-90, 2014

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com Del Priore, foi a Igreja quem primeiro iniciou e impôs na sociedade colonial o projeto de normatização do corpo. No entanto, ela não tinha a necessidade de controlar diretamente a população para estabelecer seus princípios, “bastava que estivesse presente, e pela sua proximidade, pela ameaça, ou pelo vigor de seu prestígio inoculava seus propósitos a vida comunitária” (DEL PRIORE, 1995:38-39). Nesse sentido, o quarto com o oratório nas residências de Alagoinhas e Pesqueira, além de servir como um local para reza da família e dos vizinhos, contribuía indiretamente para a função regulatória da vida conjugal e cotidiana como um todo. A descrição dos móveis da casa no inventário ajuda ainda a compreender a composição do ambiente interno da moradia e as características da sociedade rural. Geralmente os ambientes internos e os objetos das casas coloniais no meio rural eram modestos. Mobiliários como: caixões de despejo com fechaduras, malas cobertas de couro com fechaduras, cadeiras cobertas de sola, canastras, baú, catre, lampião, candeeiro estavam presentes nas residências das famílias Antunes Bezerra-Jesus e Coelho dos Santos-Siqueira. Além dos móveis, também se registravam ferramentas e outros utensílios de uso doméstico, como “uma serra braçal usada, um serrote velho, um Enxó velho, um [ilegível] velho, um [ilegível] velho, um escopro”.19 A simplicidade dos mobiliários das moradas rurais também aparece nas descrições de outros inventários da comarca de Cimbres nos sertões pernambucano, evidenciando a raridade de espaços aconchegantes na residência:20 “[...]a precariedade do mobiliário e dos ambientes domésticos era comum a toda Colônia, salvo algumas poucas exceções como as casas de certos capitães-mores e de alguns ricos fazendeiros” (ALGRANTI, 1997:105). Dentre os objetos da casa relacionados no inventário de Gonçalo Antunes se percebe a ausência de alguns móveis como, IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

19

Como por exemplo, o Inventário de José dos Reis Lima. IAHGP. Inventário post mortem de José dos Reis Lima. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa. 40.

20

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por exemplo - mesa e cama - e a presença apenas de “duas cadeiras cobertas de sola”, “dois bancos de cedro” e “um catre em bom uso”. Outros objetos, como os talheres, também eram escassos, pois foi verificada a existência de “duas colheres de prata” e a falta de garfos.21 Entretanto, nem todas as casas de Cimbres e seus móveis tinham um padrão considerado modesto. O mesmo não pode ser dito em relação a estrutura da habitação de Dona Clara Leite dos Santos. Ela e seu esposo possuíam uma “morada de casas de sobrado em que mora que foi vista e avaliada pelos avaliadores na quantia de um conto e quatrocentos mil réis”.22 Além disso, eles possuíam variados tipos de objetos como, por exemplo, 34 cadeiras, duas mesinhas, quatro mesas feitas de imburana ou amarelo, três camas, três catres, um faqueiro de prata [e uma] dúzia de colheres, garfos e facas”, tudo isso espalhados em outras duas propriedades como “uma casa na vila de Cimbres de madeira lavrada (...) uma de taipa no sítio Calumbi”.23 Ora, ao comparar o valor das residências das duas famílias, bem como a quantidade de objetos das duas casas relatadas acima, percebe-se claramente que a morada da falecida Clara e de seu esposo era bem mais opulenta que o do casal proprietário do sítio Alagoinhas, Gonçalo e sua esposa. Para Koster, poucas residências no sertão possuíam mesas, o que levava muitas famílias a se acocorar ao redor de uma esteira onde realizavam suas refeições sem muita utilização de talheres: “facas e garfos não são muito conhecidos, e nas classes pobres, nenhum uso possuem”. Já a cama também era um objeto raro de se encontrar nas casas sertanejas. Entretanto, as famílias procuravam variadas formas para resolver o problema do descanso. Objetos como o catre e a rede serviam para substituir a falta de camas e cadeiras. “As redes usualmente IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

21

IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

22

Idem.

23

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ocupavam o lugar dos leitos, sendo mais confortáveis e mais frequentemente utilizadas como cadeiras” (KOSTER, 2003:208). O registro de um lampião na propriedade Alagoinhas e de dois candeeiros no sítio Pesqueiro sugerem como se dava a iluminação no termo de Cimbres. Após o pôr do sol esses objetos deveriam ter uma grande importância na vida doméstica e pública, pois caberia a eles a função de iluminar caminhos e residências durante a noite, facilitando a realização de alguns trabalhos por terminar, a convivência maior entre membros da família e andanças de algum transeunte. A iluminação de certas localidades poderia ser utilizada também com a finalidade de proporcionar festas e comemorações. Em Cimbres, em virtude de uma comemoração durante o ano de 1812, foi registrado um requerimento e comprovação da iluminação dos espaços da vila feita pelo sargento mor Manuel José de Siqueira: [...] sendo ordenado pelo Excelentíssimo General de Pernambuco se iluminasse esta vila por espaço de três dias pelo feliz nascimento do príncipe filho do sereníssimo Senhor Infante da Espanha Dom Pedro Carlos, com a demonstração de alegria que são do costume em ocasiões semelhantes e achando-se este senado sem forças para cumprir tão justo dever, o suplicante se encarregou de fazer a dita iluminação à custa de sua fazenda e a fez nos ditos três dias com cera branca nas casas da câmara e por todas as ruas da vila com luzes de azeite, havendo juntamente todas as três noites fogo no ar.24

De acordo com o documento acima, percebe-se a importância do uso de certos apetrechos, como as ceras brancas e o azeite, para a iluminação da noite nos edifícios públicos e nas ruas da vila. Registro de um requerimento e atestação feito pelo sargento mor Manuel José de Serqueira. Livro da Criação da Vila de Cimbres (1762-1867). p. 229.

24

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Segundo Leila Algranti, a queima do azeite, tanto de origem animal quanto vegetal, era utilizada em lampiões, castiçais, candeias e candeeiro, nas áreas rurais e urbanas. As velas de cera também eram usadas pela sociedade colonial, passando a se tornar mais presentes na iluminação da sociedade principalmente a partir do século XIX (ALGRANTI, 1997). Até o inicio do século XIX, tanto nas áreas rurais quanto urbanas do Brasil, era comum guardar vestimentas e papéis em baús, caixas ou canastras (ALGRANTI, 1997). No inventário de Gonçalo, o arrolamento dos seguintes bens “um caixão grande de despejo, com fechadura, e dobradiças”; “outro caixão de despejo, mais pequeno, com fechadura, e dobradiças”; “outro caixão”; “um baú pequeno, ainda novo”, “duas canastras, em bom uso”,25 sugere que esses objetos eram utilizados pela família do povoado de Alagoinhas para guardar diversos tipos de utensílios. O mesmo pode ser visto no inventário de Dona Clara: “um baú velho”, “uma caixa de madeira amarelo”, “um par ou jogo de malas cobertas de sola”, dentre outros. Por conta da necessidade de executar tarefas específicas como semear, talhar, cortar - uma variedade de ferramentas usadas para os mais diversos tipos de trabalho dos colonos completava os utensílios domésticos: “serra braçal usada, um serrote velho, um Enxó velho, um escopro em bom uso, um formão velho...”.26 Nota-se que o arrolamento desses bens (alguns descritos como “velho” e “usada”) sugere que a carência de certos equipamentos era comum a tal ponto de se chegar a inventariar objetos velhos e gastos. Em relação à descrição de malas cobertas de couro e de cadeiras e outros objetos cobertos de sola, nota-se que através desses artefatos a cultura do couro estava presente na vida rural dos sertões pernambucano. Os cronistas que visitaram os sertões nos primeiros anos do século XIX, Koster, Spix e Martius, descreviam em seus relatos variedades de objetos feitos de cou IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

25

Idem.

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ro. Além de servir para elaboração de móveis, o couro do gado também era utilizado para a fabricação de diversos utensílios de uso pessoal: o gibão, botas, alpargatas, chapéu (Cf. KOSTER, 2003; SPIX, MARTIUS, 1938).

O

entorno da casa: trabalhos, roçados, criações de animais

A propriedade rural e seu entorno não se caracterizavam somente como um local onde residia um grupo familiar. Boa parte abrigava também diversos tipos de roças, pastos, além de anexos como armazéns. A presença de armazéns nos bens inventariados de ambas as famílias provavelmente tinha a função de guardar os mais diversos tipos de utensílios como “uma prensa de [ilegível] algodão já velha”, “um aviamento de fazer farinha já deteriorada”,27 “uma prensa de prensar lã”,28 além de armazenar os excedentes da produção agrícola, como por exemplo, porções de milho, feijão, mandioca.29 Nos bens inventariados pertencentes aos dois casais também são descritos roçados de milho, feijão, mandioca, lavras de algodão, criação de ovelhas, cavalos e gados. Além de proporcionar informações econômicas, a listagem desses bens dá a ideia dos tipos de alimentos consumidos pelos habitantes do termo de Cimbres, pois esses espaços utilizados para agricultura e a criação de animais serviam para abastecer de alimentos os colonos. Considerados heranças indígenas, o cultivo do milho, feijão e mandioca consistia na base da alimentação dos habitantes dos sertões. Esse tipo de cultura foi assimilado pelos colonizadores e seus escravos que, uma vez se fixando nesses espa IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

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IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

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Os armazéns eram anexos das moradas, naquilo que Leila Algranti se refere como sendo encontrado de norte a sul do território brasileiro no período colonial (ALGRANTI, 1997).

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ços, passaram a cultivá-los para sua subsistência, como também para realizar trocas comerciais.30 Tidos como uma importante fonte de alimento para vida nos sertões, os roçados também estavam presentes em Cimbres. Foram declarados no inventário de Gonçalo algumas áreas de cultivo no sítio Alagoinhas: “...roçado de milho, feijão, mandioca, que poderá ter três mil covas de mandioca...”; “hum roçado de mandioca do ano passado, com duas mil covas...”. Já Clara Coelho Leite possuía lavras em três propriedades diferentes: a do sítio Pesqueiro, a do sítio Gravatá e a do sítio Calumbi. Entretanto, diferente do inventário de Gonçalo, o da esposa de Manoel de Siqueira não aparece descrito os tipos de lavra. No processamento da mandioca para o fabrico da farinha era bastante comum encontrar nas propriedades estabelecimentos esse tipo de cultura como, por exemplo, o que existia no sítio Alagoinhas, onde o proprietário possuía “um aviamento de fazer farinha”, no qual o aviamento era o mesmo que um pequeno engenho para a produção da farinha de mandioca.31 Em relação aos primórdios das plantações de mandioca no Brasil, antigas pesquisas arqueológicas restringiam o cultivo da mandioca aos grupos indígenas pré-coloniais do litoral e das zonas de mata úmida, desconsiderando que os grupos indígenas que ocupavam as regiões semiáridas também eram detentores dessa técnica. De acordo com as pesquisas, essa prática agrícola predominava nas regiões litorâneas e de matas úmidas, sendo incompatíveis nas zonas semiáridas. Entretanto, faltou um melhor conhecimento dos pesquisadores a respeito do semiárido: ele “apresenta condições muito mais propícia para o desenvolvimento deste tubérculo do que a zona úmida, sendo o índice produtivo muito maior na região semiárida” (NASCIMENTO, 1991:145). Nesse sentido, possivelmente os colonos Em relação a herança alimentar indígena e o cultivo do milho, feijão e mandioca pelos colonizadores, ver Paula Pinto e Silva (SILVA, 2005).

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Segundo Koster, o engenho de fazer farinha era formado por uma “roda, atravessada por um eixo, com uma manivela em cada lado, podendo ser removida por dois homens, um deles trabalhando em cada flanco” (KOSTER: 457).

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herdaram as técnicas do cultivo da mandioca tanto com os grupos indígenas do litoral e das matas úmidas quanto com os que habitavam os sertões. Ao percorrer os sertões no início do século XIX, Koster descreveu como simples o plantio da mandioca, sendo que o cultivo não diferia muito da antiga prática utilizada pelos povos indígenas. Ele também observou a importância da farinha para a alimentação do povo sertanejo, percebendo que em período de seca e baixa produção de mandioca alguns moradores chegavam a se deslocar do interior para o litoral a procura desse tipo de alimento para saciar a fome da família. Foi o caso de um major de Milícias, descrito como homem robusto aparentando ter 40 anos idade, que “noutros tempos gozava de todo conforto que essa região oferece aos da sua classe e riqueza, fora obrigado a fazer essa jornada, exclusivamente para salvar a vida de sua família” (KOSTER, 2003:130). Outro cronista, George Gardner, que percorreu vários trechos de caatinga no início do século XIX, comentou a presença da mandioca nos sertões, e que se constituía, juntamente com a carne seca, no forte da alimentação dos habitantes. Na descrição do cronista, a farinha era consumida de duas maneiras: seca ou cozida (GARDNER, 1959). Já o milho, desde os primeiros séculos de colonização, foi adotado como alimento secundário pelos colonizadores e era tratado como inferior e pouco nutritivo, sendo mais utilizado na alimentação dos escravos e dos animais. Depois de seco, era pilado em farinha grossa e usava-se seu produto resultante - conhecido como fubá e xerém - no preparo de angus ou mingaus.32 No século XIX, Pereira da Costa descrevia o fubá como “polvilho de milho, do arroz, muito usado na culinária”. Já o xerém era a “parte grossa do milho que ficava na peneira” (COSTA, 1976:369, 795). Durante esse período o milho ainda continuava sendo muito usado como ração de animais. Em suas andanças pela caatinga, Koster descreveu que, por não haver Em relação ao uso do milho na alimentação da sociedade colonial ver Mary Del Priore, Renato Venâncio e Paula Silva (DEL PRIORE, VENÂNCIO, 2006; SILVA, 2005).

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capim, o milho era destinado como ração aos cavalos que os comiam ensopado na água para facilitar a mastigação. Já na alimentação humana o milho era pouco consumido: “surpreendeu-me verificar o limitado emprego do milho como mantimento, embora algumas vezes usado” (KOSTER, 2003:219). Sobre o cultivo de algodão ele também era manifestado em Alagoinhas: “Declarou a inventariante haver uma pequena lavra de algodão (...)”. Provavelmente, depois de colhido ele era manufaturado em certos tipos de artefatos como “um engenho de descaroçar algodão por completo, em bom uso, que avaliarão em seis mil reis” e “uma prensa de [ilegível] algodão”.33 De acordo com Koster, as plantações de algodão passaram a ocupar cada vez mais os espaços do interior pernambucano, pois estes eram mais propícios para o cultivo devido ao solo árido da região e a distância do litoral. Nesses locais a vegetação nativa era cortada, queimada e depois eram feitas covas na terra, “de forma quadrangular, numa distância de seis pés uns dos outros”, onde eram colocados, “comumente, seis sementes em cada escavação”. Após nove ou dez meses de plantado, o algodão era colhido e posto na máquina de descaroçar composta por dois cilindros que “são dispostos a movimentarem-se em sentido contrário, de forma que o algodão é posto em um deles e levado para o outro, mas as sementes ficam porque a abertura entre os cilindros não é bastante larga para facilitar-lhe a passagem” (KOSTER, 2003:451-452). Nesse caso, a máquina de descaroçar algodão descrita por Koster possivelmente era o equivalente ao engenho de descaroçar algodão presente no inventário de Gonçalo Antunes. Ainda segundo o cronista, depois desse tipo de operação restavam algumas partículas de semente quebradas presas nas fibras do algodão e que deviam ser retiradas. O problema era que para essas partículas serem removidas batia-se no algodão com “paus grossos, processo que muito danifica a fibra, rebentando-a e como o valor da procura para o fabricante IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

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depende sobretudo do comprimento da fibra, tudo devia ser feito para esse processo ser substituído”.34 Ora, pelo relato de Koster, o preço do produto dependia do bom comprimento da fibra do algodão, sendo assim, nada melhor do que utilizar uma prensa para comprimir o algodão valorizando-o mais ainda, algo que, como mostra o inventário, era utilizado pelos habitantes do povoado de Alagoinhas. Além disso, no povoado de Alagoinhas o algodão era plantado juntamente com o milho: “Declarou a inventariante haver uma pequena lavra de algodão, constando ainda um roçado de milho do ano passado (...)”.35 Koster afirmava em seus relatos que nos sertões “o milho é comumente encontrado plantado entre os algodoeiros” (KOSTER, 2003:451). Nesse sentido, analisando os trechos dos inventários e comparando-os com os relatos do cronista, percebeu-se que as formas de cultivo e produção do algodão em Cimbres pouco diferem das outras áreas dos sertões do norte do Brasil. Em boa parte dos sertões das Capitanias do Norte do Estado do Brasil, por conta da pobreza de determinados solos, nem todas as terras se prestavam para a agricultura, sendo algumas delas aproveitadas para a criação do gado. No século XIX, Koster já relatava que os sertanejos que cuidavam do gado eram chamados de vaqueiros e seu trabalho era tido como pesado, exigindo coragem e grande força física nas atividades. Segundo o cronista as vacas eram tangidas de toda parte, reunidas e colocadas para dentro de currais. Os bezerros não apresentavam dificuldades na sua captura, sendo marcados na coxa com ferro incandescente como marca privativa de seu dono. Já a marcação do boi era considerada um trabalho mais perigoso, chegando o vaqueiro a ser obrigado a machucar o animal com uma longa vara (KOSTER, 2003:451). Além de fornecer o couro para confecção de objetos, o gado também proporcionava alimentos para os habitantes dos sertões. Com isso, os moradores da região contavam para seu Idem.

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Idem.

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sustento alimentos como carne seca, leite, queijo, coalhada. Gardner relatou que nos sertões, o consumo do leite e seus derivados eram mais abundantes nas estações chuvosas, onde os habitantes faziam uso do leite para fazer queijo e coalhada adoçada com rapadura (GARDNER, 1959). Assim como outras localidades dos sertões de Pernambuco, os habitantes de Alagoinhas e Pesqueira faziam uso da criação de gado em suas terras, como nos mostra os títulos de gado vacum de Clara Coelho e Gonçalo Antunes: “Declarou a inventariante haver quatro vacas (...), dois garrotes (...), um novilho (...), um garrote (...), três bezerros”.36 Ao realizarmos a contagem, constatamos que o gado de Gonçalo perfazia um total de 11 cabeças. Apesar da grande extensão de sua propriedade, devido à quantidade de cabeças de gado pertencentes ao casal Gonçalo Antunes e Antonia Maria de Jesus, era provável que sessa família fizesse uso das terras para uma criação somente de subsistência e de pequenas trocas comerciais. Eles dificilmente utilizavam o gado para comercializar em larga escala leite ou outros tipos de produtos derivados. Isso porque, segundo Koster, as grandes fazendas de gado abarcavam cerca de milhares de bezerros anuais e eram “evidentemente lugares aceitáveis e lucrativos” (KOSTER, 2003:213-218). Já Clara Coelho e Manoel Siqueira possuíam descritos no inventário “duas mil cabeças de gado vacum”.37 Se nos apegarmos ao acima citado relato de Koster, podemos aferir que esse casal, diferente do de Alagoinhas, possuía criações propícias a realizar vultosos negócios. Em relação aos trabalhos realizados nos sítios e povoados do termo de Cimbres, percebeu-se que a mão-de-obra escrava foi bastante utilizada no desenvolvimento de variadas formas de atividades. Na propriedade do casal Clara Coelho e Manoel IAHGP. Inventário post mortem de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa 61.

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IAHGP. Inventário post mortem de Clara Coelho Leite dos Santos, 1814. Acervo Orlando Cavalcanti, Caixa. 107.

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de Siqueira, por exemplo, encontrava-se “as benfeitorias de armazéns [e as] senzalas da morada de escravos no mesmo sítio do Pesqueiro, tudo de taipa e madeira bruta”. Segundo os cronistas Koster e Martius, nos sertões era comum a utilização do trabalho escravo para cuidar da criação de gado e das plantações de algodão.38 De acordo com Leila Algranti, os escravos das moradas brasileiras realizavam uma série de atividades no dia a dia que visavam o trabalho de limpeza da casa e seu entorno, alimentação, construção e fabricação de artefatos e utensílios. A alimentação exigia cuidados com os animais, roças de subsistência e preparação de comidas que seriam utilizadas nas refeições dos colonos. A fabricação de artefatos e utensílios culminava na elaboração de cestarias, cerâmicas, cujas técnicas os colonos aproveitaram dos grupos indígenas. A presença de escravos, como também de criações de gados e lavras de algodão nos inventários sugere que também eram usados escravos nas plantações, no trato dos animais e nos diversos afazeres domésticos das famílias da região. Aliás, na sociedade dos sertões, segundo Martius, cabia aos escravos também a função de cozer o barro e transformá-lo em ladrilhos, telhas côncavas (MARTIUS, 1854). Sendo assim, provavelmente as casas, roças, pastos e diversos tipos de utensílios dos habitantes de Alagoinhas e Pesqueira foram produzidos com o auxílio da mão-de-obra escrava. A declaração de títulos de escravos nos inventários propiciou notar a quantidade de cativos que ambos os casais possuíam e as diversas características relacionadas a eles: gênero, procedência, faixa etária, estado civil. Em relação à quantidade de escravos, o casal Clara Coelho e Manoel de Siqueira possuíam uma significativa soma de 132 indivíduos. Já Gonçalo e Antonia eram proprietários de sete cativos. Nas viagens promovidas aos sertões, Koster e Martius visitaram diversas fazendas de gado e algodão, onde presenciaram o uso do trabalho escravo nesses locais (KOSTER, 2003; SPIX, MARTIUS, 1938).

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Sobre a procedência dos escravos pertencentes aos dois casais percebe-se que muitos vieram dos portos de Angola, na África. É o caso de “José de Angola, casado, que apresenta a idade de cinquenta anos, que avaliaram em trezentos mil reis” e “Joaquina, Angola, solteira, que apresenta a idade de cinquenta e dois anos, que avaliarão em duzentos e cinquenta mil reis”, pertencentes a Gonçalo Antunes e Antonia Maria. Já Clara e Manoel de Siqueira possuíam, dentre vários, “a negra de gentio de Angola de nome Luzia de idade que apresenta ter dezoito anos, vista e avaliada pelos avaliadores na quantia de cento e vinte e cinco mil reis”.39 Aos olhos de Koster, para a sociedade dos oitocentos, os negros procedentes de Angola para o Brasil eram considerados os melhores escravos, pois eram “comumente dóceis, e se podem perfeitamente encarregar dos serviços da casa e do estábulo sem que deem muito cuidados, e alguns demonstram grande dedicação, fidelidade e honestidade” (KOSTER, 2003:510). Apesar dos relatos de maus tratos promovidos por certos proprietários contra seus escravos na sociedade da América portuguesa, existiram senhores que reconheceram a importância do seu cativo no momento de preparar o testamento, dando-lhes alforria. É o caso do falecido Gonçalo Antunes, que após sua morte havia determinado a alforria do pardo Francisco e do preto Joaquim de Angola pelos seus mais de quarenta anos de serviços prestados “como fiéis escravos, sem que em todo este tempo deixassem de reconhecerem as obrigações que lhes competia como escravos...” e por “não demonstrando por tão longo tempo a menor desafeição a seus senhores”.40 Existe uma ressalva em relação a uma comparação entre os valores e idades dos citados escravos dos dois casais proprietários. Apesar de ter praticamente metade da idade dos dois escravos pertencentes ao casal Gonçalo e Antonia, a escrava Luzia, de propriedade do casal Clara e Manoel, possuía valor mais baixo que os dois primeiros. Geralmente, naquela época, escravos adultos mais velhos tinham seu valor reduzido frente aos adultos mais novos, o que não aconteceu ao se comparar os exemplos acima. Estudos futuros podem contribuir para uma melhor compreensão dessa exceção.

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IAHGP. Testamento de Gonçalo Antunes Bezerra, 1835. Acervo Orlando Cavalcanti. Caixa. 61.

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Em relação ao preto Joaquim, os trechos do documento acima se associam a visão de Koster sobre as características de fidelidade, honestidade e dedicação dos negros de Angola. Segundo o cronista, por conta dessas qualidades, eles “são os que mais se esforçam para obter sua liberdade” (KOSTER, 2003:510). Se o proprietário de escravos de Alagoinhas acreditava no discurso vigente da época de fidelidade e honestidade em relação aos negros procedentes de Angola, é difícil dizer, o fato é que ele alega dar a liberdade ao escravo por conta da dedicação e dos serviços prestados por seu escravo e manda alforriá-lo. Ao que parece, além da fidelidade e dos bons serviços desenvolvidos, outro fator também contribuiu para a alforria do escravo: o tempo de trabalho junto à família, pois Joaquim possuía “a idade de sessenta anos”. Sendo assim, ao aferirmos sobre os bens descritos nos inventários post-mortem e analisar a cultura material deixada pelas duas famílias coloniais moradoras de Alagoinhas e Pesqueira foi possível ter uma melhor percepção dos usos e transformações dos espaços, das formas de moradia e da vida em família desenvolvida em Cimbres, nos sertões de Ararobá. Também ao compararmos a posse de bens materiais entre as duas famílias, notamos que a família constituída pelo casal Clara Coelho Leite dos Santos e pelo Sargento mor Manoel José de Siqueira, era mais abastada do que a família de Gonçalo Antunes Bezerra e Antonia Maria de Jesus. Entretanto, mesmo tendo um padrão financeiro menor que o da família de Clara e Manoel, a família de Gonçalo e Antonia também fazia parte da elite colonial de Cimbres, fato que é comprovado pela condição econômico-financeira suficiente para legar bens materiais (lavras, objetos de ouro, escravos, morada coberta de telhas) a seus herdeiros.

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Referências Fontes

manuscritas

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LAPEH – UFPE Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste governo: a saber, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, o seguinte. Freguesias de que se compõem as cinco Comarcas Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro. A.H.U., PE, p.a., Caixa 73, 25 de setembro de 1782. Mapa que mostra o número dos habitantes das quatro capitanias deste governo: Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, divididas nas cinco Comarcas Eclesiásticas. Martinho de Melo e Castro. A.H.U., PE, p.a., Caixa 88, 25 de setembro de 1788.

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O HOSPITAL PEDRO II DO RECIFE Um resgate histórico e o tombamento estadual1

Geraldo José Marques Pereira2 Resumo: O artigo faz uma retrospectiva do hospital como instituição de cura. Uma revisão, também, do que foi um morredouro. Aponta o incêndio do Hôtel Dieu como o divisor de águas, permitindo uma mudança no enfoque. Foi Jacques Tenon o responsável pela transformação da tipologia nosocomial. O Hospital Pedro II insere-se nessa perspectiva, sendo construído no Recife a partir de um projeto de José Mamede Alves Ferreira. Peculiaridade interessante foi o baile que se ofereceu ao Imperador Pedro II, com o objetivo de se angariar fundos, de cujo evento há informações em seu diário. Inaugurado em 10 de março de 1861, passou a funcionar de logo. É o primeiro prédio construído na cidade com essa finalidade, seguindo o estilo pavilhonar. Dessa forma, foi tombado pelo Conselho Estadual de Cultura, em 2008. Palavras–chave: Arquitetura Hospitalar, Hospital Pedro II (Recife), História da Medicina, Tombamento Estadual. Pedro II Hospital in Recife: a historical survey and the listing of a monument Abstract: This article looks back to the hospital history as a healing place, also reviewing its image of a death or unhealthy place. It points out the fire at Hôtel Dieu as a hallmark for a new perspective. It was Jacques Tenon

Artigo recebido em maio de 2014 e aprovado para publicação em junho de 2014. Texto produzido a partir do parecer de tombamento do bem histórico, aprovado em sessão do pleno do Conselho Estadual de Cultura, em reunião de 25 de março de 2008 e homologado por ato do Senhor Governador do Estado de Pernambuco, Eduardo Campos, através do decreto 31.573.

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Geraldo José Marques Pereira é médico, Conselheiro do Conselho Estadual de Cultura, membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e da Academia Pernambucana de Letras.

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the responsible for the nosocomial typology change. Pedro II Hospital was built with this vision, designed by José Mamede Alves Ferreira. An interesting fact was the ball that was offered for the Emperor Pedro II, aiming to gather enough money, which was later informed in his diary. Opened on Mach 10th 1861, the hospital started immediately its activities and was the first building in Recife with this purpose, following the pavilion style. In 2008, the Hospital was listed as a Cultural Heritage Monument by the State Council of Culture. Keywords: Hospital architecture, Pedro II Hospital (Recife), History of Medicine, Cultural State Heritage.

