Ordens religiosas na Idade Média (séc.XII-XV): concepções de poder e modelos de sociedade

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Descrição do Produto

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ORDENS RELIGIOSAS NA IDADE MÉDIA: CONCEPÇÕES DE PODER E MODELOS DE SOCIEDADE (SÉCULOS XII-XV)

Atas do congresso internacional promovido pelo Laboratório de Estudos Medievais, entre os dias 26 e 29 de maio de 2014, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Belo Horizonte 2015

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Ordens religiosas na Idade Média (séc. XII-XV) [recurso eletrônico]: concepções de poder e modelos de sociedade: atas do congresso realizado nos dias 26 a 29 de maio de 2014 na Universidade Federal de Minas Gerais / [Aléssio Alonso Alves ... [et al.] org.]; Laboratório de Estudos Medievais/UFMG - Belo Horizonte: LEME/UFMG, 2015. 1 recurso on-line (121 p.) Inclui bibliografias. ISBN:!978-85-62707-69-8. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

1. História Medieval . 2. Idade Média. 3.!Ordens monasticas e religiosas. I. Laboratório de Estudos Medievais. II. Universidade Federal de Minas Gerais.

CDD:940.1 CDU:930.9(08)

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FICHA TÉCNICA Reitor da UFMG

Organização

Prof. Dr. Jaime Arturo Ramirez

Aléssio Alonso Alves Alexsandra França

Diretor da FAFICH

Clara Pernambuco Amaral Felipe Augusto Ribeiro

Prof. Dr. Fernando de Barros Filgueiras

Gabriel Oberdá Leão Henrique dos Santos Grandinetti de Barros

Chefe do Departamento de História

Letícia Dias Schirm Olga Pisnitchenko

Profª. Drª. Ana Carolina Vimieiro Gomes

Pamela Emilse Naumann Gorga Pedro Henrique Barbosa Montandon de

Coordenador do curso de pós-graduação

Araújo

em História

Raquel Marques Soares Ronaldo Romualdo Reis

Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta

Ulli Christie Cabral Wanderson Henrique Pereira

Comissão realizadora do congresso Comissão editorial das atas Coordenação Editoração e montagem Prof. Dr. André Luis Pereira Miatello Prof. Dr. Bruno Tadeu Salles

Aléssio Alonso Alves Felipe Augusto Ribeiro

Comissão científica Capa Prof. Dr. André Luis Pereira Miatello Prof. Dr. Bruno Tadeu Salles

Letícia Dias Schirm

Profª. Drª. Claudia Regina Bovo Prof. Dr. Francisco de Paula Souza de

A correção gramatical e ortográfica dos textos,

Mendonça Júnior

bem como a sua adequação às normas da ABNT, ficou a cargo de seus respectivos autores.

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AGRADECIMENTOS O Laboratório de Estudos Medievais (LEME), núcleo UFMG, agradece a todos os que se prestaram a fazer acontecer o congresso internacional Ordens religiosas na Idade Média: concepções de poder e modelos de sociedade (séculos XII-XV). Agradecemos aos órgãos que financiaram a iniciativa do Laboratório: o Departamento e o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, nas pessoas dos professores Drª. Ana Carolina Vimieiro Gomes e Dr. Luiz Carlos Villalta, respectivamente. Expressamos nossa gratidão aos que se dispuseram a trabalhar na árdua organização desse evento e, especialmente, aos que contribuíram com o seu objetivo científico apresentando comunicações sobre suas pesquisas acadêmicas, em vários níveis. Somada à presença bastante participativa do público ouvinte que prestigiou nossas conferências e mesas-redondas, tais contribuições certamente fizeram desse congresso uma excelente oportunidade para o intercâmbio intelectual. Relevamos também a contribuição que vários dos comunicadores fizeram para a publicação destas atas, cedendo-nos os textos de suas comunicações orais, que agora compõem mais uma publicação do LEME/UFMG. Por todos os participantes, o Laboratório fica orgulhoso em oferecer à comunidade científica brasileira mais esta publicação.

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SUMÁRIO RECORRÊNCIA E TEMÁTICA DAS IMAGENS NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO .............................................................................................................. 4 André Luiz Marcondes Pelegrinelli Profa. Dra. Angelita Marques Visalli !

“NO SERMON MUI GRAN GENTE QUE Y ERA”: OS FRADES PREGADORES NAS CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII)............................................................................ 18 Bárbara Dantas Prof. Dr. Ricardo da Costa A ORDEM DE CLUNY E AS PEREGRINAÇÕES A SANTIAGO DE COMPOSTELA .... 41 César Augusto da Silva Foga !

IMAGENS DE DEUS: TEMPO E MOVIMENTO NA TRINDADE TRIÂNDRICA ........... 54 Maria do Céu Diel de Oliveira !

ENTRE VETUSTAS E NOVITAS: O CONFLITO ENTRE BERNARDO DE CLARAVAL E PEDRO ABELARDO SOBRE O MONAQUISMO................................................................ 66 Rafael Bosch !

A PREGAÇÃO FRANCISCANA FACE ÀS REGRAS BULADA E NÃO BULADA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIII .............................................................................. 75 Victor Mariano Camacho !

O PASTOR AMOROSO: A MOBILIZAÇÃO DO CONCEITO DE AFFECTUS NAS PRÁTICAS DO PASTORADO RÉGIO (SÉC. XIII) .............................................................. 90 Wanderson Henrique Pereira

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RECORRÊNCIA E TEMÁTICA DAS IMAGENS NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO André Luiz Marcondes Pelegrinelli1 Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (orientadora)2 RESUMO A religiosidade cristã no período medieval é fortemente atrelada ao uso de imagens para ensinar, recordar ou levar à ascese espiritual, como recordaria o Papa Gregório em uma carta a um bispo iconoclasta no século VII. Neste nosso estudo pretendemos levantar considerações sobre a presença de imagens na Basílica de São Francisco, Assis, construção essa iniciada em 1228 e que não se limitou somente a ser casa-mãe de todos os franciscanos, mas um projeto político cultural de construção da imagem do santo de Assis e dos princípios norteadores da Ordem. A Basílica recebeu os cuidados de grandes nomes da pintura italiana como Cimabue, Giotto e Pietro Lorenzetti e dentre as imagens que compõe as paredes da Basílica, pintadas em sua quase totalidade, encontramos três grandes categorias: imagens-ornamento, imagens narrativas e imagens de culto. Dentre as narrativas, bem conhecidos já são os trabalhos que analisam a narrativa da vida do Santo de Assis (na Basílica Superior) como construtora definitiva da imagem de Francisco, nesse estudo pretendemos alargar estes limites e levantar considerações sobre a presença e recorrência dessas outras categorias de imagem. PALAVRAS-CHAVE: Basílica de São Francisco. Imagem Medieval. Ordem Franciscana. ABSTRACT The Christianity religiosity in the medieval period is strongly linked to using images for teaching, remember or bring to a spiritual ascension, as Pope Gregory would remember in a letter to an iconoclast bishop of the VII century. In our research, we'd like to rise considerations about the presence of images in of Basilica Saint Francis of Assisi, building that began on 1228, that didn't limit itself by being only the house of all Franciscans, but a political cultural project of the construction of image of Saint of Assisi and the guiding principle of the Order. The Basilica had been taken care by great names of the Italian painting like Cimabue, Giotto and Pietro Lorenzetti and within the images that compose the walls of the Basilica, painted in almost all your totality, we find three big categories: ornamentimages, narrative images and cult images. Within the narratives, are well known the works that analyze the narrative of the life of the Saint of Assisi (in the upper Basilica) as the builder of the definitive image of Francis, in this work we'd like to enlarge those limits and create considerations about the presence and recurrence of these categories of images. KEYWORDS: Basilica of Saint Francis. Medieval Image. Franciscan Order. 1 Introdução

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Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina. Professora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.

