ORFEU DA CONCEIÇÃO: UMA TRAGÉDIA NÃO NEGRA

May 24, 2017 | Autor: Ronald Augusto | Categoria: Luso-Afro-Brazilian Studies, Afro-Brazilian Culture, Literatura, Critical Literacy
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ORFEU DA CONCEIÇÃO: UMA TRAGÉDIA NÃO NEGRA
Ronald Augusto[1]


RESUMO: Este artigo centra-se em alguns aspectos da peça Orfeu da
Conceição de Vinicius de Moraes. A tragédia carioca foi encenada pela
primeira vez em 1956 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Embora a obra
de Vinicius de Moraes seja, sob vários aspectos, desbravadora, pois o
poeta, se antecipando a muitos autores teatrais, a escreveu para que fosse
encenada por um elenco de atores negros – fato até então inédito – revela,
mesmo assim, em sua narrativa, representações estereotipadas com relação ao
negro. Além desse dilema de fundo, o artigo aborda o êxito de forma com que
Vinicius de Moreas, nesse esforço de recriação do mito de Orfeu,
transcultura, em termos de sincronia, um item do legado clássico para o
interior do tempo que lhe cumpria viver, reinventando-o no cenário de um
morro carioca.


Palavras-chave: Vinicius de Moraes, plagiotropia, cultura afro-
brasileira.