O hospital como organização de destinação social existe desde a Grécia de Asclépio e a Roma Antiga – a Roma de Esculápio –, quando várias instituições dedicadas ao deus dos saberes da cura acolhiam os pobres, os velhos e os enfermos. Na China e no Ceilão, bem como no Egito de antes de Cristo, há referências, de igual forma, à existência de hospitais (BRAGA, 2000). Os templos de Saturno, como eram chamados no Egito, serviram de berço ao ensino médico (CAMPOS, 1943). Nesses lugares há alusão a hospedarias, hospitais e hospícios – todos com a mesma raiz latina –, nos quais certas pessoas consideradas pias patrocinavam os cuidados ou se encarregavam elas próprias dos peregrinos, dos insanos, das crianças, dos pedintes e dos doentes (BRAGA, 2000). Os hospitais serviam de abrigos para os enfermos, os estropiados e os miseráveis e de albergue para os peregrinos, acolhendo, sempre em primeiro lugar, os carentes (MAGALHÃES, 2005). Na Idade Média, entretanto, no mundo islâmico, particularmente, existiam 34 hospitais com orientação peculiar, bem distinta da que vinha se exercitando, isto é com o objetivo também de uma prática terapêutica, além das destinações sagradas ligadas à salvação da alma. A literatura mostra que o Sagrado Alcorão serviu de fonte à prática da hipocrática arte, a partir das tradições proféticas que estabeleciam os princípios capazes de valorizarem o conhecimento e a busca da cura para as moléstias. Assim, algumas recomendações para a atenção à saúde integravam esse elenco de normas; recomendações que se traduziam em dietas a Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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serem seguidas, remédios naturais a serem tomados e tratamentos simples para a dor de cabeça, a febre, a dor de garganta, a conjuntivite e outras moléstias mais (RAGIP, 2000). Advertências também para se evitar o contato com pacientes já infectados por doenças consideradas transmissíveis, como a lepra, por exemplo, abstendo-se, então, a pessoa de frequentar áreas sujeitas a epidemias ou pragas. Mas, todo o arsenal terapêutico voltado para o corpo não dispensava as preces e a recitação de versos do Alcorão, constituindo-se, assim, na medicina espiritual dos mulçumanos. É interessante entender que os islâmicos prezam, particularmente, o hábito da leitura, tanto é que primeira palavra do Alcorão, revelada ao profeta Muhammad foi: “Lê” (SURATA 96:1). E mais, estão bem explicitadas nesses ensinamentos da religião a importância e a valia do conhecimento, pelo menos a tirar pela citação a seguir: “Poderão, acaso, equiparar-se os sábios com os insipientes?” (SURATA 39:9; RAGIP, 2000). Os hospitais, em geral, eram estruturas diferentes das atuais, com características mais estáticas e menos dinâmicas, asilos ou casas de recolhimento, como se vem comentando, voltadas mais à salvação das almas, do que propriamente consagradas à cura das injúrias orgânicas (BRAGA, 2000; OUYAMA, 2006). Isso se estendeu até o século XVIII na Europa, mas no Brasil essa forma de reclusão para os loucos, os indigentes e os expostos chegou aos dias dos anos 1800 e esteve presente até começos do século XX, senão até meados do mesmo período, em alguns lugares do País. (SANTOS FILHO, 1991; MIRANDA, 2004; PEREIRA, 2007). Somente aos poucos a instituição hospitalar foi assumindo um papel diferente no contexto nacional, contando com a presença regular de médicos e de outros profissionais e servindo, prioritariamente, à assistência médica; lugar voltado à prática da clínica e da cirurgia, no qual o objetivo sempre é o da cura. O hospital era um lugar até então voltado aos pobres e um ambiente onde se esperava a morte. Um morredouro! (FOUCAULT, 1979; MENEZES, 2003). As travessias de Portugal ao Brasil eram longas, demoradas. Basta dizer que Mem de Sá passou 8 meses para chegar à BaRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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hia. Os viajantes – passageiros e tripulantes – desembarcavam, com muita frequência, enfermos, especialmente com doenças carenciais, sobretudo o escorbuto. Por isso, foi recomendado que se dispusesse nos portos de enfermarias ou mesmo de hospitais, embora alguns navios contassem com nosocômios à bordo, como sucedia com as armadas portuguesa e espanhola deslocadas para enfrentar o invasor batavo. (SANTOS FILHO, 1991). Os jesuítas contribuíram, sobremodo, para o enfrentamento das doenças no Brasil, com a instalação de enfermarias nas aldeias e o envolvimento sempre de um irmão leigo – o irmão enfermeiro –, o qual, particularmente, cuidava dos enfermos. Ainda hoje, nas comunidades jesuítas do Brasil, existe a figura do irmão enfermeiro, conforme diz o Pe. Ferdinando Azevedo, em comunicação pessoal. A iniciativa de fundar as conhecidas Santas Casas de Misericórdia, muitas vezes, partiu desses discípulos de Santo Inácio, como foi o caso da instituição do Rio de Janeiro, fruto da ação de José de Anchieta ou da ação empreendedora do Padre Antônio Vieira, que no Maranhão – em São Luiz – instalou a Misericórdia (SANTOS FILHO, 1991). Dessa maneira, esses organismos, no mais das vezes, vieram em socorro – pode-se dizer –, às ações dos jesuítas, os quais, isoladamente, não davam conta da quantidade de doentes que precisavam acudir, notadamente durante as epidemias. Assim, os sacerdotes da Companhia de Jesus deram continuidade à obra da Rainha Leonor de Lencastre (SANTOS FILHO, 1991). Há dúvidas sobre a criação da primeira Santa Casa de Misericórdia no Brasil, se a de Olinda, cujo referencial é o de 1539 (PEREIRA DA COSTA, 1951) ou se a de Santos, cuja referência é o ano de 1547. Sucede que é de Serafim Leite a informação de que até o ano 1549 nada havia na cidade portuária de São Paulo. O historiador jesuíta chega a citar Leonardo Nunes, que faz alusão ao fato de que tendo chegado em 1550 à então “Todos os Santos”, soube que não havia ali um hospital (SERAFIM LEITE, 1938-50). Há referências, também, a dois hospitais no Recife no século XVII, durante a ocupação holandesa, numa iniciativa do conde Maurício de Nassau. Uma alusão a pelo menos um hospital na área urbana do Recife, em trabalho de Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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Heloisa Meireles Gesteira: “[...] Marcgrave realizou mais viagens pelo interior do continente do que Piso, que era médico e concentrou suas atividades no Recife, trabalhando num hospital dentro do núcleo urbano” (GESTEIRA, 2004). A citação literal de parte de um documento holandês dá conta do esforço em se instalar estabelecimento assim: “[...] fez necessária a fundação de um segundo hospital” (WÄTJEN, 1921). O chamado “Compromisso da Irmandade”, notadamente aquele das ainda hoje intituladas Santas Casas de Misericórdia, recomendava como obrigação da corporação os cuidados com todo pobre que fosse disso necessitado e na eventualidade do falecimento, que se realizasse um sepultamento digno e cristão. O hospital de caridade, então, era visto como o lugar para o qual eram levados os doentes carentes, para que a morte os levasse em paz, sem que se cogitasse, propriamente, da cura ou de algum procedimento terapêutico capaz de minorar a dor e o padecer. Era, assim, uma antessala da morte! “Dizia-se, portanto, que o hospital era um morredouro, mas num sentido positivo, de lugar onde o pobre encontraria a ‘Boa Morte’, ou seja, a morte assistida pela piedade e pela benemerência” (OUYAMA, 2006). Outros autores trataram da temática, isto é, da instituição hospitalar encarada como morredouro e assim discutem a questão e o enfoque que se deu até o século XVII (BRAGA, 2000; MENEZES, 2003). A partir do século XVIII o hospital assume, também, um lugar onde se pode observar mais atentamente o paciente, possibilitando tirar conclusões a partir dos sinais e dos sintomas; lugar, sobretudo, no qual o saber vai sendo acumulado e assim transferido. A pesquisa torna-se possível graças à investigação dos casos em particular, sobretudo pela correlação entre os diversos achados e os vários enfermos. A partir desse século, como já se comentou, o hospital passa a ter uma destinação especificamente voltada para a cura das doenças e dos doentes. A instituição alcança a individualidade necessária e requerida, sendo objeto de comparações de natureza arquitetônica, como se discute adiante e mais, passa-se a trabalhar os índices de mortalidade e aqueles de resolutividade. Os médicos e as Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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enfermeiras começam a se preocupar com a trajetória seguida pelos lençóis e pelas roupas em geral e a chamada infecção hospitalar alcança um nível de inquietação tal, que é objeto de estudos e de apuração cientifica sistematizada (BRAGA, 2000; OUYAMA, 2006; TOLEDO, 2002; Idem, 2006). A ocorrência de guerras seguidas e sofridas estimulou a prática da cirurgia e serviu para demonstrar a importância de profissionais treinados nos cuidados com os feridos, prontos para intervenções invasivas diante da necessidade bem estabelecida e da indicação bem definida. É quando se inicia um pensar terapêutico, cujo objetivo passa a ser o corpo doente, mais do que a alma ameaçada. Comente-se, todavia, a título apenas de se ilustrar a discussão, que no Brasil o desenvolvimento da assistência e os avanços da medicina não acompanharam o progresso no mundo, senão a partir do século XIX. Quiçá a posteriori! Os hospitais do País tiveram, inicialmente, dois objetivos específicos, aquele de natureza militar, voltado à recuperação dos soldados feridos ou doentes e a dos leprosários, nos quais eram isolados os morféticos que tanto amedrontavam os cidadãos dos oitocentos. Acrescente-se a essas formas de atender aos necessitados, a benemerência das irmandades e a filantropia de alguns grupos, como a dos hospitais construídos por portugueses (CAMPOS, 1943; MIRANDA, 2004). Contudo, o conceito de hospital moderno ou de hospital terapêutico nasceu a partir de um episódio trágico, o grande incêndio do Hôtel-Dieu, registrado em 1772, ocorrência depois da qual se travou uma abrangente discussão a propósito das iniciativas a serem adotadas, objetivando resgatar a instituição, considerando a importância que tinha para a cidade de Paris, haja vista servir a centenas de pacientes. Eram consideradas as seguintes opções a serem adotadas: a restauração e a reforma do antigo prédio, a divisão do edifício em pequenos hospitais ou ainda, a transferência para outro local, fora do ambiente urbano. Escolheu-se a reconstrução da edificação original em 1781, embora tenha havido uma proposta do arquiteto Bernard Poyet, no sentido de se edificar um prédio circular na Ilha dos Cisnes, a partir de um documento em que se opunha à restauRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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ração em causa: Sur la Nécessité de Transférer et de Reconstruire l’Hôtel-Dieu (SILVA, 2001; TOLEDO, 2006). Em 1785, diante da proposta de Poyet, que não aceitava solução diferente para a velha casa francesa, o Barão de Breteuil, Secretário da Casa Real de Luiz XVI, propôs à Academia Real de Ciências fosse nomeada uma Comissão de alto nível para solucionar definitivamente a questão. Desse colegiado participavam personalidades do porte de Lavoisier, Laplace, Bailly, Coulon, Tillet, Lassone, Daubenton e d’Arcel, além de Jacques René Tenon. A Comissão rejeitou a proposta de Poyet, mas patrocinou um amplo e prolongado debate sobre a assistência hospitalar na França. De forma semelhante, mesmo que isoladamente, John Howard, filantropo inglês, dedicou-se à temática, viajando pela Europa e visitando prisões, abrigos para mendigos, hospitais, asilos e leprosários. Publicou, inclusive, um ensaio sob o título: État des prisons, des hôpitaux et des maisons de force (CAMPOS, 1944; SILVA, 2001; OUYAMA, 2006). Coube, todavia, ao médico Jacques René Tenon reunir os diversos relatórios que produziu a propósito dos vários hospitais franceses e estrangeiros, inclusive ingleses, selecionados para a visitação e para a pesquisa, publicando, então, o seu próprio documento – Mémoires sur les Hôpitaux de Paris –, em 1778, sendo a última parte dessas memórias dedicada ao que deveria ser o novo Hôtel-Dieu. O autor passou a considerar certos detalhes que não eram objeto de preocupação anterior, tais como a funcionalidade da construção, a ventilação, que tanto favorecia e favorece a salubridade e a iluminação, tida também como fonte de saúde e de recuperação dos doentes. Assim sendo, Tenon sugeriu hospitais que fossem divididos em pavilhões, os quais estariam separados uns dos outros por pátios ou por jardins internos, contando com três andares, preferentemente (TOLEDO, 2002; PEREIRA, 2008 a; Idem, 2008 b). Ambientes distribuídos por sexo e por doenças, como forma de se evitar o contágio e especialmente o cruzamento de infecções no recinto das enfermarias, com a recomendação expressa de se ter um paciente por leito, haja vista a frequência com que dois indivíduos dividiam o mesmo leito hospitaRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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lar. O autor, médico de origem, reformulou o hospital como tipologia propriamente e como instituição, aproximando, dessa maneira, a arquitetura da ciência de Hipócrates. Criava, então, um estilo peculiar, usado durante muitos anos no Brasil e noutros países: o estilo pavilhonar. Isto é, aquele que se caracteriza pela presença de pavilhões e pela construção que se espalha no terreno, ocupando o espaço no sentido mais horizontal que vertical. Modernamente, as instituições, sobretudo em função da carência de espaço, adotaram um estilo mais vertical – o monobloco – e menos horizontal. Vale salientar, entretanto, que o Hospital das Clínicas, da Universidade Federal de Pernambuco, cujo projeto é de Mário Russo, arquiteto italiano que morou no Recife por alguns anos, é misto, mesclando as duas formas (CABRAL, 2006). O Hospital Lariboisière, de 1854, em Paris, é considerado o primeiro empreendimento nosocomial edificado sob as normas de Tenon. O prédio seguiu rigorosamente as regras estabelecidas por aquele médico que modificou a ciência arquitetônica, na perspectiva das propostas e dos princípios que daí por diante nortearam os projetos hospitalares. Normas, em parte já comentadas, e claramente respeitadas no projeto do Lariboisière, que recomendam sejam os prédios divididos em blocos de até três pavimentos, os quais devem convergir para um pátio central retangular, um grande e belo jardim, no caso em particular. Pavilhões separados uns dos outros por um pátio interno, facilitando a iluminação e permitindo a ventilação ou concorrendo para a convivência de funcionários e pacientes. Tudo como fora anteriormente recomendado. Passou-se, então, a enxergar a instituição sob uma ótica diferente, aquela da cura, das intervenções terapêuticas ou cirúrgicas. Afastava-se dessa maneira a ideia antiga, quase medieval ainda, de que o ambiente hospitalar era um lugar apropriado à morte, onde os doentes deveriam esperar o próprio óbito: um morredouro, como já discutido. Foi de Tenon, ainda, a iniciativa de recomendar adotassem os hospitais gestores médicos, haja vista a finalidade da instituição: curar doentes. Há uma similaridade grande entre o projeto arquitetônico do Lariboisière e Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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o do Hospital Pedro II, desde o desenho da planta baixa aos arcos romanos e à disposição das enfermarias. Mas essas ideias que afloravam, em tudo modernas, porque inovadoras, levantadas por Jacques René Tenon, continuam sendo perseguidas na atualidade pelos profissionais de agora: arquitetos, engenheiros e médicos. Dessa forma, Tereza Cristina Marques Dalla insiste, em pleno século XXI, com a humanização do ambiente hospitalar quando escreveu a dissertação de mestrado intitulada: “Estudo da qualidade do ambiente hospitalar, como contribuição na recuperação de pacientes”. De tal forma tem interesse no aprimoramento da qualidade de vida do paciente e de outros que transitam nas instituições, que começa as considerações de contextualização com uma citação de um dos maiores poetas da língua portuguesa: Fernando Pessoa. Diz o poeta: “O universo não é uma ideia minha. A minha ideia do universo é que é ideia minha”. Sendo assim, conclama a sociedade como um todo ao aprimoramento das condições de vida e de sobrevida no Universo. Defende, então, um desenho da ambiência que se vem estudando, capaz de oferecer uma percepção positiva e, sobretudo, receptiva a doentes, acompanhantes, médicos e pessoal da enfermagem ou de outras categorias profissionais (DALLA, 2003). No que toca ao Brasil, a literatura especializada refere-se a um repetido descaso das autoridades portuguesas e brasileiras com a assistência à saúde, sem políticas para o setor que trouxessem resultados satisfatórios. Mesmo assim, a iniciativa de alguns, especialmente daqueles ligados à religião católica, fez instalar hospitais em algumas cidades, relatando-se, como já foi aludido, como a primeira dessas instituições a Santa Casa de Olinda, de 1539, hoje extinta (PEREIRA DA COSTA, 1951; KHOURY, 2004). Pioneirismo, aliás, disputado pela Santa Casa de Misericórdia de Santos, fundada em 1543, ainda funcionando nos dias que correm. Descaso, também, com a educação do povo, haja vista o atraso com que foi criado o ensino superior no País, sendo que a primeira universidade – a Universidade do Brasil – só no século XX foi fundada, no centenário da independência, assim mesmo com a finalidade de se oferecer um título honorífico a um Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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soberano europeu. Ao contrário dos portugueses, os espanhóis dedicaram um interesse diferenciado à hoje chamada atenção à saúde e em 1628 a América espanhola contava com 89 hospitais, destacando-se 18 dessas unidades no Peru, em especial o Hospital Real de Santo André, com 500 leitos e o Grande Hospital de Cuzco, fundado em 1555, com 300 vagas. Tardiamente, porém, os portugueses levaram em consideração a importância das doenças trazidas pelos imigrantes, o custo da falta de higiene da população em jogar nas praias e nas ruas os excrementos e a promiscuidade com os animais, estimulando, então, a criação de estabelecimentos destinados ao recolhimento das pessoas enfermas. Antes disso eram poucas e insuficientes as instituições com essa destinação especifica. Além do que algumas das medidas sanitárias implantadas não deram certo, à semelhança da vacinação antivariólica de 1804, que não obteve o êxito esperado, afora a falta de um programa de vacinação para a população, nunca implementado. Parece oportuno, também, lembrar que as medidas de saúde pública eram de responsabilidade dos proprietários das moradias e menos do governo. É num cenário diferente, de maior atenção às pessoas e de um cuidado redobrado com a população necessitada, que surge o Hospital Pedro II, cuja pedra fundamental foi assentada em 25 de março de 1847, tendo sido inaugurado a 10 de março de 1861, um domingo, quatorze anos depois da solenidade inicial, em tudo, muito pomposa. É a primeira construção no Recife com uma destinação específica na área de saúde. Construção, aliás, pioneira, também, no estilo pavilhonar, durante muito tempo adotado em vários hospitais da Europa e das Américas. Estilo que serviu de modelo às novas instituições construídas a seguir, no Estado e no País. Edificação cujo projeto nasceu das mãos de um engenheiro pernambucano, José Mamede Alves Ferreira, autor também de outros importantes prédios no Recife, como o Ginásio Pernambucano, a Casa de Detenção e o Cemitério de Santo Amaro. Mamede estudou em Lisboa e em Paris, circulando pela Europa e se inteirando das mudanças mais recentes nas concepções prediais em geral, mas no enfoque hospitalar também. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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O edifício está situado no lugar conhecido como Coelhos, tendo sido elevado a 1,25 metros do nível do terreno. Conta com uma fachada de 115 metros e uma altura de quase 20 metros, o que traz imponência ao prédio. Dispõe de um pátio central medindo 39 metros de largura e 45,50 metros de fundo. Para este ambiente convergem os pavilhões e as respectivas passagens de circulação da instituição. A aludida área está contida por uma galeria de 2,85 metros de vão, ventilada e iluminada por arcadas romanas no pavimento térreo e por janelas envidraçadas nos andares superiores. Concluída a construção, conforme previsto no projeto, seriam 56 arcadas ao todo, em dez blocos de enfermarias, cinco em cada lado do terreno, os da direita reservados às mulheres e os da esquerda para os homens. Blocos, como aludido, que convergem para o pátio central, separados por jardins internos. Sucede que não se terminou o prédio! Quando da inauguração existiam três desses blocos terminados, apenas, sendo dois deles à esquerda e mais duas enfermarias no pavimento térreo. Em 1906 houve uma expansão que concluiu o segundo bloco da direita e acrescentou mais uma enfermaria no térreo do mesmo lado. Trata-se, então, de uma edificação com três pavimentos, em cujos pavilhões estão dispostas as enfermarias, todas dedicadas a algum santo ou santa da Igreja, a semelhança da Enfermaria Nossa Senhora do Bom Conselho. Enfermaria em cujas dependências trabalhou o autor do texto, no terceiro andar do prédio, à direita de quem chega e tem acesso ao hospital. Ali funcionava a enfermaria de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP), sob a tutela do Prof. Ruy João Marques, ilustre médico e humanista pernambucano. Na fachada principal o grande pórtico de acesso foi ornado com duas colunas que sustentam um entablamento, em cujo centro foi posta a figura da caridade, em fina cantaria lisboeta. Surgiram diversas iniciativas para se angariar fundos, objetivando a construção, como certas subscrições populares, à semelhança da que teve como objetivo instalar ali um abrigo da mendicância, logo depois transferido para outra instituição. Foram criadas, também, vinte loterias de cem contos de réis anuais, com o rendimento destinando-se, especificamente, às Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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obras. Mas, nessa perspectiva, um acontecimento mostrou-se sui generis: um baile oferecido ao Imperador Pedro II nas dependências do hospital, antes mesmo da inauguração. A 22 de dezembro de 1859, a Associação Comercial de Pernambuco recebeu a sociedade para uma festa em homenagem ao mandatário imperial que visitava a Província, quando compareceram cerca de 2.000 pessoas, lotando o recinto. O Imperador Pedro II registrou, então, em seu diário: “O novo hospital é obra magnífica, e o desejo de aproveitar o que já está feito para o baile, por ocasião da minha visita à Província, fez com que a obra se adiantasse bastante... Ao menos o baile foi aqui útil, ainda que indiretamente”. A instituição, inaugurada a 10 de março de 1861, como já foi referido, dispunha de uma capacidade para 200 a 250 doentes, podendo chegar a 300 em tempos de epidemia. Na abertura do hospital 115 pacientes foram recebidos ali, todos provenientes do Hospital São Pedro de Alcântara. E dois dias depois dessa instalação solene, o Dr. Praxedes Pitanga fazia a primeira cirurgia na sala de operações, quando interveio num paciente italiano, sanando-lhe uma hérnia estrangulada, depois de ter ouvido em conferência os médicos Sá Pereira e Carlos Frederico, que concordaram com a indicação e assistiram o procedimento. O paciente foi anestesiado com clorofórmio. Naquele hospital, nos primeiros anos, pontificaram outros ilustres profissionais da medicina, além dos já citados, dentre os quais Morais Sarmento, Lobo Moscoso, José Soriano de Souza, Malaquias Gonçalves, etc. Há de se destacar, porém, o Dr. José Francisco Guimarães, experiente cirurgião, pois foi o primeiro a usar a anestesia geral, a princípio com éter e depois com clorofórmio. Há alguns detalhes interessantes no “Regulamento para o Serviço Sanitário do Hospital Pedro II e dos Estabelecimentos a Cargo da Santa Casa de Misericórdia do Recife”, publicado em 1898, que merecem comentários à parte. Um desses, a preferência que o documento sugere e até recomenda pelos serviços de enfermagem prestados pelas Irmãs de Caridade, como, aliás, era um costume em vários países de tradição católica no mundo e durante muito tempo predominou no Recife, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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também. Note-se, todavia, no artigo 7º do aludido “Regulamento”, a exceção que se abre ao Hospital Pedro II, admitindo-se, em particular, a contratação de enfermeiros – enfermeiros e não enfermeiras –, além de serventes. O texto desce a uma riqueza de detalhes em diversos trechos, prevendo, por exemplo, a possibilidade de desentendimentos, rixas e até de espancamentos entre os empregados ou fâmulos do serviço, estabelecendo que se faça denúncia ao Provedor, mas através do Mordomo. Destaque-se, de igual forma, o cuidado com a higiene, conforme está no inciso 21, do parágrafo 6º, do artigo 8º, cabendo ao Diretor Médico o fiel cumprimento dessa norma. Entretanto, o que chama a atenção ainda mais é o contido no inciso 23, do mesmo parágrafo e do mesmo artigo, ainda como sendo um compromisso daquela autoridade médica: a organização, a cada mês de janeiro, de uma estatística geral dos doentes tratados durante o ano anterior, com vistas à apresentação ao Provedor de tais informações. Isso parece uma antecipação dos atuais estudos epidemiológicos, daqueles que investigam as taxas de mortalidade e, sobretudo, as informações de resolutividade. A prática, em realidade, já existia antes do “Regulamento” de que se vem tratando, haja vista a tabela sem título inserida à página 14 do “Relatório sobre a Santa Casa de Misericórdia do Recife”, de 1880. Entre 1860 e 1880, foram internados no Hospital 45.521 doentes, dos quais 34.010 obtiveram alta, enquanto 10.903 faleceram. Significa dizer, em termos aproximados, porque os totais nem sempre correspondem à soma das parcelas, que a resolutividade foi superior a 75% e a mortalidade chegou a 24%, números que para a época, certamente, tinham uma significação valiosa (SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RECIFE, 1898; RELATÓRIO SOBRE A SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RECIFE, 1880). O “Regulamento” de que se vem tratando, pelo interesse que desperta e pelas peculiaridades de que trata no Capítulo IV, cuida em citar as obrigações do chamado “Médico Assistente”, sendo uma dessas a de velar pela salubridade da carne verde que entrava para consumo. O profissional em causa deveria, por recomendação do regimento, residir nas proximidades da instituição, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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para atender das seis da tarde às seis da manhã do dia seguinte às urgências, pelo que se depreende que não havia médico de plantão, senão este. Essa providência só apareceu no século XX, conforme longo depoimento que o autor ouviu do médico Dr. Henrique Mattos de Oliveira, um homem hoje centenário e que deu a vida profissional inteira, quase, ao atendimento em sua clínica ginecológica do aludido estabelecimento filantrópico. Médico, aliás, adiante-se de logo, que foi o pioneiro em Pernambuco, quiçá no Nordeste, da laparoscopia ginecológica, isto é, da utilização de equipamento para visualização das vísceras através da parede abdominal. A leitura do “Regulamento”, sobretudo na parte referente ao “Médico Assistente”, mostra o quanto este funcionário era sobrecarregado, acrescentando-se às obrigações rotineiras, o compromisso de ser o lente da Escola de Enfermeiros. A informação, entretanto, mostra a vinculação do Hospital com o ensino, desde muito cedo. Existiam, ainda, como previsto, os médicos substitutos e os médicos adjuntos, sendo os últimos de exercício voluntário, sem remuneração, senão quando substituindo o colega imediatamente superior. Havia, também, um cirurgião-dentista, a quem cabia tratar dos doentes e dos funcionários, além das parteiras e das parteiras substitutas, sem esquecer do farmacêutico. Chama muito a atenção o papel das irmãs, as quais preenchiam todo espaço hospitalar, da admissão do paciente ao necrotério, incluindo, especialmente, as enfermarias. E chama mais atenção o poder do Provedor ou do Mordomo, a cuja ordem, de um ou de outro, os doentes seriam internados sem questionamento (SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DO RECIFE, 1898; OLIVEIRA, 2008). Vale salientar que no depoimento antes aludido, colhido em casa do médico Henrique Mattos de Oliveira, o entrevistado fez uma longa exposição em torno do funcionamento da instituição objeto desse ensaio, sobretudo, na primeira metade do século XX. Explicou a hierarquia que se tinha nas enfermarias, a qual reconhecia como a autoridade local mais importante o Chefe de Clínica, seguido pelo 1º assistente (substituto do Chefe), pelo 2º assistente e pelo 3º assistente, além do chamado assistente extranumerário, figurante voluntário desse elenco médico. Honorários Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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mesmo recebiam o Chefe de Clínica e o 1º Assistente, embora fosse um pagamento, que se pode dizer, simbólico, porque irrisório. O Dr. Mattos de Oliveira, como sempre foi conhecido, teve uma formação larga, com estágios e cursos fora do País, especialmente na Alemanha, na França, no Japão e em Nova Iorque. A facilidade com que se relacionava com as pessoas, gente importante, dos consulados e representantes de instituições internacionais, serviu como porta de entrada para essas viagens custeadas pelos países que o convidavam. Assim também pôde obter algumas ajudas para a sua clínica, a Enfermaria Santa Maria, no primeiro andar do Hospital Pedro II, como sucedeu com a Misereor, organização católica alemã contra a fome e a doença no mundo. Foi da Misereor que recebeu o laparoscópico para o procedimento antes aludido, de seu pioneirismo, além de outros apetrechos cirúrgicos. Embora tivesse uma retribuição pecuniária extremamente modesta, o Chefe de Clínica – o Dr. Mattos em particular – podia fazer clínica privada em seu ambiente de trabalho, atendendo em consultório e operando algumas de suas pacientes melhor aquinhoadas, para as quais dispunha de dois quartos. É interessante o fato de que as salas cirúrgicas eram individualizadas e a Enfermaria Santa Maria dispunha de uma em particular (OLIVEIRA, 2008). As relações que manteve com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em acordos de parceria, envolvendo a Santa Casa de Misericórdia e particularmente o Hospital, foram, como relatou o entrevistado, quase sempre tumultuadas. De início, quando várias enfermarias do nosocômio acabaram cedidas à academia, lutou bravamente para não entregar a sua – a Santa Maria –, chegando a participar de uma certa reunião, para a qual sequer tinha sido convidado, quando soube que o Provedor tinha doado o seu espaço para uso da UFPE. Bateu o pé, para dizer como o nordestino usa fazer, negando a transferência e se negando, também, a receber, sem concurso, um cargo de professor. Não queria subordinação ao catedrático. Assim, manteve as atividades de forma independente por muito tempo, durante duas décadas, aproximadamente. Quando o Hospital das Clínicas foi terminado na Cidade Universitária e estava na hora de se faRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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zer a transferência dos serviços todos, sob protesto de vários dos professores, dentre os quais o autor destas linhas, o Dr. Mattos de Oliveira novamente se insurgiu contra as soluções apresentadas pela Universidade e pôde permanecer por três anos no velho prédio, às expensas da instituição acadêmica (OLIVEIRA, 2008). A mudança de um estabelecimento para outro foi traumática e tumultuada, como atestam os jornais da época. Uma consulta ao Diário de Pernambuco (DP), que circulou a 6 de junho de 1982, disponível na Internet, traz uma matéria com o título: “Crise do Pedro II: Apenas Interesses Contrariados”. Uma reportagem que se refere ao fato de ter a secretária do Diretor recebido um telefonema anônimo, dando conta de um ferimento à bala na pessoa da esposa daquela autoridade universitária. Mas, dá conta, também, do embate que se travava em várias reuniões, entre os contrários à mudança e os que se apresentavam favoráveis à transferência. O centro da matéria, porém, é, justamente, o fato de que interesses pessoais estavam sendo contrariados. Na realidade, o autor dessas linhas é testemunha, havia um sistema, quase se pode dizer, de feudos, isolando os serviços e distinguindo as clínicas ou as disciplinas. Os antigos catedráticos eram senhores de seus espaços e não admitiam a utilização dos equipamentos e dos leitos por docentes de outras cadeiras. Isso isolava a equipe – o catedrático e seus assistentes –, ocasionando, tantas vezes, impasses desnecessários. De mais a mais, era no mínimo curiosa a existência de salas de cirurgia, como relata o jornal, com entrada e saída para o corredor, no qual transitavam médicos, enfermeiros, pacientes e acompanhantes. Um dos impasses à transferência foi a nomeação pelo então Reitor – Prof. Geraldo Lafayete – de um Diretor sem vinculação alguma com a academia, o que motivou pedidos reiterados de afastamento do mesmo. Numa das vezes, o Diário de Pernambuco, de domingo, 1º de agosto de 1982, ora disponível em versão digital, estampou: “Mestres Exigem Substituição de Diretor”.3 Até 1982 a Universidade Federal de Pernambuco foi a instituição mantenedora do Hospital, em função de convênio com 3

Diario de Pernambuco, 6.vi.1982 01.viii.1982.

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a Santa Casa de Misericórdia do Recife. Assim, desde 1920, por iniciativa do médico Octávio de Freitas, fundador da Faculdade de Medicina do Recife, o Pedro II passou a servir como campo de prática aos alunos do Curso Médico. Nesses anos todos, que reúnem quase seis décadas, foi tido como referência em Pernambuco e no Nordeste. Era comum, então, pacientes ambulatoriais e de consultório dos profissionais locais serem levados a discussão clínica nos diversos serviços de que dispunha. A instituição é reconhecida, ainda hoje, como o celeiro de formação dos mais destacados professores, clínicos gerais e cirurgiões do Recife e de várias das capitais da Região. Concluído o Hospital das Clínicas no Campus Universitário, foram transferidos os doentes e os equipamentos disponíveis em condição de uso, sob protesto de vários professores, como referido. Protesto, aliás, que repete, de certa forma, a reação dos então docentes da Faculdade de Medicina, da Universidade Federal de Pernambuco, quando obrigados a ocupar a nova sede, construída pelo arquiteto italiano Mario Russo, para onde os antigos integrantes do corpo docente foram, quase se pode dizer, à força. O Hospital Pedro II daí por diante atravessou um período de crise, de verdadeiro abandono das instalações, haja vista não ter mais a destinação original. Inicialmente, e durante pouco tempo, abrigou o Museu da Medicina, depois transferido para as dependências do Memorial da Medicina. Em função de um convênio celebrado com a Secretaria Estadual de Saúde, passou a receber uma das gerências do Sistema Único de Saúde (SUS), com ocupação parcial do andar térreo. Durante algum tempo, também, acolheu o Nesc – Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva –, que integra hoje o sistema de pós-graduação e pesquisas do Ministério da Saúde. Nesse intervalo de tempo houve algumas tentativas de ocupar o prédio enorme com shoppings ou outras formas de utilizar o espaço para a exploração polivalente do comércio. Tentativas, como se nota, infrutíferas, haja vista a atual situação da instituição e a atual destinação do nosocômio. O Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), entretanto, conseguiu obter, a partir de um convênio com a Santa Casa de Misericórdia, contando com a interveniência da Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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Cúria Metropolitana, a autorização para ali se instalar e voltar a oferecer ao velho estabelecimento a finalidade original. Um grande esforço vem sendo desprendido pela direção do IMIP, no sentido de obter os recursos necessários à restauração do edifício. Para tanto, o amparo da Lei Rouanet foi definido e as doações se sucedem; doações de médicos ou aquelas dos almoços anuais (feijoadas) custeados pelos convivas nos jardins internos do Hospital Pedro II, repetindo, de certa forma, o jantar ao Imperador no século XIX. Assinale-se o interesse das esferas de governo, do Governo Estadual e da Prefeitura da Cidade do Recife, destinando verbas para o processo de restauro. Restauro, aliás, levado a efeito sob a liderança do arquiteto Jorge Passos, profissional reconhecido como experiente e culto, conhecedor profundo dessa seara tão peculiar: a da recuperação de monumentos históricos O IMIP pretende situar ali alguns dos serviços que presta à sociedade e mais, escolas técnicas especializadas na área de saúde. Por ter sido o primeiro prédio levantado na cidade e no estado com uma destinação especifica na área de saúde, em função, também, do pioneirismo em torno do estilo pavilhonar. Pelo projeto de autoria de José Mamede Alves Ferreira, autor de outras obras importantes no Recife. Julgando o que representou e representa para a classe médica de Pernambuco e do Nordeste, haja vista o papel na formação de escolas e de profissionais do mais elevado gabarito, verdadeira elite da medicina local e regional. E pela iniciativa do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira em restaurar o edifício, o que homenageia o fundador da instituição, realizando um sonho do ilustre pernambucano, trazendo novas possibilidades de atenção à saúde nos limites do Estado e do Nordeste, dando, pois, uma ocupação ao prédio. E finalmente, pelo interesse da sociedade e do Estado na preservação dos monumentos históricos, patrimônios da cultura. Sendo assim e por tudo isso: fui de parecer favorável ao tombamento estadual. Decisão colegiada tomada a partir do parecer, através da Resolução 001/2008, de 25 de março de 2008, contando, a seguir, com a homologação do Exmo. Sr. Governador do Estado de Pernambuco, pelo Decreto nº. 31.573, de 27 de março de 2008. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 91-112, 2014

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Foram respeitados os limites da Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural 18 – Sítio Histórico Hospital Pedro II –, a ZEPH 18, instituída pela Prefeitura da Cidade do Recife (PCR), através da Lei 16176/96. Atendeu-se, igualmente, ao que está definido como recomendações da PCR, inseridas no mesmo diploma legal, respeitando-se a Zona de Preservação Rigorosa – SPR e a Zona de Preservação Ambiental – SPA. Tombou-se, assim, o edifício original, construído segundo o projeto de José Mamede Alves Ferreira, restaurando-se o prédio dentro dos padrões propostos.

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SERÁ MESMO DE NOSSA SENHORA, O MORRO DA CONCEIÇÃO?1 Jamerson Kemps Resumo: O presente artigo pretende apresentar a relação que se estabelece entre a Igreja Católica e seus fieis na comunidade do Morro da Conceição, importante centro de peregrinação da cidade do Recife, por intermédio de uma análise simbólico-hierárquica que considera a ocupação espacial dos vários grupos religiosos dessa comunidade em torno da imagem da Santa de Nossa Senhora da Conceição. A partir de pesquisa de campo etnográfica, análise de discurso e métodos quantitativos, observou-se que as disputas, tensões e conflitos que envolvem a história dessa centenária comunidade superam o campo político e ideológico e se apresentam em termos de ocupação física e territorial quando da construção de prédios, igrejas e monumentos que fizessem referência à hierarquia religiosa. Palavras-Chaves: Antropologia, História, Catolicismo e Hierarquia, Morro da Conceição. Is it really Our Lady’s, the Conceição Hill? Abstract: This article aims to present the relationship established between the Catholic Church and its worshipers in the Morro da Conceição, important pilgrimage center of Recife, through a symbolic-analytic hierarchy process which considers the spatial distribution of the various religious groups in this community around the image of the Holy Conception. From ethnographic field research, discourse analysis and quantitative methods, it was observed that disputes, tensions and conflicts involving the history of this centuries-old community outweigh the political and ideological field and present themselves in terms of physical and territorial occupation during the construction of buildings, churches and monuments which made ​​reference to the religious hierarchy. Keywords: Anthropology, History, Catholicism and Hierarchy, Morro da Conceição.

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Artigo recebido em fevereiro de 2014 e aprovado para publicação em maio de 2014. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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Introdução: recordando a história do Morro Conceição e o que deu início às tensões

da

O bairro do Morro da Conceição fica localizado na zona norte da cidade do Recife, região periférica que concentra grande número de moradores. Sua ocupação urbana se deu logo após a chegada do monumento em homenagem a Santa de Nossa Senhora da Conceição, em 1904, uma estátua de 5.50m de altura, com peso de 1.806 quilos. Todavia, apesar desse processo ter se dado no início do século passado, a ocupação massiva do morro, tendo como ponto de partida os arredores da estátua, só se deu de fato, nas décadas seguintes. A ocupação citada não difere muito das demais áreas de morro do Recife. Casa Amarela e mais especificamente, o Morro da Conceição, tiveram o seu boom demográfico intensificado nas décadas de 1950 e 1960, período marcado por um incoerente projeto desenvolvimentista. Essas décadas transformaram profundamente a imagem urbana recifense. Pessoas vindas do interior, que já se encontravam em dificuldades sociais, além de moradores das regiões ribeirinhas do Recife, ameaçadas por repetidas inundações e incluídas na política de erradicação de Mocambos do então governador-interventor Agamenon Magalhães, constituíram nos altos e córregos da zona norte, o que foi tido como o maior assentamento popular contínuo da América Latina. Atualmente, o Morro da Conceição é servido por uma única linha de ônibus, de mesmo nome, que transporta a comunidade de ida e volta até o centro da cidade, com intervalos de saída em torno de vinte minutos. Percebe-se que os ônibus não saem cheios, já que seus moradores são levados a concentrar suas atividades ali mesmo, no morro, a partir do comércio informal e na proximidade com igrejas, escolas e outras instituições de convivência social. Por fim, encontramos na praça central a maior concentração de atividades. Também nela se localiza a paróquia da Igreja Católica, local onde atuam os vários grupos ligados à matriz, nos fazendo considerar “a simples proximidade entre casa e templo de denominação religiosa influencia diretamente a procura pela instituição por parte da comunidade” (MARZAL, 2000:68). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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Frente à realidade exposta, a comunidade passou a se organizar efetivamente e surgiram movimentos populares que expressavam a insatisfação dos moradores com a cobrança de impostos pela moradia na região, por parte da Imobiliária Pernambucana, criada na década de 1940, e que passara a cobrar taxas aos moradores pelo uso do espaço, alegando serem as famílias proprietárias da empresa, também donas das terras. Nesse contexto, surge o Movimento Terras de Ninguém, procurando por meios judiciais dar posse de terra aos moradores contra a imobiliária citada. Esse processo perdurou, mas teve um desfecho positivo para os moradores, em virtude da concessão das posses durante o governo Arraes, ainda na década de 1960. Notemos que o Morro da Conceição constituiu-se como espaço público-religioso a partir de processos sociais que refletiam a consciência das questões que envolviam a comunidade. Todavia, podemos perceber que as reivindicações desta comunidade também passaram por questões que foram além da posse da terra, já que serviços básicos como fornecimento de água, saneamento e limpeza só passaram a ser disponibilizados a partir da década de 1980, período que é simbolizado pela formação do Conselho de Moradores do Morro, observando, para introdução a problematização de nosso trabalho que, aliado a muitos de todos esses processos reivindicatórios, sempre procurou estar o padre Reginaldo Veloso. Ele entrou na comunidade em 1968, ficando na paróquia até 1989, quando foi desligado pelo então arcebispo dom José Cardoso Sobrinho. Através de seu trabalho, direcionado pelas ideias da Teologia da Libertação, e muito influenciado por dom Hélder Câmara, pe. Reginaldo estimulou ainda mais a participação dos leigos nas atividades da igreja e comunidade.