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A data de três de outubro de 1226 marca a morte de Francisco de Assis, na pequena Capela Santa Maria dos Anjos, Porciúncula. Velado e sepultado na Igreja de São Giorgio, atual Capela do Santíssimo Sacramento na Basílica de Santa Clara. Quatro anos depois, o corpo foi retirado de seu sepulcro e transladado até a majestosa Basílica de São Francisco, igreja-mãe de toda a Ordem e que teve sua construção iniciada no mesmo ano da canonização do poverello, 1228. A igreja-mãe franciscana não se justificava apenas enquanto espaço de reunião ou túmulo do padroeiro, mas foi um grandioso projeto político, ora refletindo o projeto papal, dos espiritualistas, dos conventualistas, etc. Considerando que a expansão de fronteiras documentais pela Nova História Cultural levou os historiadores a explorar o terreno das imagens, pretendemos levantar considerações sobre as imagens que estão nessa Basílica. Identificamos três grandes grupos imagéticos na Basílica: imagens narrativas, imagens ornamento e imagens devocionais. 2 A Ordem, a basílica, o poder Após voltar da missão ao Oriente, Francisco encarrega a direção da Ordem à Frei Pedro Cattani (????-1221), o novo vigário guia a Ordem por muito pouco tempo, morreu um ano depois. O Capítulo Geral de 1221 nomeia um novo ministro geral Frei Elias (1180-1253). Esse será o responsável por guiar a Ordem nos delicados anos que seguem a morte de Francisco, Elias acompanhou com proximidade o processo de canonização de Francisco e foi responsável pela encomenda do projeto inicial da Basílica de Assis. Junto ao cuidado de Elias, nesse projeto inicial, uniu-se o apreço de Gregório IX para com o Santo e sua Basílica, de caráter papal, ou seja, que recebia interferência direta do pontífice e era dotada do caráter de oficialidade quando da visita do papa. Diz-nos a Legenda dos Três Companheiros: O próprio sumo pontífice não somente honrou o santo a quem amara sumamente enquanto [este] vivia, canonizando-o de maneira maravilhosa, mas também enriqueceu com sagrados presentes e preciosíssimos ornamentos a igreja construída em sua honra, em cujo fundamento o mesmo senhor papa colocou a primeira pedra. [...] Mandou para a mesma igreja uma cruz de ouro, ornada com pedras preciosas, na qual estava engastado o lenho da cruz do Senhor, como também ornamentos, vasos e muitas coisas pertinentes ao ministério do altar com muitas alfaias preciosas e solenes (3S, 72).

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Uma cruz de ouro, pedras preciosas, alfaias preciosas, riqueza. A Questão Franciscana centraliza vários dos debates no primeiro século da Ordem dos Frades Menores e não ocupa menor lugar na Basílica. Se ela não é rica em ouro, como serão, por exemplo, os riquíssimos templos barrocos, o trabalho das pinturas da Basílica não valia menos: Giotto, Cimabue, Pietro Lorenzetti, e outros que lá trabalharam “valiam ouro” na pintura italiana. Para Gianfranco Malafarina, a pequena quantidade de relatos milagrosos dentro da faustosa Basílica foi interpretada pelos frades contemporâneos como a não satisfação do Santo para com a Basílica e todo o investimento nela (MALAFARINA, 2011: 12). A Basílica de Assis é dupla. A Igreja Inferior abriga o túmulo do santo, foi projetada especialmente para que fosse um grande sarcófago, recebendo os peregrinos e especialmente os frades menores, por muito tempo o acesso ao túmulo foi restrito. A Igreja Superior, ampla e alta funcionava como Basílica Papal, acolhia as grandes celebrações e os capítulos gerais. Ambas, superior e inferior são ricamente pintadas em quase sua totalidade: paredes, colunas, abóbodas, todas são preenchidas por narrativas, imagens de santo, estrelas, etc., aqui realizamos somente considerações iniciais sobre as imagens figuradas no edifício, passamos então para a sugestão da divisão desse grande corpus documental em três categorias: imagens narrativas, imagens ornamento e imagens devocionais. 3 Imagens Narrativas A Basílica de Francisco é acima de tudo um projeto político, de poder, e para bem cumprir este fim, a Basílica foi amplamente preenchida por imagens com caráter narrativo. Não queremos correr o risco de simplificar as funções da imagem medieval a uma “bíblia dos iletrados”, fórmula ultrapassada, surgida da interpretação equivocada da carta do Papa Gregório Magno à Serenus de Marselha, ano 600, e que não dá conta das suas reais funções. Apesar disso, nota-se claramente nas pinturas narrativas uma função pedagógica que se desenrola através da memória e instrução. Um ciclo narrativo não era venerado, tampouco possuía apenas a função de colaborar na ascese espiritual, mas, ordenar, por exemplo, a infância de cristo em cinco cenas – como fez Giotto na Basílica Inferior – implica em criar uma narração que recorda as descrições evangélicas e as ensina. A Igreja Inferior, em seu primeiro projeto possuía dois grandes ciclos narrativos: a Vida de Cristo à esquerda e a Vida de Francisco, à direita, o Mestre de São Francisco, artista do qual não conhecemos muito, projetou um paralelismo entre os ciclos à fim de criar uma !

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identidade e correspondência entre a Vida de Cristo e a Vida de Francisco, apresentando-o como um alter christus. A abertura das capelas laterais destruiu boa parte desses ciclos paralelos, mas, em contraponto, as capelas que foram abertas possuem ciclos referentes aos santos padroeiros, são elas – as capelas e os ciclos: Santo Antonio Abade, Santa Catarina, Santo Stefano, Santo Antonio de Pádua, Maria Madalena, São Martinho, São Pedro Alcantara, São Nicolau de Bari, São João Batista – além destes ciclos, que estavam nas capelas, destacamos também o ciclo da Infância de Cristo e da Vida de Cristo, respectivamente atribuídos a Giotto e a Pietro Lorenzetti. A Igreja Superior recebeu dois grandes ciclos: Cenas da Vida de Francisco e Cenas do Antigo e Novo Testamento, o primeiro ocupando a parte inferior das paredes, mais próxima do olhar dos fiéis e a segunda ocupando a parte de cima, dividindo o espaço com vitrais (Figura 1):

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Figura 1: Basílica Superior. Afrescos dos Ciclos de Cenas do Antigo e Novo Testamento (cima) e Ciclo da Vida de Francisco (baixo)

As atribuições quanto à autoria destes ciclos são muito questionáveis: Vasari atribui o grande ciclo de Cenas do Antigo e Novo Testamento à Cimabue, mas há registro neste ciclo, por exemplo, da atividade de Jacopo Torriti e de outro artista, Mestre de Isaac. Quanto ao

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ciclo de Cenas da Vida de Francisco, a atribuição a Giotto e sua oficina é bem aceita no meio dos historiadores. (MALAFARINA, 2011; WOLF, 2007; LUNGHI, 1996; NESSI, 1994). O famoso ciclo de Giotto é formado por vinte e oito cenas consideravelmente bem conservadas – se levarmos em conta os dois grandes terremotos de 1997 – e ocupa uma sequência linear iniciando próximo do altar, ao lado direito da igreja, como assinala Francastel: das vinte e oito cenas, apenas três ilustram virtudes propriamente franciscanas. As outras composições exaltam sete vezes milagres espetaculares, oito vezes cenas honoríficas da vida do santo, seis vezes aspectos da mística oficial romana (FRANCASTEL, 1973: 337).

Foi inspirada na Legenda Maior de Boaventura, única hagiografia considerada oficial pela Ordem após o Capítulo Geral da Ordem de 1226, que ordenou a destruição de todas as outras hagiografias, inclusive as anteriormente oficiais, como a Primeira e Segunda Vida de Tomás de Celano. O Ciclo da Vida de Francisco reanimou os estudos de historiadores para com a imagem na Ordem dos Frades Menores no pioneiro estudo de Chiara Frugoni, “Francisco e a invenção dos estigmas”, de 1983. As observações de Frugoni reforçam o discurso de que os historiadores não devem procurar nas imagens a confirmação da informação letrada. Nas hagiografias, a pregação de Francisco aparece várias vezes, em contraposição, e segundo Frugoni, essa função é esvaziada nas imagens da Basílica, em seu lugar, Antonio é apresentado como o verdadeiro pregador da Ordem, os afrescos se centram muito mais na atividade taumatúrgica de Francisco. Parece haver um claro objetivo ao figurar as ações de Francisco que são mais ligadas a milagres, ao sobrenatural, o santo de Assis foi divinizado a tal ponto que, copiá-lo seria impossível – a começar pela insistência de atenção para com os estigmas -, apresentar outros modelos, como Santo Antonio, tornava mais acessível o modelo franciscano e mais que isso, harmonizava os contrastes e, mesmo radicalidades que afloravam nos frades. Apresentar um Francisco inalcançável era uma ótima estratégia para dar fim à Questão Franciscana: querer copiar em tudo o mestre não era difícil, era impossível. Não aprofundamos aqui, mas merece menção a abóbada da Igreja Inferior (Figura 2), pintada possivelmente por dois discípulos de Giotto e suas oficinas, que apresentam São Francisco em Glória e a tríade franciscana: Pobreza, Obediência e Castidade. Pensamos essas quatro imagens como narrativas não no sentido de apresentarem a sucessão de “fatos !