A

declaração do dogma e o início da devoção

À procura por documentação que pudesse melhor nos municiar a respeito do processo que inicia a devoção à Santa da Conceição, no Recife, chegamos, entre outros, as cartas rediRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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gidas pelo então arcebispo dom Luís Raimundo da Silva Brito (arcebispo entre 1901-1915). Analisando-as, encontramos referências ao cinquentenário comemorativo da Anunciação do Dogma da Imaculada Conceição, pronunciado pelo Papa Pio IX, em 08 de dezembro de 1854, sendo encomendada uma estátua a firma francesa Vaillant Nast et Cie. Quando da chegada da imagem no antigo Oiteiro da Boa Vista, hoje Morro da Conceição, ainda não havia urbanização ou ocupação irregular, nem tampouco igreja no morro (Foto 1). Naquele momento, cabia apenas à Igreja Católica garantir e reforçar a declaração do dogma e sua devoção.

Foto 1: Pátio onde se localizava a imagem, na década de 1930 (acervo: FUNDAJ).

Como estratégia para reforço de tal simbolismo, decidiu-se criar a Comissão Diocesana, ligada diretamente à comissão pontifícia e às comissões paroquiais, responsável por desenvolver um programa geral que, entre as datas de 08 de dezembro dos anos de 1903 e 1904, realizasse atos religiosos e de caridade a cada dia oito, dos meses envolvidos neste período, concluindo-se com a Festa da Conceição, no final do mesmo. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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Em sua primeira festa de devoção, as comemorações ficaram limitadas apenas às solenidades eclesiásticas do dia 08 de dezembro e à sua véspera. Contudo, o Oiteiro da Boa Vista, que já no primeiro ano passava a ficar conhecido como da Conceição, passou a acostumar-se com a presença de muitos fiéis. Sob a organização da Confraria de São Vicente de Paulo procurou-se convidar todos os pernambucanos a saudarem a Santa Imaculada. Clérigos de toda a hierarquia do estado, suas matrizes, paróquias, capelas e fiéis foram convocados a reunirem-se em prol da celebração, especulando-se a participação de cerca de vinte mil pessoas. Com o passar dos dois primeiros anos de devoção à Santa, o então arcebispo dom Luís Raimundo decidiu-se por construir a Capela do Morro, pequeno prédio em estilo gótico que ficou conhecido como a Torre. O monumento foi erguido sob a direção do engenheiro Rodolfo Lima e apresentava o que havia de moderno e ousado para a época. A capela media vinte e cinco metros de altura e foi inaugurada no dia 14 de junho de 1906, estando ligada à freguesia de Nossa Senhora da Saúde, no Poço da Panela, hoje paróquia de Casa Forte (Foto 2).

Foto 2: Capela do Morro da Conceição na década de 1930 (acervo FUNDAJ).

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Igreja

e comunidade: suas lideranças

O Conselho de Moradores do Morro, sempre esteve atrelado aos trabalhos desenvolvidos pelas Comunidades Eclesiais de Base (Ceb’s), à paróquia do morro e à Arquidiocese de Olinda e Recife, em um momento no qual todas estas eram seguidoras da Teologia da Libertação. No início da década de 1980, o conselho passa a ganhar respeito e espaço político por exigir das autoridades públicas daquele momento – o prefeito da cidade, Gustavo Krause e o governador Marco Maciel – melhorias sociais e urbanas para o Morro da Conceição, contrapondo-se às determinações políticas de um período marcado ainda pelo Regime Militar e pelo Populismo (SOUZA, 2006). Como consequência, outras importantes organizações foram criadas a partir do Conselho de Moradores, dentre elas: grupos de alfabetização, de mulheres, de meios de comunicação do próprio bairro, de saúde, comissão de barreiras e a organização não governamental, CERVAC (Centro de Reabilitação e Valorização da Criança). Quanto à construção de qualquer edificação no Morro, observamos que se inicia em 1975, no que tange à política hierárquica e eclesiástica, o processo de desmembramento do conjunto religioso que compunha o então abrangente bairro de Casa Amarela, incluindo-se o Morro da Conceição, para efeito de criação de uma paróquia. Esse processo veio a consolidar-se no ano posterior, no arcebispado de dom Hélder Câmara (1964-1985), sendo o padre Geraldo Leite Bastos (1975-1977), o primeiro vigário da paróquia. É ainda neste período, e tão somente neste momento, que se constrói o prédio da igreja paroquial. Observemos que se passaram mais de sete décadas para que algo parecido com uma igreja católica fosse construído no Morro, pois, mesmo tendo sido construída anteriormente, a Torre não possuía estrutura para a celebração de qualquer atividade religiosa, servindo apenas como monumento de representação institucional. Também fazemos a ressalva de que as celebrações religiosas concentravam-se na Igreja da Harmonia, antiga e imRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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portante paróquia do bairro de Casa Amarela, responsável pela comunidade religiosa do Morro até o seu desmembramento. Para a construção da primeira igreja, tal prédio requisitava aspectos de modernidade e simplicidade, tentando trazer harmonia entre os dois símbolos já existentes (o monumento da Santa e a Torre), o que fisicamente e simbolicamente não aconteceu, como veremos adiante. Nos anos que se seguem, as comunidades vizinhas, ligadas à matriz, passaram também a se organizar na construção e reforma de suas igrejas, bem como no estabelecimento de centros comunitários que atendessem às demandas locais de caráter político e social, estando as mesmas diretamente ligadas aos assuntos religiosos e vice-versa, sendo sob este viés administrativo, que se estrutura a Igreja Católica da região metropolitana, regida pela batuta do arcebispo dom Hélder Câmara. Difícil seria imaginar que dom Hélder não tenha se tornado um dos principais propagadores da Teologia da Libertação no Brasil, de tal maneira que o arcebispo ficou conhecido pela forma como acolhia as pessoas e os movimentos sociais diversos. Já na década de 1970, período em que foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, era comum assisti-lo em palestras universitárias nacionais e internacionais, como também, em setores sindicais ou de classes populares, onde desfilava seu carisma. Diferentemente de seu antecessor, encontramos o arcebispo dom José Cardoso Sobrinho, caracterizado como conservador e centralizador. Logo no início do seu arcebispado (19852009), dom José promoveu o que hoje conhecemos como um ‘choque de gestão’, dividindo a igreja entre aqueles que o apoiavam e aqueles que não estavam em sintonia com sua doutrina, consolidando dessa forma, um período de crise na hierarquia da arquidiocese. Direcionando estas informações à paróquia do Morro da Conceição, temos de um lado, pe. Reginaldo Veloso, que fora desligado por dom José e que veio a criar a Igreja de Resistência e Fé; e do outro lado, a igreja oficial e aqueles que afinam seu discurso ao do arcebispo, seja devido à sua identificação teológica, seja por simples submissão a algo que é considerado mais relevante, no caso, a hierarquia eclesiástica da Igreja do Vaticano. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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Nessa lógica dicotômica se insere a gestão do padre Constante Danielewicz (1990-1997), catarinense de descendência polonesa que conseguiu assumir a paróquia em 1990, só depois que uma ação judicial deu reintegração de posse do terreno e estrutura paroquial à igreja do bairro, ação garantida pela Polícia Militar frente aos protestos dos membros da comunidade que haviam tomado posse das chaves do local. Destacamos que esse acontecimento se deu como represália às ações do arcebispo dom José, quando da execução das mudanças na paróquia do Morro no ano de expulsão de pe. Reginaldo, em 1989. Naquele momento, alguns membros da comunidade, logo ao se informarem do envio de um novo padre, decidiram fechar as portas da igreja com correntes e cadeados de forma que só estes pudessem ter acesso a ela, indicando que a mesma seria administrada pelo povo e para o povo (FERREIRA, 1990). A partir dessas informações, desenvolvemos uma análise socioantropológica acerca do envolvimento destas lideranças com seus fiéis, uma vez que os mesmos se apresentam e são identificados como líderes, àqueles que, pelo seu carisma, devem guiar seus seguidores em conjunto, orientados por uma doutrina ideológica e teológica. Quando falamos em carisma, nos valemos de uma definição weberiana que o classifica como virtude indefinível, denominado como conjunto de dotes pessoais que impõem um indivíduo aos outros, fazendo com que estes o obedeçam, tornando suas ordens indiscutíveis justamente porque emanam dele (WEBER, 1989). Identificamos que estas lideranças gozam de tal representatividade, seja em virtude de suas realizações passadas, seja por estarem se valendo de um simbolismo institucional estruturado, classificado como rotinização do carisma, caso de padre Josivan Sales, pároco oficial da igreja no período da pesquisa. Desta maneira, percebemos que pe. Reginaldo Veloso, mesmo se valendo de um carisma pessoal que o credencia como líder, haja vista que o mesmo além de reverenciado, também é consultado sobre variados assuntos sociorreligiosos locais, necessitou da formação de uma nova instituição religiosa que funciona como Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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uma igreja paralela a oficial para que o mesmo fosse credenciado como líder religioso e padre. Enquanto que do lado de pe. Josivan Sales, a instituição oficial o serviu como instrumento de reafirmação desta liderança, o que associado a suas habilidades pessoais, o garantiram em tal posição.

Campo

religioso e polos de sociabilidade

A partir de nossa pesquisa de campo, baseada em métodos qualitativos e quantitativos, foi possível identificar o que caracteriza o campo sociorreligioso desta comunidade católica. Diferentemente das hipóteses mais tradicionais que percebem o Morro da Conceição dividido dicotomicamente entre aqueles que seguem a comunidade criada pelo padre Reginaldo Veloso e aqueles que se ligavam à igreja oficial, a partir da nossa análise de dados, pôde-se perceber a existência de um terceiro polo de convivência e devoção religiosa que não só se apresentava como maior, mas também como autônomo em relação aos outros dois polos. A partir disso, a comunidade passou a ser classificada, naquilo que consideramos serem os três polos de vivência católica do Morro da Conceição: sendo o primeiro, aquele ligado à igreja oficial e seus representantes; o segundo, que está ligado à igreja criada pelo pe. Reginaldo Veloso e seus seguidores; e o terceiro polo, aquele que se identifica com as práticas do chamado catolicismo popular, dada a característica autônoma de devoção de seus fiéis para com a Santa da Conceição e de independência em relação às lideranças religiosas dos dois polos anteriores. Percebemos que seus membros visitam, convivem ou moram no Morro, sem necessariamente estarem ligados a membros dos grupos religiosos ligados aos outros polos. Os representantes autônomos são devotos, peregrinos e pagadores de promessas, bem como, representantes do ainda desestruturado turismo religioso local. Esses, indiferentes a qualquer querela histórica, política, simbólica ou institucional, compõem o maior número Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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de pessoas encontradas no cotidiano do campo religioso estudado, fator fortemente evidenciado quando da realização da representativa Festa do Morro da Conceição, imponente celebração que ocorre anualmente, entre os dias 29 de novembro e 08 de dezembro, e leva milhares de devotos autônomos às ladeiras da comunidade. A constatação acima pode ser verificada no gráfico que se segue (Gráfico 1). Nele, percebemos que na correlação que se dá entre a moradia na comunidade e a participação em algum grupo, a partir da amostra de 472 fiéis católicos do Morro da Conceição, apenas 7% (sete) dos entrevistados, disseram fazer parte do segundo polo, aquele que está ligado a Igreja de Resistência e Fé, liderada por pe. Reginaldo Veloso, enquanto que os 33% identificado com a igreja oficial, dividem-se dentre os cerca de dez grupos ligados ao primeiro polo, obtendo-se uma média de 3,3% de participação dos fiéis por grupo desse polo. O que nos indica perceber que cerca 60% dos fiéis católicos do Morro da Conceição, não estão vinculados a qualquer grupo e terminam por compor o terceiro polo por nós já classificado.

Gráfico 1: correlação entre a participação em grupos e habitação no Morro da Conceição

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Nesse contexto de observações, ressalvamos que a relação existente entre praticantes de uma religião e instituição reguladora, também foi pensada por estudiosos que viram no estágio de modernização social um iminente processo de secularização da sociedade. Em um momento anterior, defendeu-se a ideia de que com a modernidade, os indivíduos passariam de um estágio de submissão àquilo que é tido como desconhecido, sobrenatural e sagrado para um estágio de autonomia e controle de suas ações mundanas. Pensava-se que com o desenvolvimento dos meios de comunicação e da produção científica poder-se-ia obter uma formação social que levasse os indivíduos a um estágio de independência religiosa e institucional. Contudo, na contramão desse processo, também passou a ser observado um conjunto de realizações, modificações e fortalecimentos daquilo que pode ser chamado como prática religiosa. Ora, como negar o surgimento de dezenas de instituições que se propõem religiosas? Ou como negar a revitalização de denominações religiosas centenárias frente às mudanças comportamentais de seus fiéis? E ainda, como se analisar o nível de autonomia atingindo pelos indivíduos que procuram se utilizar de instrumentos próprios para o estabelecimento de comunicação divinal? Como define Peter Berger (1985), a experiência religiosa desempenha um importante papel, seja como fator de integração social, seja como direcionamento de vida. Berger reavalia sua tese sobre o processo de secularização na sociedade moderna, considerando que este aspecto não deve ser predominante em relação a outros fatores. Para ele, a ideia de modernidade, aquela advinda do Iluminismo, não deve ser tomada como regra ou condição essencial para o processo de formação de uma secularização uniforme, pois não se pode afirmar que vivemos em um mundo secularizado, uma vez que o mundo de hoje seria tão religioso quanto antes. A secularização a nível societal não está necessariamente vinculada à secularização no nível de consciência individual. Algumas instituições religiosas perRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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deram poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes, levando a grandes explosões de fervor religioso (Idem, 2001:10).

Ainda sobre a ideia de secularização, encontramos nos trabalho de Daniele Hervieu-Léger (1997) uma outra análise da relação entre religião e sociedade. A autora preocupa-se em não só entender a religião como instrumento simbólico, mas também, melhor analisar a categoria secularização. Para ela, os processos sociais pelos quais vêm passando a humanidade remetem os indivíduos, e o mundo moderno, a uma perda de unidade e sentido, aquilo que Marc Piault (2003) havia classificado como um campo de investigação do religioso que parece estar se reconstruindo a partir da renovação de crenças e de pertencimentos religiosos sobre as quais já se tinha enunciado, precipitadamente, o desencantamento. Revela-se de muito significativo na relação ambivalente que os novos movimentos religiosos cristãos mantêm com a tradição das igrejas e confissões no espaço das quais se inscrevem. [...] Seu espontaneísmo religiosos introduz elementos de ruptura com o conjunto das crenças, das doutrinas, dos saberes, das normas e das práticas obrigatórias que a própria instituição define como sendo o corpo da tradição, cuja integridade ela preserva e cujas apropriações ela controla. É nesta direção que se pode considerar que estes fenômenos contribuem para o processo de desregulação institucional que acompanha o movimento geral da secularização (HERVIEU-LÉGER, 1997:45).

Sabemos que o cristianismo sempre ocupou um importante espaço na formação cultural da sociedade ocidental. No caso brasileiro, a Igreja Católica serviu de instrumento para afirmação de um modelo social imposto pelos colonizadores portugueses e Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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ainda ocupa um espaço de destaque dentre as demais religiões2. Todavia, há de se considerar que o catolicismo passou por um importante período de revisão eclesiástica, quando na década de 1960, realizou-se o Concílio Vaticano II, evento que, como observou Reginaldo Prandi (1997:30), “de um lado significou importante passo na direção de uma elaboração teológica para os problemas sociais, a Teologia da Libertação; de outro, formou a trilha mais conservadora que veio a dar na Renovação Carismática”. Em estudos recentes, Antonio Pierucci (2004) preocupou-se em entender como os efeitos da modernidade e secularização poderiam de fato transformar o cenário religioso brasileiro. Constatou que foi o catolicismo que saiu como maior perdedor nesse processo, pois viu sua hegemonia eclesiástica ceder espaço não só para o culto a outras denominações, como também, presenciou o crescimento de uma parcela da população que se dirigia não só para uma experiência ritualística individualizada, mas principalmente, para a autodeclaração de não necessitar de algum tipo de prática religiosa. A par de uma oferta religiosa mais diversificada, estamos vendo formar-se em nossa terra um contingente cada vez mais numeroso de desencaixados de qualquer religião, desfiliados de toda instituição religiosa, desligados de toda e qualquer autoridade religiosamente constituída (Idem:17).

Sobre a temática proposta, as pesquisadoras Cecília Mariz e Maria das Dores Machado (1998) preocuparam-se em revelar algumas das estratégias utilizadas pelas instituições religiosas tradicionais no intuito de promover uma maior institucionalização de suas ações, ou até mesmo, um resgate desse controle frente às mudanças sociais vigentes. Uma das principais preocupações das autoras foi observar que, no caso dos católicos,

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Comparando dados quantitativos, temos que em 1940, 95,2% da população se declaravam católica. Já com base no Censo de 1970, encontrávamos um percentual em torno dos 92%. Em 1991, o percentual caiu vertiginosamente para 83,3% da população e em 2000 identifica-se 73,8% da população brasileira como católica. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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o levantar de uma bandeira que apontava para a necessidade de ligação de seus fiéis a uma instituição pareceu ser o melhor argumento frente aos processos iminentes de secularização e divisão de fiéis. Nesse caso, o que se viu foi o fortalecimento de alguns dos grupos de leigos que serviram como instrumentos fundamentais para tal retomada, pois a queda evidente na proporção de católicos parece estar sendo acompanhada por um relativo reavivamento religioso. Se, por um lado, percebe-se esta ‘banalização das fronteiras’ na crescente dificuldade, por parte das religiões tradicionais, em regular e manter seus adeptos dentro dos ‘limites seguros e estáveis de seus sistemas de crenças’, por outro, esta se explica pela crescente subjetivação da religião. O indivíduo não mais atribui autoridade a uma instituição para limitar ou definir o conteúdo de suas crenças. O pluralismo religioso é, assim, reforçado, mas ganha um caráter distinto desde que o papel da instituição é enfraquecido (Ibidem:37).

Diante desse quadro de novas formações, onde religião e modernidade tencionam-se sem exclusão e às vezes, com reforço do religioso, procuramos perceber qual seria o formato desse novo perfil católico brasileiro? Pesquisas recentes vêm apontando para o que já foi levantado neste trabalho e indicam para uma diversidade de práticas religiosas dentro do próprio catolicismo. Faustino Teixeira (2005) parte para uma classificação que condicionaria o catolicismo como: 1) santorial; 2) erudito ou oficial; 3) o dos reafiliados, marcado pela inserção em um ‘regime forte’ (Ceb’s, Renovação Carismática, etc); e 4) um midiático emergencial. Essas formas de atuar do catolicismo brasileiro remetem-nos diretamente ao que passamos a identificar como os polos de vivência católica presentes na comunidade do Morro da Conceição. Essa comunidade, devido a sua importância e simbolismo sociorreligioso e político, esteve sempre inserida Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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em uma espécie de laboratório de prática de pesquisa que comprovaria todas as mudanças ocorridas na religião. Frente às mudanças estruturais e estruturantes, precisou a comunidade católica se autoidentificar, ressalvando-se que isso não necessariamente a condicionou a uma prática religiosa homogênea. Observa-se que sua sociabilidade é marcada por conflitos, disputas e tensões que se acirram ao ponto de dificultar a simples tentativa de se classificar a comunidade católica do Morro da Conceição, já que diferentes grupos clamam por essa titularidade.

Sociabilidade

e conflito no

Morro

da

Conceição

Tomando o argumento de Émile Durkheim (2003:192) de que “a religião é sempre e a pleno título uma forma operante de conhecer e organizar a vida e o mundo e que por isso é uma ideologia em sentido amplo”, objetivamos interpretar como a devoção à Santa da Conceição é disputada por igreja e devotos, questionando até que ponto sua representação simbólica e imagética aproxima ou afasta os grupos de fiéis católicos no Morro da Conceição. Considerando as diferentes formas de atuar dos citados fiéis católicos, destacamos o que ressalva Marc Piault: O modelo hierarquizado e centralizado da Igreja Católica, usualmente transposto para as representações e as práticas políticas, é desconstruído por intermédio de comunidades que questionam as modalidades práticas por meio em que a fé se expressa no cotidiano (2003:368).

Percebemos que um dos aspectos que sempre gerou controvérsias, trata da construção do prédio da Igreja Católica no Morro. Deveremos notar que tal instituição passou por um longo período, sem a representação física de si mesma na comunidade. À medida que convivíamos com a comunidade ligada a esta instituição, deparávamo-nos com acontecimentos passados ligados Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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à construção e às reformas pelas quais a mesma passou, além de encontrarmos informações que tratavam de sugestões ideológicas e arquitetônicas que provocaram intrigas e disputas entre as lideranças. Nesse sentido, vimos que a construção de um prédio que pudesse ser conhecido como o de uma Igreja Católica, somente se deu após longo tempo da chegada da imagem da Santa da Conceição. Anterior à construção, a devoção dos fiéis concentrava-se apenas, e diretamente, à contemplação da imagem, o que significa dizer que mesmo que de identificação com a liturgia católica, Nossa Senhora da Conceição não possuía ou necessitava de qualquer instrumento que viesse regular ou nortear a sua relação para com os fiéis, em específico, naquela localidade. Certamente, mesmo que houvesse respeito ou temor por parte do fiel diante da imagem, cabia unicamente ao exame de consciência do mesmo, elaborar os limites e meios de sua relação com a divindade. Por que não pensarmos que uma vez aberto o canal de diálogo e imperado por tanto tempo tal aspecto de liberdade, não veio o fiel católico a acostumar-se com este aspecto de comunicação autônomo, dando base a principal característica de devoção que caracteriza o terceiro polo, identificado com o catolicismo popular? Esta característica é uma marca indelével da forma devocional dos católicos brasileiros, já que estão sempre a atravessar fronteiras de classes sociais e práticas religiosas consideradas oficiais ou não (THEIJE, 2001; REESINK, 2005), facilitando a popularização da Santa da Conceição com outras denominações religiosas que se fazem presentes no Morro, dando forma ao sincretismo religioso local. Sabemos que ainda no arcebispado de dom Luís Raimundo, preocupou-se o mesmo em edificar algo que simbolizasse a presença permanente da Igreja Católica na comunidade. Já vimos que tal edificação, conhecida como Torre, foi minuciosamente construída em consoante alinhamento horizontal à imagem, mas ao mesmo tempo que possuía 25 metros de altura, apresentava-se mais alta, maior que a imagem, representando uma maior hierarquia da Igreja perante a Santa. De toda forma, essa capela não agrupava os requisitos mínimos de uma consRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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trução que pudesse receber qualquer quantidade de fiéis em seu interior, certamente porque tal liderança religiosa ainda não tivesse a dimensão do tamanho que viria a ter o culto a Nossa Senhora, no Morro da Conceição.

Construções, reformas

e contrarreformas

O recifense não está ligado às suas igrejas só por devoção aos santos, mas de um modo lírico, sentimental: porque se acostumou à voz dos sinos chamando para a missa, anunciando incêndio: porque no momento de dor ou de aperreio ele ou pessoa sua se pegou com Nossa Senhora, fez promessa, alcançou a graça; porque nas igrejas se casou, batizaram seus filhos e nestas estão enterrados avós queridos (FREYRE, 2000:114).

Um primeiro aspecto a ser por nós destacado sobre esta conflituosa e disputada relação entre as representações simbólicas é a observação de que já no ano de sua construção preocuparam-se a arquidiocese e a nova paróquia em construir um prédio que viesse a complementar a antiga representação da igreja. Tal construção foi erguida de forma que envolvesse lateralmente a antiga Torre, dando forma a uma espécie de quadrado que dava base ao monumento de estilo gótico, uma vez que tendo a capela se tornado paróquia na década de 1970, fazia-se importante e necessário a construção de um prédio maior. Finalmente, um prédio fora construído e, devido a sua simples e modesta apresentação, ficou conhecido como Galpão (Foto 3). Posteriormente, vários foram os religiosos que se preocuparam em dar um melhor aspecto à Igreja do Morro alimentando-a de uma maior valorização institucional. Dentre eles, pe. Reginaldo Veloso sempre esboçou a preocupação em construir um santuário, alegando que a antiga construção ameaçava ruir e que um espaço maior, com um ambiente mais amplo, acomodaria melhor os fiéis. Quanto a isto, descobrimos que muito se credita o episódio do afastamento do padre às suas intenRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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ções direcionadas à necessidade de reforma da primeira igreja a partir da elaboração de um projeto que concebia a igreja no formato de uma ‘Asa-delta’ (Foto 4). Vislumbramos que permitir a construção de um santuário, tão ansiada pelo pároco, ou até mesmo permitir uma reforma e ampliação da igreja que contemplasse suas sugestões, só viria a fortalecer a imagem de pe. Reginaldo junto a sua comunidade, bem como em outros segmentos sociais como o político e midiático, o que levaria ao arcebispo dom José mais insatisfação, além de dificultar a realização dos processos de mudança que o mesmo havia definido para a arquidiocese e, em particular, para o Morro da Conceição.

Foto 3: Igreja-Galpão, construída em torno da Torre. A foto também evidencia a presença da polícia, logo após a expulsão de pe. Reginaldo (acervo: liderança comunitária).

Foto 4: Reforma que construiu o teto em forma de Asa-delta e manteve a entrada voltada para a antiga Torre (acervo: antigo pároco).

Quanto às reformas, após a saída de padre Reginaldo, instalou-se um vitral por trás do altar da igreja. Observemos que nesse lugar, tradicionalmente se encontra o púlpito, local onde se adora a imagem de Jesus Cristo. Contudo, a colocação do vitral naquela igreja em específico, possibilitava uma maior visualização da imagem da Santa da Conceição para os que estivessem dentro do prédio, destacando-se simbolicamente a importância que a imagem deveria ter junto à própria instituição religiosa. No que se refere ao teto da igreja em formato de uma Asa-delta, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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identifica-se outra simbologia arquitetônica adequada às características comunitárias e culturais do Morro. Na entrevista com pe. Josivan Sales, obtivemos a seguinte explicação: Na construção dessa igreja, em 1979 (obra posterior a construção do Galpão), a arquiteta foi uma suíça e um artista famoso daqui, Corbiniano. Ele fez uma obra pro Morro: uma tampa do sacrário. Então, a Asa-delta e essa tampa seguiram como uma inspiração que se vê ainda hoje: os meninos soltando pipa. O Morro da Conceição é alto e as crianças soltam pipa. A pipa simboliza algo que a arquitetura gótica e cristã realizou. Esse movimento pensava em pontas que procuravam o alto; algo de leveza que elevasse seu coração ao céu. Como não se pensa em fazer uma igreja gótica aqui, pensou-se em algo que nos elevasse ao Deus e tivesse algo do Morro. Então, o artista fez a tampa do sacrário com um anjo no formato de uma pipa. A asa-delta leva você pro céu pelo vento. Ela possibilitaria uma ventilação boa e depois indicaria de alguma forma que você elevasse os olhos como o gótico faz; além disso, a ponta se direciona a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Quando se chega ao morro, olhando para aquela ponta você iria diretamente à imagem.

Esta nova construção deveria alinhar a imagem da Santa da Conceição com a antiga Torre. Também houve preocupação em, além do alinhamento horizontal, atingir-se o alinhamento vertical, haja vista a altura dos monumentos anteriores. O que sabemos é que nenhum dos dois objetivos foi alcançado, pois os órgãos municipais responsáveis pelo controle e uso do solo identificaram empecilhos técnicos no projeto, assim como nem todos aspectos da reforma agradaram a maioria do Morro, levando-nos ao entendimento de outro conflito simbólico, uma vez que desde o início de sua construção, muito se discutiu sobre se a igreja a ser erguida deveria ter suas partes e dimensões voltadas para a imagem da Santa da Conceição Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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ou para a antiga Torre. Essas preocupações e debates carregam consigo uma pesada carga de representação simbólica e hierárquica, na qual os representantes da Igreja Católica são levados a refletir se a instituição deveria estar subordinada à representação de Nossa Senhora ou se não deveria a mesma submeter-se a tal instituição. Percebemos que esta querela simbólica estendia-se a um terceiro ponto: o da consideração de que, uma vez dado início a construção do atual santuário – mesmo sem a certeza de datas e recursos – deveria ainda a instituição preocupar-se em definir se a imagem permaneceria no local de origem ou se seria a mesma removida para o interior do novo prédio. Ora, claro que muitos dos argumentos defendidos pela segunda alternativa partiam da certeza de que, desta forma, garantir-se-ia a preservação do monumento. Contudo, não estaria a instalação da imagem no interior da igreja, mais uma vez envolvida pela preocupação das lideranças religiosas em organizar simbólico-hierarquicamente a devoção a Nossa Senhora da Conceição pelos seus fiéis católicos? Observemos o que disse um dos fiéis entrevistados a esse respeito: Nossa Senhora não sabe mais o que fazer, coitada! Ela joga pro filho dela, mas o filho vai e repassa: Não, a comunidade é sua. Ela fica no meio, pois, são duas pessoas assim: Reginaldo, a Igreja da Resistência puxa pra um lado; dom José puxa de outro.

Notemos que o discurso aponta para uma disputa existente entre os católicos, considerando que a igreja oficial e a igreja do segundo polo procuram tomar para si o simbolismo que envolve a imagem. Todavia, com a pesquisa de campo, deparamo-nos com a decisão do padre Reginaldo de que não caberia aos seus seguidores realizarem qualquer demonstração de devoção a Santa da Conceição, em qualquer espaço que representasse a instituição oficial, ocorrendo o mesmo quando da realização da Festa do Morro. A respeito da relação entre ocupação do espaço físico e a representação de Nossa Senhora, analisemos o que disse o paRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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dre da igreja oficial sobre a preocupação do atual projeto do santuário, alinhando-o à imagem e à Torre: Se passarmos uma linha do centro da Torre ao centro da imagem, essa linha não cortará o centro da igreja. Então, no projeto dissemos que a porta da igreja deve estar reta com a porta da Torre e o vitral deve estar reto com a imagem. Mas havia um problema: com o tamanho da igreja, ela emendaria totalmente o espaço da mureta. Então fizemos assim: baseado numa linha doutrinal ou artística, a igreja decide se subjugar. [...] As pessoas vêm ao Morro não para visitar o Santíssimo Sacramento, o que seria oportuno o católico fazê-lo, mas o faz por causa de Nossa Senhora da Conceição. Pensamos inclusive em colocar o sacrário na frente da imagem, mas teriam pessoas que ignorariam; então o sacrário da igreja do Santíssimo, como pede a Igreja do Vaticano II, foi colocada num outro ponto. O ponto central da igreja vai à direção do altar que segue em direção à imagem, pois o central desse santuário é a imagem.

Com base nessas informações, não só se torna evidente a consciência e preocupação institucional quanto a predominante adoração à imagem por parte do fiel em detrimento da igreja, como também vem a reforçar o argumento no qual se destaca a importância da devoção autônoma e direta voltada à Santa da Conceição como característica do catolicismo no Morro. Todavia, mesmo consciente desta característica, a Igreja Católica continuou a preocupar-se em ordenar a relação devocional, conforme análise da continuação da entrevista, quando questionamos se houve preocupação em se colocar a igreja de frente ou de costas para a imagem: Eu sei que se construiu um galpão entre a Torre e a imagem, e antes a missa era celebrada dentro da Torre. Veja bem, a igreja estava de frente para a imagem. Mas, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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se você pensar direitinho, como as pessoas ficavam de frente para o padre, elas ficavam de costas para a imagem. Já com a igreja de 1989, colocou-se a igreja de costas para a imagem, mas como havia o vitral, as pessoas ficavam de frente para ela. Então, ao se recuperar aquele antigo vitral, a imagem fica de alguma forma dentro da igreja. Nas igrejas católicas, atrás do altar, há algo chamado de retábulo; nós não queríamos fazer o retábulo aqui porque seria colocar outro elemento de veneração em relação à imagem. Em outras igrejas seria impensável não ter decoração no centro do altar, mas aqui, nossa decoração será a imagem.

Pela

construção do santuário Ao aproximar-se de Maria, o peregrino deve sentir-se chamado a viver aquela dimensão pascal, que gradualmente transforma a sua vida (...) do encontro comunitário e pessoal com Maria, estrela da evangelização, os peregrinos serão impelidos, como os apóstolos, a anunciar com a palavra e o testemunho de vida as maravilhas de Deus (...) Maria é o templo de Deus, não o deus do templo (St. Ambrósio 1999, At. 2, 11).

No início de nossa pesquisa de campo, a notícia da construção de um grande santuário no Morro preocupou-nos por considerar que tal processo mudaria muito da rotina de nosso objeto de estudo, afinal, não seria a Antropologia uma espécie de calçada de subúrbio acadêmica, no sentido de estar sempre atenta aos movimentos cotidianos da comunidade? Contudo, passamos a considerar que tal aspecto poderia ser utilizado como uma nova variável, a partir da qual se pudessem testar as dificuldades que os processos de mudanças físicas e arquitetônicas sempre trouxeram á igreja no Morro. Sendo assim, passamos a questionar o que poderia significar a construção do Complexo Santuário de Nossa Senhora da Conceição para Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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sua comunidade local e como a influência arquitetônica dessa mudança poderia se refletir na geração de novos conflitos?

Foto 5: Maquete do novo Santuário (acervo pessoal).

Ao participarmos de uma das reuniões de elaboração do projeto (Foto 5), percebemos que havia uma preocupação de que o mesmo contemplasse as contribuições das pessoas que conviveram ou convivem com aquela comunidade. Nesse sentido, perguntamos ao padre Josivan, como o atual projeto poderia contemplar a tantos diferentes anseios e necessidades. O projeto foi pensado por um grupo chamado Equipe do Projeto Santuário formado por oito pessoas das mais representativas da paróquia, bem como vendedores, romeiros etc. Depois se tentou tomar as ideias dos antigos santuários aqui do Morro. Por exemplo, o povo sempre pergunta: por que derrubaram o vitral que existia na época de pe. Reginaldo Veloso? E os jardins que também existiam em seu tempo e no de pe. Constante? Havia questões sobre os acendedores; salas-ambientes para as diversas necessidades etc. Pensou-se: precisamos de quê? O grupo disse: uma igreja pra muitas pessoas. Temos outras questões: na Festa são dez mil, mas depois são menos. Decidiu-se por uma de mil pessoas. Outras coisas: queria-se colocar a Santa dentro, outros queriam fora. Disseram: Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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não, é melhor colocar fora, porque quando a igreja estivesse fechada, as pessoas iam querer entrar e a igreja não pode ficar aberta 24h. Depois, na Festa é muito movimento ao redor da imagem, então seria um caos dentro da igreja.