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ocorridos”, mas narrarem a espiritualidade franciscana, sob a ótica conventualista. O afresco “São Francisco em Glória” narra Francisco envolto em um coro de anjos, é figurado jovem, e acompanhado da inscrição “Renovai a lei evangélica e preparai o caminho para completa salvação celeste”. A “Alegoria da Pobreza” figura Cristo celebrando o casamento místico da pobreza, representada como uma jovem moça e à esquerda um jovem se despindo para doar suas vestes. A “Alegoria da Obediência” traz a figura de um frade que ajoelhado se submete a autoridade de outro e recebe o mandato de silêncio. Por fim, a “Alegoria da Castidade” figura uma virgem no alto de uma torre e um jovem sendo purificado ao buscar a castidade. Malafarina (2011: 111) aponta essa abóboda como ferramenta dos conventuais para solidificarem sua vivencia do franciscanismo.

! Figura 2: Abóbada: Tríade Franciscana e Francisco em Glória

A imagética franciscana tende, em seus primeiros séculos, a ser inserida em narrativas, não poucos são os ciclos nas paredes de igrejas, távolas, etc. (VISALLI, 2011: 228). !

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! Assim com as igrejas góticas se abrem as multidões que se agrupam para ouvir os sermões, as imagens apresentam-se com um caráter público, de disseminação em escala maior. Afinal, o crente pode acompanhar o acontecido: a hagiografia[...] na medida em que a vida do santo é ambientada com direito a testemunho em tempo ‘real’ (VISALLI, 2011: 229).

4 Imagens Ornamento Ao falarmos em ornamento, nos servimos da definição de Jean-Claude Bonne sobre essa “categoria” de imagens (BONNE, 2009, p. 44): o ornamento não tem caráter de narração, tampouco de contemplação, mas decorativo, estético, [...] os valores decorativos [ornamentais] são percebidos apenas en passant, sem que o olhar se detenha especialmente sobre eles [...] Ele se inscreve, por excelência, na dinâmica dos rituais, nos quais ele é um intensificador ao mesmo tempo sensorial e motor [...] todo ambiente de culto recebia uma decoração, por menor que ela fosse (BONNE, 2009:. 44).

No latim, a família do termo ornamento, ornare, não remete somente a uma decoração superficial, secundária e dispensável, mas é essencial para que um equipamento cumpra plenamente sua função. Uma imagem ornamento, na lógica da imagética medieval, só faz sentido e oferece toda a sua percepção atrelada ao espaço em que se encontra. Vale lembrar, que é a noção moderna de arte, do Renascimento, com suas pinturas em tela que desterritorializam em muito a noção de imagem: uma tela não é fixa, pode ocupar uma sala de estar, um restaurante, uma igreja, um museu, etc. Dentro das imagens ornamento na Basílica pensamos em quatro grandes motivos que tendem a se repetir: geométrico, natureza, céu estrelado e bustos de personagens. Linhas retas, vértices, quadrados, a basílica decorada com vários ângulos. Essas pinturas geométricas (Figura 3) dão a ilusão de que as paredes são ainda mais altas, de que existem mais colunas, assim a repetição geométrica em muito faz a Basílica parecer mais imponente.

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! Figura 3: Ornamento com motivos geométricos. Igreja Inferior.

Figuras naturais, motivos florais e o céu estrelado lembram o fiel do espaço sagrado: o espaço do templo precisava ser como um pedaço da esfera celeste na terra. As folhagens (Figura 4), flores, não só embelezam esteticamente mas lembram o paraíso, o Jardim do Éden “perdido” por Adão e Eva. O céu estrelado, nas abóbodas mais altas da Igreja Superior em muito lembram as construções góticas, altíssimas, que queriam “tocar o céu”. Essa técnica, de preencher os tetos com estrelas é característica da oficina de Giotto. A Capella degli Scrovegni, em Pádua, recebeu o mesmo cuidado de céu azul estrelado.

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! Figura 4: Ornamentos com motivo de natureza. Igreja Inferior.

Percebemos também o ornamento que usa da efígie de personagens, principalmente nas abóbadas da Igreja Superior e em alguns detalhes na inferior. Na Igreja de cima chama a atenção a Abóbada dos Doutores da Igreja, com as imagens de Gregório Magno, Agostinho, Jerônimo e Ambrósio. Outra abóbada reúne personagens celestes: São João Batista, a Virgem Maria, Cristo e anjos acompanhando-os (Figura 5). Outra ainda é dedicada aos Evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João. O que nos permite afirmar que essas efígies são ornamentais e não devocionais? Sua prática: além de não ocuparem lugar de destaque dentre as outras imagens, são visualmente muito distantes do observador a altura do chão. Na Igreja de baixo encontramos pequenas efígies, pintadas, que mais dão a sensação, ao observador distante, de pequenas esculturas do que pinturas, não apresentam características que os permitam a ligar a algum personagem específico.

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! Figura 5: Abóbada ornamentada com personagens celestes. Igreja Superior.

O ornamento completa e permite a plena funcionalidade das coisas. Francisco iniciou suas atividades ao reconstruir igrejas, ainda que essa prática tenha se dado graças à interpretação inicial daquele pedido (“Francisco, vai e reconstrói minha igreja, que como vês está toda em ruínas”), ela se torna importante na espiritualidade da Ordem. Reconstruir igrejas é permitir seu pleno funcionamento, ornamentá-las também. 5 Imagens Devocionais Imagens devocionais estão atreladas ao culto. Essas imagens possuem maior caráter de ser do que coisa. Jean-Claude Schmitt as chamou de imagens-corpo (1996), Jérôme Baschet as chama de imagem-objeto (2006). Daniel Russo prefere o conceito mais abrangente, de imagem-presença (2011). Em suma, esses conceitos, imagem-corpo, objeto ou presença, referem-se a imagens que têm seu pleno sentido não em si próprias, mas atreladas a locais e práticas. Não bastam apenas seus aspectos iconográficos, mas outros documentos que relatam a prática dos fiéis com relação a essas imagens, que nos permitem compreender seus usos e funções. Os relatos de milagres em torno da imagem acrescentam práticas ligadas à mesma, ao mesmo tempo, a !

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possibilidade, por exemplo, de movê-la a faz ter possibilidades diferentes de uso, como a de procissão, o que não acontece com os afrescos. Imagens devocionais têm sua importância crucial garantida não pelo fato de serem alguém, mas carregarem a possibilidade de, através de uma manifestação sobrenatural, vir a ser alguém. O Museu do Sacro Convento testifica a existência de uma grande quantidade de imagens devocionais móveis na Basílica, entretanto, ao delimitarmos essa pesquisa em imagens nas paredes o número diminui consideravelmente. Comum é, seja na Superior ou na Inferior, umas como espécies de retábulo pintados nas paredes, figurando principalmente a Virgem, Francisco e um terceiro personagem, por vezes o encomendador da obra. O difícil acesso e produção de um levantamento completo das imagens na Basílica têm restringido em muito uma análise maior dessas imagens devocionais, contudo, notamos que são mais recorrentes na Basílica Inferior e encontramos principalmente imagens da Virgem que lembram os ícones móveis, as Virgens entronizadas e/ou com o menino e uma ou outra imagem do santo ao qual cada capela se dedica (Figura 6).

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! Figura 6: Virgem com o Menino entre São João Batista e São Francisco. Capela de São João Batista. Igreja Inferior.