Em todos os aspectos do trecho apresentado podemos perceber como o pároco preocupou-se em nos passar o contexto de construção do projeto como um processo onde o santuário representasse a unificação de todos os que compõem a comunidade católica do Morro da Conceição, pois não só na sua composição se deveria ouvir variados segmentos da comunidade local e católica, como também, em sua funcionalidade, deveria representar o santuário a possibilidade de Igreja e Santa estarem juntos perante seus arrebanhados. Como justificativa ao projeto apresentado para captação de recursos do novo santuário, tínhamos que o mesmo deveria explicitar as duas faces de convivência sociorreligiosa do Morro, ligadas a religiosidade e perfil mariano da comunidade, e a face que se ligaria à comunidade no que tange questões sociais, exercício da cidadania, geração de trabalho e renda. No ano de 2006, o projeto, revisto várias vezes, previa uma igreja maior, com capacidade para mil pessoas. Previa também a construção da Casa de Acolhimento ao Peregrino, bem como, a Fábrica da Santa, nas quais seriam desenvolvidas obras sociais voltadas para a comunidade. Interessante observar que também consta no projeto o plantio de doze Palmeiras Imperiais no entorno da imagem, continuando a mesma do lado de fora da igreja e ao lado do acendedor de velas. A justificativa para o plantio dessas árvores, verificamos no próximo trecho da entrevista: As palmeiras acompanham um movimento que é circular, mas ela não fecha. Se eu olhar a igreja de cima, vejo que o palco da Torre também é circular. Atrás da imagem também há circularidade não só de elementos arquitetônicos, mas elementos naturais. PriRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

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meiro: essas palmeiras tentam dar uma ideia de que a imagem está dentro da igreja porque elas lembrarão colunas quando estiverem grandes, colunas de igreja; mas ao mesmo tempo, não é um elemento artificial, não é de concreto pra que deixe a imagem fora. Ela vai dá sombra e a impressão de que a imagem está dentro da igreja estando fora. É uma ideia que embora seja minha, é uma ideia que vários arquitetos e paisagistas barrocos colocaram. O número de doze é por ser um número simbólico para a teologia católica: as doze estrelas da coroa de Nossa Senhora; as doze tribos de Israel, no Antigo Testamento, e os doze apóstolos do Novo Testamento.

Neste recorte, percebemos quanto os que se encontram como responsáveis pela gestão da instituição religiosa preocupam-se com a representação simbólica de controle de seus fiéis. De antiga querela eclesiástica a viés orientador do projeto do santuário, seus responsáveis preocupam-se em englobar e controlar a massa de fiéis católicos devotos de Nossa Senhora da Conceição. Observemos outro trecho de entrevista, agora com o então secretário paroquial: Uma coisa que foi certa foi esse negócio do projeto pra que a imagem ficasse fora da igreja. Então, houve o conselho dentro da comunidade mais Pe. Sérgio e Pe. Josivan, e se achou de não colocar a imagem dentro, porque se você a colocasse dentro, você estaria privando ela, e quando foi colocada aqui há cem anos atrás, ela não foi pra ser de uma pessoa ou de tal grupo. Então, quer dizer: a imagem pertence ao povo. Já viu a imagem dentro da igreja com as portas fechadas, à noite? Tem gente que não entra na igreja, como o pessoal de Resistência, mas adoram a imagem do lado de fora dos portões. Se colocasse dentro da igreja, que horas iriam ver a imagem? Seria forçar o povo a entrar na igreja pra ver; seria uma polêmica. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140, 2014

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Neste trecho, aponta-se para a tentativa de se promover a unidade entre instituição, fiel e a Santa Conceição. A fala do secretário alinha-se à de pe. Josivan no que se refere ao respeito pelo que se faz e já foi feito por pe. Reginaldo Veloso e seu grupo. Diante disso, procuramos pe. Reginaldo e o entrevistamos sobre a construção do novo santuário, sua relação com a igreja e comunidade católica do Morro, no sentido de perceber se o mesmo se sentia contemplado. Olha, eu nem estou sendo chamado em causa, levado em consideração, e por uma questão, eu diria até simbólica, uma questão de princípios, coerência, eu não me sinto com nenhum interesse em contribuir, em estar trocando opiniões e está ligado na coisa. Eu espero que seja uma coisa da melhor possível pro povo, desejo, mas eu não me considero como uma pessoa que tenha alguma coisa a dizer ou que tenha que participar de alguma maneira. Podemos observar que tanto os padres envolvidos em nossas análises, bem como muitos dos agentes sociais envolvidos nesse processo de sociabilidade religiosa, possuem argumentos e posicionamentos diversos quanto à execução da construção de mais uma obra institucional. Enquanto o pároco da igreja oficial apresentava-se como representante de uma igreja engajada na unidade de todos os fiéis católicos que convivem com a paróquia do Morro da Conceição, temos que o líder do segundo polo defende o não envolvimento de seus seguidores em qualquer ação que aponte para esta unificação, ao mesmo tempo em que paralelo às determinações dos dois grupos, encontra-se uma massa de católicos caracterizada pela sua autonomia, continuando a exercer sua devoção a Nossa Senhora da Conceição à sua maneira.

Considerações

finais

Passados cento e dez anos da chegada da imagem de Nossa Senhora ao Morro da Conceição, verificamos o quanto essa representação de devoção e fé religiosas esteve permeada por uma série de querelas que transpassam o campo religioso e se relacionam com os campos político, ideológico e simbólico. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 113-140 2014

Será mesmo de Nossa Senhora, o Morro da Conceição?

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Procuramos com esta comunicação apresentar um perfil sociorreligioso da comunidade católica do Morro da Conceição em virtude da relevância que a mesma possui na cidade do Recife, não só em termos religiosos, mas também políticos e culturais. A partir da observação desse contexto, conseguimos melhor entender como sua sociabilidade passou a se desenvolver a partir das relações do que classificamos como os três polos de vivência católica, identificando antagonismos entre os dois primeiros polos, mas também, práticas de congruência entre eles e o catolicismo popular. De toda forma, faz-se importante ressalvar que atualmente, a comunidade é administrada por um novo pároco, assim como a própria Arquidiocese de Olinda e Recife, hoje comandada por Dom Fernando Saburido. Nesse sentido, será de suma importância perceber qual o impacto que seu arcebispado causará nas relações sociorreligiosas do Morro, considerando que o mesmo trabalhou com Dom Hélder Câmara e que todos se encontram inseridos dentro de um complexo e dicotômico sistema de alternância eclesiástica e administrativa que prevalece na Igreja Católica e sua sede no Vaticano, terminando por influenciar diretamente a formação do catolicismo no Brasil, e mais especificamente, no Morro da Conceição.

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OS CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE DE PERNAMBUCO E A POLÍTICA ENTRE O PRIMEIRO REINADO E AS VÉSPERAS DO DOMÍNIO DO PARTIDO DA PRAIA1 Paulo Henrique Fontes Cadena2 Resumo: Na década de 1830, os Cavalcanti de Albuquerque de Pernambuco eram acusados, nas páginas do Diário de Pernambuco, do domínio político da Província. Conseguiriam subir ao Senado Imperial, na mesma década, dois dos seus membros. Neste artigo estudaremos a trajetória política dos irmãos Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Suassuna), Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Albuquerque), Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Barão de Muribeca) e Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Camaragibe) entre o Primeiro Reinado e as vésperas do domínio do Partido da Praia em Pernambuco (1844). Palavras-chave: Império do Brasil, Cavalcanti de Albuquerque, Pernambuco. Cavalcanti de Albuquerque Family in Pernambuco and the politics between the First Reign and the beginning of Praia Party’s influence Abstract: In 1830, the ‘Cavalcanti de Albuquerque’ family of Pernambuco was  mentioned, in the pages of the Diário de Pernambuco,  because of their political domain on the Province. They were able to send to the Imperial Senate in the same decade two of their members. This article will discuss the political trajectory of the brothers Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Viscount of Suassuna), Antonio Francisco de Paula e Hollanda

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Artigo recebido em maio de 2014 e aprovado para publicação em junho de 2014.

Doutorando em História da Universidade Federal de Pernambuco.

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Cavalcanti de Albuquerque (Viscount of Albuquerque), Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Baron of Muribeca) and Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Viscount of Camaragibe) between the First Reign and the eve of the Praia Party domain in Pernambuco (1844). Keywords: Empire of Brazil, Cavalcanti de Albuquerque, Pernambuco.

Pelos idos da década de 1830, os Cavalcanti de Albuquerque conseguiam incomodar a política provincial de Pernambuco e faziam jogos bem armados na Corte. Se as denúncias anti-Cavalcanti foram tantas, do alto do Senado eles observavam os seus adversários. O caminho traçado fora longo. Taunay lembrara que “dentre as famílias senatoriais nenhuma houve tão largamente representada como a nordestina e sobretudo pernambucana dos Albuquerques e Cavalcantis” (TAUNAY, 1978:160). No sábado, 9 de julho de 1831, na primeira página, o Diário de Pernambuco apresentava as suas críticas ao domínio Cavalcanti de Albuquerque em Pernambuco: Temos poupado até aqui os nomes dos Senhores Cavalcantes em diversos papéis, que temos publicado; mas já não é possível guardar essa atenção: eles não pecam por ignorantes. Como não temos parentes, nem dependemos, nem estamos ligados a família alguma, não podemos ser acusados de querer tirar de uma para dar a outra, não queremos sim, que uma família prepondere e domine a nossa província, ou outra qualquer do Brasil, e não é para com isso ganharmos para fins particulares.3

O principal foco da historiografia sobre a época que antecede a Insurreição Praieira tem sido a oposição aos Cavalcanti de Albuquerque, como era o caso dos praieiros, ou até mesmo os ditos “cavalgados”, tais como os seguidores de Borges da Fonseca, os escravos e a “populaça” do Recife. A proposta deste trabalho 3

APEJE, Diário de Pernambuco, 9 de julho de 1831.

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é estudar os Cavalcanti de Albuquerque identificando as suas trajetórias, compreendendo os problemas políticos entre os dias do Primeiro Reinado até 1844, as vésperas do governo praieiro, reconhecendo algumas alianças e o rompimento das mesmas. Desde os fins do século XVIII, os Cavalcanti de Albuquerque buscavam chegar ao poder. A tentativa de conseguir o Foro de Fidalgo Cavaleiro de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque, não fora acertada.4 Mesmo se mostrando ser um dos homens mais ricos de Pernambuco, com três engenhos de fazer açúcares, não conseguia o Foro de Fidalgo Cavaleiro: nem por serviços e nem por sangue. Todavia, como bem lembrou Hespanha, os sentimentos de raiva, advindos da ganância por cargos e até pelo sentimento de terem sido esquecidos pelo Rei, levavam os homens da Colônia a revoltarem-se (HESPANHA, 2010:52). Foi assim, que em 1801, os filhos de Francisco Xavier – Luiz Francisco, José Francisco e Francisco de Paula – confundiam as palavras poder e liberdade. Faziam uma conspiração contra Portugal, mesmo que fosse mental, como indicou Pereira das Neves (NEVES, 1999:439-481). Tudo ficara em perpétuo silêncio, pelas manobras daqueles dias. Todavia, a liberdade era, nesse momento, interesse pessoal dos Cavalcanti de Albuquerque. A liberdade estava diretamente ligada ao poder. Não se sentindo intimidados pelas prisões em 1801, continuavam buscando a nobilitação e espaços no poder. Em 1817, os Cavalcanti de Albuquerque se desentendiam mais uma vez com a Coroa. E vinha outra vez a ideia do libertar-se para alcançar o poder. Mas, era mais uma tentativa frustrada. Os cálculos para as ações de 1817 não foram precisos: além da liberdade perdida por Francisco de Paula - que ficara conhecido por Coronel Suassuna -, pelo seu irmão Luiz, e por seu filho Francisco de Paula, nos cárceres da Bahia, ficavam privados da vida de José Francisco (filho do Coronel Suassuna). O Real Erário confiscara toda a safra do Engenho Suassuna (1 conto e 642 mil réis), os animais, instrumentos para o fabrico LAPEH – AHU_ACL_CU_015, Cx.224, D.15122. Pedido de Foro de Fidalgo Cavaleiro de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque.

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do açúcar, os móveis avaliados em 95 mil e 300 réis, um terreno nos Afogados, dentre outros bens. Muito mais coisas foram retiradas das mãos do Coronel Suassuna e vendidas em leilão: parte da Ilha de Joana Bezerra, e até “um retrato da posse do Réu insurgente Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque que sendo ele da pessoa do Governador e Capitão General da Capitania de Moçambique José Francisco de Paula Cavalcanti irmão do Réu por sete mil réis”.5 Quem arrematou o retrato, oitenta livros velhos, 19 vacas de leite, 42 ovelhas grandes e 5 pequenas, a renda de três anos do Engenho Suassuna com fábricas de gado e escravos fora Guilherme Patrício Bezerra. Não custa nada lembrar que era ele o marido de Dona Francisca Maria Joaquina Cavalcanti de Albuquerque, filha natural do Coronel Suassuna.6 O coronel Suassuna morria em 1821, deixando várias dívidas, sobrando apenas 4 contos 165 mil 832 réis para dividir entre todos os filhos vivos7: Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (futuro Visconde de Suassuna), Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque (futuro Visconde de Albuquerque), Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (futuro Barão de Muribeca), Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (futuro Visconde de Camaragibe). Ainda havia os herdeiros da já falecida filha Dona Maria Luiza Francisca de Paula Cavalcanti de Albuquerque, que fora casada com José Castor Barboza Cordeiro. Não sobrava uma imensa fortuna. O engenho Suassuna era descrito, no inventário do Coronel Suassuna, como velho, muitas vezes. Até algumas das suas peças não podiam ser mais usadas.8 Todavia, era na década de 5

IAHGP, Caixa 5, 669, 1817, Inventário de Dona Maria Rita de Albuquerque e Mello, senhora do Engenho Suassuna, p. 44.

6

IAHGP, Caixa 5, 669, 1817, Inventário de Dona Maria Rita de Albuquerque e Mello, senhora do Engenho Suassuna, p. 44 verso.

7

IAHGP – Caixa 023, TJR1, 1821 – Inventário de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque: Senhor do Engenho Suassuna, pp. 55 verso – 57 verso.

8

IAHGP – Caixa 023, TJR1, 1821 – Inventário de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque: Senhor do Engenho Suassuna, pp. 29 e 94.

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1840 que o engenho mostrava a sua imponência (CADENA, 2013:85). No entanto, nesse tempo, Francisco de Paula, o filho, já havia sido presidente da Província de Pernambuco, Ministro da Guerra, Deputado na Província e era Senador. O projeto do poder pela política dava certo e lhes era muito rentável. Em 1822, quando ascendia ao governo de Pernambuco o “Governo dos Matutos”, já estava lá Francisco de Paula, que não mais sairia do poder em Pernambuco, com exceção do período entre 1828 e 1832. Mas, entre 1826 e 1844, ele assumira a Presidência da Província, pelo menos sete vezes, além do cargo quase eterno de vice-presidente (CARVALHO, 1998:111). Percebendo o ano de 1835, um dos quais Francisco de Paula assume as rédeas pernambucanas, os registros da polícia civil sobre a segurança da província não são dos melhores. E nem as condições das celas que acondicionavam os presos. Assaltos, desordens, arruaças, tudo isso havia sob os olhos de Francisco de Paula. Nunes Machado, então chefe de polícia, dava-lhe notícias sobre as situações complicadas quanto aos acontecimentos violentos nas ruas. Chama atenção – além de alguns pedidos de afastamento por problemas de saúde9 – Nunes Machado reclamar a Francisco de Paula por não ser atendido em suas súplicas.10 Todavia, Hollanda Cavalcanti, a 27 de novembro de 1824, dava notícias a Pedro Francisco, por carta, e dizia: “O Mano Francisco continua a governar a sua casa; e com que arte, e com que probidade. Quão feliz que nós somos. Este irmão merece um cantinho no nosso Oratório”.11 Talvez por governar tão bem o que era de posse de sua família, esquecesse, em alguns momentos que lhe convinham, de segurar às rédeas os problemas que afligiam a Província. Pode-se até pensar que Francisco de Paula estava mesmo era se importando com seus APEJE – PC2, p. 348.

9

APEJE – PC2, p. 191.

10

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de Paula Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

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interesses, e que a expressão “governar a sua casa” seja relativa, sim, ao governo de Pernambuco. Hollanda Cavalcanti, depois de ter andado por Moçambique, ajudando o tio José Francisco, volta para Pernambuco em 1824. Lutando contra a Confederação do Equador, estava do lado de Pedro I, e segundo Marcus Carvalho, por isso, recebia apoio real nas eleições que se dariam mais tarde, à Câmara (CARVALHO, 2002:49). Também era um militar de vasta experiência. No ano de 1846, quando era Ministro da Fazenda, Hollanda Cavalcanti discursara na Câmara dos Senhores Deputados e dissera que “eu mesmo já negociei com escravos”.12 Colocava que como seu emprego em África não o havia dado fortuna, “comprei alguns escravos e os trouxe para o Rio: comprei-os na melhor boa fé, como qualquer homem trata o mais licitamente que se pode fazer”.13 Tal fala confirma uma informação dada por Antonio José de Lima Leitão, que o escrevera de Moçambique aos 5 de janeiro de 1820. Ao ser acusado de revolucionário junto ao tio de Hollanda, Leitão pedia uma defesa junto ao Rei e que “dou a V.S. por esta minha carta todos os poderes de se concertar com o nosso amigo Manoel Joaquim da Silva Porto para tudo que julgarem dever convir-me, e para dele receber, sendo-lhe preciso, parte, ou todo o produto da minha metade dos negros que vivos chegarem”.14 Com isso, percebemos que Hollanda Cavalcanti comerciara, também, em África, além de ministrar aulas de Matemática e servir como militar. Luiz Francisco não acompanhara os irmãos militares Hollanda Cavalcanti e Francisco de Paula. Seguiria a carreira jurídica e do emprego público. Diria ele em 1825, aos irmãos mais no Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 25 de junho de 1846. p. 455. Disponível em: imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?se/CodColecaoCsv=A&Data in=25/6/1846. Acesso em 16 de nov. de 2013.

12

Idem.

13

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Moçambique, 5 de janeiro de 1820: Carta de Antonio José de Lima Leitão para Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque.

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vos: “este emprego me dá uma subsistência independente da minha família, e espero ser útil a vocês, quando se formarem”.15 A ajuda que pensava em dar Luiz Francisco aos irmãos Pedro Francisco e Manuel Francisco não era financeira, todavia, de lhes conseguir, também, algum lugar na malha clientelar. O emprego público era tão importante, na visão desse irmão, que se preocupava, ainda em 1831, que Manuel Francisco “se conserve por hora sem emprego público; a nossa vez nos há de chegar sem fazer para isso muito empenho”.16 Sendo o diploma de direito uma das condições para aqueles que pretendiam chegar aos altos postos (CARVALHO, 2003:125), como afirma José Murilo de Carvalho, com os irmãos Pedro e Manuel não seria diferente. Pelos dias iniciais do rompimento entre Brasil e Portugal, Pedro Francisco ainda estava em Portugal, estudando. Mas, com a separação, Pedro e Manuel vão estudar direito em Göttingen. Talvez o rompimento não fosse apenas político com Portugal, mas também, educacional e ideológico (CADENA, 2013:94). Em 27 de novembro de 1824, Hollanda colocava a Pedro Francisco: “Árduas são a maior parte dos sacrifícios que a sociedade exige de nós: e entretanto a tua Pátria precisa muito de pessoas que saibam o Alemão, e eu folgaria muito de te ver Alemão bem Alemão”.17 Entretanto, já em 1º de novembro do mesmo ano, Hollanda dissera: “continuem vocês a distinguir-se nos seus estudos que é o maior serviço que podem prestar a sua Pátria”.18 Era este distanciamento de Portugal que se pre IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Recife, 11 de maio de 1825: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

15

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 08 de junho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

16

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

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IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de

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tendia, sem esquecer do serviço à pátria, nos postos ligados ao Estado, ao qual estariam fadados a servirem. Em 1826, iniciam as discussões sobre a abertura dos cursos jurídicos no Brasil. A elite muito se interessava em ver seus filhos, agora mais facilmente, formados nas leis, sem a necessidade da separação obrigatória pelo Atlântico. Percebendo isso, Luiz Francisco ia montando Pedro Francisco para ser professor dos cursos jurídicos que se fundavam no Brasil, e dizia: “Você pelo seu diploma está habilitado para obter/ com preferência a qualquer outra pessoa/ uma das cadeiras de Política, que fazem parte dessas escolas”.19 Pedro Francisco o foi. Nesse posto, além de lecionar para os filhos da elite – os futuros possíveis governantes – ainda teriam bons vencimentos sendo funcionários públicos. Ainda mais, os favores eram uma boa moeda de trocas, passando em favores de não-reprovação e proteção. Um exemplo disso é a carta recebida por Pedro Francisco, quando já lente do curso jurídico de Pernambuco, em 1837, enviada por Miguel Calmon du Pin, o futuro Marquês de Abrantes: Consta por aqui, que o Sr. José Ignácio Accioli, de uma boa família desta Província, se tem armado por lá um casamento; e que, para coagi-lo a isso, o ameaçam até com RR no seu último exame, visto ser ele estudante do 5º ano nessa Academia de Olinda. E posto que eu não dê crédito a ameaças tão indignas, todavia sendo mui possível o emprego d’alguma violência em negócio tal, vou rogar-lhe encarecidamente, que proteja ao jovem Bahiano, de quem falo, e interponha todos os seus bons ofícios a fim de que ele não seja sacrificado, e roubado às Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. 19

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1826: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

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esperanças que tem dado à sua família natural. É favor que espero do meu amigo.20

Não era apenas um favor a Abrantes, mas, a “uma boa família” da Bahia. A citada proteção deve ter rendido alguns bons pagamentos em alianças políticas e negociações. A primeira legislatura à Câmara dos Senhores Deputados dava-se entre os anos de 1826 e 1829. Das 13 vagas pernambucanas, temos Luiz Francisco e Hollanda Cavalcanti assumindo duas delas. A atuação de Hollanda Cavalcanti era intensa. As brigas com o deputado Bernardo Pereira da Vasconcellos eram frequentes. Ainda nas sessões de 1826, Hollanda reclamava contra os taquígrafos, e não era sem razão. É perceptível nos Anais do Parlamento Brasileiro, as inúmeras vezes em que as falas do deputado pernambucano são suprimidas. A expressão “não foi ouvido” é abundante. Talvez fosse uma briga ou até questão política mesmo o não registrar os pronunciamentos “holandeses”. Os reclames de Hollanda deveriam ser tantos que incomodavam. Se não o calavam nas sessões presentes, o calavam nas páginas do registro (CADENA, 2013:101). Hollanda também se pronunciaria contra o Imperador, nas emendas oferecidas ao voto de graças às Falas do Trono de 1828. Mas, mesmo assim, ainda estaria no Ministério que era dissolvido por Pedro I, nos dias anteriores à sua abdicação (CARVALHO, 1998:111). Com a saída de Pedro I e a chegada da Regência Provisória, os Cavalcanti de Albuquerque não se alinhavam com a política de então. Aos 8 de julho de 1831, Luiz Francisco escrevia uma carta a Pedro Francisco, informando que “renunciamos não só o Ministério mas todos os empregos”.21 Luiz Francisco falava por um grupo: “Irmão e primos somos aqui deputados da oposição”.22 IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Bahia, 2 de abril de 1837: Carta de Miguel Calmon du Pin para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

20

IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 08 de julho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque.

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IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa

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Nesse momento, havia a aliança entre os Cavalcanti. Junto com Luiz Francisco e Hollanda, estavam Sebastião do Rego Barros e Francisco do Rego Barros: os primos. Dessa forma, percebemos o que Carvalho e Câmara quiseram dizer com “os Cavalcanti e seus aliados não agiam quase como um partido apenas na Província. Também era assim no Parlamento” (CÂMARA, CARVALHO, 2008:14). Se não funcionavam como partido, acionavam o poder como um forte grupo de interesses regionais e familiares. Por volta de 1833, os Cavalcanti conseguiam estar na Câmara dos Deputados, na Corte, com a vice-presidência de Pernambuco, e ainda estava Hollanda como juiz de paz e Luiz Francisco, desembargador da relação. Iam montando a problemática do poder. Ao que parece, era, Hollanda, um estrategista político, o líder da parentela Cavalcanti na Câmara (CADENA, 2013:111-112). O Ato Adicional teria as suas discussões pelos dias de 1834. Eram criadas as Assembleias Legislativas Provinciais. A Regência Una substituiria a Trina, através de eleição. O Diário de Pernambuco publicava, aos 26 de fevereiro do ano seguinte, a lista dos 36 deputados provinciais. Nela estavam Pedro Francisco, Francisco de Paula e Luiz Francisco. Manuel Francisco apareceria, mais tarde, entre os suplentes.23 Nos tabuleiros dos jogos do poder, as peças se armavam. Enquanto isso, na Corte, ia se delineando a paisagem da eleição regencial. Não seria sem discórdias que os moderados chegariam ao nome do Padre Diogo Antonio Feijó para a candidatura (SOUSA, 1988:209). Pensou-se muito em Luiz Francisco como candidato opositor ao religioso, todavia, sairia, na verdade, Hollanda Cavalcanti. Por volta de abril de 1835, iam publicando-se as prévias eleitorais. Talvez por isso, para contornar as perdas, em 6 de junho de 1835, Luiz Francisco apresentava à Câmara dos Deputados um projeto de maioridade para Pedro II. Mas, aos 19 de junho, o projeto não era admitido à discussão. Todavia, 223 – Rio de Janeiro, 08 de julho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. APEJE, Diário de Pernambuco, 26 de fevereiro de 1835.

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aos 9 de junho, sairia o nome de Feijó como regente, mesmo quem em Pernambuco, Feijó tenha obtido 179 votos contra os 354 de Hollanda, mostrando a força dos Cavalcanti na província. No entanto, a pequena diferença de 575 votos que havia entre Feijó e Hollanda, na contabilidade geral, mostrava a grande divisão política pela qual passava o Império, naquele momento (CADENA, 2013:128-130). Mesmo com tudo isso, Pernambuco estava sob o poderio Rego Barros – Cavalcanti. A província estava nas mãos de Francisco de Paula. Na Assembleia local, estavam eleitos além do próprio Francisco de Paula, Pedro Francisco, Manuel Francisco e Luiz Francisco. No Rio de Janeiro, Hollanda, Sebastião e Francisco do Rego Barros comungavam os interesses. Por 1837, o governo de Feijó não ia bem. As articulações de Bernardo Pereira de Vasconcellos para o Regresso iam desgastando o governo, além das revoltas que iam aparecendo nas províncias. Tanto os jornais quanto os deputados, criticavam o governo do padre de Itu (SOUSA, 1988: 221 – 222). Inclusive Hollanda, que diria: “como se pode resistir às seduções em um governo, como o nosso, cheio de seduções”.24 Da forma indicada por Cascudo, nesse momento, Hollanda perdera um pouco do predomínio político, “mas conservava o prestígio de sua sugestiva combatividade borbulhante” (CASCUDO, 1938:163). Entretanto, pelos dias do segundo semestre de 1837, Hollanda já não tinha mais a companhia do seu irmão Luiz Francisco na Câmara. E aos 23 de março de 1838, o Echo da Religião e do Império noticiava a sua morte, ocorrida aos 13 de março: O Desembargador Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Deputado Provincial e Geral, faleceu no dia 13 do corrente! Ótimo pai de família, cidadão de todo estimado por suas qualidades cívicas, Magistrado de uma reputação ilibada, orador atilado,

Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 08 de julho de 1837. p. 63. Disponível em http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Dat ain=8/7/1837. Acesso em 09 de maio de 2011.

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e sensato [...]. A Pátria perdeu nele para sempre um filho de grandes esperanças, e o partido da Legalidade um dos seus mais decididos propugnadores!!! Voou à morada dos Justos, donde era digno. Pernambuco!! Guarda o depósito de suas cinzas, que serão sempre abençoadas na recordação dos seus serviços.25

Em fevereiro de 1837, eram marcadas eleições para uma vaga no Senado, por Pernambuco. Os candidatos seriam Pedro de Araújo Lima, Hollanda Cavalcanti e seu irmão, Francisco de Paula. Hollanda saía o mais votado com 292 votos, seguido de Francisco de Paula (206) depois, Araújo Lima (186). Todavia, a carta imperial indicava Pedro de Araújo Lima senador do Império (CASCUDO, 1938:165-166). Com essa atitude, Feijó mostrava as suas pretensões. Já queria se desfazer da Regência. Como não se dava, pessoalmente, bem com muita gente, e não queria dar “a seus adversários políticos o prazer de dizerem que o haviam enxotado da regência” (MELLO MORAES, 1861:36), buscava escolher, para seu lugar, alguém com sobriedade política. E no dia 18 de setembro indicava Araújo Lima Ministro do Império. No outro dia, Feijó deixava a Regência nas mãos do pernambucano. Era a vitória do Regresso, a subida ao poder do futuro Marquês de Olinda. O ministério nomeado por Araújo Lima trazia Vasconcellos com ministro da Justiça e Império. Ainda vinham Sebastião do Rego Barros na Guerra e Maciel Monteiro nos Negócios Estrangeiros. Devemos perceber, nesse momento, o que Marcus Carvalho e Bruno Câmara já haviam indicado: no nascimento dos Partidos Políticos no Brasil, havia Cavalcanti de Albuquerque dos dois lados, o que beneficiava os jogos políticos nas buscas pelo poder. Hollanda ficava ao lado dos progressistas, e os seus irmãos faziam coro com os Regressistas (CÂMARA, CARVALHO, 2008:14). Nesse processo, Araújo Lima nomeava para a Presidência de Pernambuco, Francisco do Rego Barros. Era uma solução que não causaria tantas tensões. Afastava Francisco de APEJE, O Echo da Religião e do Império, 23 de março de 1838.

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Paula do poder direto, mas deixava o seu primo no poder. Com essa forte coalizão de primos e irmãos, até 1842, não havia muita diferença entre conservadores e liberais, em Pernambuco, mesmo que cada um tivesse a sua atuação em espaço próprio (CAVALCANTI JUNIOR, 2001:38-39). Por esses dias acontecia, então, o auge da concentração de poder da política pernambucana nas mãos de uma família, donde os “cavalgados” deveriam pedir por clemência, favores aos Cavalcanti. Era o coroamento de um longo caminho de trajetórias paralelas que se uniam, nesse momento, pelo poder. Apenas pelo interesse do poder. A “populaça” ficava fora das estratégias: só entrava aliciada por algum benefício, quando era necessário. Senhores abastados tomavam para si cargos públicos e abusavam das suas posições. Todavia, aos poucos, Rego Barros vai se distanciando dos primos, e dando as mãos à Araújo Lima. Era uma estratégia para ir consolidado seu espaço político. Como indicara Corrêa de Oliveira, Francisco do Rego Barros era o representante da política de Araújo Lima em Pernambuco (OLIVEIRA, 1988:76). Até então, Araújo Lima era regente interino. Depois de muitas discussões, foram marcadas eleições para o dia 22 de abril de 1838. Araújo Lima e o grupo do Regresso tinham total interesse de manter-se no poder. E ainda mais: o jogo estava quase ganho. A maioria parlamentar era de apoio regressista (CADENA, 2013:144). Nesse mar turvo e conturbado, aparecia a figura de Hollanda Cavalcanti como candidato da oposição. Ligar-se-ia a uns restos de votos e até das propagandas das eleições anteriores. Em Pernambuco, fazia pouco tempo que fora candidato a uma vaga senatorial. (CASTRO, 2010:75). Em janeiro de 1838, a lista tríplice das eleições senatorias de Pernambuco subiam para as mãos de Araújo Lima. Hollanda Cavalcanti era escolhido dentre os três candidatos: Antonio Joaquim de Mello, um antigo revolucionário, Hollanda e Francisco de Paula. Não era sem interesses que Araújo Lima chamava Hollanda para o Senado. Sabia bem que ele era uma faca de dois gumes, mas, reconhecia que na orquestra imperial, HolRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014

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landa tocava violino e viola com a mesma desenvoltura. Caminhava entre todos os grupos, sem problemas. Era mesmo, um defensor dos seus interesses. A subida de Hollanda ao Senado pode até ter sido alguma barganha quanto às eleições que se aproximavam (CADENA, 2013:145). Hollanda entrava na arena das eleições regenciais com poucas chances. O que vamos percebendo é que a aliança existente se faz entre o ramo Rego Barros e Araújo Lima. O futuro Marquês de Olinda sustentava os Rego Barros em Pernambuco, e eles se resolviam com os seus primos Cavalcanti quando necessário fosse. Não parece que houve uma aliança contínua entre esses ramos familiares. As estratégias políticas de união apareciam quando eram necessárias, quando o jogo estava deixando de ser controlado por alguma mão Rego Barros – Cavalcanti. Mas, mesmo sem o apoio dos primos, Hollanda saia vitorioso em Pernambuco. Muita gente escreveu nos periódicos. Os pseudônimos apareciam aos montes, defendendo o melhor candidato. Entretanto, eram correspondências que se pediam publicação. Os jornais da época queriam deixar claro não ter nenhuma influência em suas ideias. É essa imparcialidade dos periódicos, tentando não aderir a nenhum dos dois principais candidatos, que nos leva a crer que não estava sendo fácil para os pernambucanos escolherem entre os dois chefes da província. Dizia o Diário de Pernambuco: “sentimo-nos animados dos mais vivos desejos de sustentar a escolha de ambos os cidadãos em quem reconhecemos igualmente mérito e capacidade”.26 Para o Echo da Religião e do Império, indicar um nome era imprudência, “pois então não queremos comprometer o nosso candidato, nem advogaremos o triunfo de nenhum dos que estão indigitados”.27 Tudo isso era o reflexo da divisão Cavacanti – Rego Barros, desse momento. Aos 6 de outubro, era confirmado Pedro de Araújo Lima como regente do Império, com 4.308 votos. Seguindo vinha Hollanda, com 1.981. Mas, em Pernambuco, Hollanda vencia:

APEJE, Diário de Pernambuco, 18 de abril de 1838.

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APEJE, O Echo da Religião e do Império, 20 de abril de 1838.

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285 contra 183 de Araújo Lima.28 Todavia, em Pernambuco, continuava tudo igual. Francisco do Rego Barros permanecia na Presidência da Província. Em 1839, novas eleições para o Senado, por Pernambuco. Saíram eleitos Francisco de Paula (519 votos), Tomás Antônio Maciel Monteiro (384) e Antônio Joaquim de Mello (370). Aos 29 de setembro de 1839, era chamado Francisco de Paula, que tomaria assento em 1840 (PEREIRA DA COSTA, 1966:169). A força dos Cavalcanti de Albuquerque ia aumentando. Agora, Hollanda e Francisco de Paula estariam no Senado, defendendo os interesses da família. Ao mesmo tempo, a Regência já estava desgastada. Mas, só em 1843 o menino Pedro se tornaria maior. Os liberais iam se armando para propor a maioridade. Para Basile, “a mística e o prestígio que revestiam a monarquia, personificada na figura do Imperador, eram essenciais para restabelecer a ordem que o Regresso tanto pregara” (BASILE, 2009:95). O interessante é que, no Clube da Maioridade, Hollanda Cavalcanti assumia a vice-presidência. E um dos membros era Francisco de Paula. O que vai parecendo é que os irmãos Cavalcanti de Albuquerque não estavam, mesmo, se alinhando com a política de Araújo Lima. A causa da maioridade ia ganhando adeptos, e, como disse Kidder: “Lima, em desespero de causa, agarrava-se com todas as forças ao poder que lentamente lhe escapava das mãos” (KIDDER, 2008:272). Em julho de 1840, caía Araújo Lima, e subia um ministério junto com o Imperador. Assumia a pasta da Marinha, Hollanda; e a Guerra, Francisco de Paula. Assim, com os dois irmãos no ministério, em Pernambuco, tudo permanecia como dantes. Francisco do Rego Barros seguia na Presidência da Província, mesmo que fosse gente de Araújo Lima. Mas, ao mesmo tempo, era primo dos Cavalcanti, e se resolviam em família. Todavia, nesse momento, aparecia a figura de Nunes Machado, posicionando-se contra a maioridade. Tal atitude pode Câmara dos Senhores Deputados. Sessão em 06 de outubro de 1838. p. 63. Disponível em http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=A&Dat ain=7/10/1838. Acesso em 09 de maio de 2011.