Essas imagens nos oferecem chaves para pensar a Ordem como um jogo de poder, ou ainda, desde um ponto de vista cultural, a devoção daqueles que a freqüentavam: do Papa e os frades menores ao pobre fiel penitente. 6 Considerações finais É bem conhecida e debatida as grandes dificuldades em estudar história medieval no Brasil. Os estudos imagéticos sobre a Basílica são recentes também, vale lembrar que a obra !

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pioneira de Chiara Frugoni completou apenas 30 anos. Ainda assim insistimos na importância da Basílica para o período, para a Ordem e para a devoção. Ao propor três grandes categorias de imagens não queremos engessar as possibilidades de visão sobre essas imagens, mas, observações inicias tem demonstrado a boa funcionalidade destas grandes categorias. Dependemos do acesso a documentação escrita, contratos com os pintores e outras documentações para pensar várias das questões da Basílica, como por exemplo, a famosa pintura de Cimabue na Basílica Inferior da Virgem entronizada com quatro anjos e Francisco, essa imagem foi de tal forma apropriada que definiu a imagem do santo, entretanto, é necessário para pensar a imagem saber o que havia ao redor dela, as atuais pinturas ao redor foram pintadas por Giotto sobre essas imagens anteriores, entre as quais se encontra esta de Cimabue, porque, por exemplo, apenas esta imagem foi mantida da pintura primeira da parede? Questões a serem pensadas. Com olhar mais atento, sabemos que não há imagem na Basílica totalmente dissociada das outras categorias: elas se completam. Imagens que narram, ornam, levam à ascese espiritual, legitimam poder, reforçam as escolhas espirituais da ordem, enfim, a rica e extensão figuração da Basílica certamente não preenche todas as possibilidades de uso da imagem no Medievo, mas manifesta grande parte delas. REFERÊNCIAS BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BONNE, Jean Claude. Arte e environnement: entre arte medieval e arte contemporânea. In: FONSECA, Celso Silva; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; COELHO, Maria Filomena (orgs.). Por uma longa duração: perspectivas de estudos medievais no Brasil. VII Semana de Estudos Medievais. Brasília: Universidade de Brasília, 2010. FRANCASTEL, Pierre. A arte italiana e o papel pessoal de São Francisco. In: A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 323-340. LUNGHI, Elvio. The Basilica of St. Francis at Assisi. London: Thames and Hudson, 1996. MALAFARINA, Gianfranco. Assise: la Basilique de Saint François. Paris: Seuil, 2011. NESSI, Silvestro. La Basilica di S. Francesco in Assisi e la sua Documentazione Storica. Assis: Casa Editrice Francescana, 1994. RUSSO, Daniel. O conceito de imagem-presença na arte da Idade Média. Revista de História. São Paulo, n. 165, jul./dez. 2011. p.37-72. !

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SCHMITT, Jean Claude. La culture de l’imago. Annales. Historie, Sciences Sociales, 51e année. n. 1, 1996. p. 3-36. TEIXEIRA OFM, Frei Celso Márcio (org.) Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2008. VISALLI, Angelita Marques; OLIVEIRA, Terezinha (orgs.). Leitura e Imagens da Idade Média. Maringá/PR: EDUEM, 2011. WOLF, Norbet. Giotto. London: Taschen, 2007.

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“NO SERMON MUI GRAN GENTE QUE Y ERA”: OS FRADES PREGADORES NAS CANTIGAS DE SANTA MARÍA (SÉC. XIII) Bárbara Dantas1 Prof. Ricardo da Costa2 RESUMO Com o gradativo enriquecimento da sociedade medieval na Idade Média Central, os vícios também se disseminaram. Avaritia, superbia, luxuria. O Setenário ganhou corpo. Se os séculos XI e XII caracterizaram-se pelo domínio dos monges que viviam para o ora et labora, a partir de suas clausuras nos monastérios rurais, díspar foi o séc. XIII. Em todo Ocidente pulularam as ordens de frades pregadores que, a partir das catedrais urbanas e dos aglomerados citadinos, tornaram-se mestres da intelectualidade, dedicados e humildes disseminadores da Palavra de Cristo e dos ensinamentos da Bíblia. Com os exempla (breves sermões com uma narrativa mnemotécnica simples e repetitiva para conquistar uma plateia) Dominicanos e Franciscanos esforçaram-se abnegadamente em conquistar mentes e espíritos para a prática de um Cristianismo mais pio, próximo da Vita Christi, da pobreza e da simplicidade dos primeiros apóstolos. O objetivo desse trabalho é apresentar duas representações textuais e imagéticas de frades Dominicanos e Franciscanos contidas nas Cantigas de Santa María, compilação de milagres e louvores implementada pelo rei Afonso X (1221-1284) de Castela e Leão. Nosso levantamento temático das Cantigas, além de nosso método compreensivo-histórico (traduzi-las diretamente dos originais e realizar uma descrição iconográfica de duas iluminuras das cantigas 103 e 266), trouxe-nos interessantes questões à baila sobre as relações entre texto e contexto, entre imagem e suporte, entre Arte e História. Sem Arte, sem Cultura, não é possível pensar, repensar e recriar o passado, especialmente o da Idade Média, solo tão fértil no qual brotaram tantas manifestações artísticas. PALAVRAS-CHAVE: Iconografia Medieval. Cantiga. Frades Pregadores. ABSTRACT With the gradual enrichment of medieval society in the Central Middle Ages, the vices also are widespread. Avaritia, superbia, luxuria... The Septenary grew up. If the XI and XII centuries were characterized by the dominance of the monks who lived for the ora et labora from their cloister in rural monasteries, distinct was the XIII century. In the Medieval West, swarmed the orders of preaching friars who, from the urban cathedrals, of the agglomerates cities, have become masters of the intellectuality, but especially, dedicated and humble disseminators of the Word of Christ and the teachings of the Bible. With the exempla (short sermons with a simple and repetitive narrative Mnemotechnic in order to convince the audience), Dominicans and Franciscans strove selflessly to win minds and spirits to the practice of a more pious Christianity, nearest Vita Christi, from the poverty and simplicity of the first apostles. Our thematic survey of the Cantigas, beyond our understanding-historical !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1

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Graduanda de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista/UFES do Projeto interinstitucional de pesquisa (UFES-UNESP/Marília) Manifestações estéticas da Arte Românica na Península Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII). E-mail: . Medievalista da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Site: .

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method (translate them directly from the original and realize an iconographic description of two illuminations of 103 songs and 266), brought us interesting questions about the relationship between text and context, between image and support, between Art and History. Without Art, without Culture, you cannot think, rethink and recreate the Past, especially the Middle Ages, fertile period in which so many artistic manifestations. KEYWORDS: Medieval iconographic. Medieval Songs. Preaching Friars. 1 Introdução

! Figura 1: Margem inferior de uma página da Bíblia de Abbey. Bolonha, Itália (c. 1250-1262). Jean Paul Getty Museum, Ms. 107, folio 224r. Têmpera e folha de ouro sobre pergaminho.

Frades dominicanos e franciscanos cantam na Figura 1. Suas vestimentas são os atributos iconográficos que os diferenciam (BOUCHER, 2010: 146). Cada grupo está na frente de um enorme livro, ricamente iluminado e apoiado sobre um atril. Os dominicanos são presenteados com a regência do próprio Cristo. Realizada por uma renomada oficina de artífices bolonheses especializados na produção de bíblias iluminadas em estilo gótico, esta Bíblia foi encomenda de um mosteiro dominicano. Isso explica o fato de Cristo estar regendoos, não aos franciscanos – que, na iluminura, observam, tristes, a preferência divina (MORRISON, 2014). A utilização de imagens nas margens não é algo que ocorreu ao longo de todos os séculos medievais. Elas começaram a abrigar imagens a partir do século XII. As iluminuras marginais dos manuscritos são fontes complexas e fabulosas. Estão entre as que melhor preservam a arte medieval, pois expressam as muitas faces da realidade e da cultura da época (PEREIRA, 2008: 216).

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2 O exército de Deus As paredes da nave da Basílica na Figura 2 estão decoradas com frescos que contam a história do Poverello, o monge mendigo, Francisco de Assis (1182-1226). A partir da entrada do santuário, somos rodeados pela genialidade de Giotto. Os frescos cobrem as paredes inferiores e, na parede superior, juntam-se aos vitrais do clerestório para narrar, de forma plástica, os principais eventos da vida do santo em diversos quadros com iconografia historiada (WOLF, 2007: 7). A dramaticidade das cenas não está presente apenas nas expressões faciais dos personagens – característica estilística que alçou Giotto ao grau de excelência na História da Arte –, mas também no panejamento das roupas, na movimentação dos corpos e nas curvas arquitetônicas que indicam, retrospectivamente, uma perspectiva prérenascentista que ali nascia. Na imagem, São Francisco luta contra sete forças diabólicas, possivelmente uma personificação dos sete pecados capitais. Sua espiritualidade e abnegação deram-lhe forças para cumprir seu papel no combate aos vícios que o diabo incitava a Humanidade a praticar.

! Figura 2: Giotto di Bondone (1267-1337). São Francisco expulsa o Diabo de Arezzo, c. 1296/97. Basílica superior de São Francisco de Assis, Itália. Detalhe do afresco.

Especular os enigmas do Universo, criação de Deus. Absorver em toda sua plenitude espiritual as palavras bíblicas. Até o século XII, ser um religioso, particularmente um monge, também significava dedicar-se a estas atividades espirituais (BERLIOZ, 1994: 10). O !

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princípio de vida nos monastérios era o ato de compartilhar a existência em comunidade. Nela, cada um na solidão, todos nas homilias, estariam absortos para estudar a Palavra e orar pela Humanidade. Pensava-se a Humanidade de então sob diversos aspectos e formas: o filósofo Ramon Llull, por exemplo, deixou para a posteridade um quadro social do séc. XIII rico em diversos ofícios e funções, distribuídos nas artes liberais, musicais, religiosas e mecânicas (COSTA, 2006: 136). Para outros pensadores do período, a sociedade feudal seria tripartida, os camponeses seriam os laboratores; os nobres, os bellatores, e os religiosos, os oratores (BASCHET, 2006: 166). Contudo, orar também era combater. Lutar contra as forças do mal. Aqueles foram tempos nos quais viver era uma luta cotidiana. A natureza era indócil, incompreendida. As massas empobrecidas lutavam contra os infortúnios de uma vida rude. Os terrores da guerra atormentavam a todos, sem distinção. Lutar, para os religiosos, era rezar contra as forças demoníacas que não se cansavam de tentar os homens a praticar o mal. Cristo, nos séculos XI e XII, era costumeiramente, representado como Majestas Domini (Senhor do Universo) (DUBY, 1979: 57), simbolismo máximo de uma divindade soberana, que servia como alicerce aos crentes em sua luta contra o mal.

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3 O monarquismo ocidental

! Figura 3: Le Mont Saint Michel. Normandia, França. “Maravilha do Ocidente”. Século VIII.

A abadia da Figura 3 está no centro de uma imensa baía invadida pelas marés altas das praias da Normandia. Construída e consagrada como igreja em homenagem ao arcanjo Miguel, chefe da milícia celestial, no ano de 709. Uma comunidade de beneditinos se estabeleceu no santuário em 966 e a igreja pré-românica foi construída antes do ano mil. No século XI, a abadia (em estilo românico) foi fundada sobre um conjunto de criptas, no cume da rocha e os primeiros edifícios monásticos foram construídos na parede norte. No século XII, os edifícios do mosteiro foram ampliados. Após a conquista da Normandia, no séc. XIII, o rei Filipe Augusto (1165-1223) mandou executar as obras de ampliação e ornamentação de dois edifícios no estilo gótico (MICHEL, 2014). Sobreposição de estilos. No decorrer da Idade Média, grande parte dos santuários, ao invés de serem substituídos por outros, sofreram alterações, ampliações, ornamentações (DUBY, 1997: 71). Variações de contextos políticos e estéticos. Evolução das técnicas e da riqueza dos materiais, em uma estrutura na qual a religiosidade, soberana, imperava. !

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“Maravilha do Ocidente”. Sua importância ultrapassou fronteiras. Nas Cantigas de Santa María, o mosteiro é o palco da cantiga 39 na qual a escultura da Virgem Maria, milagrosamente, permanece intacta depois de um terrível incêndio: “Ond´ avẽo em San Miguel de Tomba, no mõesteiro que jaz sobre lomba dũa gran pena, que já quant´é comba, em que corisco feriu noit´ escura” (METTMAN, 1989, v. I: 156). No Céu, morada de Deus, os santos formavam um exército de combate. Na Terra, os monges eram o exército de Deus. Suas vidas abnegadas em prol da oração e do conhecimento da Palavra estavam, de modo geral, ordenadas pelas premissas de São Bento (480-547). Ele transpôs para o papel os ideais de uma vida cenobítica voltada à oração e à pobreza de forma simples e, sobretudo, praticável. Por isso, majestosa. Contrariamente aos costumes monásticos dos primeiros séculos da Idade Média, a regra beneditina não exigia um grau de mortificação física e espiritual irrealizável para a grande maioria (VAUCHEZ, 1994: 22). 1. Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai 2. para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência. 3. A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei (SÃO BENTO DE NÚRSIA).

Uma das primícias da Regra era fechar-se em comunidades religiosas independentes, autossuficientes, para assim driblar o flagelo da fome e fortificar-se contra os invasores (DUBY, 1995: 29). Mas, sobretudo, no ambiente monástico, a fé e a cultura eram enaltecidas. Obediência e humildade. Os monges obedeceriam ao abade, mas viveriam em igualdade perante seus pares. Silêncio. Através da leitura da Palavra, os monges impregnariam seus espíritos em Cristo. Labor. A vida ascética foi minimizada em prol do trabalho manual. A produção de manuscritos, por exemplo, uniu a necessidade de difundir os ditames da religião à de ocupar o tempo com uma prática laborativa. 3 Um novo tempo Passagens da vida de São Domingos de Gusmão (1170-1221), fundador da ordem dominicana, estão representadas em cinco quadros na predela do retábulo da Virgem localizado no Louvre. A Figura 4, terceiro dos cinco quadros, mostra o santo em seu leito de morte (LOUVRE, 2014). Um filactério sai da boca do moribundo frade: são palavras de consolo e fé para os que permanecerão no mundo terreno e continuarão a pregar o nome de !

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Cristo e assim trazer para a salvação os que estão perdidos e em pecado. O gesto de São Domingos, com a mão direita a admoestar os presentes, chamam-nos às obrigações como militantes de Cristo.

Figura 4: Fra Angelico (1417-1455). A morte de São Domingos, 1434-1435, painel do retábulo da Coroação da Virgem do altar do convento de São Domingos, Florença, Itália. Museu do Louvre, Paris.

O século XII foi um tempo de estupefação. Substanciais mudanças nas práticas das ordens monásticas aconteceram. Não mais a clausura e os trabalhos manuais absorveriam integralmente as forças dos pios monges. Eram novos tempos. A fome recuou. As cidades cresciam. O comércio florescia e a riqueza começava a se propagar. Para os religiosos mais conservadores, esta mesma riqueza começava a corromper e degradar a alma e, por fim, induzir os fiéis ao pecado. A partir de então, a luta contra as forças diabólicas precisaria mais do que orações solitárias e homilias suplicantes. Exército de Deus na terra, os monges precisariam sair para enfrentar a vida secular, o mundo (DUBY, 1979: 170). Maior ordem religiosa do século XI, Cluny foi invadida pela riqueza. Um luxo em prol da magnificência do Paraíso. Suas abadias e mosteiros foram as mais majestosas obras de seu tempo, pois se difundiram pelos campos de todo o Ocidente Medieval. Talvez por isso mesmo é que alguns monges cluniacences tenham sido acusados de glutonaria e serem mais afeitos a disputas políticas que a uma vida em prol da oração e da caridade. Talvez. A decadência da vida monástica já se insinuava (DUBY, 1979: 122).