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ser reflexo das boas relações de Nunes com Rego Barros, que mesmo sendo primo de Hollanda e Francisco, era apadrinhado de Araújo Lima. Ficava clara a cisão nas alianças. Mas, iam se resolvendo em família (CADENA, 2013:163-164). Quando Araújo Lima colocou Francisco do Rego Barros, Barão da Boa Vista, na presidência da Província de Pernambuco, um grupo de bacharéis se posicionara ao lado dele. Dentre eles, estavam Joaquim Nunes Machado, Urbano Sabino e Antonio Affonso. Eram esses os futuros líderes do Partido da Praia (MARSON, 1987:191). Fora através dos arranjos de Boa Vista e dos Cavalcanti, que esses jovens bacharéis conseguiam subir a Assembleia Geral em 1838. Mas, Boa Vista, aos poucos, como disseram Bruno Câmara e Marcus Carvalho, ia se distanciando ainda mais dos seus primos. Buscava seu próprio espaço político. O problema era que Pedro Francisco ia ofuscando Boa Vista com sua influência entre os conservadores da província (CÂMARA, CARVALHO, 2008:15). A partir de 1842, a política conciliatória do Barão da Boa Vista ia se desfazendo. Poucos cargos para uma grande parentela, não dava para quem queria. Como lembrou Marcus Carvalho: “a distribuição de favores e benesses, contudo, não é ilimitada. Alguém sempre fica excluído” (CARVALHO, 2009:161). Nas eleições gerais de 1842, subiam a Assembleia Geral Pedro Francisco, o Barão da Boa Vista e Sebastião do Rego Barros. Os jovens bacharéis ficavam fora da Assembleia Geral e dos Cargos Provinciais (CADENA, 2013:166). Com tal desconforto, nascia o Partido Nacional de Pernambuco, ou da Praia, como costumaram chamar os “guabirus”, pejorativamente. Brigavam por parcelas do poder, e metiam a “populaça” no meio de toda essa confusão. Dessa forma, Nunes Machado se articulava, na Corte, com Aureliano de Souza Coutinho, o desafeto de Hollanda: “o Ministro do Império com quem nunca tive nem quero ter relações”.29 A aliança entre Aureliano IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1833: carta sem remetente (talvez Hollanda) para “Meu Mano e Amº do C.”.

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e a Praia era, senão, o interesse do primeiro, em enfraquecer os Cavalcanti, tanto em Pernambuco quanto no Parlamento. Por 1843, as eleições provinciais ainda apontavam um tanto do prestígio dos Cavalcanti e também dos Rego Barros, na província. Com todas as incertezas, com todas as tramóias, Pedro Francisco (670 votos) e Francisco de Paula (601 votos) encabeçavam a lista dos deputados provinciais, seguidos por Sebastião do Rego Barros (559 votos). Manuel Francisco também assumia a sua vaga, ocupando espaço no poder: vinha em sétimo lugar (464 votos). Nunes Machado só apareceria em trigésimo oitavo (303 votos). Dessa forma, como era 36 o número de deputados à Assembleia, Nunes Machado não assumia vaga.30 Mesmo com tudo isso, os praieiros se fortaleciam, e o modo mais simples de vencê-los era, ainda, a força e a repressão, além das falsificações. Ter uma maioria na Assembleia Provincial também era muito importante. Numa aliança que outrora estava concentrada entre Rego Barros e Cavalcanti de Albuquerque, agora, cada um ficava lutando pela sua nau, num mar de desesperos e guerras. No outro ano aconteceriam as eleições para a Assembleia Geral. O desespero seria ainda maior para os seguidores do Barão da Boa Vista. E, em 1844, mesmo com todas as tramóias eleitorais, quem saía vitorioso era o grupo da Praia. Alguém que assinava “O Miguel” escrevia para Hollanda, em 13 de setembro de 1844, e alertava: “Vou com fundada esperança de que o mal que hoje sofre Pernambuco há de produzir o bem de reunir todos os membros da tua família, e por termo ao fracionamento que existia: com efeito, se o não fizerem, serão altamente imbecis, altamente criminosos”.31 No final, subiam 13 deputados à Corte. Urbano Sabino Pessoa de Mello e Joaquim Nunes Machado foram segundo e terceiro da lista, respectivamente. Pedro Francisco saía em décimo, enquanto o Barão da Boa Vista em décimo segundo. O resultado final fora a solidificação do poderio do Partido da Praia em Pernambuco, APEJE, Diário Novo, 30 de setembro de 1843.

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IAHGP – Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Recife, 13 de setembro de 1844: Carta de “O Miguel” para Hollanda.

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formando uma bancada forte. Mas, era apenas em 1845, com a queda de Hollanda Cavalcanti do ministério, que os praieiros conseguiriam a subida de Chichorro da Gama para Pernambuco. Segundo Nabuco, “é a presidência de Chichorro (1845-1848) que assinala o pleno domínio da Praia” (NABUCO, 1997:95). Assim, quando as forças Cavalcanti de Albuquerque – Rego Barros não se uniram, a Praia jogara suas fortes ondas contra as sólidas estruturas, carcomendo as suas bases. Quando tiveram de dividir os apoios, perderam: os “guabirus” eram encerrados em suas tocas. Mas, como todo bicho esperto, ficava alerta. Em 1848, voltavam a se unir mais uma vez. Voltavam ao poder. Para conseguirem realizar o projeto de estar na maior parte dos espaços do poder, abraçando com todos os tentáculos as malhas que iam do juizado de paz ao Senado – projeto antigo da família, calcado desde os dias do Brasil colônia de Portugal – que chega ao auge nos dias do século XIX – os Cavalcanti de Albuquerque, em certos momentos, fizeram algumas alianças com os seus aparentados. O que nos parece é que as mesmas possuíam a característica de não serem perenes: faziam-se, desfaziam-se e refaziam-se ao sabor dos interesses. Percebemos três grupos distintos trabalhando paralelamente, que se unem nos períodos de necessidade, atuando por Pernambuco, nos dias do Império do Brasil. Não era necessário que os três grupos estivessem na mesma aliança, ao mesmo tempo, como é o caso dos dias da Regência de Araújo Lima, donde é perceptível a aproximação de Francisco do Rego Barros, do Regente, e certo afastamento do grupo “holandês”, mesmo que Araújo Lima tenha elevado ao Senado os dois irmão Cavalcanti de Albuquerque no período da sua Regência, refletindo a extrema complexidade dessas alianças. O certo é que tanto os Rego Barros como Araújo Lima, além dos Cavalcanti de Albuquerque possuíam ambições próprias. Quando o ego era ferido, ou ameaçado, os elos se rompiam, ou talvez, pelo menos, se afrouxavam. Eram grupos paralelos que buscavam cada vez mais poder, e tantas vezes, se esbarravam nos limites uns dos outros. Se no início do Império do Brasil, os primos Cavalcanti e Rego Barros eram um grupo coeso, e tinham a proximidade do experiente Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014

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Araújo Lima, aos poucos se distanciavam pelos interesses próprios. Quanto mais espaço Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque (Visconde de Camaragibe) ganhava na política pernambucana, mais Rego Barros ia se afastando, pelo comprometimento da extensão do seu poderio. Araújo Lima, que não atacava os Cavalcanti e nem os Cavalcanti a ele, mesmo quando os interesses eram prejudicados, percebia nos dias de 1848, que os adversários, naquele momento, dele e do grupo “holandês” eram comuns: uniam-se. Nos dias do reinado de Pedro II, tanto os irmãos Cavalcanti de Albuquerque quanto Araújo Lima e os Rego Barros continuavam no poder. E com o mesmo jogo de sempre. O Partido da Praia já havia se esfacelado. O interesse, agora, quando todos iam se assentando no Senado, eram os benefícios: quanto mais, melhor. Enquanto todas essas tramas iam sendo tecidas nos corredores da Corte, em Pernambuco, o Barão de Muribeca (Manuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque) continuava perseguindo os espaços do poder. Era peça importantíssima no jogo. Ia mantendo sua cadeira na Assembleia Provincial de Pernambuco.

Referências Documentos Manuscritos Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate – Laboratório de Pesquisa e Ensino de História – UFPE AHU_ACL_CU_015, Cx.224, D.15122. Pedido de Foro de Fidalgo Cavaleiro de Francisco Xavier Cavalcanti de Albuquerque.

Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano Livro Polícia Civil 2.

Instituto Arqueológico, Histórico

e

Geográfico Pernambucano

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Caixa 5, 669, 1817 – Inventário de Dona Maria Rita de Albuquerque e Mello, Senhora do Engenho Suassuna. Caixa 023, TJR1, 1821 – Inventário de Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, Senhor do Engenho Suassuna. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Moçambique, 5 de janeiro de 1820: Carta de Antonio José de Lima Leitão para Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 1º de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Menuel Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1824: carta de Antonio Francisco de Paula Hollanda Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Recife, 11 de maio de 1825: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1826: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 08 de junho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 08 de julho de 1831: carta de Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1833: carta sem remetente (talvez Hollanda) para “Meu Mano e Amº do C.”. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014

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Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Bahia, 2 de abril de 1837: Carta de Miguel Calmon du Pin para Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque. Arquivo Orlando Cavalcanti – Fundo Visconde de Camaragibe – Caixa 223 – Recife, 13 de setembro de 1844: Carta de “O Miguel” para Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti de Albuquerque.

Documentos Impressos Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano Diário de Pernambuco, 9 de julho de 1831. Diário de Pernambuco, 26 de fevereiro de 1835. Diário de Pernambuco, 18 de abril de 1838. Diário Novo, 30 de setembro de 1843. O Echo da Religião e do Império, 23 de março de 1838. O Echo da Religião e do Império, 20 de abril de 1838.

Câmara

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Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 141-163, 2014

FRANS POST E O CARRO DE BOIS: O imaginário da paisagem do Brasil Holandês1 Daniel de Souza Leão Vieira2 Resumo: A maior parte da literatura ligada à História da Arte que se dedicou a Frans Post (1612-1680) se limitou a tomar sua produção imagética de forma a reproduzir os discursos do realismo e do exotismo. Por outro lado, a pouco numerosa historiografia que cita sua obra – ou somente usa suas imagens - terminou por se restringir a considerá-la ilustração de textos escritos ou como simples reflexo da “vida cotidiana”. Em ambas as perspectivas, a ausência de problematização da relação entre história e imagem no interior da produção visual de Post constitui quase que a regra geral. A partir desse debate, propomos uma análise formal da tela O carro de bois (1638), para, após a comparação iconográfica com suas telas e desenhos “brasileiros”, proceder a uma interpretação da relação entre essa e os imaginários holandeses sobra a terra do Brasil, relativos a diferentes ideologias de Estado. Palavras-chave: Paisagem Política, Cultura Visual, Imaginário Social, Brasil Holandês, Frans Post. Franz Post and the Ox Cart: The imaginary of Dutch Brazilian landscape Abstract: Most of Art History literature on Frans Post (1612-1680) was limited to the discourses of realism and exoticism. On the other side, historiography that mentions or reproduces his images only considered it as illustration of written documents or mere visual records of everyday life. Both perspectives lack the question about the relation between history and image within his visual production. From this debate, we propose a formal analysis of Ox cart (1638), in order to, after an iconographical comparison to his “Brazilian” canvases and drawings, proceed to an interpretation of Artigo recebido em maio de 2014 e aprovado para publicação em julho de 2014.

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Doutor em Humanidades pela Universiteit Leiden. Professor Adjunto do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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the relation between them and the Dutch imaginaries about Brazilian land, linked to different State ideologies. Key-words: Political Landscape, Visual Culture, Social Imaginary, Dutch Brazil, Frans Post.

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fonte visual e a construção do conhecimento histórico

Diante da imagem, o historiador está diante de um rasgo do tempo. Ou antes, de um rasgo que acentua a diferença entre o próprio tempo do historiador e o tempo da sociedade que produziu a imagem. E na esteira da ampliação dos domínios da História, a imagem tem se tornado um objeto cada vez mais estudado no Brasil. Entretanto, e apesar da atualidade do tema, a problematização e o desenvolvimento de uma crítica das imagens com fins de investigação histórica ainda carecem, teoricamente, de uma maior sistematização e estruturação. Ao contrário de uma longa tradição historiográfica, familiarizada com a crítica acerca das fontes escritas, muito da atual produção da disciplina histórica ainda demonstra pouca intimidade com esse novo objeto e/ ou nova fonte que é a imagem (BURKE, 2001; KNAUSS, 2006). Por conta disso, o estatuto do objeto imagético e do registro visual permanece incerto no interior das delimitações teórico-metodológicas da disciplina da história. Apesar de certas correntes teóricas terem invalidado a possibilidade de seu estudo histórico, ao relacioná-la à questão do anacronismo (DIDI-HUBERMAN, 2006), concordamos com a postura acadêmica que afirma que a imagem pode e deve ser estudada historicamente, desde que seja problematizada e submetida à crítica (BURKE, 2001). Em outras palavras, desde que sua produção e recepção sejam relacionadas ao estudo das relações de poder (BRYSON, 1992 [1983]; FREEDBERG, 1989) e às práticas sociais no interior de uma cultura visual (EVANS, HALL, 1999; DIKOVITSKAYA, 2007). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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Esse encontro, entre o historiador com os pés no presente e o objeto que contém os traços da sociedade passada que o criou, ocorre com todo tipo de artefato produzido ao longo da história. Daí porque esse pode ser passível de vir a constituir fonte com a qual o historiador pode construir um entendimento sobre a História. A questão crucial é que a imagem visual3, pela sua linguagem própria, construída por iconicidade4, sugere ao historiador desavisado a visualização imediata de uma realidade empírica tal como deve ter sido no passado. Não cabe aqui, neste texto, propor uma investigação sistemática dos pressupostos teóricos que têm levado alguns historiadores a se deixar seduzir pelo mimetismo da imagem. Mas, por outro lado, não podemos deixar de apontar algumas questões relacionadas a esse problema. A produção de imagens é uma atividade humana muito antiga. A pedra tumular, na Grécia Antiga, era chamada de “sema”. Como essa geralmente vinha com a impressão de marcas que a adornassem inclusive para a identificação dos mortos, é que as imagens resultantes dessas mesmas marcas passaram a ser chamadas de “semeia”, no grego. Depois, esses termos foram generalizados para todo tipo de marca visível ou sinal gráfico, constituindo-se, por figura de linguagem, em radical para toda a delimitação de um léxico em torno da semântica e mesmo da ideia de signo (DEBRAY, 1993:24). Muito antes das semata gregas terem aparecido, os grupos humanos já pintavam paredes de abrigos e cavernas, como atestam os conhecidíssimos exemplos de Altamira e Lascaux. É importante frisar que a imagem e o visível não são necessariamente coincidentes. Para uma tipologia das “famílias de imagens” (gráficas, óticas, perceptivas, mentais ou mesmo verbais), ver MITCHELL, 1986:10.

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A expressão “iconicidade” é um neologismo derivado da palavra “ícone”, adaptação para o português da expressão grega eikon. Tem havido um certo engano no uso desse último vocábulo por parte da historiografia brasileira, mesmo em autores sérios como PAIVA, 2004:14; e MENESES, 2012:244, uma vez que ambos tomam eikon e “imagem” como sinônimos. Em verdade, o termo grego para imagem é eidolon, daí derivando a nossa palavra “ídolo”. O termo grego eikon se refere à noção de semelhança. Para um debate sobre esses conceitos, ver RICOEUR, 2007:27-34.

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A produção de imagem é, portanto, muito mais antiga do que o aparecimento da própria escrita. Daí supormos, inclusive, um uso social muito mais amplo de imagens do que da escrita, com implicações socioculturais muito vastas para a relação entre o produzir imagens e o próprio fazer histórico (KNAUSS, 2006). O conhecimento da escrita, restrito a elites mercantis, políticas e religiosas, permitiu lentamente uma hierarquização das linguagens. Já a filosofia de Platão tomava a imagem (eidolon) como cópia das coisas (ousia), sendo essas últimas já tomadas como cópias das ideias (eidos) (RICOEUR, 2007:27-34). Esse preconceito logocêntrico permeou a construção dos paradigmas filosóficos e sociais no Ocidente, tornando a linguagem verbal escrita em produção privilegiada, relegando, assim, a linguagem visual e a imaginação a degraus inferiores na pirâmide que constitui o edifício da epistemologia. Não é à toa, portanto, que a tradição da erudição crítica, seguindo a filologia e desembocando na emergência oitocentista do método histórico, tomou como fonte histórica apenas os documentos escritos, oriundos de instituições como o Estado, reproduzindo o seu conteúdo e narrando os feitos dos seus heróis. Ao assim proceder, essa tradição tornou dicotômica a distinção entre o arquivo, relativo ao historiador, e o museu, ligado ao historiador da arte, desconhecendo que ambos os corpora foram monumentalizados pelo mesmo tipo de prática social: o colecionismo. Esse panorama só começou a mudar quando à concepção factual e singularizante da história foi contraposta outra, problematizadora e estruturante. É conhecida demais, na oficina do historiador, a “revolução” que a dita Escola dos Anais provocou, não só na historiografia francesa mas na historiografia de um modo geral, para que precisemos aqui recontá-la. Basta apontar que, graças a essa reviravolta no método histórico – a história como objeto de problematização, tal como nas ciências sociais, houve um alargamento do campo de investigação do historiador. Esse se deu não só pela ampliação da tipologia dos objetos de estudo, mas também pela inclusão de um Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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número cada vez maior de fontes. Esse processo foi acompanhado, como era de se esperar, também por um aumento e mesmo o refino de procedimentos metodológicos. Nesse sentido, emergiu no horizonte cultural ocidental um novo lugar para as fontes visuais. No Brasil, essa tendência também tem sido observada: a produção historiográfica a partir do uso de fontes visuais tem crescido. Assim, em 2006 o III Simpósio Nacional de História Cultural, que teve lugar na Universidade Federal de Santa Catarina, dedicou-se ao tema “Mundos da Imagem: do Texto ao Visual”. Suas apresentações em mesas redondas e conferências foram depois reunidas no livro Imagens na História (RAMOS, 2008:12). Esses textos publicados integraram um conjunto muito maior de trabalhados apresentados no encontro, dos quais 62 foram sobre cinema, 60 sobre artes visuais (pintura, grafite, desenho, gravura, aquarela, caricaturas, escultura), 49 sobre fotografia, 6 sobre televisão, 5 sobre publicidade e 23 ainda sobre diversos outros tipos de imagem, como mapas, monumentos, rótulos de produtos, HQ’s, cartazes, cartões-postais, material digital na internet, etc, perfazendo um total de 205 trabalhos (SILVA, 2010:71). Entretanto, e apesar dessas iniciativas, alguns objetos de investigação histórica permanecem chasse gardée de historiografias refratárias a essas reviravoltas metodológicas do século XX. O Brasil holandês, por exemplo. Alguma coisa já tem sido feita no sentido de introduzir problemas de uma etno-história sobre a obra de Albert Eckhout, muito embora se trate de contribuições da antropologia social e da história da arte. A recorrência ao exemplo dos estudos de Eckhout se justifica aqui porque a obra desse pintor está diretamente relacionada com a produção paisagística de Post para o período nassoviano do Brasil holandês, uma vez que seus temas são correlatos, e seus tratamentos fazem referências ao tema um do outro.5 Não tardou então a surgir novos trabalhos sobre os registros holandeses sobre o Brasil, como o livro editado por Ernst Sobre Eckhout, cf. MASON, 1998; RAMINELLI, 1999; DE VRIES, 2002; BUVELOT, 2004 e BRIENEN, 2006.

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van den Boogaart, Johan Maurits van Nassau-Siegen. A Humanist Prince in Europe and Brazil, por ocasião do tricentenário da morte de Maurício de Nassau, em 1979; e o levantamento bibliográfico e iconográfico realizado por P. Whitehead e por M. Boeseman, Um retrato do Brasil holandês do Século XVII: Animais, plantas e gente pelos artistas de Johan Maurits de Nassau, em 1989. Os livros de Van den Boogaart e o de Whitehead e Boeseman, acima citados, suscitaram questões acerca da imagem nos registros que os holandeses fizeram sobre o Brasil que foram se tornando ponto de partida para o estudo de Frans Post a partir de outros saberes: uma história da arquitetura (MEERKERK, 1989, 2006), uma história natural (TEIXEIRA, 1995, 2002, 2006), e uma etno-história (BOOGAART, 1979). Em relação a essa última, no entanto, os trabalhos se concentraram mais sobre a obra de Eckhout, por conta da própria natureza de sua construção imagética. Assim, uma análise iconográfica das figuras humanas associada à problematização de uma história cultural da representação do Outro permitiu que as imagens de Eckhout fossem novamente investigadas, como atestam os trabalhos citados à última nota. Sobre os estudos acerca da imagem em Post, porém, não houve um desenvolvimento semelhante. Há uma dificuldade em transpor esse campo e introduzir esse debate na iconografia de paisagem, a despeito de Frans Post ter produzido suas imagens sob as mesmas circunstâncias e para o mesmo patrão. A maior parte da literatura ligada à História da Arte que se dedicou ao paisagista holandês se limitou a relacionar sua produção imagética aos discursos do realismo e do exotismo.6 Enquanto, de outro, a pouco numerosa historiografia que cita sua obra – ou somente usa sua produção visual - terminou por se restringir a considerá-la ilustração de textos escritos ou como simples reflexo da “vida cotidiana”.7 Em ambas as perspectivas, a ausência de problematização da relação en6

Cf. LEITE, 1967; SILVA, 2000; e LAGO, 2006.

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Cf. Dutch Brazil, 1997; e NOVAIS, 1997.

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tre história e imagem no interior da produção visual de Post constitui quase que a regra geral.8 Entretanto, pouco a pouco, e depois do seminal artigo do historiador neerlandês Ernst van den Boogaart (2004), alguns trabalhos têm surgido na tentativa de tanto historicizar a produção visual de Post quanto usá-la como fonte visual para o estudo de objetos históricos específicos.9 É no sentido da introdução dessa problemática que justificamos aqui um estudo de caso que permita historicizar a produção visual de paisagem sobre o Brasil holandês a fim de disponibilizar subsídios de análise de imagem para a prática da pesquisa histórica. É importante frisar que este estudo de caso se funda num amplo movimento de reconsideração das imagens produzidas nos Países Baixos do século XVII, movimento esse que englobou tanto a ampliação do escopo do estudo da arte a partir da noção de cultura visual, como na perspectiva de Svetlana Alpers ([1983] 1999), quanto na interpretação da sociedade por uma história da cultura, como em Simon Schama ([1987] 1992).10 Nesse sentido, diante da tela O carro de bois, executada por Frans Post (1612-1680) no Brasil do ano de 1638, o historiador não deve supor que está simplesmente diante da paisagem de Pernambuco daquela era remota, mas de uma produção visual que guarda os vestígios do processo social do olhar. E tendo-a visto, Post pôde conceber estratégias visuais para compor uma representação pictórica a partir de suas impressões e estímulos percebidos. É justamente esse processo semiótico, da percepção do empírico à representação simbólica, que per Para uma apreciação crítica dos autores citados às duas últimas notas, cf. VIEIRA, 2010.

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ORAMAS, 1999; PESAVANTO, 2004; OLIVEIRA, 2006; SOARES, 2009; VIEIRA, 2009, 2011, 2012a, 2012b e 2012c; BOOGAART, 2011; OLIVEIRA, 2012; e ERKAN, 2012.

9

Para não nos alongarmos sobre um assunto que exigiria um minucioso exame, não entraremos aqui no debate sobre arte e cultura nos Países Baixos do século XVII. Para tal debate, com suas respectivas implicações sobre o conceito de paisagem, ver VIEIRA, 2013.

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mite ao historiador vislumbrar as tramas sociais imbricadas à fabricação da imagem. Assim, o quadro em questão não é uma mera janela para um real transparente, tal como considerado por uma historiografia preocupada com o factual, nem tampouco é uma epifania metafísica, imperativo categórico de uma filosofia da estética; mas, antes, constitui um rasgo no tempo para que o historiador investigue as relações de poder que o produziram, o fizeram circular e o significaram através de complexas operações de recepção.

O carro de bois:

representação de lugar e de prosperidade açucareira em Sirinhaém

Imagem 1: Frans Post. O carro de bois. Óleo sobre tela, 62 x 95 cm. Datado e assinado: “F. Post 1638 8 / 15”. Paris: Musée du Louvre.

A segunda pintura (conhecida por nós, hoje) que Frans Post executou, ainda ao tempo em que esteve no Brasil, é O carro de bois (Imagem 1). O quadro foi dado de presente em 1679 por João Maurício, Príncipe de Nassau-Siegen, a Luís XIV, Rei de França, e seguiu como parte integrante das Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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coleções reais até que foi encontrado, no Museu da Marinha, por Pedro Souto Maior, em 1911. Hoje, pertence ao Museu do Louvre, em Paris. No primeiro plano de sua composição, a vegetação arbustiva conduz o olhar do espectador até os dois troncos: uma acácia e um ipê (SOUSA-LEÃO, 1973:23). Da primeira, descem vários cipós; no segundo, duas espécies de bromélias descansam. O rio, separando os planos, delineia a colina que lhe segue, da outra margem, paralela, descendo em direção ao mar. Na suave encosta da colina está um conjunto arquitetônico, provavelmente composto pela casa-grande, a senzala, o engenho e, um pouco mais acima, a capela. À beira do rio, o gado descansa em uma área cercada. A crista da colina está tomada pela mata, que, mais homogênea, possivelmente indica um fragmento original da Mata Atlântica (Imagem 2).

Imagem 2: Detalhe de Frans Post, O carro de bois.

Tomando vantagem da posição alta na colina, e com isso, sem abandonar a condição de “pé no chão”, Post criou uma vista que apresenta o terreno em larga amplitude. Se a Vista Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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de Itamaracá, primeira tela pintada no Brasil por Post, está mais associada ao perfil, então O carro de bois é já um panorama (VIEIRA, 2012b:76-77). Considerando sua produção enquanto a segunda de uma série, foi-nos possível levantar a hipótese de que Frans Post tentou submeter a João Maurício uma outra estratégia visual de representação de paisagem. Enquanto, de um lado, A vista de Itamaracá é uma representação de paisagem como topografia; por outro, O carro de bois é uma representação de paisagem por alegoria. Enquanto a primeira opera por identificação precisa entre o sítio representado e sítio observado, a segunda monta a paisagem do sítio representado por indeterminação ao sítio observado. A vista de perfil era mais apropriada para representar sítios costeiros, abordando-os frontalmente, de acordo com uma iconografia relacionada a relatos de viagem; enquanto o panorama era mais indicado para explorar visualmente terrenos levemente ondulados, como os de amplas porções de terra no interior. Não é à toa, portanto, que essa segunda tela tem sido mais relacionada à convenção da pintura holandesa de paisagem (LAGO, 2006:90). Supõe-se que essa pintura, O carro de bois, trata da localidade da vila de Sirinhaém, na atual Zona da Mata Sul de Pernambuco. O problema aqui é que, diferentemente da semelhança iconográfica entre a tela e o desenho sobre Itamaracá, a composição de O carro de bois não corresponde exatamente à composição do desenho dedicado a Sirinhaém, sendo os pontos de vista seguramente diferentes. Ademais, o conjunto arquitetônico que aparece na pintura não corresponde às construções assinaladas nem no desenho de Post nem no mapa que lhe corresponde no livro de Caspar Barlaeus (Imagem 3).

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Imagem 3: Frans Post, Serinhaim, gravura em cobre, 31 x 50 cm. Assinado e datado: “F. Post 1645”. In: BARLAEUS, 1647,Tabula 12.

De volta à Holanda, em 1645 Frans Post executou uma série de composições em desenhos para servir de base à feitura das pranchas para impressão de gravuras que foram publicadas no livro de Barlaeus (1647). Das sete telas sobreviventes (de um conjunto de dezoito que Post pintou no Brasil), sabemos que cinco apresentam composições que correspodem às composições dos desenhos. Entretanto, duas telas apresentam composições diferentes. É o caso de O carro de bois, associada ao desenho que representa Sirinhaém; e Fort Frederik Hendrik, associada ao desenho que representa a Cidade Maurícia e o Recife. Essa posição, de relacionar O carro de bois ao desenho de Sirinhaém, foi defendida, em um quadro comparativo das composições das telas e dos desenhos, por Pedro e Bia Corrêa do Lago (1999).11 Esse argumento foi retomado em LAGO; DUCOS, 2005; e em LAGO, 2006. Sempre que precisar fazer referência ao assunto, citaremos a última publicação.

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De fato, a própria situação geográfica sugerida na pintura levanta dúvidas se se trata do mesmo sítio representado no desenho. Por exemplo, se o mar pode ser visto, bem próximo à linha do horizonte e à direita da composição na tela, então, a vista é orientada para o norte, o que impediria a visada frontal de Sirinhaém. Mas se o sítio representado realmente corresponde à vila de Sirinhaém, então a vista está orientada para o oeste e, então, não se poderia ver o mar. Além disso, a última colina, defronte do mar, sendo um pouco mais alta que a precedente, é muito semelhante ao motivo de outro desenho de Post, contendo aspecto de descrição orográfica do cabo de Santo Agostinho. No entanto, esse acidente geográfico, tão distante ao norte de Sirinhaém, não poderia ser observado do mesmo ponto de vista que ele adotou para a composição em questão (Imagens 4 e 5).

Imagens 4 e 5: À Esquerda: Detalhe de Frans Post, O carro de bois; à direita: Detalhe de Frans Post, Caput S. Augustini, 31 x 50 cm, gravura sobre cobre. Assinado e datado: “F. Post 1645” In: BARLAEUS, 1647, Tabula 37.

Voltemos, entretanto, a O carro de bois. Em sua composição, três escravos africanos parecem transportar caixas de açúcar, sob a coberta do couro de boi. Considerando a interpretação que Van den Boogaart sugeriu para essa imagem, pode se assumir que se trata de um registro visual de todo o processo de fabricação do açúcar (2004:312). De acordo com essa sugestão, poderíamos hipotetizar que Post pintou uma casa-grande e uma senzala no plano de fundo, a fim de criar uma imagem que representasse o complexo arquitetônico como forma de ocupação da paisagem. Assim, ele poderia fazer ver uma distinção entre os grupos sociais a partir dos diversos tipos de habitação; e até mesmo a relação da situação dessas “formosas aldeias”, no dizer do jesuíta Manuel de Morais, no entorno da “Mattam do Brasil”, como chamavam no Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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século XVII a Mata Atlântica na altura de Pernambuco. A mata representada no alto do morro deve ser entendida, portanto, não como fronteira agrícola, mas como parte constituinte desse complexo agropecuário, uma vez que fornecia madeira de corte, tanto para a construção de equipamento quanto para o abastecimento de combustível para as fornalhas do engenho.12 Havia também uma associação entre a criação de gado e a produção açucareira, uma vez que o gado podia ser usado com diversas finalidades: moer o engenho, transportar a cana e/ou as caixas de açúcar, e fornecer couro.13 Da descrição dessas atividades, implícitas nos motivos do plano de fundo, o espectador poderia voltar ao primeiro plano, seguindo o carro de bois, que trazia as caixas de açúcar, de forma a acompanhar a última etapa produtiva, antes que, chegando ao porto mais próximo, pudesse ser embarcada para a Europa, direto para a mesa do burguês. Nessa cena, os escravos aparecem novamente como que naturalmente integrados à paisagem e a todo esse trabalho, como sugeriu Rebecca Parker Brienen (2006:136-139). Eles não aparentam reclamar de suas tarefas. Antes, se beneficiando do vagar com que os bois puxam o carro, eles parecem se divertir. O escravo sentado sobre o carro até toca uma flauta. O tema aqui, o de trabalho e abundância relacionados ao elogio à fertilidade da terra, e associado ao transporte de cargas por força animal, como nas gravuras flamengas, de Pieter Brueghel, Plausticum Belgicum e Solicitudo Rustica,14 foi, no entanto, relativizado ao meio tropical: ao invés das faias, freixos e olmos europeus, vê-se uma acácia e um ipê, espécies grandes e fortes que poderiam exemplificar tipos vegetais próprios de uma área de vegetação de floresta ombrófila densa. Pelo porte, Sobre a expressão de Manuel de Morais, ver MELLO, 1998[1975]:217; já a expressão “Matam do Brasil” foi usada por Johanes de Laet, quando esse editou postumamente os manuscritos de Georg Marcgraf para a publicação de Historia naturalis Brasiliae em 1648. A esse respeito, ver VIEIRA, 2012c.

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Sobre a preferência pelo boi ao cavalo na moagem da cana, ver MELLO, 1998[1975]:327.

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Reproduzidas em LEVESQUE, 1994; figuras 16 e 17.

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essa vegetação só podia surgir em região de solo fértil. Nesse sentido, a referência a essas espécies e ao seu meio constituía um conjunto de motivos iconográficos que constróem a paisagem através da conotação de fertilidade. O sítio onde se localiza a vila de Sirinhaém está precisamente na borda dessa área: o ponto em que a várzea do rio deixa de ser influenciada pela maré vazante, e o manguezal cede ao capão de mata ciliar, e esse à “mata verdadeira”.15 Em O carro de bois, Frans Post usou, no entanto, outra lógica para construir a relação entre a espacialidade da representação gráfica e a sugestão de localidade específica do Brasil holandês. Se, por um lado, os elementos típicos foram mais desenvolvidos, na relação entre a fecundidade do lugar com as espécies representadas no primeiro plano; por outro, a manipulação da topografia observada foi estendida a um grau tão grande que tornou praticamente impossível associar essa imagem a uma localidade específica. Daí que, sublinhando a verossimilhança da colina encimada pela mata, no ponto preciso em que ocorre um declive abrupto na direção do rio, os Correia do Lago (2006:88-91) defenderam a ideia de que se trata mesmo da vila de Sirinhaém; enquanto Van den Boogaart (2004:312313), atendo-se mais à temática, propôs que a imagem não era a representação de uma localidade específica, mas uma visão da várzea pernambucana, produtora de açúcar. A questão é que ambos os autores estão certos, embora tenham caído nas armadilhas de Post, e de sua montagem visual, ao transpor, na peculiaridade dessa composição específica, os estímulos sensoriais da topografia observada em paisagem representada. De fato, o tema da tela é a imagem de abundância e fertilidade da terra, só que Post usou observações da topografia de Sirinhaém, para, misturando-as com o aspecto visual do Cabo de Santo Agostinho a projetar-se no mar, no canto à direita e bem rente à linha do horizonte, formular um panorama estili Do tupi “caa”, mato, mata; e do tupi “etê”, verdadeiro, referindo-se à mata não inundável, em terra firme, e sempre verde. Cf. verbete “caaetê” in: Dicionário Houaiss; p. 538.

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zado do suikerrijke [rico em açúcar] Pernambuco: de sua área produtora, na encosta dos morros arredondados que sobem na direção oeste formando o planalto da Borborema, às planícies inundáveis da costa, em sua indicação portuária, etapa final do açúcar no Brasil. Mas para fazer tal panorama, Post precisou tomar a posição na colina que, ficando ao lado do rio, lhe daria visada frontal para Sirinhaém. Daí não se vê o Cabo de Santo Agostinho, até porque para tanto, Post teria que dar as costas à vila. Isso indica que essa ficcionalização da paisagem foi resultado de finalizações posteriores em estúdio, onde ele pôde fundir as observações feitas em lugares diferentes, em tempos diversos. Mas essa síntese se deu ao custo de uma identificação mais difícil da localização de Sirinhaém e de sua situação em relação ao todo da região, que deve ter frustrado as expectativas de João Maurício, uma vez que essa estratégia visual de terra ficcionalizada não se repetiu mais nas telas subsequentes, por nós conhecidas. Ademais, a própria estratégia visual da composição da tela foi descartada no momento em que Post teve que incluir Sirinhaém na série de desenhos feitos para a preparação das pranchas do livro de Caspar Barlaeus. Nessa, além das mudanças assinaladas para com Itamaracá (o zoom ótico mais distante, as figuras humanas mais diminutas, e a inclusão da simbologia no brasão oficial), a própria faixa topográfica foi mudada, pois que Post precisou tomar outro ponto de vista, para representar Sirinhaém de forma fácil a uma identificação visual, tal como requerido pela topografia oficial de Nassau. Ao invés da colina ao norte da vila, Post tomou um ponto a leste, situando-se de forma a observar a longa estrutural do terreno onde se situa a vila numa diagonal. A dificuldade maior para localizar essa mudança na composição da topografia tem duas razões: a primeira é que o novo ponto de vista fica próximo a um olho d’água, de forma que o espectador confunde-a, no primeiro plano, com o próprio rio Sirinhaém, a despeito de a legenda remeter o espectador à representação do rio no plano ao fundo. Ademais, o rio, por conta da profundidade naquele trecho, não pode ser atravessado Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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como fazem o cavaleiro e o carro de bois, trazendo sua dama, na composição do desenho. A segunda razão é que o mapa no livro de Barlaeus, pendant da vista topográfica de Post, está gravado, erradamente, ao reverso: a igreja, a oeste e à direita, e a casa fortificada do governo, a leste e à esquerda no mapa, apareceriam em ordem reversa no desenho de Post, que, tomado do leste, mostra primeiro a igreja de São Roque para depois fazer ver o prédio do governo. Tomando o rio como terceiro acidente para uma triangulação, verifica-se que o desenho de Post está correto, e que, portanto, o mapa está gravado ao reverso (Imagem 6).

Imagem 6: Georg Marcgraf[?], Civitas Formosa Serinhaemensis, gravura sobre cobre em 31 x 50 cm. s/d e s/a. In: BARLAEUS, 1647, Tabula 13.

Os cinco quadros subsequentes não foram criados de acordo com essa manipulação da topografia. No recurso aos elementos etnográficos e naturais como motivos num primeiro plano, e relacionados à faixa topográfica, ora em justaposição ora em Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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sobreposição, os demais quadros seguem, no entanto, a mesma lógica. Esses motivos foram usados como convenção simbólica para estabelecer a referência de forma a tornar possível ao espectador relacionar a topografia do Brasil holandês a uma descrição da terra e dos habitantes do Brasil, tal qual se vê em outras imagens que Nassau mandou fazer, como o mapa mural de Georg Marcgraf.

Historicizando de paisagem no

a representação

Brasil Holandês

A análise formal e iconográfica dos desenhos que Frans Post preparou, em 1645, para as gravuras do livro Rerum per octennium in Brasilia, 1647, de Caspar Barlaeus, sobre o governo de João Maurício de Nassau no Brasil, demonstrou que as composições foram feitas nos moldes das vistas topográficas de lugares pátrios, relativas à cultura visual neerlandesa do século XVII. Tratou-se, portanto, da estruturação de uma visão da Nova Holanda através de uma retórica visual associada à paisagem política. Porém, os resultados dessa análise põem um problema historiográfico, uma vez que a representação da topografia da Nova Holanda, construída como imagens da Pax Nassoviana, não tinha correspondência com a realidade social vivida. Ao contrário de seus antecedentes iconográficos - as séries de gravuras paisagísticas holandesas relacionadas ao contexto da Trégua dos Doze Anos com a Espanha, de 1609 a 1621, o conjunto de vistas topográficas de Frans Post representava uma paz que não existia de fato. Sabe-se que o período histórico de que elas tratam – o governo de Nassau, não deixou de conhecer conflitos armados, pois que eram constantes as incursões dos guerrilheiros luso-brasileiros, pelo menos até fins de 1640. Para não mencionar o fato de que Frans Post executava os desenhos e ajudava Jan van Brosterhuyzen a preparar as gravuras ao tempo em que o território representado caía sob o cerco dos insurretos pernambucanos (BOOGAART, 2011:236-271). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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Como compreender esse deslocamento de sentido, entre um real vivido e uma realidade representada? Essas imagens operavam a visibilidade do projeto político orangista do stadhouder [lugar-tenente] Frederik Hendrik para a legitimação de poder dos neerlandeses no Brasil e no Atlântico, uma vez que, assegurando a posse do território que ia do São Francisco ao Potengi, mantinha-se uma cabeça-de-ponte crucial para a geopolítica neerlandesa no Atlântico. Portanto, para que possamos entender a paisagística em Fran Post, é preciso se ater a três variáveis presentes no contexto histórico de então: 1) o papel da topografia na cultura visual neerlandesa de meados do século XVII; 2) a relação desse repertório visual ao momento político dos Países Baixos Unidos; e 3) o imaginário do “Brasil holandês” no interior dessa paisagem política de fins da década de 1640. É na reflexão que busca entender a natureza da relação entre as práticas sociais e as construções simbólicas que concebemos uma história das imagens, nas encruzilhadas de um objeto constituído entre continuidades iconográficas, descontinuidades políticas e diferenças atlânticas. Quando Frans Post viajara para o Brasil, no início de 1637, a linguagem visual do “realismo” já estava associada ao imaginário de topografia pátria na paisagística neerlandesa. A sua primeira tela, Vista de Itamaracá, já apresenta essa característica. E se a segunda tela, O carro de bois, representa a paisagem pernambucana em alegoria de abundância açucareira sem fazer menção à topografia, tratou-se, como vimos a pouco, de uma estratégia que não voltou a se repetir nas telas que ele pintou depois e que chegaram até nosso conhecimento hoje. A estratégia de representar a paisagem típica sem especificidade topográfica correspondia a uma construção imaginária de lugar que operava outra visão política para o território da colônia. A simplificação no emprego dos motivos açucareiros, por exemplo, era uma forma estilizada de evocar o Suikerrijk, um território, literalmente, “rico em açúcar”. No sentido desta análise, essa estratégia visual, relativa ao período da paz nassoviana no Brasil, corresponde ao panorama encontrado na Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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composição de O carro de bois, de 1638, na qual a manipulação do observado extrapolou a conformação visual do sítio de Sirinhaém a fim de fazer sugerir genericamente a paisagem do Suikerrijk. Se essa mesma estratégia não se repetiu ao longo da produção subsequente de Post para João Maurício, o foi como indício de que não se tratava da paisagem política que o governador-general queria para a Nova Holanda, tal como condizente com a ideologia orangista do Stadhouder Frederik Hendrik. Daí porque a prancha do livro de Barlaeus que é correspondente a esse tema representa Sirinhaém nos mesmos modos da linguagem visual de vista topográfica. O mesmo não aconteceu nas vinhetas do mapa de 1647, elaborado a partir de levantamento geográfico de Georg Marcgraf e editado por Joan Blaeu, e não por Claes Jansz. Visscher (VIEIRA, 2011). Herman Wätjen (2004[1938]) argumentou que, quando do debate de se saber o que viria a ser melhor para o negócio do Brasil holandês, se manter o monopólio do comércio à Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie, ou W.I.C.) ou se abri-lo à livre iniciativa dos particulares, entre 1637 e 1638, a decisão ocorreu sob o embate de pelo menos duas posturas divergentes. Assim, baseado na observação de Wätjen, podemos afirmar que a Câmara da Zelândia era dominada pelo grupo a favor do monopólio da W.I.C., enquanto a Câmara de Amsterdã, pelos grupos em prol do livre comércio. Apesar de, por um lado, Wätjen ter afirmado que João Maurício fora “cético” em relação a esse debate; por outro, Jonathan Israel sugeriu que as impressões do governador-general terminaram por pesar a balança em favor do livre comércio (ISRAEL, 1989). Em 1638 ficara decretado que a W.I.C. retinha o monopólio sobre alguns outros produtos, mas o açúcar, o produto mais rentável da colônia, esse ficara aberto ao livre comércio. Ora, esse interesse no livre comércio, que tinha relação com a proposta republicana e civil para a paisagem política do Brasil holandês, emergiu pela primeira vez, na obra de Frans Post, na tela O carro de bois, de 1638, ano em que um regime de chuvas benfazejas trouxe uma excelente safra, justamente coincidindo com a promulgação da abertura do comércio do açúcar à livre Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 165-191, 2014

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iniciativa.16 Num contexto tido como promissor, o imaginário da terra abundante foi associado à paisagem ficcionalizada na tela de Post. Daí que o uso da luz na composição de O carro de bois apresenta um aspecto ainda mais úmido do que a composição sobre Itamaracá. O céu é homogeneamente cinza e há ausência completa de sombras, naturais ou projetadas, tanto para as figuras humanas do primeiro plano quanto para as edificações e outros elementos visíveis no plano de fundo. Aqui, a paisagem indica um dia de inverno.17 Nesse sentido, não só Frans Post parece preocupado em exercer controle sobre a observação da natureza como também representar a paisagem do Pernambuco através da cor local: a alegoria de abundância nos tons do “inverno” austral. Barlaeus já havia comparado a estação chuvosa na Nova Holanda ao verão holandês, destacando a terra em Pernambuco como “ameníssima” e “salubérrima” (BARLAEUS, 1980:21). Essa descrição de paisagem amena em Barlaeus é condizente com os tons da composição de Frans Post, mas apresentam uma representação da terra do Brasil que se opõe a outra, isto é, ao relato de que o calor na região é demasiado e limitador das forças produtivas das populaçoes europeias, tais como encontramos no relatório de Adrian van de Dussen (Cf. BOOGAART, 2004:321) e mesmo no texto erudito de Guilherme Piso. O médico de Leiden, ao elencar os vários frutos que a terra dá, conclui sobre eles que é “como se a natureza benigna os desse para alívio dos mortais tão duramente causticados pelo sol, impondo um freio ao derramamento dos humores.” (PISO, 1948:6). Nesse sentido, Post não estava meramente reproduzindo, ainda que fielmente, como querem seus críticos de arte, o aspecto visível da terra pernambucana. Antes, ele estava selecio Sobre os dados acerca das safras, cf. MELLO, 1998[1975]. Sobre a relação entre a tela de Frans Post e a safra de 1638, cf. LAGO, 2006.

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Sousa-Leão já havia sublinhado essa característica da “primeira fase” da obra de Post. Fazendo uma comparação entre a obra desse último e a de Eckhout, ele escreveu: “In fact, they only have in common, a gray, rainy sky, with muddy waters, both preferring the wintry season to paint when the cashews were ripe, the papayas and kapok trees and bloom.” (1973:25-26).

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nando, dentre várias possíveis, as características observáveis da terra que mais convinham para construir uma representação de abundância e fertilidade através do recurso retórico ao topos da amenidade. Porém, se por um lado João Maurício deixara que os interessados decidissem a sorte do debate em torno do Monopólio vs. Comércio Livre; por outro, afinado com a proposta política do orangismo de Frederik Hendrik, o Governador-General não podia permitir que tal imagem viesse a ser a imagem oficial da Nova Holanda. Daí porque todas as telas subsequentes de Post que chegaram até hoje demonstram um retorno à estruturação imaginária da terra em vistas topográficas. Daí porque a composição do desenho para representar Sirinhaém abandonou a estratégia visual da composição da tela de O carro de bois, aproximando-se mais da iconografia de topografia, com sua implicação de identificação com lugares pátrios no interior de um corpo político soberano. Em ambos os casos, seja no discurso mercantil e civil que perpassava a representação da Nova Holanda como amenidade exótica de terra estrangeira, seja no discurso orangista-nassoviano topográfia pátria e abundante, a imaginação da terra do Brasil em alusão ao topos do paraíso deve ser entendida como o efeito de realidade que procurou mitigar um imaginário colonialista.

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ORDENS, BANDOS E FINTAS PARA FAZER “A CRUEL GUERRA”: Os governadores de Pernambuco, a câmara das Alagoas e as “entradas” nos Palmares na segunda metade do século XVII1 Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo2 Resumo: O crescimento de Palmares foi, certamente, uma das maiores inquietações dos governadores da capitania de Pernambuco na segunda metade do século XVII. O recrutamento, o armamento e o abastecimento das “entradas” nem sempre contou com o auxílio do erário régio, necessitando, pois, estes agentes, do amparo dos poderes locais da Capitania. Através de um olhar administrativo sobre a montagem do conflito, propõe-se, neste artigo, investigar a dinâmica das redes governativas e o papel das câmaras na mobilização local de haveres para a montagem das expedições. Para tanto, evidenciam-se as ações políticas da câmara da vila de Alagoas do Sul e suas relações com os governadores da Capitania nesse contexto. Palavras-Chave: Palmares, Governabilidade, Câmaras, Alagoas do Sul, Governadores, Capitania de Pernambuco Post bellum.

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Artigo recebido em junho de 2014 e aprovado para publicação em julho de 2014.

Mestre em História pela UFPE. Doutorando pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Bolsista CAPES/Programa de Doutoramento Pleno no Exterior. Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de doutoramento pleno no exterior e pelo financiamento da pesquisa. Este artigo é fruto de duas comunicações anteriores, publicadas nos anais do IV Encontro Internacional de História Colonial e nos anais do IV Encontro Nacional de História da UFAL, bem como de alguns trechos de minha dissertação de mestrado, “O senado da câmara de Alagoas do Sul: governança e poder local no sul de Pernambuco (1654-1751)”, devidamente ampliados e revisados. Sou grato a Alex Rolim pela revisão atenta e contribuições valorosas a este texto, isento-o de qualquer omissão ou erro, que caem, portanto em minha inteira responsabilidade. Da mesma forma, sou grato (a)ao parecerista anônimo(a) pelas contribuições oferecidas ao aprimoramento do artigo.

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Ordinances, acts and taxes to make “the cruel war”: the governors of Pernambuco, the chamber of Alagoas and the “entradas” in Palmares in the second half of the seventeenth century. Abstract: The development of Palmares was, certainly, one of the greatest concerns for the Pernambuco governors in the second half of seventeenth century. The recruitment, armament and supply of troops was not always financed by the royal funds of the province, therefore these agent needed the province’s city councils support. Through an administrative interpretation of the conflict’s background, this article highlights the dynamics of the province governance frameworks and the participation of the city councils on the local mobilization of resources for the support of the expeditions. Thus, the analysis is focused on the political actions of Alagoas do Sul council and its relationship with the province governors at the time. Keywords: Palmares War, Governability, City Councils, Alagoas do Sul, Pernambuco Governors, Post bellum.

A importância das Câmaras para a defesa das possessões portuguesas no mundo tem sido destacada por diversos autores. Desde o clássico e pioneiro estudo de Charles Ralph Boxer, Portuguese society in the tropics (BOXER, 1965), aos trabalhos mais recentes, como os de Evaldo Cabral de Mello (MELLO, 1975), Maria Fernanda Bicalho (BICALHO, 2003) e Wolfgang Lenk (LENK, 2014), as edilidades tem sido apresentadas como espaços de ativa mobilização de recursos e estratégias nos mais diversos conflitos. Se a maioria desses autores tem posto em relevo a atuação das câmaras das maiores praças do mundo português, tais como, Salvador, Rio de Janeiro, Goa e Olinda, propõe-se investigar, neste artigo, a participação da câmara de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul,3 uma pequena vila da Capitania de Pernambuco, na mobilização de informações, interesses e recursos para as entradas feitas aos Palmares na segunda metade do século XVII. Não dispondo a administração central da Coroa, na maior parte do tempo, dos recursos necessários para lidar com as ameaças à soberania portuguesa, a estratégia mais adotada em 3

Doravante abreviada para “Alagoas do Sul”.

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Portugal, desde o século XIV (MAGALHÃES, 2011:13), consistia na transferência dos ônus de “sustento e manutenção de marinheiros e soldados”, bem como das fortalezas à alçada dos poderes municipais (BICALHO, 2003:198-199). Exemplos dessa prática podem ser encontrados desde o século XIV, com as sisas lançadas às câmaras do reino por D. Dinis. As sisas eram “tributos sobre tudo aquilo que se vende e compra” arrecadados pelas câmaras e destinados a custear as despesas militares (MAGALHÃES, Idem, Ibidem). Se no território reinol, pode ser verificada uma articulação mais direta entre os soberanos e a rede concelhia, nos espaços ultramarinos, onde a ausência do monarca estava representada em diversos agentes (vice-reis, governadores, capitães-mores e, até mesmo, câmaras), a direção dos conflitos acabava por recair em mãos de mediadores. Indispondo de farto auxílio da Real Fazenda e de recursos próprios, os governantes (muitas vezes inexperientes nos palcos de guerra ultramarina) costumavam contar com a colaboração e a experiência dos poderes locais para o recrutamento de tropas e para a aquisição de mantimentos, armas e munições. Para os reforços que a Bahia, por exemplo, enviou à Pernambuco na Guerra de Restauração (1645-1654), o governo-geral para além de contar com o apoio da câmara de Salvador na aquisição de dinheiro, rações, armamentos e munição, obteve contribuições das pequenas vilas da capitania de Ilhéus, como Cairu e Boipeba, na obtenção de farinha e mantimentos. Como denunciou Sílvia Lara, Palmares teria sido historiograficamente interpretado apenas como um símbolo de reação de escravos contra o sistema escravista, um caso excepcional que explicaria a si próprio. Tendo o foco da maioria dos autores, até a década de 1990, recaído sobre a construção de uma heroicidade para resistência de um único mocambo, Palmares perdeu sua conexão para com as análises de um “contexto histórico colonial mais amplo” (LARA, 2010:3). Interpretado meramente como uma luta de escravos contra seus senhores, as análises não incluíam, por exemplo, os atritos entre as autoridades coloniais e o governo metropolitano, ou entre aquelas e os poderes Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014

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presenciais existentes na Capitania (Idem, ibidem: p. 3). Diante da problemática sugerida, as relações entre os governadores e os poderes locais, encarnados nas câmaras, constituem o principal objeto de investigação deste artigo. Pensada no contexto de ação, a “Guerra dos Palmares” não foi, de fato, uma única guerra, mas uma multiplicidade de incursões violentas, e nem sempre bem coordenadas entre si, que ganharam, no discurso de diversos agentes, a característica de uma guerra (LARA, 2010:3). Tais incursões foram movidas por diversos polos de ação militar, ora encabeçados pelas câmaras, ora pelos Governadores da Capitania, ou pela ação de particulares, como os Senhores de Engenho (MENDES, 2011). As câmaras da Capitania tiveram papel importante em dois momentos. De início, assim como a câmara de Natal na Guerra do Açu (ALENCAR, 2011:791), a vereança das vilas mais próximas aos mocambos auxiliou a construir um discurso, perante os governadores da Capitania, que justificasse a necessidade de se encarar as expedições contra os mocambos como uma Guerra, e não mais como meras excursões de recaptura de cativos fugidos.4 O aparecimento desse discurso acompanhou, de um lado, o crescimento de Palmares e, de outro, os interesses econômicos mais diversos possíveis. De acordo com John Thornton, entre o ante bellum e o post bellum5 os mocambos passaram de pequenas comunidades de cativos fugitivos, contraponto da sociedade escravista, a verdadeiros reinos organizados em torno de tradições angolanas, modificadas pelo contexto social da 4

Por não dispormos das cartas originais escritas aos governadores, mas, somente, de menções a elas, não nos debruçaremos sobre a construção desse discurso. Basta citar, a título de exemplo, uma menção do próprio Brito Freyre. Quando ordenou ao cabo que marchasse contra os mocambos, em 1664, dizia: “das Alagoas me escreveu a câmara e o capitão-mor que [os palmaristas] saltearam algumas casas dos moradores e levaram seus escravos”. BCUC, Códice 31, fl. 55.

5

Doravante, será utilizada a periodização proposta por Evaldo Cabral de Mello para tratar da história das Capitanias do Norte da América Portuguesa no século XVII. Para ele, o período da invasão e da guerra contra os neerlandeses é o principal marco da história dessa região no século XVII, de maneira que o autor divide a periodização em: “ante bellum”, isto é, antes da Guerra (1534-1630), “período neerlandês” (1630-1654) e “post bellum”, o período posterior à expulsão dos neerlandeses em 1654.

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América (THORNTON, 2010:50-51). Já os interesses econômicos, recaíram sobre os ganhos obteníveis com a reescravização e venda da população palmarista, e (especialmente nas fases finais das guerras) sobre a obtenção das terras dos mocambos – “pomo da discórdia” entre as elites locais e os veteranos do Terço dos Paulistas. Num segundo momento, quando os governadores passaram a estar envolvidos com as principais excursões, as câmaras do sul de Pernambuco ficaram responsáveis por algumas atividades de recrutamento de tropas e pela arrecadação de mantimentos junto aos moradores. Como observou Laura Mendes, os governadores contaram com o auxílio da Real Fazenda na aquisição de armas, munição, fardamento e pagamento do soldo das tropas de primeira linha, mas a aquisição de mantimentos e cativos – para seu carreto mata adentro – foi feita por meio da expedição de ordens e do lançamento de fintas aos poderes locais da Capitania, recorrendo, naturalmente, ao poder camarário (MENDES, 2013:80). Diante disso, a participação da câmara de Alagoas do Sul será investigada, de um lado, a partir das cartas enviadas pelo governador à vila6 e, de outro, através das medidas adotadas pela câmara para dar cumprimento ao conteúdo dessas cartas7. Pretendemos demonstrar, com o estudo, que a capacidade de comando dos governadores, quando exercida à distância, dependia de negociações e, consequentemente, da disponibilidade de colaboração dos poderes locais. Além disso, é nosso objetivo sublinhar os impactos sociais e econômicos da cobrança das fintas dos palmares sobre o setor produtivo de Alagoas do Sul. Essas cartas ficaram registradas na Coleção Conde dos Arcos, hoje guardada na Biblioteca Central da Universidade de Coimbra. Cf.: BCUC, Cód. 31 e 32.

6



7

As iniciativas da câmara para dar cumprimento às ordens dos governadores serão tratadas a partir do Segundo Livro de Vereações da Câmara de Alagoas do Sul, único do século XVII que restou em toda a Capitania, que tem suas datas-limite entre 1668 e 1680, guardando doze anos de vereação. Arquivo do IHGAL, 0000601-02-01 Segundo Livro de Vereações da Câmara da Vila de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul (1668-1680) (doravante abreviado para “Segundo Livro de Vereações...). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014

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O artigo encontra-se dividido em cinco partes. Na primeira, ressaltamos o peso da guerra dos palmares no conjunto da comunicação política dos governadores com as câmaras do sul da Capitania, comparando essa comunicação com aquela estabelecida entre o governador e outras vilas. Na segunda parte, apontamos para a importância da câmara enquanto canal de comunicação e coordenação entre o governador, os militares e os campanhistas, além de cotejarmos a dinâmica de recrutamento das tropas. Em seguida, tratamos da questão do lançamento e da cobrança das diversas “fintas dos palmares” no termo da vila. Na quarta parte esboçamos os principais impactos dos esforços de “guerra” para os habitantes da vila. Por fim, sublinhamos a existência de outras formas de tributação que, juntamente aos esforços de guerra, contribuíram para um contexto de sobrecarga fiscal. Vale ressaltar que este não é um estudo voltado a compreender as expedições, os mocambos ou a guerra, mas as atividades administrativas, nomeadamente, a mobilização para a Guerra em escala municipal.

Comunicação

política

Para Angelo Panebianco, a comunicação política pode ser definida como “o conjunto das mensagens que circulam dentro de um sistema político, condicionando-lhe toda a atividade desde a formação das demandas e dos processos de conversão às próprias respostas do sistema”. Seria algo parecido com o “‘sistema nervoso’ de toda a unidade política”, ou os canais de mensagem que veiculam a ação política (PANEBIANCO, 1998:200). Ora, pensar “unidade política” numa sociedade politicamente multicentrada como a do Antigo Regime, requer, portanto, uma adequação do conceito, acompanhada de uma delimitação maior acerca do “sistema político” a ser investigado (HESPANHA, 2009:53). Nas linhas seguintes, trataremos unicamente do governo da Capitania de Pernambuco, limitando-nos a considerar a comunicação de seus maiores representantes na segunda metade do século XVII: os governadores e capiRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014

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tães-generais. Se os investigadores da História Contemporânea tem se utilizado da comunicação política para tratar das relações entre o Estado e a sociedade civil, por meio dos veículos de mass mídia, a natureza das relações políticas da sociedade de Antigo Regime – marcada pela universalidade do direito e pela indistinção entre as duas esferas (HESPANHA, 1992:19) – não nos permitiria partir do mesmo pressuposto (NUNES, 2013:251-264). Valemo-nos, então, da comunicação política para compreender as estratégias de articulação internas à rede governativa da capitania, isto é, das cartas, bandos e provisões expedidos pelos governadores às câmaras. Nesta perspectiva, a comunicação dos governadores com os poderes locais da Capitania tem importância fundamental para a compreensão da governabilidade em exercício nos contextos de ação que foram as “guerras contra os palmares”. Residindo a maior parte do tempo na vila de Olinda ou no porto do Recife (em ocasião da chegada das frotas) as relações dos governadores com as vilas mais distantes se davam por meio de cartas. Através daquelas que foram enviadas às câmaras (preservadas por meio de cópias na Coleção do Conde dos Arcos da Biblioteca da Universidade de Coimbra) foi possível criar nove tipologias de assunto.8 São elas: jurisdição militar, donativos, cargos e provimentos, justiça, administração passiva, comércio, impostos, conflitos de jurisdição e outros. Na Tabela 1, estão representadas, na coluna da esquerda, as nove tipologias e, nas colunas à direita, as expressões percentuais dos assuntos na totalidade de cartas enviadas para cada uma das vilas. Na última linha, encontra-se a quantidade de cartas enviadas e a representatividade percentual individual em meio ao total de cartas enviadas às câmaras. Tal esforço de categorização apresenta uma pequena imprecisão: uma mesma carta apresenta mais de um assunto, e um mesmo assunto pode ser enquadrado em mais de uma categoria como, por exemplo, uma resposta que Francisco de Brito Freyre deu à uma carta da câmara Alagoas do Sul, datada de 1661 em que solicitava a isenção do pagamento do soldo das tropas de primeira linha da Capitania, assunto que se inclui nas categorias “Jurisdição Militar” e “Administração Passiva”. Cf.: BCUC, Cód. 31, fl. 56.

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Tabela 1 - Comunicação Política enviada pelos governadores às câmaras da Capitania (1654-1746). VILAS DA CAPITANIA NO SÉCULO XVII ASSUNTOS

OLINDA

IGARASSU SIRINHAÉM

PORTO ALAGOAS PENEDO CALVO DO SUL

Jurisdição Militar

18%

5%

32%

39%

36%

31%

Donativos

13%

43%

26%

26%

29%

16%

Cargos e Provimentos

5%

9%

6%

7%

13%

4%

Justiça

4%

9%

2%

2%

6%

3%

Administração Passiva

1%

19%

4%

2%

6%

12%

Comércio

7%

5%

-

5%

4%

11%

Impostos

11%

-

4%

-

-

3%

Conflitos de Jurisdição

9%

-

10%

7%

-

-

Outros

32%

10%

16%

12%

6%

20%

139 (39%)

20 (6%)

48 (15%)

39 (12%)

41 (13%

50 (15%)

Total de Cartas

Fonte: “Disposições dos governadores de Pernambuco”. BCUC, Cód. 31 e 32.

A partir da tabela, duas questões podem ser levantadas. A primeira está relacionada à diferença visível nos ritmos de comunicação entre os governadores e as câmaras. O total de cartas enviadas à câmara de Olinda, a mais proeminente da Capitania neste período, supera o de qualquer outra câmara investigada, ocupando 39% de toda a comunicação política dos governadores com as câmaras. Essa diferença pode ser explicada pela expressividade política da câmara de Olinda, representada nas suas competências supramunicipais (que só foram tolhidas no primeiro quartel do século XVIII). Tais competências estavam ligadas, principalmente, ao controle sobre alguns aspectos da administração fazendária da Capitania, como o pagamento dos soldos da tropa regular e a jurisdição sobre a arrematação dos contratos de diversos subsídios (ACIOLI, 1997:60; MELLO, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014

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2003). Além disso, Olinda administrou o maior centro urbano da Capitania, o Recife, até 1711. Logo, questões como as construções públicas, os aluguéis das casas e estabelecimentos comerciais, a imposição de preços sobre certos gêneros e alguns aspectos do abastecimento das frotas estavam ligados às suas rotinas administrativas. Grande parte dessas atribuições estava associada à própria atividade administrativa dos governadores, que requeria o amparo do poder municipal, o que também explica a maior dispersão percentual dos assuntos. A segunda questão diz respeito à categoria “jurisdição militar”, muito mais expressiva nas cartas enviadas às câmaras mais próximas dos mocambos – 32% em Sirinhaém, 39% em Porto Calvo, 36% em Alagoas do Sul e 31% em Penedo – do que nas câmaras de Olinda (18%) e de Igarassu (5%), um pouco mais distantes, mas, ainda assim, afetadas pela existência daquele contraponto da sociedade escravista. É importante, no entanto, ressaltar uma diferença entre a natureza do conteúdo das cartas dessa categoria. Se os assuntos militares tratados com a câmara de Olinda envolviam a dinâmica de pagamento e manutenção das tropas, a comunicação com as câmaras do sul de Pernambuco é composta, basicamente, de delegações para a preparação dos comboios e aparelhagem das entradas aos Palmares, além de informações sobre as manobras das expedições. Essa diferença ilustra certa especificidade no relacionamento das câmaras com o governador. Por suas grandes responsabilidades supramunicipais e fiscais, a câmara de Olinda teria competências semelhantes às que a Provedoria da Real Fazenda passou a assumir a partir de 1727, enquanto que as câmaras menores, ao sul, seriam visadas para cederem contribuições in natura, além de prestar todo tipo de auxílio aos campanhistas, como veremos adiante.9 Através dessas cartas, percebemos que as edilidades ficaram responsáveis por três questões fundamentais no processo de Reflexões mais aprofundadas a respeito da comunicação política dos governadores estão sendo desenvolvidas na tese de doutoramento, defendida junto ao ICS da Universidade de Lisboa, mas foram razoavelmente esboçadas na dissertação de mestrado. Cf.: CURVELO, 2014:135-167.

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mobilização dos moradores para o conflito. Em primeiro lugar, a “rede concelhia” formalizou a existência de um canal de comunicação entre os governadores e os oficiais da milícia e da ordenança, possibilitando a aquisição de informações acerca das manobras em ambas as partes. Segundo, alguns governadores delegaram às câmaras a responsabilidade direta pelo recrutamento de tropas, ou, ao menos, quiseram contar com sua colaboração para a mobilização. Por fim, a terceira e principal delegação está relacionada à aquisição de suprimentos para a manutenção das forças invasoras. Focando em Alagoas do Sul, aprofundamo-nos nessas três questões nos próximos tópicos.

Redes

de informação e recrutamento

Em um conflito, a existência de redes de comunicação entre os polos de comando é essencial para a operacionalização das manobras. Era comum que os governadores escrevessem às câmaras informando as intenções de atacar os mocambos e os movimentos que as tropas estavam fazendo. A execução dessas ordens poderia ser direcionada à própria vereança de Alagoas do Sul ou esta poderia servir simplesmente como canal de transmissão das ordens aos capitães-mores e outros oficiais. Quando o governador Francisco de Brito Freyre escreveu, em dezembro de 1661, explicando o regimento que dera a um cabo que partia para os mocambos, tratou de ordenar que a câmara de Alagoas do Sul mandasse o “seu capitão do campo”, isto é, o capitão do mato a serviço da vereança, ir “com alguns homens correr essa campanha10 desde o rio S. Miguel até Santo Antonio Grande três ou quatro léguas para dentro da praia”, pois que quando os palmaristas tomavam conhecimento da chegada das expedições desciam “para baixo a beira mar, e para que de todas as maneiras nos não escapem, convém fazer O significado de “campanha” que melhor se ajusta ao contexto é o de “campo, ou campos, por onde anda o exército”, segundo Raphael Bluteau. BLUTEAU, tomo 2, pp. 83-84.

10

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esta diligência”. Vemos assim, um agente subordinado ao poder camarário sendo designado para tomar parte das manobras de rapto dos habitantes dos mocambos.11 Em outra ocasião, Jerônimo de Mendonça Furtado ordenava que a Câmara informasse ao Capitão Gonçalo Moreira, que ele deveria ajuntar “um bom golpe de gente” para ir correr os campos em “uma até duas léguas ao redor dessa vila”, pelo mesmo motivo alegado por Brito Freyre.12 Em tal situação, a Câmara atuou apenas um canal de transmissão de informações a este oficial. Ainda na carta de Brito Freyre, de 1661, pode ser apontada a importância da edilidade enquanto canal de geração de informação, pois o governador ordenava que “de tudo o que se obrar, me despachem vossas mercês aviso para me aliviarem do grande cuidado com que fico sobre a expedição dessas tropas”.13 Seria essencial para o governador conhecer os sucessos e as ações militares da expedição que, naquele momento, se dirigia aos mocambos. Esse conhecimento dependia das cartas enviadas pela Câmara de Alagoas do Sul, transformada, de tal forma, em espaço gerador de informações acerca da guerra. Com relação ao recrutamento percebemos dois padrões diferenciados nas cartas dos governadores: essa responsabilidade poderia ser delegada de forma direta ou indireta à vereança. Na mesma carta de 1661, Brito Freyre ordenou à Câmara que formasse por ela mesma uma “tropa de mancebos solteiros e alguns casados mais suficientes dessas Alagoas que [...] façam número de 150 até 200 homens, com os quais marche o capitão Simão Mendes em demanda desses mocambos”.14 A maneira como a Câmara procedia a esse recrutamento, entretanto, é desconhecida, já que essa responsabilidade só lhes foi delegada uma única vez. Contudo, é provável que o recrutamento envolvesse a colaboração com os oficiais da milícia e da ordenança local, ou mesmo com o Capitão-Mor. Alguns anos mais tarde, BCUC, Cód. 31, fl.65v.

11

Idem, Ibidem, fl. 158v.

12

Idem, Ibidem fl. 65v.

13

Idem, Ibidem.