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Tudo começou nas cidades, diziam os moralistas, naqueles conglomerados de pessoas e de práticas tão diversas em um circunscrito espaço geográfico (LE GOFF, 1998: 95). A cidade começou a se sobressair frente aos campos. O feudalismo, fundamentado sobre a propriedade fundiária, estava em decadência. Os mosteiros, que dominavam as paisagens campestres, perdiam terreno. A catedral passava a ser a protagonista da vida social. Seus pináculos demarcavam, nas alturas, a extensão da influência desta ou daquela cidade. Quanto maior a catedral, maior a força espiritual da urbe (DUBY, 1997: 77). 4 As ordens religiosas nas Cantigas de Santa Maria Os dominicanos dominam todo o cenário da Figura 5. Trata-se da glória da ordem em um único afresco. Militantes por excelência, cães do Senhor, eles estão em toda parte – estavam em todas as partes (WOLF, 2007: 10). À esquerda, junto com outros religiosos, em frente à catedral de Florença. Com a força de sua retórica, persuasiva, dominavam os sermões litúrgicos. À direita, três frades pregam em meio a cães e pessoas de diversos tipos. Conquistavam os espíritos rudes com os exempla. Acima, à direita, São Domingos encaminha os Bem Aventurados às portas do céu, pois os dominicanos salvavam vidas em Cristo. No alto à esquerda, dentre os escolhidos para vislumbrar a Glória de Deus, está um dominicano. Incansáveis leitores. Fervorosos crentes. Exímios professores. Suas palavras firmes, porém doces, ajudaram a Igreja Católica a reinar, soberana, nas mentes e espíritos dos homens medievais.

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Figura 5: Andrea da Firenze (1343-1415). Detalhe de O Triunfo da Igreja (c. 1367). Igreja de Santa Maria Novella, Florença, Itália.

Galego-português medieval: a língua poética preferida pelo mecenas da obra, Afonso X, o Sábio (1221-1284). Nossas atividades de pesquisa se iniciaram com as agruras e os prazeres da tradução (COSTA & DANTAS, 2013). Para uma compreensão a mais fidedigna possível de uma fonte histórica, devemos, antes de tudo, procedermos àquilo que denominamos de compreensão apreensiva: para que a vida dos mortos, sua sabedoria, seja transmitida a nós da forma mais fidedigna possível é necessário que tenhamos um ato de submissão, isto é, um abrir-se à experiência do outro, e que isso se transforme em uma espontânea aceitação e acolhida da “sempre complexa e paradoxal integralidade existencial”. Essa submissão significa ter uma postura moral de hospitalidade, de receptividade, que se traduz no historiador na “criação de um espaço mental de acolhida do estrangeiro, já que o outro será sempre diferente em sua especificidade, embora passível de ser compreendido e respeitado em sua integralidade” (COSTA, 2013: 328). Após esse procedimento mental, devemos conhecer a totalidade da série documental escolhida para estudo, no que já foi chamado de leitura isotópica (CARDOSO, 1997: 398). Nela, o pesquisador lê sua fonte atento aos termos que se repetem nele para “fortificar a confiança nas hipóteses formuladas”. A partir deste método, estudamos os cerca de 420 relatos de milagres e louvores contidos nas Cantigas de Santa María para encontrarmos a presença de dominicanos e franciscanos na obra.

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A recorrência das ordens religiosas nas Cantigas de Santa María é percebida na repetição das palavras mongia (convento), mõesteiro, monge, clerigo, crerigo, frade mẽor ou monje (METTMAN, 1989, v. IV). Ao pesquisador compete diferenciar estes religiosos a partir do texto do qual faz parte o termo. Algumas cantigas mostram a presença de personagens religiosos, mas não é possível identificar somente nos textos a ordem religiosa da qual fazem parte. A análise da iluminura correspondente à cantiga costuma dirimir dúvidas. Um levantamento das iluminuras presentes no fac-símile do Códice Rico e do Códice de Florença localizados na PUC-Minas mostrou-nos a presença de ordens religiosas em 65 iluminuras. Dentre estas, 15 iluminuras com representações de franciscanos e 22 com dominicanos. O monge desprezava o mundo. Vivia na comunidade monástica. Os frades das ordens mendicantes, religiosos fervorosos tanto quanto os monges, viviam, no entanto, nas aglomerações populares. Defrontavam os vícios. As tentações da sociedade leiga. Pedintes, sobreviviam das doações de alimento. Percorriam o mundo pregando o Evangelho e a penitência. Após o Concílio de Leão (1274), a Igreja consentiu com a existência de quatro ordens mendicantes: os pregadores (dominicanos), os menores (franciscanos), os carmelitas e os agostinhos (LE GOFF, 1994: 228-229). 5 Os frades menores: São Francisco de Assis No frescor da juventude, com apenas 25 anos, Francisco de Assis (c. 1181-1226) despiu sua túnica e seguiu, cantando pelos montes, para a cidade de Gubbio. Lá recebeu um rude hábito de ermitão, sandálias, um bastão e um cinto de couro. Dois anos depois, após escutar um sermão que considerou sublime, desfez-se de seu cinto. Em seu lugar, amarrou na cintura, uma modesta corda (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 674). Foi o desfecho de uma marcha para tornar-se um exemplo de vida simples, semelhante à Cristo. Na pintura da Figura 6, El Greco utilizou magistralmente toda a simbologia religiosa em torno da veste de São Francisco. Criou uma imagem na qual o manto e a corda são os maiores atributos iconográficos de seu voto de pobreza e piedade. Os franciscanos ficaram conhecidos na França medieval pelo uso da corde e ganharam, portanto, a denominação de Cordeliers (LE GOFF, 1994: 229). A corda, que firma sua túnica, cai pelo chão. Quando trocou o cinto pela corda, sentiu-se, enfim, pronto para pregar. Uma simples corda, para um humilde frade de Deus. !

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Figura 6: El Greco (1541-1614). São Francisco em oração diante do crucificado (1587-1596), óleo sobre tela. 105 x 86 cm. Bilbao, Museu de Belas Artes.

5.1. Os franciscanos nas Cantigas de Santa Maria Nas Cantigas de Santa María, os homens da igreja são representados com seus atributos: tonsura e trajes litúrgicos, monásticos ou de frades. Sofrimento e fé. Voto de pobreza. Desapego. A tonsura era um corte de cabelo no qual o topo da cabeça era raspado para formar uma coroa, prática iniciada pelos religiosos da Igreja Católica ainda no séc. V. Identificava, principalmente, os monges e frades (LEVENTON, 2009: 90-93).

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Figura 7: Cantigas de Santa María. Rei Afonso X de Leão e Castela. Séc. XIII. Códice de Florença. Cantiga 266: Como Santa Maria de Castroxerez guardou a gente que siia na ygreja oy[n]do o sermon, dũa trave que caeu de çima da ygreja sobr' eles (METTMANN, 1989, v. III: 23).

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Na quarta e quinta vinhetas (contadas a partir de cima, da esquerda para a direita) da iluminura da Figura 7 há um franciscano a pregar no interior de uma igreja. Suas vestes são os atributos que o definem. Um manto rústico amarrado por uma corda. É tonsurado. Em sua mão esquerda ele porta um livro. Com a outra, chama a atenção dos presentes para suas palavras. Os sermões dos franciscanos comoviam as plateias. O santuário está lotado de crentes. A Cantiga 143 faz uma pontual citação a esse respeito: Mas un frade mẽor os fez vĩir e fez-lhes sermon, en que departir foi como Deus quis por nos remiir nacer, como dit´ avia (METTMAN, 1989, v. II: 120). Mesmo com a igreja abarrotada de fiéis, ela ainda está em construção. Isso não era algo estranho para a Idade Média, pois as ampliações ocorriam justamente para acolher as massas cada vez maiores de fiéis. Por exemplo, o abade Suger de Saint-Denis (c. 1081-1151), ao narrar as obras em sua abadia, explica que antes de transformá-la em um canteiro de obras, os crentes acorriam ao santuário a ponto de não haver espaço para todos. Notemos, na iluminura, os arcos ogivais e as fileiras de tijolos incompletos. Os construtores. Os andaimes de madeira. Nada poderia impedir a pregação. Nem os ruídos das roldanas, nem o martelar do pedreiro. Em todos os lugares com aglomeração de pessoas, grandes centros ou pequenas vilas, lá estavam os franciscanos, testemunhas vivas de um modo de vida cristão. Convertiam os incrédulos com seu testemunho, por meio de metáforas, por meio de exemplos das vidas dos santos, dos mártires, das pessoas comuns. Para o papado, os franciscanos auxiliavam os clérigos locais a manter o rebanho cristão unido e fiel (DUBY, 1997: 88). Frades mẽores (METTMAN, 1989, v. IV: 576). São Francisco se intitulava um frade menor, ou seja, um humilde servo da Igreja. A ela ele devia servir. Os franciscanos são importantes personagens nas Cantigas de Santa María. A repetição do termo – frades mẽores – em diversos relatos de milagres sugere uma considerável presença e difusão da ordem franciscana na sociedade castelhana. Na sociedade medieval. A Cantiga 96 é o relato de um homem que tentou agradar a Virgem, mas esqueceu de confessar seus pecados. Um dia, quando passava por montanhas, ladrões o atacaram. Decapitaram-no e fugiram. Quatro dias depois, quando dois franciscanos passaram pelo local, ouviram o cadáver gritar, pedindo a confissão. E a quarto dia per y vẽeron dos frades mẽores, e vozes deron o corp´ e a testa (METTMAN, 1989, v. I: 296). Os frades assustaram-se, mas descobriram o corpo com a cabeça, milagrosamente, recolocada. O homem contou que os ladrões o mataram e demônios tentaram roubar-lhe a alma. A Virgem o protegeu dos !