14

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em 1665, Jerônimo de Mendonça Furtado escrevia à Câmara para que informasse ao Capitão-Mor que estava sendo preparada uma nova expedição para atacar os mocambos e que ele deveria fazer uma “mostra a essas companhias de auxiliares ou ordenanças” fazendo “uma lista dos soldados capazes de tomar armas para a jornada”.15 Mais uma vez, a Câmara apenas transmitiu a ordem, sem se responsabilizar diretamente pelo cumprimento da mesma. No Segundo Livro de Vereações, isto é, entre 1668 e 1680, encontram-se registrados três bandos 16 oferecendo vantagens àqueles que se alistassem. Um foi lançado pelo governador Fernão de Souza Coutinho, e os outros dois pelo governador D. Pedro de Almeida. No primeiro bando, de outubro de 1672, Coutinho prometia que nenhum criminoso que se juntasse às tropas pudesse ser preso, nem remetido para as tropas do socorro de Angola. E para “os homens nobres que forem à jornada sobredita serão preferidos aos [de]mais nos lugares e ofícios e honras da República como defensores dela”.17 Com o propósito de motivar o alistamento e a inserir os “principais da terra” na mobilização, este primeiro bando oferecia, sobretudo, vantagens políticas. Para os criminosos e “vadios”, a participação nas expedições poderia ser a porta de entrada para a (re)integração à sociedade local ou, ao menos, a dispensa do recrutamento forçado para os “presídios” da Capitania (SILVA, 2001:99, 155162). E, para as elites locais, formalizava o combate aos mocambos como um serviço digno de remuneração, em forma de cargos e ofícios (MARQUES, 2012:87-126). Já os dois bandos lançados por D. Pedro de Almeida, ofereciam vantagens econômicas diretas, através da garantia de concessão dos “espólios” mais almejados nesta fase da guerra: Idem, fl.194.

15

A definição mais aproximada de “Bando” que se pode ter para a época está no dicionário de Raphael Bluteau. Segundo ele: “Deriva-se do antigo vocábulo alemão, Bam, que significa pregão; do Bam dos alemães fizeram os italianos o seu Bandire, que quer dizer ‘Publicar por bando’, como quando se declara publicamente um decreto, uma lei”. In: BLUTEAU, tomo 2, p. 31.

16

Segundo Livro de Vereações... fl.31 e v (intervenção do autor).

17

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os próprios habitantes dos mocambos. Em outubro de 1674, informava aos moradores de Alagoas do Sul, por meio da Câmara, que ele mandara “prevenir a gente que [...] era necessária de soldados pagos, índios, homens pardos da ordenança e pretos do terço que foi de Henriques Dias” para compor uma entrada.18 Por sua vez, ele oferecia como vantagem “as peças que [se] tomarem tirando os quintos do dito Senhor [o Rei] as quais há de se repartir [com] o Cabo que mando”.19 No segundo Bando, de 1678, este governador enfatizou a urgência de se mandar uma entrada para se extinguirem os mocambos de uma vez por todas, e ampliou os benefícios para os participantes, prometendo todas as “presas” que se tomassem na entrada sem a cobrança dos quintos régios. Se a divisão dos palmaristas violentamente aprisionados nestas expedições aparece como principal interesse econômico para os campanhistas, na fase final da Guerra, as terras de Palmares tornaram-se o principal espólio de conquista e, com o tempo, o “pomo da discórdia” entre os sertanistas e a “nobreza” das vilas próximas. Mesmo que não tenha participado diretamente do alistamento dos “voluntários” locais, a Câmara continuou a ter um papel importante nesse processo por divulgar e, nesse sentido, aproximar os habitantes das decisões tomadas pelos governadores da Capitania. A difusão das informações acerca do recrutamento aparece como uma das principais responsabilidades da vereança nessas ocasiões. Jerônimo de Mendonça Furtado preocupou-se em enfatizar isso num bando de 1664, ordenando que a Câmara fixasse cópias dele “nas portas das igrejas de todos os engenhos para que venha a notícia de

Idem, fl. 53v. e 54. É lamentável que os Livros de Matrícula das Ordenanças e das Tropas Auxiliares estejam perdidos, pois só com eles poderíamos ter noção de quantas pessoas se alistaram para aquela empresa e a que grupos sociais elas pertenciam. No entanto, os trabalhos de Kalina Vanderlei Silva, que têm enfatizado a composição mestiça e pobre dos corpos militares de Pernambuco, permitem deduzir que as tropas recrutadas em Lagoa do Sul não eram diferentes. Cf. SILVA, 2001 e 2010.

18

Idem. Por “peças”, devem ser entendidas as pessoas que habitavam os mocambos, a quem se intencionava escravizar ou reescravizar (intervenção do autor).

19

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todos, e não tenham ignorância que alegar”.20 Por serem espaços muito frequentados, entrevemos nessa questão que os meios de fazer com que o conteúdo das ordens tivesse o mais amplo e veloz mecanismo de circulação, num mundo marcadamente rural, passavam pela utilização da “malha paroquial” a favor da malha administrativa.

As “fintas

dos

Palmares”

Apesar da participação da Câmara na rede de informações e no recrutamento de tropas, a principal responsabilidade delegada pelos governadores recaía sobre a arrecadação de mantimentos para as tropas. Isso se dava pelo lançamento de fintas que eram arrecadações in natura feitas com os moradores de uma dada jurisdição, seja para o provimento de carnes, de peixe, de farinha ou mesmo de cativos. As fintas não tinham um tempo de duração estabelecido e, é bem provável, que elas fossem cobradas até que se conseguisse ratear a quantia estipulada entre os habitantes. Segundo Evaldo Cabral de Mello, durante a Guerra de Restauração (1645-1654), elas “recaíram principalmente sobre o setor de subsistência, representando destarte uma técnica de transferência de parte do ônus da guerra para aquele segmento da população que vivia à margem do setor açucareiro” (MELLO, 1975:154). Ora, numa localidade que, em 1655, só possuía seis engenhos e, desde o ante bellum, se especializara como fornecedora de gêneros de subsistência (farinha, peixe, carne e gado vacum) à Olinda, essas contribuições deveriam ter uma abrangência significativa.21 Em algumas fintas, os governadores exigiram que a Câmara arrecadasse cotas fixas de mantimentos (400 alqueires de farinha, por exemplo) e, em outras, estipularam o recolhimento da BCUC, Cód. 31, fl. 151.

20

Para a lista desses seis engenhos, ver: “Uma relação dos engenhos de Pernambuco em 1655”. In: MELLO, 1981: I, 233-243; quanto à primeira vocação econômica da localidade ser voltada à subsistência, ver: AZEVEDO, 2002.

21

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maior quantidade possível de determinado gênero.22 De início, uma análise dos montantes angariados durante a mobilização para a guerra apresenta um problema basilar: é uma arrecadação feita por uma sociedade pouco monetarizada e cujas formas de organização política nem sempre lidavam com registros numéricos precisos (MELLO, 1975:131). Se em algumas cartas estão registrados os montantes ideais de recursos a serem arrecadados, não se encontrou nenhum registro, no Livro de Vereações, que descrimine sua arrecadação efetiva. Em outras palavras: sabe-se, eventualmente, o quanto os governadores exigiram, mas não se sabe exatamente o quanto a Câmara e os fintadores conseguiram recolher junto ao setor produtivo. Esse problema limita as abordagens quantitativas que lidem com esforços de guerra. Dessa feita, alguns questionamentos como: a porcentagem do total da população que foi realmente mobilizada para o conflito e qual a porcentagem de recursos retirados do montante total da produção social, ainda ficam sem resposta. Francisco de Brito Freyre parece ter sido o primeiro governador a solicitar a arrecadação de mantimentos para as tropas que seguiam em direção aos mocambos. Em 1661, após descriminar o contingente de homens que estava se preparando para a entrada, solicitou à Câmara de Alagoas do Sul que “para a ração que há de levar esta gente, façam vossas mercês um lançamento para todos os moradores, pois é em benefício seu e da conservação de suas vidas e fazendas”, de modo que quando a tropa estacionasse em Alagoas do Sul, para se reunir e marchar, os oficiais da Câmara tivessem prontos “ao menos 400 alqueires de farinha e conduto deste respeito, que uma e outra coisa pode estar em casa de seus donos”.23 A grande diferença entre esta carta de Brito Freyre e as de todos os outros governadores que se seguiram é que no caso da Câmara ter de arcar com a compra ou o transporte de farinha, os oficiais deveriam tomar Lenk encontrou uma tendência semelhante para a arrecadação de mantimentos na Bahia durante a guerra holandesa. A única diferença é que as ordens de arrecadação poderiam ser feitas pela Câmara de Salvador às câmaras menores daquela Capitania, algo que não acontece no nosso caso. Cf: LENK, 2013:430-431.

22

BCUC, Cód. 31, fl. 65v.

23

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“por lembrança o que importam [os gastos] para os mandar pagar da minha Fazenda, visto que da de Sua Majestade não há efeitos nenhuns”. Nesse sentido, Brito Freyre se propunha a ressarcir a câmara pelos gastos que fizesse. Durante o governo de Jerônimo de Mendonça Furtado, uma das estratégias arquitetadas para conter o crescimento dos mocambos foi o deslocamento do Terço de Filipe Camarão, composto de índios e caboclos, para as proximidades dos Palmares, ocupando o assentamento de um mocambo já arrasado, acerca de 18 ou 20 léguas de Alagoas do Sul. Para esse intento, Furtado ordenou à Câmara, em novembro de 1664, que fornecesse “sementes” aos índios do Terço “para fazerem suas plantas e lavouras de roças”. Durante os primeiros meses, em que não pudessem colher frutos, a vereança deveria assistir a estes homens com “uma ração ordinária de farinha, fazendo-lhes toda a boa passagem e favor [...] para que com mais vontade folguem de ficar vizinhando com esses moradores”.24 Em 1665, o terço acabou sendo deslocado para as cabeceiras de Porto Calvo, devido à falta de sucesso de uma bandeira comandada por Cristóvão Lins.25 Entre 1668 e 1680, há registro de, ao menos, oito ordens solicitando a arrecadação de mantimentos e, em algumas, a concessão de escravos para o carreto deles. Em 1668, o governador, Bernardo de Miranda Henriques, lançou uma ordem para o recolhimento de farinha. Dois anos mais tarde, seu sucessor, Fernão de Souza Coutinho, enviou uma carta ordenando à Câmara que observasse “os mantimentos que poderão lançar a esses povos”, sem com isso estabelecer cotas fixas 26 e, em 1672, voltou a admoestar os oficiais da câmara a arrecadarem víveres junto aos moradores. Em outra carta, Souza Coutinho ordenou que a Câmara nomeasse um Escrivão do Almoxarife dos Mantimentos, a fim de acompanhar este oficial e “lhe assistir a fazer recibos e mais papéis pertencentes aos oficiais que leva na forma que é estilo nos almoxarifados”, bem como “as listas Idem, fl. 158v.

24

Idem, fl. 194.

25

BCUC, Cód. 31, fl. 254.

26

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da infantaria para onde se há de socorrer de mantimentos”, podendo ser este mesmo escrivão o próprio Escrivão da Câmara ou “Tabelião que for mais experiente”.27 Em 1674, Dom Pedro de Almeida, enviou um bando aos oficiais da Câmara de Alagoas do Sul, ordenando que se entregasse ao mesmo “trezentos alqueires de farinha mais todo o peixe que se pudesse fazer” para a “entrada que intenta fazer sobre a guerra dos negros dos palmares”.28 E no ano de 1677, esse mesmo governador, exigia à Câmara que arrecadasse escravos junto aos moradores para realizar o carregamento de um comboio de mantimentos que partiria de Porto Calvo naquele mesmo ano. Já o governador Ayres de Souza de Castro rogou víveres à câmara em três cartas. A primeira, de julho de 1678, foi despachada pouco tempo depois de esse governador ter concluído os “tratados” com Ganga Zumba em que este se comprometia a deixar o mocambo do Macaco e ir para o aldeamento de Cucaú, nas cabeceiras de Sirinhaém. Nesse mesmo bando, Souza de Castro solicitava à Câmara que arrecadasse farinha “tirada pelo povo” a fim de suprir Cucaú para nos “primeiros dias lhes servir de sustento” enquanto não pudessem colher de suas próprias roças. O segundo, de 1679, reconhecia que, apesar dos acordos firmados com Ganga Zumba, alguns palmaristas ainda resistiam nos mocambos, sendo necessária nova entrada e com isso, o lançamento de uma nova arrecadação para o recolhimento de mantimentos. A terceira foi escrita em 1680, exigindo o envio mensal de 50 alqueires de farinha e, provavelmente, um lote único de “quinhentas arrobas de carne, quinhentos curimãs, duas mil tainhas e cinquenta negros para o carreto deles” para abastecer o Arraial que, futuramente, seria batizado de Nossa Senhora das Brotas.29 Afinal o que significavam 400, 300 ou mesmo 50 alqueires de farinha para o abastecimento de uma tropa? Segundo Cabral Idem, fl.275.

27

Segundo Livro de Vereações... fl.132.

28

Segundo Livro de Vereações.... fl. 132.

29

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de Mello, cada soldado consumia, em média, um alqueire de farinha por mês (MELLO, 1975:197.). Na época, um alqueire correspondia aos atuais 32 litros, que correspondem a mais de 224 quilos de farinha. Logo, os 300 alqueires solicitados por D. Pedro de Almeida, por exemplo, poderiam abastecer 300 homens durante um mês de campanha, ou 150 durante dois meses. Adiante retomaremos os impactos que essas fintas poderiam ter no cotidiano da população. A última carta solicitando mantimentos foi escrita por D. João de Souza, nono governador da Capitania, em julho de 1683, na qual informou que estava prestes a empreender uma “cruel guerra para que de todo fiquem extintos” os mocambos, pelo “que esta senão pode conseguir sem os efeitos prontos para o sustento das tropas”. Por meio da Câmara, ordenou aos habitantes que concorressem “com o que lhes for possível da sua parte”, sem estabelecer qualquer cota fixa. É intrigante notar que na década de 1680 apesar de partirem várias expedições contra os mocambos, não há registro de nenhuma outra carta requerendo mantimentos à edilidade. De acordo com Laura Mendes, nas fases finais do conflito, a “exaustão” das vilas do sul no fornecimento de tantos haveres se tornou um discurso recorrente em diversas correspondências, o que teria contribuído para a diminuição do lançamento das fintas por parte dos governadores (MENDES, 2013:93). Mas, afinal de contas, quem teria passado a arcar com o abastecimento das tropas a partir de então? Mendes responde a essa questão, quando aponta para as contribuições da câmara de Olinda que, “em 1683, pagou mensalmente o dinheiro destinado às rações para a ajuda na despesa da Guerra dos Palmares” e, dois anos mais tarde, recebeu ordem régia para auxiliar o Terço dos Paulistas (MENDES, 2013:95).

Os

impactos econômicos das fintas

Pode-se perguntar: além de receber as ordens e publicá-las, o que fazia a Câmara para cumpri-las? A principal medida era proceder à nomeação de fintadores para percorrer a vila e seus Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 193-223, 2014

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termos recolhendo o que fosse necessário junto aos moradores. Em algumas situações, a rede de fintadores instituída para a arrecadação do Donativo para o Casamento da Rainha de Inglaterra e Paz com Holanda foi utilizada para a cobrança das fintas dos Palmares. Em outras, os fintadores costumavam ser escolhidos entre os homens que circulavam nos lugares honrosos da república, especialmente no cargo de almotacé. Havia dois benefícios para aqueles que serviam de fintadores: um econômico, já que recebiam uma “comissão” pelo serviço;30 e um político, já que esta serventia proporcionava status e, com ele, mais condições para a perpetuação desses homens nobres no grupo da governança da terra (CURVELO, 2014:93). A Câmara também ordenava, em vereação, que se procedessem às “vistorias” nas roças dos lavradores a fim de que cada um contribuísse com alguma quantia de macaxeira para fazer farinha. Entretanto, essa prática só foi registrada duas vezes, uma em 1669 31 e outra em 1680.32 Nesta última, a vistoria foi ordenada para dar cumprimento ao bando de Ayres de Souza de Castro. Nela, é interessante notar que não havia uma quota fixa por lavrador, mas uma variação “conforme as roças que se achassem no termo da vila”, sendo necessário fintar “os homens que tivessem roças suficientes para fazer farinha para a guerra dos Palmares, porquanto não [a] havia nem para o povo”.33 Com isso, entrevemos que este gênero poderia faltar mesmo para os habitantes, ainda que a produção de farinha fosse uma das principais atividades econômicas da vila. As dificuldades não se resumiam apenas à obtenção de mantimentos, pois a própria Câmara se queixou a Fernão de Essa comissão fica evidente quando se observa um Rol da Finta que se fez na povoação do Cabo de Santo Agostinho, que além dos nomes de quase 350 moradores que contribuíram, traz a indicação de 30 réis (comissionados de um total de 996.780 réis) “Pelo que se deu ao comissário que Vossa Mercê foi consignado pelo trabalho de correr com esta finta dando quitações e tudo o mais”. Ver FREITAS, 2004:57.

30

Segundo Livro de Vereações..., fl.5

31

Idem, fl.59-60.

32

Idem, Ibidem.

33

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Souza Coutinho, em 1672, que estavam faltando sacos para armazená-los.34 Mas, seria a falta de sacos um entrave ou apenas uma desculpa dos edis para o atraso no envio dos mantimentos? A documentação consultada não permite esclarecer a provocação, mas as queixas posteriores sobre o atraso podem apontar para sua validade. Além das vistorias, a vereança estabelecia penas às pessoas que se negassem a contribuir com as fintas. Na primeira vereação de março de 1678, o procurador da câmara requeria ao juiz ordinário que “desse execução a todas as pessoas que foram notificadas para darem negros e carne e peixe para o comboio dos Palmares” aplicando as “penas que referidas foram nos mandados”.35 Ainda no cumprimento das ordens dos governadores, a Câmara se responsabilizava por institucionalizar acordos com as elites locais, colaborando para a formação de certa comunidade política entre os habitantes da vila e de seu termo, onde, além de tornar pública a divulgação das ordens dos governadores, convocava os ajuntamentos. Nessas ocasiões a edilidade abria espaço para que se reunisse parte da “gente nobre” das três freguesias que a conformavam (Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia e São Miguel) com a finalidade de coletar opiniões sobre alguma matéria, ou elaborar algum requerimento ou reclamação conjunta. Em 1676, por exemplo, a “gente nobre” se reuniu com o capitão Fernão Carrilho para deliberar as condições de uma entrada que este faria aos mocambos e outro ajuntamento fora convocado no ano anterior, para fazer presente aos moradores a intenção do Capitão de Armas, Estevão Ribeiro Parente de vir até Pernambuco combater os Mocambos.36 Os ajuntamentos criavam, então, as condições de cooperação interna, isto é, entre os próprios habitantes. O transporte era um dos maiores problemas da Guerra. O autor anônimo da “Relação das guerras feitas aos Palmares de BCUC, Cód. 31, fl. 276.

34

Segundo Livro de Vereações..., fl.191v. Apesar disso, não há registro da aplicação das penas, que provavelmente ficariam registradas no Livro do Judicial e Notas, perdido ou destruído, no nosso caso.

35

Segundo livro de vereações... fl. 37v.

36

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Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida” enfatizava que uma das maiores dificuldades que se enfrentavam naquelas ocasiões era: a dificuldade dos caminhos, a falta das águas, o descômodo dos soldados, porque como são monstruosas as serras, infecundas as árvores, espessos os matos, para se abrirem é o trabalho excessivo porque os espinhos são infinitos, as ladeiras muito precipitadas e incapazes de carruagens para os mantimentos, com que é forçoso que cada soldado leve às costas a arma, a pólvora, balas, capote, farinha, água, peixe, carne e rede com que possa dormir, com que a carga que os oprime é maior que o estorvo que os impede.37

Se a sobrecarga e o estorvo dos equipamentos nas costas dos campanhistas era motivo de preocupação para o cronista anônimo, os esforços dos cativos para carregar tudo isso não foram, ironicamente, levados em consideração. Em 21 de agosto de 1677, Fernão Carrilho esteve presente em um ajuntamento convocado pela câmara de Alagoas do Sul, juntamente com o procurador da câmara de Porto Calvo, para se comprometer a pagar pelos cativos fintados aos moradores e que morressem transportando o comboio de mantimentos que estava levando.38 Distribuir o peso da carga entre um número, provavelmente, pequeno de pessoas acarretaria sua sobrecarga e, consequentemente, estafa e talvez a morte. Daí se explica a preocupação dos oficiais da Câmara em firmarem um “termo de obrigação” com Fernão Carrilho para que ele pagasse, com os palmaristas capturados, por cada escravo que morresse transportando esses comboios.39 Preparar os carre “Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida”. In: CARNEIRO, 2011:163.

37

Idem, Ibidem, fl. 165 e 165 v.

38

Arquivo do IHGAL 00007-Cx-01-Pac-02-a-Diversos - 96 cópias extraídas do 2º Livro de Vereações da Câmara de Alagoas do Sul, fl. 53v.

39

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gamentos não era tarefa fácil. Além da dificuldade de cobrar os alimentos junto aos produtores, era necessário encontrar, aliás, fintar, gente para transportá-los. Da mesma forma que a câmara de Alagoas do Sul serviu como principal instituição capaz de lidar com o cumprimento e o registro dos bandos dos Governadores na vila, ela também garantia o espaço para formalizar a relutância dos habitantes no cumprimento dele. O exemplo mais claro se deu em vinte de dezembro de 1677, quando os Oficiais da Câmara chamaram o “povo” da vila para mostrar uma carta do Governador, D. Pedro de Almeida, endereçada ao capitão-mor, João da Fonseca, pedindo que a vila mandasse escravos para um comboio que sairia de Porto Calvo. O termo de vereação, feito nessa sessão, representava, perante o governador, a vontade dos trinta e sete moradores ali reunidos. Estes diziam que “não davam negros para o tal comboio e sendo que os obrigasse a dar os seus escravos [estes] desprezariam a terra e iriam fora da terra”, isto é, seus cativos fugiriam na primeira oportunidade de se embrenhar nas matas.40 Essas situações mostram que não só a vereança, mas os habitantes também tinham dificuldade para arcar com os custos das expedições e dar conta do cumprimento dos acordos que eram feitos. Na “Relação das Guerras”, o autor anônimo afirma que os Mocambos ameaçavam a conservação de toda a capitania por se espalhar do Rio São Francisco até o Cabo de Santo Agostinho, ficando “eminentes Ipojuca, Sirinhaém, Alagoas, Una, Porto Calvo, São Miguel, povoações aonde se recolhem mantimentos para todas as mais vilas e freguesias, que são a beira mar”, estando os “gados, farinhas, açúcares, tabacos, legumes, madeiras, peixe e azeite” entre os principais.41 Idem, fl.184 v. A respeito de “desprezar” e “ir fora da terra”, Edison Carneiro entendeu que os próprios moradores estavam ameaçando deixar a vila. Mas ao que parece, estavam receosos de que seus escravos a desprezassem e, por ventura, escapassem para os mocambos. Tratava-se antes de mera precaução contra mais fugas de seus cativos do que ameaças de abandono e despovoamento da vila. CARNEIRO, 2011:83.

40

“Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida”. In: CARNEIRO, 2011:161.

41

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Mesmo que a Capitania de Pernambuco fosse abastecida por essas vilas, havia queixa de que o peixe e a farinha poderiam faltar em Alagoas do Sul. No ano de 1674, o procurador apresentava uma queixa do “povo” à vereança, de que havia pessoas que compravam farinha e a “atravessam para a venderem por mais preço”,42 o que os oficiais acordaram para que morador algum assim fizesse, sob pena de pagar 6.000 réis e ir preso. No ano seguinte outro procurador da câmara apresentou para pauta uma queixa de que o “povo” da vila “passava mal de mantimentos e se embarcava muita farinha para fora da terra”,43 o que resolveram os oficiais da câmara que se pusessem editais na vila para que ninguém pudesse embarcá-la, sob pena de o proprietário ser preso, multado em 6.000 réis e a farinha confiscada, aplicando-se a mesma pena a qualquer um que a embarcasse. Em 1676, apresenta-se outra queixa dessa vez a respeito da falta de peixe, já que os “os homens que pescam com redes nestas lagoas não queriam vender peixe ao povo só pelo mandarem ao Recife”.44 Da mesma maneira, se registraram queixas contra o uso das redes de arrasto que, por serem lançadas nos canais em que entrava o peixe em épocas de reprodução, acabavam com ele.45 Esses casos mostram que peixe e farinha eram gêneros que chegavam escassear em alguns anos e, por conta disso, tinham um valor considerável para os habitantes. Portanto, é bem provável que eles sofressem privações ao serem fintados nesses gêneros. É interessante perceber que essas queixas coincidem com alguns dos anos em que foram lançadas as fintas na vila (isto é, nos de 1674, 1675 e 1676). Isso leva à possibilidade de conectar as queixas sobre a falta desses gêneros com a arrecadação das fintas e, consequentemente, à possibilidade delas terem sido feitas num momento crítico, no qual a escassez era Segundo Livro de Vereações... fl.140. Ao que parece, comprava-se farinha em alguma freguesia próxima e se acrescia o preço pela cabotagem.

42

Idem, fl.156 v.

43

Idem, fl.159 v.

44

AHU, Pernambuco Avulsos, cx. 130, D. 9837, fl. 29 v..

45

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agravada, de um lado, pela saída comercial dos gêneros e, de outro, pelas cobranças das fintas dos Palmares. Imagina-se que um terceiro fator, o climático, poderia afetar a produção e, assim, o abastecimento interno da farinha, entretanto, não foram encontradas evidências a este respeito.

O quadro de sobrecarga tributária -bellum: uma conjuntura agravante

do post-

Além das contribuições para as fintas, os habitantes de Alagoas do Sul arcavam com as consequências do “quarto de século” de ocupação e guerra neerlandesa, marcada, na localidade, pela destruição de casas e de diversas unidades produtivas. Durante guerra, a vila ocupou uma posição de passagem para as tropas, tanto neerlandesas quanto luso-brasílicas, situação que tornava o incêndio de canaviais e engenhos algo recorrente e, inclusive, bastante citado nos relatórios e correspondências oficiais das autoridades da WIC. Além das unidades produtivas e dos domicílios, os oficiais da câmara atribuem aos neerlandeses a culpa pela destruição da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. A reconstrução deste templo, em 1672, foi financiada com tributos sobre as aguardentes, vinho, azeite e sal, lançados pela vereança.46 Como se não bastassem essas contribuições, em 1678, o Ouvidor-Geral da Capitania de Pernambuco, Lino Camelo, deixou a cargo da câmara a arrecadação de mais uma contribuição: a reforma da cadeia pública, que se encontrava arruinada, para a qual, se tentou lançar uma finta. E no ano seguinte, os oficiais mandaram reunir dezenove homens bons da vila para notificá-los dessa decisão. Estes formalizaram o protesto num “termo de ajuntamento”, dizendo que: não estavam em tempo de fazerem a cadeia porquanto estavam devendo a finta da Senhora Rainha da Grã Segundo Livro de Vereações... fl. 29.

46

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Bretanha e paz de Holanda e juntamente deviam muita parte do custo da Igreja Matriz porquanto o fez povo sem Sua Alteza dar ajutório para a dita obra e estava o povo muito atrasado com as entradas dos Palmares.47

Além dos gastos com as reedificações de suas casas, propriedades, da Igreja Matriz e cadeia, os habitantes arcavam com uma despesa muito maior: o Donativo para o Dote da Rainha de Inglaterra e Paz com Holanda, que em alguns anos (no mínimo os de 1679 e 1680) fora revertido para o custeamento da Guerra contra os Palmares.48 Quando somamos todos esses tributos às arrecadações in natura, feitas através das fintas, visualizamos o quadro de “sobrecarga tributária”, característico do post-bellum na Capitania. Diante disso, cabe a pergunta: será que as iniciativas de mobilização que partiam dos governadores tiveram completa eficácia e foram aceitas sem relutância nos espaços locais? Certamente que não, e ao menos um governador reconheceu isso. Em fevereiro de 1678, D. Pedro de Almeida escreveu ao Conselho Ultramarino relatando seu procedimento em relação à Guerra contra os Palmares. Falando da iniciativa de solicitar mantimentos às câmaras, relatava: tratei com diligência que as câmaras da jurisdição deste governo assistissem para uma nova guerra com os bãotimentos[sic] necessários para a gente que a ela enviasse; dificultoso me foi concordá-las neste voluntário pedido, por estarem costumadas a semelhantes despesas, e pelas impossibilidades com que no tempo presente se acham.49

Idem, Ibidem. Apesar da queixa, os homens ali reunidos deixaram uma contribuição de 170.000 réis.

47

Idem, fl.62.

48

AHU, Pernambuco Avulsos, cx. 11, d. 1103. (04 de fevereiro de 1674) (grifo do autor).

49

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O trecho “por estarem acostumadas a semelhantes despesas” deve ser destacado, pois os habitantes forneciam gêneros (especialmente farinha) para o abastecimento de tropas, desde a ocupação e a guerra contra os neerlandeses, e D. Pedro de Almeida demonstra não estar alheio a essa situação. Por outro lado, fica evidente a prática de se requisitar essas cotas “eventuais” de mantimentos à vila, constituindo uma das principais formas de tributação do período considerado. Vale ressaltar que, de um lado, é comum encontrar pedidos semelhantes de víveres, gado e cativos sendo feitos pelos governadores às câmaras de Sirinhaém, Porto Calvo e Penedo, mas, de outro, não encontramos pedidos semelhantes para as vilas de Olinda e Igarassu (ao menos não com tanta frequência). É provável que Olinda e Igarassu, por estarem mais afastadas dos Palmares, fossem poupadas das contribuições para a montagem dos comboios de mantimentos. Mesmo reconhecendo as dificuldades, Almeida diz que suas “persuasões, com geral beneplácito” fizeram com que as câmaras “não duvidassem por respeito algum o que necessariamente lhes pedia para sossego e quietação destes povos, e serviço de Vossa Alteza”.50 Dessa maneira, ele fez crer ao Conselho Ultramarino que suas iniciativas de encetar a mobilização das vilas tinham sido bem sucedidas. No entanto, as queixas sobre a falta de suprimentos não são raras nas folhas de serviço daqueles que lutaram contra em Palmares, o que aponta um choque entre os discursos dos governadores e dos veteranos da guerra51 e sugere falhas no fornecimento desses víveres, por conseguinte.

Idem, Ibidem.

50

Só para citar alguns: Lázaro Coelho de Eça, Manuel Cubas Frazão, João da Fonseca, Manuel Lopes, Manuel Nunes. Cf. AHU, Alagoas Avulsos, cx. 2, d. 145.; AHU, Pernambuco Avulsos, cx. 10, d. 1022; cx.12, d. 1212 e d. 1230 (ver referências completas ao final).

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Considerações

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finais

Em meio a toda a dinâmica de mobilização para o conflito, duas observações podem ser feitas. De um lado, a colaboração/ negociação entre o Governador e os poderes locais era indispensável para que a guerra pudesse acontecer, já que armas, munições, tropas e mantimentos, não poderiam ser mobilizados em um único espaço, ainda que se possa pensar que as iniciativas de organização pudessem, na maior parte das circunstâncias, partir de um centro, nesse caso, Olinda. As ordens dos governadores precisavam ser levadas, transmitidas e efetivadas pela mediação de algum agente ou instituição que, no caso analisado, encarna-se na Câmara. Constatamos que as principais medidas tomadas pela vereança para dar cumprimento às ordens dos governadores eram: sua publicação no espaço da vila, a nomeação de fintadores e escrivães do almoxarifado dos mantimentos, a realização das vistorias e a imposição de penalidades àqueles que se negassem a contribuir com elas. Está claro que essas ações permitiram a ressonância dos poderes do governador a léguas de Olinda. Dito de outra forma: a reverberação do poder de comando dos governadores em espaços distantes do termo de sua residência estava condicionada à disponibilidade de recursos locais e à possibilidade dos poderes existentes, nesse sentido concorrentes com os dele, cumprirem ou descumprirem suas ordens. Por outro lado, viu-se que a Câmara não atuava como uma mera correia de transmissão (involuntária, e acéfala) das ordens do governador. Pelo contrário, quando alguma delas afetava os interesses dos produtores locais, era a Câmara que recebia suas queixas e servia como um espaço para normatizar o descumprimento, às vezes causado pelos impactos das fintas sobre o abastecimento interno ou sobre a estrutura social da vila.

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OLINDA: UM ROTEIRO1 José Luiz Mota Menezes2

Resumo: No interesse de criar um roteiro para ver Olinda, o autor escreve sobre a história da cidade, onde destaca os acontecimentos mais interessantes do seu desenvolvimento urbano. Acentua, no correr do texto, a presença das casas de religiosos, quer os da Companhia de Jesus, quer os de outras ordens. Descreve as principais influências artísticas, definidoras da arquitetura dos edifícios e das moradias. Conclui o texto com uma sugestão de roteiro artístico e histórico. Palavras-chave: Urbanismo, Arquitetura, História urbana, Brasil. Olinda: an itinerary Abstract: Aiming to create an itinerary to visit Olinda, the author writes about the history of the city, and calls attention to the most important facts of its urban development, including the presence of some houses, belonging to The Society of Jesus or other religious orders. The article describes the main artistic influences, as architecture definers of family houses and other buildings. At the end, the author suggests an artistic and historic itinerary through the city. Keywords: Urbanism, Architecture, Urban History, Brazil.

História A criação de Olinda provavelmente ocorreu entre 1535 e 1537, respectivamente o ano em que Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, tomou posse do território Texto recebido e aprovado para publicação em abril de 2014.