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demônios e recolocou sua cabeça no corpo para que pudesse fazer a confissão. Os frades reuniram uma grande multidão e o homem fez a sua confissão perante todos. Em seguida, a cabeça se separou do corpo e o homem morreu. As pessoas, então, louvaram a Virgem (OXFORD, 2014). Na Cantiga 109, cinco demônios uniram forças para atormentar um homem. Ele partiu para Salas (Santa Maria de Salas, Itália), mas os demônios o impediram de continuar sua jornada. Dois franciscanos vieram e levaram-no para a igreja. Aquel ome, segund´aprendi, ta que dous frades vẽeron y mẽores, que o levaron dali aa eigreja logo sem falir (METTMAN, 1989, v. II: 34). Os demônios tentaram recuperar o domínio sobre o infeliz com a intervenção de um judeu, que, segundo eles, era seu servo – ca meus sodes e punnades de me servir (a relação “demoníaca” com o povo eleito não era nova no imaginário cristão medieval (COSTA e DANTAS, 2013: 507-514). No entanto, o judeu fugiu e os demônios saíram do homem possesso. Todos deram graças à Virgem (OXFORD, 2014). A Cantiga 123 mostra como Santa Maria guardou um frade mẽor dos diabos na ora que quis morrer, e torcia-sse todo com medo deles. Um franciscano, que se juntou à ordem quando criança e viveu uma boa vida, aproximou-se da morte. Bem com´em Bitoria guariu hũa vez a um frade mẽor (METTMAN, 1989, v. II: 70). Moribundo, seu corpo tornou-se contorcido e preto, incrivelmente feio. Outro frade acendeu uma vela em homenagem à Virgem e colocou-a na mão do agonizante. A cor preta desbotou e o rosto do monge ficou branco. No entanto, para a tristeza de seus confrades, ele morreu em poucos dias. A seguir, o frade morto apareceu a dois irmãos. Explicou que, antes de morrer, o seu rosto estava preto porque ele viu demônios, e que as velas fizeram os demônios fugir (OXFORD, 2014). A Cantiga 239 relata o milagre ocorrido na cidade de Murcia. Um homem atormentado por uma dor lancinante convocou um franciscano e fez sua confissão, mas não mencionou seu engano: guardou, mas não devolveu o dinheiro que lhe confiaram. Chamade um prest´, a quen sse confessou, deste mẽores un frade (METTMAN, 1989, v. II: 326). Repetiu a mentira ante a imagem da Virgem. Imediatamente seu queixo caiu. Ele sentiu uma dor lancinante e não conseguiu falar. Estava assim em tal tormento, pensando que morreria, quando chamou o franciscano uma vez mais. Desta vez, ele admitiu que fez confissão falsa. Perjúrio. Pediu ao frade para reembolsar o homem a quem ele devia dinheiro e, após três dias, morreu (OXFORD, 2014).

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6 São Domingos e a Ordem dos Pregadores

Figura 8: Livro de Horas com calendário, litanias e orações. O Sonho do papa Inocêncio III. Inglaterra, século XIV. Abrigado na British Library3. Folio 8 verso. Iluminura de página inteira.

Na Figura 8, uma fina folha de ouro é o pano de fundo ideal para uma imagem sagrada. Circunscrita ao limite marginal quadrilobado, há a representação do papa Inocêncio III (c. 1160-1216) dormindo. O mundo onírico sempre esteve presente na História, na Arte (COSTA, 2013). Em seu sonho, o papa suporta o colapso da basílica de São João de Latrão. Em seu auxílio, dois dominicanos seguram os pináculos que desmoronam. Sustentáculo de uma instituição que corria grave perigo, as ordens mendicantes foram fundamentais para a expansão da Igreja. Sem pompa nem riqueza, ofereciam aos espíritos e aos corações dos gentis homens o ideal de uma vida devota a Jesus. Este papa notabilizou-se por sua luta pelo primado da Igreja Católica frente ao poder secular e o combate às heresias. Em 1210, aprovou a criação da Ordem dos Frades Menores (Ordo Fratrum Minorum). Os propósitos do IV Concílio de Latrão (1215) soaram como música para os ouvidos de Domingos de Gusmão (c. 1170-1221), fundador da Ordem dos Pregadores (Ordo Prædicatorum) (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 668). Ao instalar-se na cidade de Toulouse, Domingos estabeleceu ali uma comunidade de clérigos. Sob sua orientação, deveria formar religiosos mais devotos à salvação das almas, à conversão. Domingos estreitou amizade com o bispo local, Fulco. Este, em 1215, aprovou a fundação da Ordem dos Pregadores. Ambos então se dirigiram ao IV Concílio de Latrão para obterem a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 3

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confirmação papal. Sob a regra de Santo Agostinho, obtiveram a sanção do papa (VAUCHEZ, 1994: 265). Compreenderemos melhor os ideais e as práticas dos dominicanos se nos voltarmos para ao mundo no qual viviam. As heresias tomavam forma e força agressivas. Nas escolas anexas às catedrais, a filosofia e outras vertentes do conhecimento, por vezes, tentavam sobrepujar a Teologia e questionavam as verdades da fé. Por sua vez, o ambiente no qual os dominicanos tanto se prepararam como se tornaram mestres, foi o da universidade. O mundo acadêmico era irrequieto, pois era um espaço das livres disputas de palavras, dos embates filosóficos, das querelas intelectuais (VERGER, 1994: 291). Preparavam-se os dominicanos, desta forma, para enfrentar os vícios do mundo. Para convertê-lo. Frente a frente. Tornaram-se eruditos. Conhecedores da palavra e dos grandes teólogos da Igreja. Ademais, as disputas forjaram exímios debatedores. Capacitaram-nos a argumentar de forma clara, objetiva e bem fundamentada. Em 1217, os dominicanos foram autorizados a pregar em todos os lugares. Percorriamnos a pé. Com um bastão na mão, humildes. Não possuíam dinheiro. Seus pertences se resumiam a alguns livros de Teologia e passagens da Bíblia. Mendicantes. Pediam pelo caminho comida e abrigo. Missão cumprida, retornavam aos seus conventos para descansar, estudar e relatar suas experiências ao superior. Em seguida, voltavam a pregar pelo mundo (BERLIOZ, 1994: 274). A partir do séc. XIII, o exército de Deus era formado pelas ordens mendicantes. Em especial, franciscanos e dominicanos. Combatiam as heresias e pregavam uma vida menos afeita aos vícios. Prometiam a Salvação Eterna. O instrumento era a palavra. Tornaram-se mestres nos sermões conhecidos na Idade Média como exempla. Com os mendicantes, os sermões saíram das igrejas e tomaram a via pública. O público alvo: o povo. Os exemplas foram sermões criados a partir de histórias de fé. De exemplos a serem seguidos. Relatos breves e enfáticos da vida de mártires. De virgens piedosas. Milagres da Virgem e dos Santos. Mas, principalmente, de pessoas comuns que encontraram a Salvação na fé. Ensinar pelo exemplo. Através de uma linguagem que, sem perder conteúdo, era destinada aos simples, portanto, de fácil entendimento. Possuíam uma oratória cativante, emocionavam a plateia. Eram amados, idolatrados pelo público (BERLIOZ, 1994: 277-282). Étienne de Bourbon (1180-1261), inquisidor e dominicano, escreveu o “Tratado das diversas matérias a pregar” (Tractatus de diversis Materiis Praedicabilibus). Para ele, o sermão tinha três objetivos principais: 1) inspirar o medo da condenação eterna, 2) mostrar o !