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É professor emérito do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco e Presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

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a ele doado por D. João III na Carta de Doação. Ao chegar a Olinda, desde Itamaracá, o donatário, na parte mais alta de um dos morros que pontilham a topografia da cidade, construiu sua torre forte em pedra e cal. A Carta de Doação, também chamada de Foral, datada de 1537, conforme citação do historiador José Antônio Gonsalves Mello, refere-se a este ano não como o da fundação da Vila, mas sim da repartição daquelas terras doadas, com a distribuição de lotes, delineando assim o desenho urbano da vila. Na determinação desse desenho das ruas, largos, adros e praças, parece-nos ter predominado uma maneira de pensar bem ao modo dos engenheiros militares portugueses, chamados hoje, em texto notável de uma arquiteta paraense (MALCHER, 1997), verdadeiros agentes do urbanismo, onde se encontra presente um raciocínio lógico e que constitui uma antevisão daquele do filósofo Descarte. A necessidade de ligar ponto a ponto e as facilidades de ir de um lugar a outro pelo caminho mais simples e, ainda, certa distância entre teorias e traçados, definiram as relações espaciais que terminaram por constituir uma bela imagem da vila vista em desenhos, aquarelas e gravuras do primeiro e segundo século. A escolha do local que sediou o assentamento originário desta importante cidade histórica brasileira, segundo alguns historiadores, não foi um feito isolado, tendo havido relação entre a sede da Capitania, seu porto e os lugares de fabricação do açúcar. O lugar da administração e dos homens a seu serviço e dos demais moradores da vila; o lugar de embarque e desembarque, portanto da ligação com o resto do mundo; e o lugar da plantação, inclusive no melhor terreno, o fértil massapé, tão decantado por estudiosos da produção açucareira. Aquela terra fértil e poética, de deslumbrante paisagem natural, viria a ser então a sede de um complexo de produção de riqueza. Dentro do projeto civilizador de Duarte Coelho, a vila, os engenhos e o porto interligavam-se por longos e estreitos caminhos, na água e em terra, todos materializados em um mapa do cartógrafo C. Golijath. Tal como uma aranha, tece seus fios, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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se interligaram todas as partes do território, de acordo com as necessidades de sobrevivência. Os caminhos fluviais, constituídos pelos Rios Beberibe e Capibaribe, eram importantes vias de escoamento da produção de açúcar, esta armazenada em caixas de madeira que após transporte pelos rios se guardavam nos armazéns da Aldeia dos Arrecifes até ao embarque para a Europa. A riqueza gerada pela produção do açúcar no século XVI levou os habitantes de Olinda, salvo os mesquinhos e avarentos, a uma vida de luxo. Sobre isso, no seu Tratado da Terra e Gente do Brasil, padre Fernão Cardim conta, entre outras coisas, que naquela vila as cerimônias de casamento eram pomposas, os proprietários de terra usavam esporas de prata para as montarias e as pessoas abusavam do vinho e dos desregramentos morais, cometendo graves pecados. Entre a sociedade local, composta de gente de várias etnias e ocupações, existiam funcionários a serviço do governo, profissionais diversos como sapateiros e alfaiates, proprietários de lojas, negociantes de toda espécie, ourives, trabalhadores de engenhos e aqueles que viviam de sua própria fazenda, geralmente os cristãos-novos. Olinda abrigava todos e eles se entreolhavam, essencialmente os cristãos-velhos diante dos novos, numa fiscalização permanente, uns dos outros, por conta de um possível e real exercício de hábitos e práticas vinculadas ao judaísmo. Imaginar aquela Olinda da segunda metade do século XVI, onde o açúcar permitiu tanto luxo e muita quebra de regras morais, é um exercício dos melhores, uma reconstrução da vila sob a luz da gente que a definiu tão bela e radiosa naquela centúria. De Olinda, o europeu conheceu poucas imagens desenhadas e pintadas, mas soube de sua riqueza e fama. Por conta, entre outras causas, da grande produção de açúcar, passou a ser a segunda vítima da Companhia das Índias Ocidentais, sociedade organizada com fins lucrativos que, depois de conquistar a Bahia em 1624, desta capitania foi expulsa um ano mais tarde. A empresa tomou Pernambuco em 1630, conquistando a Vila de Olinda. No alto do colégio da Companhia de Jesus, os invasores ergueram sua bandeira e então o luxo e as riquezas desse burgo de Duarte Coelho acabaram de vez. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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Existem duas importantes gravuras que nos permite conhecer os aspectos da cidade naquela época. Uma é a de Claes Janszoon Vischer, feita a partir de anotações do lugar, sem maior identificação das edificações então existentes. A imagem de Olinda e do Recife ilustra o relatório do Almirante Lonck sobre a tomada da vila. O gravador, não conhecendo a arquitetura dos edifícios da vila os representa como construções da Europa, mais significativamente da Holanda. A outra, intitulada Marim de Olinda de Pernambuco, de artista anônimo, fixa uma vista da Vila no formato clássico da época, ou seja, em perfil. A gravura se encontra ilustrando o livro escrito pelo diretor da empresa J. de Laet sobre a história do empreendimento mercantil holandês. Em termos da veracidade da representação da Vila de Olinda podemos informar que quando das restaurações da Sé de Olinda, da Igreja de Nossa Senhora da Graça e do Palácio dos Bispos (em 1630 existia apenas a Câmara), em 1972-78, os indícios encontrados sob os rebocos de elementos da arquitetura, desconhecidos nos edifícios antes dessas restaurações, comprovaram a precisão do representado pelo gravador dessa segunda imagem. Assim, a estampa passou a ser de grande interesse para o conhecimento da Vila de Olinda e a povoação do Recife no início da terceira década do século XVII. Outro documento relevante para o conhecimento da história urbana de Olinda é o mapa inserido no livro de autoria de Gaspar Barléus, impresso em 1647, em Amsterdã, Holanda, onde o autor louva a presença do conde João Maurício de Nassau, na qualidade de governador da Conquista Holandesa (1637-1644). Esse mapa é semelhante ao realizado pelo cartógrafo C. Golijath, sendo uma das partes de um conjunto de quatro folhas que juntas fixam Recife e Olinda, representando as ruas e os edifícios principais desse último assentamento urbano. Comparando aquele mapa e a gravura do livro de J. de Laet podemos chegar, com a ajuda da estampa de Post, a algumas conclusões sobre aquele aspecto da vila de Olinda.3 3

No interesse de identificar melhor os comentários foi confeccionada ilustração que tomou por mapa referencial a Cidade de Olinda, no final do século XIX, e sobre ela se lançou as informações da estampa Marin d’ Olinda.

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Os principais edifícios do Alto da Matriz e o casario representados na estampa, quando relacionados com o mapa, nos levam a deduzir que a gradual apropriação das áreas da vila se deu a partir de uma linha preferencial que começando na Igreja do Salvador, passa pela Casa da Câmara ao seguir para a Igreja e Hospital de Nossa Senhora da Misericórdia. Desse hospital se descia a uma ladeira para o lugar dos Quatro Cantos e novamente se subia outra ladeira e se atingia a Ribeira, onde estava a Igreja de São Pedro e desta se tomava a direção do Pátio e Mosteiro de São Bento. Tal linha, no sentido contrário, atingia as três únicas casas por detrás da Matriz e chegava a Igreja e Colégio dos Jesuítas, depois se descia para o Convento dos Franciscanos e deste se continuava a descer até chegar ao Rocio, defronte ao Convento dos Carmelitas. Esta forma anelar resultante, simples e direta interligava o Rocio ao Alto da Matriz e desse, por sua vez, seguia-se por um caminho para o Pátio do Mosteiro. Desse pátio se descia para o Varadouro, porto fluvial no Rio Beberibe. Assim estava fechado o anel de circulação da gente. A parte mais densamente povoada da vila situava-se desde aquele alto até o Mosteiro dos Beneditinos. Grandes vazios, sem construções, existem na estampa e talvez revelem a real situação da vila, apesar da representação em desenho das ruas naquele mapa indicar uma definição de quadras, que provavelmente não estavam todas ocupadas. Tal adensamento da vila deve ter ocorrido depois da saída dos holandeses. Na estampa, junto ao Rocio se pode ver um casario de pequeno porte, nos indicando uma ocupação rarefeita do local. No que diz respeito aos edifícios representados na estampa, vale a pena algumas observações. Em primeiro lugar o Convento dos frades carmelitas se encontra desenhado como incompleto, tal como informam as crônicas e a própria análise atual da construção, onde as etapas construtivas dizem bem da interrupção havida na obra e da reconstrução de partes destruídas, quando da presença holandesa, e da reconstrução após 1654. Quanto a Igreja ela é parcialmente concluída e no seu interior e exterior se percebe bem claramente os dois momentos da construção. Por longos anos não terá retábulos de talha em madeira e sim pintados nas paredes. Esses exemplares de retábulos pintados são Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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hoje documentos importantes na definição didática de períodos da talha em Pernambuco. Um altar e retábulo em pedra calcária, na capela sob a torre sineira merece ser destacado. Apesar de manter aquela volumetria anterior, a quadra conventual, depois de 1654, terá mais um andar após sua reconstrução. Isto se percebe claramente em algumas fotos do que restava dele antes de 1910. Hoje, da enorme mole, construída e reconstruída, resta-nos a Igreja, de grande porte e exemplar magnífico de um possível Renascimento/Maneirismo de origem espanhol em Olinda. Com relação ao Convento de Nossa Senhora das Neves dos frades de São Francisco, representado na gravura, podemos dizer que estamos diante daquela pequena construção doada por Dona Maria da Rosa, referida por Frei Jaboatão, hoje ainda visível dentro de outra, resultante de ampliação posterior ao incêndio de 1631. Este convento ampliado contém no seu interior as partes antigas, numa solução bem franciscana e vista em outras casas da ordem. O convento tem desenho bem simples e fiel ao espírito de pobreza que presidia as primeiras construções dessa ordem no Brasil. Uma escala bem humana e que se vai alterar quando o gosto Barroco e a afirmação da aristocracia do açúcar determinam a pompa e a circunstância em todas as casas religiosas de Olinda. Acima dos franciscanos, “botas sobre capuchos” na expressão daquele cronista franciscano citado, a Igreja de Nossa Senhora da Graça e o Colégio dos Jesuítas, o último reconstruído mais elegante em 1661 por se lhe acrescentarem nas obras quase um metro em altura, o que alterou sua volumetria. No interior da igreja dois retábulos de cantaria salvaram-se daquele incêndio de 1631, uma vez que executados em calcário e protegidos por abóbadas de alvenaria. O altar-mor, também em pedra, foi desmontado, provavelmente, nessa etapa de obras, (1654-1661) e substituído por outro de madeira. Dele restou o que foi descoberto na restauração que do monumento se fez entre 1972 e 1974. Partes dos restos do retábulo desse altar foram encontradas em escavação arqueológica. Entre outros trechos da decoração do retábulo temos três imagens em pedra e um fragmento pequeno de outra, decapitadas pelos holandeses. Hoje são as melhores peças do século XVI/XVII que possui o Brasil. São em feitura sóbrias, arRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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caizantes, e de fino lavor. Vestem-se à maneira bem medieval. A igreja é um grande salão, espelhando bem as diretrizes da empresa missionária e evangelizadora de Inácio de Loyola. A Sé de Olinda, incendiada e parcialmente demolida em 1631 e ao longo dos anos seguintes, foi refeita quando da saída dos holandeses, sendo então aproveitada toda a pedraria que se pode recuperar. Depois de 1654 suas oito capelas laterais, apenas indicadas na estampa Marin d’ Olinda, foram terminadas então com abóbadas de alvenaria. Na oportunidade de ser elevada a Catedral em 1676 foi ampliada e uma enorme Sacristia, com o Cabido no pavimento superior, foi construída e decorada. Esta Igreja teve seu interior ornamentado de forma muito lenta, diante do feito de terem sido sempre insuficientes os meios pecuniários para a elaboração das talhas, da azulejaria e das pinturas necessária. A sua aparência exterior, conhecida por meio de fotografia de 1911, nos revela tal situação e os tempos do edifício. A Sé nunca foi terminada de todo. Sua presença, no alto da colina definia bem o caráter da cidade e a situação privilegiada de sua localização. Hoje a Igreja Matriz do Salvador do Mundo está desenhada da forma como se encontrava quando da invasão holandesa. Três naves, a central mais alta e iluminada por frestas na diferença dos telhados, com a demarcação das capelas situadas ao redor. Tal forma, desconhecida de todos, foi comprovada pela obra de restauração nela procedida em 1972. O Padre Fernão Cardim assim a descreve em sua Narrativa Epistolar, em 1583. A preferência pelas três naves é bem do tempo e se confirma em igrejas paroquiais da península ibérica. A torre do lado Sul, representada na estampa, não existia mais no século XIX, antes de infelizes remodelações de 1911 e 1936. Acreditava-se nunca ter existido, mas a estampa diz de sua presença em 1630 e as vistas panorâmicas de Olinda pintadas pelo artista Frans Post mostram tal torre arruinada. Documentos encontrados confirmam tal representação.4

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A documentação sobre as torres se encontra no Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH), do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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A Casa da Câmara, desenhada com suas janelas dispostas num volume coberto em duas águas, foi identificada, quando de restauração procedida em 1972 no Palácio dos Bispos. Esse prédio da Câmara foi absorvido por tal Palácio, sendo este o resultado da anexação desse edifício a outro próximo, com duas torres e um terreno vazio entre eles. A representação que aquele gravador fez dessa Casa da Câmara é o único documento gráfico merecedor de fé de tal construção. Logo a seguir, depois da Câmara, se encontram a Igreja e o Hospital da Santa Casa da Misericórdia e o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição, este fundado por aquela mameluca D. Maria da Rosa, enriquecida pelo casamento com um rico português. Na gravura em tela apenas se pode vê a cruz, que encimava o frontão da primeira igreja. Depois, a estampa representa um casario que, descendo a Ladeira da Misericórdia, chegava aos Quatro Cantos e dai subia até a Igreja de São Pedro, como dissemos. Esta Igreja se encontra representada e sua cruz que estava ao alto da fachada é visível. Depois, essas moradias seguem até bem perto, como acontece hoje, do Mosteiro de São Bento. Quanto ao casario, tinha ele, naquela altura do século XVII, 1630, volumetrias e telhados muito semelhantes. Os telhados dessas moradias tinham suas águas para frente e para detrás. Eram construções com características bem afins com as das demais vilas e cidades do Brasil. O Mosteiro de São Bento, pequeníssima construção, toda reformulada depois de 1654, está representado bem de acordo com o que as crônicas dizem a respeito. Desse mosteirinho se tem ainda pedaços de um altar, em cantaria, de fino gosto, encontrados em escavações na atual portaria. As únicas defesas da vila Duartina eram uma pequena fortificação e uma cerca de pau a pique, ao longo do mar, uma vez que os arrecifes naturais não deixavam nenhuma embarcação maior chegar às praias do burgo. Tal paliçada nos parece ter sido instalada antes de 1630 e mantida depois da invasão. Logo após a conquista os holandeses constataram que a Vila de Olinda tinha um perímetro urbano ocupado muito grande e fortificá-la por inteiro pareceu tarefa impossível para quem ainRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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da não conhecia nem dominava as matas, as olarias e as pedreiras locais. O soldado Ambrósio Richshoffer, em seu Diário de um Soldado da Companhia das Índias Ocidentais, contou, em novembro de 1631, que as pedras aproveitáveis das edificações mais sólidas foram levadas para novas construções no Recife, que se tornou um assentamento desenvolvido, ganhando o título de Vila no começo do século XVIII, sendo seu termo retirado do território de Olinda (RICHSHOFFER 1997:123). Diante daquela dificuldade de ser fortificada, Olinda foi abandonada e um incêndio ateado pelos holandeses destruiu a maior parte de suas moradias, igrejas e conventos. O pouco que restou foi salvo pelas pessoas que ficaram na Vila, por índios e alguns religiosos. Frans Post, pintor da comitiva do governador João Maurício de Nassau fez vários desenhos, gravuras e pinturas da cidade incendiada, retratando as ruínas em vistas gerais e em detalhes. Finalmente, em 1654, a Vila de Olinda começou a ser reconstruída, tendo sido elevada à categoria de cidade em 1676, com direito a Bispado. A recuperação quer das moradias e edifícios religiosos e de outros usos ocorreu de maneira lenta. O Convento e a Igreja do Carmo tiveram importantes detalhes resgatados e outros acrescentados à arquitetura original. Em seus escritos, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão referiu-se às obras de ampliação do Convento dos Frades de São Francisco anos depois da retirada dos holandeses, época em que também foi refeita a Sé de Olinda, situada no alto de uma colina de onde se descortina uma das mais belas vistas do Recife e do imenso mar. Quando acontece a reocupação da vila, depois de 1654, a sua parte alta e mais antiga, antes colmada de edificações, não será mais alvo de interesse da gente que voltou a habitar a cidade. As bicas, a água potável, ficavam na cota de 20 metros ou mesmo menos em relação ao mar. Assim intensificou-se, se bem que de forma lenta, como se disse, a reconstrução e as construções novas nessa cota. O Alto da Sé, situado a 52 metros passou a ser desprezado e a própria Casa da Câmara mudou-se para a Ribeira, junto a Igreja de São Pedro, a segunda em importância eclesiástica no burgo. Desta forma, aquele eixo inicial parte do Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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anel referido foi ampliado com a formação de outras ruas, antes apenas delineada em um plano geral. Surgiu a Rua do Bonfim, antes de Janniene. Com esta também a que dos Quatro Cantos se dirigia para a Igreja de Nossa Senhora do Amparo, antes simples caminho, com casas apenas de um lado e que se configurou com novos assentamentos do outro. Existiu assim uma mudança naquele plano diretor em função do conforto relacionado pela proximidade da água. Nos autos de um processo, de 1710, realizado no interesse de identificar os proprietários de terras na cidade, se colheram depoimentos que confirmam, diante do vazio que se formou de construções no Alto da Sé, o quanto ele era povoado nos primeiros dias da capitania.5 5

Depoimento de André da Cruz, de 81 anos, em 1710: “O Monte em que o Foral fala ouviu ele testemunha sempre dizer era donde, hoje chamam a Rua Nova, que foi a parte mais povoada desta cidade, e donde ele testemunha ainda viu muitos edifícios derrubados, vindo para esta Capitania há 46 anos [em 1664, portanto], e na dita parte ouviu dizer morava o governador e na mesma rua ainda ele testemunha conheceu a cadeia velha, em cujas casas ao presente vive António Lopes Leitão, e às fraldas do dito monte também ele testemunha viu nelas muitos edifícios derrubados, assim para a banda do norte como para a banda do sul, pegando uma rua por detrás do Palácio onde hoje vive o Bispo e ia sair à Igreja da Conceição e daí para baixo até as outras era muito povoado”. Depoimento de José de Sá e Albuquerque, capitão mor de Olinda e um dos primeiros genealogistas pernambucanos, então aos 80 anos de idade: “O monte, em que se achava a maior parte do povoado que esta cidade teve, foi donde hoje chamam a Rua Nova, donde ele testemunha viu as paredes das casas que se dizia, foram dos governadores e na dita rua ainda existiam as casas que foram cadeia”. Depoimento de Francisco Berenguer de Andrade, de 74 anos, afirmou que: “o monte em que o Foral a princípio declara é aonde chamam a Rua Nova, donde ele testemunha sempre ouviu dizer habitar o primeiro Donatário desta terra e povoador dela e sua mãe (sic), Dona Brites” (MELLO, 1957). Ainda, segundo a Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil (MENDONÇA, 1929) e as Confissões de Pernambuco, divulgadas por José Antônio Gonsalves de Mello (1984), considerando os que foram chamados a depor junto ao Santo Ofício, moravam na Rua Nova, entre 1593 e 1594: 1. Gaspar Fernandes e sua mulher Maria Francisca, ele barbeiro; 2. Antônia Bezerra, casada com Antônio Barbalho, dos da governança - em casas fronteiras e coincidentes; 3. Balthazar Leitão, casado com Inez Fernandes; 4. João Nunes, mercador, em sobrado; 5. Mateus Fernandes, alfaiate; 6. Antônio Correia, vinhateiro, morador defronte à casa de João Nunes; 7. Manoel de Oliveira, sisgueiro; 8. Henrique Afonso, Juiz Ordinário; 9. Diogo Fernandes, genro de Branca Dias, mercador, casado com Ana; 10. Pero da Rua e Rafael da Matta, este pedreiro; 11. Na Torre, morava Dona Breatiz D’ Albuquerque (MENDONÇA, 1929: 11, 26, 29, 59, 65, 74, 250-251, 335). Defronte à Misericórdia: 12. Gonçalo

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Não apenas as igrejas e conventos citados floresceram com maiores dimensões, também igrejas paroquiais e outras novas foram construídas com as mesmas intenções por conta daquele interesse religioso dos aristocratas do açúcar. Desta forma, o pequeno Mosteiro dos Beneditinos, visto em sua escala na referida estampa, é muito ampliado, recebendo a igreja um belíssimo retábulo de talha, inteiramente dourado, e inspirado na obra magistral de Frei José de Santo Antônio Vilaça, atuante enquanto mestre de riscos no Norte de Portugal. Não existem mapas de Olinda do século XVIII, mas estudo recente envolvendo o exame da arquitetura presente nas antigas ruas, revela o quanto se reconstruiu e construiu ao longo de um século e meio. A ausência de maiores estímulos para tal crescimento, Olinda, no final do século XVIII e princípios do seguinte impressionou Maria Graham, escritora e aquarelista a ponto dela assim se expressar quando a viu em 1817: “Fiquei surpreendida com a extraordinária beleza de Olinda, ou antes, dos seus despojos, pois se encontra atualmente em melancólico estado de ruína” (VALENTE, 1957:108). Um estado de abandono e desinteresse em ocupa-la o que, felizmente, como outra face do processo, a salvaguardou de uma reocupação desordenada e destruidora em relação às suas características quinhentistas, em termos de desenho urbano, e das demolições ou modificações, Dias, alfaiate; 13. Luís Antunes, boticário - defronte à porta da Misericórdia, casado com Maria Alvarez; 14. Rui Gomes, pai de Luís Antunes, ourives e seu vizinho; 15. Maria de Faria, casada com Francisco Cordeiro, que vive de sua indústria, vizinha de Luís Antunes (MENDONÇA, 1929:103, 122, 316, 444). Junto da Misericórdia, no local onde hoje é a Academia Santa Gertrudes, eram moradores: 16. Catarina Fernandes, mulher de Manuel Roiz; 17. Felipe Cavalcanti; 18. Pe. Tomé da Rosa Baracho, indicado no processo de Rui Gomes (MENDONÇA, 1929:23, 450). Na Rua de Palhais, hoje Rua Bispo Coutinho, moravam: 19. Branca Dias, em uma casa de dois andares (a casa é vista na gravura Marim d’ Olinda); 20. Beatriz Luís, casada com Fernão de Afonso, carpinteiro (a Rua é chamada então do Salvador); 21. Fernão de Afonso, carpinteiro (deve ser a mesma casa anterior); 22. Joana, escrava de Branca Dias; 23. Brasia Monteiro, casada com Domingos Monteiro (MENDONÇA 1929:32, 150, 281). Detrás da Matriz de Salvador (seria também Rua dos Palhais?): 24. Gaspar Rodrigues e D. Hieronimo de Almeida. Na Rua da Conceição (hoje Largo da Conceição): 25. Licenciado André Magno de Oliveira; 26. Francisco Camello e seu pai Jorge Camello; 27. Leça ou Lessa, sapateiro (MENDONÇA 1929:97, 216, 278). Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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sem grande cuidados, de suas igrejas e outras casas religiosas. No século XIX, embora as cidades brasileiras já se encontrassem progredindo e recebendo grandes melhoramentos, Olinda pouco se alterou, mesmo com a instalação dos Cursos Jurídicos em 1827. A água potável e a iluminação só vieram mais tarde, com a Companhia de Santa Tereza. Nos últimos anos desse século, quando os banhos de mar foram indicados por salutares, as praias de Olinda passaram a ser frequentadas, principalmente as próximas do antigo Rocio e desde esse até o Fortim de São Francisco. Em tal busca de saúde, amarrada às cordas e essas a dois paus fincados nas areias, a gente tomava, das seis ou menos horas até, no máximo, às oitos horas, os banhos salgados, o que motivou a condução dos trilhos da maxambomba, o trenzinho a vapor, seguir para Olinda desde a Encruzilhada, hoje um bairro do Recife. Tal condição provocou, quando o veraneio não foi fortuito, mas programa permanente das famílias, a compra de casas próximas à orla do mar. Tal interesse coincide com o Ecletismo na arquitetura, que revestiu os exteriores de velhas casinhas. Maneira de maquiar que deu origem, ao se comparar tal processo ao do confeiteiro, ao título de “bolos de noivas” para tais construções. O interesse pelos banhos salgados e os acessos facilitados às praias, primeiro pelo trem urbano, depois pelos carros elétricos, os bondes, levaram os proprietários de sítios às margens do mar e do Rio Beberibe a lotearem suas terras. Com isso, a partir de 1932, o município de Olinda teve grande expansão e o pouco que restava da área coberta de mata passou a sofrer constantes invasões. Embora tais loteamentos não interferissem na visão da cidade nem fossem feitas grandes intervenções na sua área antiga, elaborou-se legislação específica para preservá-la. Mais tarde, no entanto, por falta de controle administrativo e urbano, os antigos mangues do Rio Beberibe que envolviam a parte sul da cidade, começaram a ser aterrados e ocupados por mocambos e casas de pequenas dimensões. Acrescente-se a tal fato a invasão, sobre o leito de antigo braço do Rio Beberibe, que formava o antigo Cais, o Varadouro das Galeotas, na área do Loteamento Umuarama. Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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Esse varadouro, o que se vê primeiro ao chegar à cidade desde o Recife, tem, por força de tais ocorrências e do mau gosto da nova arquitetura, um péssimo aspecto. As intervenções e transformações ocorridas ao longo dos anos definiram duas Olindas distintas. A primeira, tombada nacional e internacionalmente, é considerada Patrimônio Mundial pela UNESCO. A outra se constitui de duas subpartes: os edifícios e casas junto ao mar, de melhores aspectos, e as casas populares, organizadas em lotes urbanos regulares e irregulares, decorrentes, às vezes, de invasões desorganizadas ao longo do Beberibe. Olinda praticamente não tem indústrias. A população dispõe de um comércio de porte na área das praias e de pequenos mercados e lojas. Em decorrência do turismo, o comércio informal se apropriou do Alto da Sé e dos pontos de maior fluxo turístico. Olinda foi considerada, pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, um conjunto urbano dos mais notáveis. Com a criação, pela UNESCO, da figura que define os Bens Culturais como Patrimônio da Humanidade, Olinda foi escolhida para tal título. Um perímetro tombado foi então definido, vinculado ao da antiga Vila de Olinda, com o seu desenho urbano quinhentista; a volumetria das edificações ainda está mantida com as mesmas características dos primeiros tempos; além da excelência de seus edifícios religiosos. Depois passou a ser regulamentado o sistema de proteção, pelo município, segundo zonas rigorosas e ambientais.

Percursos

temáticos: roteiro de visita

O perímetro urbano tombado da cidade é aquele vinculado ao da antiga Vila de Olinda, com o seu desenho quinhentista, com as características da volumetria das edificações originais e com a excelência de seus edifícios religiosos. Visitar Olinda é usufruir da poesia contida na sua paisagem urbana e da riqueza dos exteriores e interiores de suas edificações. É percorrer suas ruas estreitas e tortuosas, mas Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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carregadas de força telúrica. É viver o contraste entre o velho e o novo, com a sensibilidade capaz de reconhecer valores nos dois tempos. O roteiro ideal para se descobrir a cidade começa passando por caminhos antigos e dentro do seu sistema anelar de formação. Muitos são os monumentos e lugares a serem visitados Muito há que ser visto e apreciado, pois como disse Carlos Pena Filho “Olinda é só para os olhos, não se apalpa, é só desejo. Ninguém diz é lá que eu moro. Diz somente: é lá que eu vejo”. Começando pela Praça da Abolição, antigo Rocio, nos deparamos com a monumental Igreja de Santo Antônio do Carmo, com exterior em cantaria e pedra calcária obtida nas proximidades de Olinda. Seu interior, assim como a parte inferior da fachada principal, tem composição de arquitetura fiel ao gosto do Renascimento. Gosto que reflete a presença da União Ibérica e sensivelmente a Espanha. As tribunas, centradas no andar inferior, em cada eixo de capela, não se concluem, faltando-lhes os capitéis das pilastras. As pilastras que separam as capelas intercomunicantes são da Ordem Jônica, a mesma que decora a capela-mor da Igreja dos Jerônimos, no Restelo, em Lisboa. Na capela do transepto, há um altar pintado, fingindo uma talha decorativa da primeira metade de 1600. Na primeira das capelas encontra-se um altar e retábulo em pedra calcária muito bem trabalhado e possivelmente construído antes de 1630. O altar-mor tem seu retábulo em madeira, cobrindo outro também pintado e da mesma época daquele do transepto. Saindo da Igreja do Carmo e subindo a Ladeira de São Francisco, chega-se ao Convento dos Frades de São Francisco, conjunto que reúne as Ordens Primeira e Terceira em um mesmo edifício, ao qual se soma aquele anterior a 1630 e sua ampliação de 1654. O convento e as igrejas são ornamentados em talhas, pinturas e azulejos, a maioria do final do século XVII e início do XVIII. Um grande arco entalhado ao gosto do reinado de D. João V separa as igrejas das duas Ordens. A sacristia guarda pinturas retratando frutos da terra, azulejos da primeira metade dos anos 1700 e talha de fino gosto. Ao sair do convento, encontra-se à sua frente o belíssimo cruzeiro em Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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pedra. A sacristia da Ordem Terceira tem forro pintado bem ao gosto das obras do gênero do Norte de Portugal e afim com as de Minas Gerais. Da Ladeira, desvia-se para o conjunto do Seminário Maior, construção anterior ao domínio holandês e que foi o antigo colégio da Companhia de Jesus. Trata-se de uma edificação que começou a ser construída em 1576, incendiada em 1631 e reconstruída de 1654 a 1661. A Igreja de Nossa Senhora da Graça, restaurada em 1972, conta com dois retábulos de pedra, peças ornamentais mais antigas de Olinda. Seu interior é o de uma igreja-salão, refletindo o modo de construir dos jesuítas. Sua fachada principal tem sóbria composição com um enorme óculo, a única entrada de luz natural para o interior, além da imensa porta. As aberturas laterais, do lado Sul, são seteiras. As esculturas que ornavam o altar-mor foram encontradas decepadas e enterradas dentro da Capela de Nossa Senhora das Angústias, na lateral sul da igreja. Outra igreja incluída no roteiro de qualquer turista é a do Salvador do Mundo, a Sé. Alvo do incêndio de 1631 resistiu ao fogo por ser toda de cantaria. Suas pedras trabalhadas ficaram guardadas até 1654, época em que foi reconstruída e, igualmente, tempo da construção das outras capelas ao redor das naves. Sofreu remodelações em 1911 e em 1936, tendo sido novamente restaurada no período de 1972 a 1978. Embora não possua mais azulejos, talhas e pinturas que ornamentavam seu interior, o resgate da linguagem da arquitetura Chã, de extraordinária composição, é o maior legado obtido por essa última intervenção. Há relação entre as capelas intercomunicantes e as três naves e, em jogo de luz, o sol varre o interior da igreja de Leste a Oeste, terminando por lhe iluminar a frente principal até o altar-mor, hoje desaparecido. O Alto da Sé, o centro primitivo da cidade, abriga um comércio informal relativamente organizado. No outro extremo da colina, situa-se a Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, do antigo Hospital da Santa Casa da Misericórdia. O ornamento da igreja data da primeira metade do século XVIII e no seu interior se encontram rica talha e beRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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líssimas pinturas representando as ladainhas de Nossa Senhora. Ao seu lado, no final de um grande pátio, está o Recolhimento, dedicado a Nossa Senhora da Conceição e fundado por D. Maria da Rosa, mameluca que foi casada com um rico português e que muito auxiliou na colonização. Consta que após enviuvar ela doou aos franciscanos, em 1585, um pequeno convento, onde antes era tal recolhimento. O espaço arquitetônico do antigo hospital ainda existe por detrás da igreja. Descendo a Ladeira Saldanha Marinho, ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia chega-se ao Largo de Nossa Senhora do Amparo, onde estão duas outras igrejas, ambas anteriores a 1630: a de Nossa Senhora do Amparo e a de São João Batista. A primeira, remodelada nos séculos XVIII e XIX, ainda mantém a estrutura das paredes. Recentemente restaurada pelo município, guarda em seu interior uma talha de 1700 e um conjunto de azulejos de 1600, na parte superior da cabeceira da nave. A portada de sua fachada principal é em calcário e data de 1645, quando Pernambuco estava sob domínio holandês. A Igreja de São João Batista, que escapou do incêndio, tem desenho simples e interior sóbrio. A igreja se encontra em uma rua que vem desde aquele Largo do Amparo e lhe dá continuidade. Desviando um pouco a rota, seguimos até o Bonsucesso, onde se localiza a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída pelos negros e pardos de Olinda. Ao lado, encontra-se a Fonte do Rosário, uma das bicas mais antigas da cidade. Voltando ao Largo do Amparo, percorre-se a Rua do Amparo, estreita e longa, contornando o principal morro da cidade. Nela estão os melhores exemplares de arquitetura destinada à moradia de Olinda. São assentamentos de diversas épocas, mas mantendo a mesma escala. Algumas dessas construções pertencem a um tempo anterior e foram mascaradas para se tornarem modernas. Em outras, funciona um mercado informal de venda e compra de artigos regionais e outras atividades de subsistência. Dois sobrados ainda remanescentes destacam-se por terem balcões fechados por treliças, os muxarabís, próprios da arquitetura ibérica seiscentista (existe outro balcão do gênero na Praça de São Pedro). Nessa rua, tamRevista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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bém se encontra o Museu Regional, antiga casa de um padre, considerada exemplo de residência do século XVIII. Vários artistas, pintores, passaram a morar na rua. Na altura dos Quatro Cantos, antigo centro de comércio de Olinda e sede de algumas das casas comerciais dos cristãos-novos, recomenda-se subir em direção à Ribeira. Presume-se que o nome originou-se de um mercado que vendia artigos vindos da ribeira junto ao mar. O mercado é uma construção de meados do século XVIII e suas pequenas lojas vendem artesanato variado de Pernambuco e de outros estados do Nordeste. Segundo documentos históricos, em 1676, com a elevação de Olinda à condição de cidade, a Câmara cedeu sua sede no Alto da Matriz para residência do 1º Bispo, contanto que outra fosse construída na Ribeira. Assim feito, da nova construção, arruinada e demolida muitos anos depois, existe atualmente apenas um trecho de parede. Nos primeiros anos de século XX também foi demolida a Igreja de São Pedro, a segunda mais importante da Olinda quinhentista, amplamente referida nas Denunciações e Confissões de Pernambuco, quando da visita do representante da Inquisição a Pernambuco, em 1583-84. Desta igreja nada se sabe, a não ser que suas imagens acabaram levadas para outros templos religiosos. Da Ribeira, seguindo pela Rua de São Bento, uma das mais antigas da cidade, passando antes pelo antigo Paço, reformado no século XIX e hoje sede da prefeitura municipal, chega-se no pátio do Mosteiro dos Beneditinos. O atual mosteiro e a igreja resultaram das obras de reconstrução do pequeno mosteiro anterior, iniciadas em 1654 e concluídas um século depois. A igreja ainda é a mesma daquela época, com o interior se destacando por duas grandes realizações dos monges beneditinos: a capela-mor e a sacristia. Na capela-mor, ressalta-se o retábulo em talha dourada, de desenho atribuído ao padre Frei José de Santo Antônio Vilaça, o mais notável mestre de risco do norte de Portugal, mas executado por entalhadores de Olinda. Na sacristia, estão obras de José Elói e de Francisco Bezerra, responsáveis pelas pinturas de Nossa Senhora com o Cristo Morto e as cenas da Vida de São Bento, Revista do IAHGP, Recife, n. 67, pp. 225-243, 2014

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respectivamente. Toda a pintura decorativa é de José Elói e a criação do lavabo foi encomendada a mestre desconhecido de Lisboa. O mosteiro, ao contrário, teve sua fisionomia exterior novamente remodelada no século XIX. Ao sair de São Bento, descendo a atual Rua 27 de Janeiro, está a Praça de São Pedro e a igreja de mesmo nome, com destaque para o edifício de balcão de madeira em treliças, o Sobrado Mourisco. Saindo daí e passando pela Praça da Abolição, o antigo Rocio, retornamos ao Recife, parando no Varadouro, centro de compras e importante mercado de artesanato. Dispondo de tempo, o turista deverá visitar outras ruas de Olinda e outras edificações que não constam deste roteiro privilegiando o antigo anel que definiu a cidade no século XVI. Uma nova opção inclui as Igrejas de Nossa Senhora do Monte, do Bonfim (reformada no século XIX), da Boa Hora e, finalmente, próximo à Ribeira, o Museu de Arte Moderna, instalado em antiga prisão eclesiástica.

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