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caminho da salvação e 3) lutar contra os vícios”. Sua obra está dividida em cinco dos sete dons do Espírito: temor, piedade, ciência, força e conselhos (BERLIOZ, 1994: 277-282). 6.1 A Ordem dos Pregadores nas Cantigas de Santa Maria: Cantiga 103

Figura 9: Uma das cópias das Cantigas de Santa María está abrigada na Biblioteca do complexo de El Escorial, Madri – Espanha com o nome de “Códice Rico” 4. A imagem mostra a Cantiga 74: Como Santa Maria quiser deffender, non lle pod´o demo niun mal fazer (METTMAN, 1989, v. I: 242). 1. Notações musicais; 2. Texto da cantiga; 3. Iluminura historiada de página inteira; 4. Verso do fólio; 5. Frente do fólio; 6. Letra capitular ornamental; 7. Número da cantiga em algarismos romanos; 8. Letra capitular; 9. Título da cantiga; 10. O refrão da cantiga se repete nos textos em vermelho.

Nas Cantigas de Santa María todo relato de milagre ou louvor é acompanhado por uma iluminura historiada de página inteira, na qual o texto é representado iconograficamente (LEÃO, 2008: 09). A estrutura, a forma e o estilo variam em poucos detalhes. Manteve-se a mesma norma para a composição de todas as imagens do códice. A estrutura é formada por seis vinhetas que representam a história de cima para baixo, da esquerda para a direita. As formas ornamentais são compostas por margens com figuras em formato de cruz grega ou flor quadrilobada, separadas por imagens heráldicas dos reinos de Castela e Leão (Castelo e Leão) e do Sacro Império Romano Germânico (águia). O estilo gótico francês está presente nos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 4

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A PUC-Minas adquiriu um fac-símile de toda a série documental deste manuscrito (LEÃO, 2008: 07).

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motivos arquitetônicos, nas representações de pinturas e de esculturas e no panejamento das roupas. As figuras humanas, seus gestos e expressões faciais, tem grande similaridade com o estilo artístico dos códices alemães da primeira metade do séc. XIII (WALTHER/WOLF, 2005: 188). Em nosso levantamento temático nos textos das Cantigas de Santa María, não identificamos termos diretamente relacionados com a ordem dos pregadores, os dominicanos. No entanto, a iluminura da Cantiga 103 (assim como outras 22 iluminuras) representa um frade com sua característica vestimenta e corte de cabelo, a tonsura. Um levantamento bibliográfico e de imagens de pesquisadores e de obras que constam nas referências deste trabalho embasou nossa hipótese de que os frades pregadores são visivelmente reconhecíveis por sua túnica branca coberta por um manto negro, além de certas práticas condizentes com suas regras.

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Figura 10: Rei Afonso X de Leão e Castela. Século XIII. Biblioteca de San Lorenzo, Complexo de El Escorial, Madri, Espanha. Cantiga 103: Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarỹa, porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso (METTMANN, 1989, v. II: 16).

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O frade dominicano é identificado na Figura 10 por seu vestuário. Viver no século poderia corromper o espírito. Por isso, o prólogo das primeiras regras da ordem dominicana instituiu que, em todas as horas canônicas, os frades deveriam recitar ou cantar breves passagens da Bíblia ou de livros de Teologia. Desta forma, mantinham a fé inabalável e se protegiam contra a tentação dos romances de cavalaria e dos livros dos filósofos antigos, famosos na época (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 670). Nas seis vinhetas da iluminura, o frade é representado em diversas práticas comuns da vida cotidiana de um dominicano do séc. XIII. Na primeira vinheta, acima à esquerda, o frade está ajoelhado à frente do altar da Virgem Maria, com os braços abertos, posição de um simbolismo teológico fundamental. De Santo Agostinho a Tomás de Aquino, desde os primeiros séculos da Idade Média, teólogos refletiram sobre a genuflexão na oração. O gesto do frade denota sua adoração, humildade e penitência (BERLIOZ, 1994: 157-159). O quadro abaixo contém um extrato do texto da cantiga em sua língua original, o galego-português, acompanhada por nossa tradução (METTMANN, 1989, v. II: 16-18).

QUADRO 1: TRADUÇÃO DE EXTRATO DA CANTIGA 103 103 Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarỹa, porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso. Como Santa Maria fez um monge estar por trezentos anos ao canto do passarinho porque lhe pedia que mostrasse qual era o bem que tinham os que estavam no Paraíso. Quena Virgen ben servirá Quem à Virgem bem servir a Parayso irá. ao Paraíso irá. E daquest' un gran miragre vos quer' eu E sobre isso um grande milagre vos quero ora contar, agora contar, que fezo Santa Maria por un monge, que que fez Santa Maria a um monge que rogar sempre lhe rogava ll'ia sempre que lle mostrasse qual ben en que mostrasse qual bem há no Paraíso Parais' á E que o viss' en ssa vida ante que fosse e que o visse ainda em vida, antes de morrer. morrer. Nele, notemos que o princípio máximo da ordem, salvar almas em Cristo, está textualmente representado, pois, uma alma salva, viveria no Paraíso, na Jerusalém Celeste. Quimera de todo cristão, sobretudo de um dedicado dominicano, ver, viver no Paraíso seria uma maravilhosa e maior recompensa por sua vida abnegada e dedicada a aumentar o rebanho de Deus. !

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7 Unidos na difusão da fé, os onipresentes frades pregadores

Figura 117: São Boaventura. Lenda e vida de São Francisco de Assis. Florença, Itália. Abrigado na British Library5. Folio 26, frente. Detalhe da iluminura. Letra capitular historiada.

Rodeado de rostos angelicais, São Francisco de Assis surge dos céus para o seu mais renomado biógrafo, São Boaventura (1221-1274) na IMAGEM 11. Sua biografia, a Legenda Major, foi a única aceita pela Igreja, a partir de 1266 (VAUCHEZ, 1994: 246). Com a mão direita, e através de um facho de luz, Francisco conduz suas palavras à boca do escritor, extasiado com sua visão celestial. Já nomeado cardeal, Boaventura está vestido com um refinado manto solene sobre sua veste de frade franciscano. Sua mitra6 – insígnia de sua condição de sacerdote – pode ser apreciada em uma das prateleiras. Como um elo entre os dois espaços sagrados, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), frade dominicano, irrompe na sala. É seguido por outro dominicano e um franciscano. São Boaventura e Santo Tomás de Aquino têm, em torno de suas cabeças, halos de luz dourada, símbolos de suas santidades. A força das duas principais Ordens Mendicantes da Idade Média vinha do respeito mútuo e do trabalho em prol de uma Igreja Católica forte e libertadora. Com sua força expansionista, franciscanos e dominicanos reescreveram a história do ocidente. Em vários de seus aspectos e matizes. Com eles, a Europa ganhou o mundo. Por eles, o Cristianismo triunfou Modernidade adentro. Cantiga 264. “E por este miragre deron grandes loores todos comũalmente, maoyores e mẽores, aa Virgen bẽeita, que aos peccadores acorr´ e a coitados nas coitas noit´ e dia” (METTMAN, 1989, v. III: 18).

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Disponível em: . Mitra: chapéu cônico, nas cores branca e dourada, fendido na parte superior, com duas fitas pendentes.

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GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica II. Edad Media (8001303). La cristiandad en el mundo europeo y feudal. Madrid: BAC, 2003. LEÃO, Angela Vaz. Novas leituras, novos caminhos: Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008. LE GOFF, Jacques. As ordens mendicantes. In: Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1989. p. 227-241. ________________ Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998. LE MONT SAINT MICHEL. Disponível montsaintmichel.com/fr/histoire.htm>. Acesso em 2 mai 2014.

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