No filme Crimes and Misdemeanors (1989), escrito e dirigido por Woody
Allen, há uma cena em que o personagem Lester – um bem-sucedido e
pernóstico produtor de cinema e televisão, interpretado por Alan Alda –
sintetiza, em resposta a uma pergunta que um jovem lhe dirige, sua teoria
sobre a comédia. Lester narra que um aluno, durante aula em Harvard, lhe
propõe a seguinte indagação: "Whats's comedy?". Sua resposta: "Comedy is
tragedy plus time". Lester argumenta que só com o passar do tempo é que se
pode desentranhar a comédia, o riso, de eventos ou situações trágicas.
Qual a razão de começar esse texto sobre a "tragédia carioca" do poeta
Vinicius de Moraes com a lembrança dessa passagem fílmica? Ora, não se
trata aqui, obviamente, de promover a gargalhada com relação ao Orfeu da
Conceição[2], mas antes, de reconsiderar, tirando vantagem do tempo
transcorrido desde sua criação e de sua primeira encenação, alguns aspectos
contidos na peça de Vinicius de Moraes que, hoje – e a partir de uma
suspeição não digo irônica, porém menos reverente e também não leniente com
as luzes da presente efeméride – podem ampliar os sentidos da importante
obra, mesmo que alguns desses novos sentidos a coloquem, provisoriamente,
em cheque. A contrapelo de uma disposição de cânone como coisa normativa, o
que me interessa aqui é menos reproduzir o cômodo beija-mão a um modelo que
sempre aprendemos a apreciar do que prestar-lhe o respeito crítico da
análise.
Se para a suspicácia elitista o epíteto carioca poderia indicar "uma
limitação à universalidade do trágico"[3], imagine, caro leitor, se o
subtítulo escolhido à obra fosse Tragédia negra; o epíteto ou qualificativo
negra para tragédia, segundo esse purismo aristotélico lido às pressas,
talvez se convertera mais disruptivo e iconoclasta do que carioca, porque
mais do que este último, aquele epíteto se mostraria menos adequado – numa
perspectiva canônica – para suportar valores não-tópicos e atemporais do
homem, valores da tragédia.
As questões que estão em causa no âmbito desse ensaio dizem respeito
a dois aspectos, a saber, em primeiro lugar Orfeu da Conceição se realiza,
em termos de modelo compositivo, a partir das determinações de uma
"plagiotropia"[4] (êxito: signans o aspecto sensível do signo estético)
isto é, Vinicius, como um típico modernista tardio, serve-se de dados da
tradição tendo em vista sua transfiguração no presente. A transformação do
modelo trágico e do mito grego de Orfeu – herói que inspeciona o Hades
arrastado pelo amor – nesse outro Orfeu, sambista do morro carioca,
imaginado pelo poeta brasileiro, diz respeito a uma transposição
intersemiótica. Para Roman Jakobson a tradução intersemiótica "consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não
verbais"[5]; significa a passagem de determinada informação de um sistema
de signos para quaisquer outros, por exemplo, da poesia para a música, a
dança, o cinema ou a pintura, ou vice-versa como complementa Julio Plaza.
Trata-se de uma transação de forma e fundo entre códigos diferentes onde um
faz as vezes do outro. Vinicius de Moraes, em Orfeu da Conceição, realiza
aquilo que Haroldo de Campos chamou de transcriação (tradução icônica), ou
seja, a partir da apropriação da narrativa mitológica grega cuja tradição é
oral (signo verbal) o poeta propõe sua obra que se multiplica em diversos
registros de linguagem, verbais e não verbais. Assim, Orfeu da Conceição,
essa tradução lato sensu, é, a um só tempo, teatro, poesia, música, dança,
cenografia, etc. Essa transação de signos garante ao Orfeu de Vinicius uma
disposição para produzir outros significados sob a forma de qualidades e de
aparências, tudo por analogias. Julio Plaza argumenta, ainda, que em tal
operação "trata-se de fazer aparecer o segundo modelo (a tradução) similar
ou equivalente ao primeiro, porém, com estrutura diferente e
equivalente".[6] Uma virtuosa hesitação entre identidades, semelhanças e
contrastes. No estudo Deus e o diabo no Fausto de Goethe, precedido de uma
transcriação das cenas finais do Segundo Fausto, Haroldo de Campos, ao
analisar a rosácea de referências contidas no drama barroco do poeta
alemão, chama a atenção para a situação de um "movimento plagiotrópico da
literatura"[7] que, por uma série de sendas, liga-se aos problemas da
tradução.
Esse mesmo movimento, podemos dizer, serve de base para a operação
transpositiva com que Vinicius de Moraes leva a efeito a recriação do mito
grego e seu viés trágico em termos de uma tragédia carioca ou negra
consubstanciada nas cenas da paixão (pathos) de um sambista do morro. A
antinomia clássica entre original e cópia deve ser colocada de lado, esses
extremos são postos em relação crítica. A plagiotropia se constitui como um
tipo de expediente em que não está em causa determinar o "autêntico" e o
"falso"; o movimento plagiotrópico tem um estatuto próprio. Assim, de um
lado, o passado original (mito órfico, signo de partida) pode ser lido no
presente expropriativo (a peça do poeta brasileiro, signo de chegada) como
uma versão possível desse presente. E, de outro lado, é como se Orfeu da
Conceição realizasse na história presente das formas poéticas, por mimese
ou imitação, o que estava prefigurado ou anunciado no mito grego de
Orfeu. O poeta-crítico Haroldo de Campos haure sua visão de plagiotropia
nos traços etimológicos, isto é, o sentido vem do gr. plágios, oblíquo; que
não é em linha reta; transversal; de lado. Todavia, a partir de Marshall
McLuhan, Haroldo busca também uma analogia generosa com a ideia de paródia
como "canto paralelo"[8], no sentido em que paródia, desde que lida como
"uma nova visão (...) seria um caminho que se desenvolve ao lado de outro
caminho (para hodos)"[9]. Para uma visão mais tradicional ou convencional
fica difícil reverter as acepções depreciativas relativamente ao que o
senso comum entende como plágio e paródia. Por essa razão parece forçada a
livre etimologia imaginada por McLuhan que "faz derivar paródia de hodós
(caminho), não de odé (ode, canto)".[10] Por romper com o princípio da
originalidade, espécie de pedra filosofal do romantismo, Goethe, ao
praticar avant la lettre o conceito desse movimento plagiotrópico, fazendo
uma expropriação paródica em seu Fausto, foi acusado por Byron de ter
plagiado a canção de amor da louca Ofélia (Hamlet, IV, 5). A resposta de
Goethe à acusação é de uma objetividade exemplar: "Então meu Mefistófeles
entoa uma canção de Shakespeare? E por que não poderia fazê-lo? Por que eu
me deveria dar ao trabalho de encontrar algo próprio, quando a canção de
Shakespeare cabia à maravilha e dizia exatamente aquilo que era
preciso?".[11]
Dentro de certos limites, e se concordarmos com essa noção de
movimento plagiotrópico, Vinicius de Moraes em Orfeu da Conceição procede a
uma operação análoga àquela levada a cabo por Goethe. Sua transposição do
mito grego de Orfeu – no caso uma espécie de ready made, em sentido amplo,
pois se trata de um signo dado – para o ambiente e a cultura do morro
carioca põe de lado o fervor da originalidade e, como se fora uma tradução
em sentido moderno, enquanto recusa a fidelidade à essência da tradição
como que heleniza o presente do sambista negro. Vinicius desentranha para o
seu tempo a parte viva do acervo e, desse modo, na verdade, a (re)inventa.
Como leitor interessado (parcial) desse passado mais uma vez novo, o poeta
tenta ser um intérprete de aspectos construtivos do legado literário, com
vistas a transportar para a sua época o substantivo de uma tradição em
movimento e onde se vê naturalmente implicado. Nesse jogo indecidível entre
o próprio e o alheio, o drama de Vinicius instaura, a um só tempo, seus
índices de singularidade estética sem deixar de se referir o tempo inteiro
ao modelo órfico do poeta capaz de descer aos infernos para resgatar à
morte o objeto de sua paixão.
O segundo tópico que me interessa discutir em Orfeu da Conceição diz
respeito ao seguinte: desde uma perspectiva de desvios ou de tensões
semânticas, a peça aponta hesitantemente para o alinhamento acrítico com a
estereotipia (fracasso: signatum, o aspecto inteligível do signo estético)
relativa ao legado cultural e religioso afro-brasileiro. Em outras
palavras, mesmo que parte da sua relevância seja resultado de um corte
sincrônico e formal no fluxo da tradição e que, portanto, a faria, a
princípio, irredutível ao que quer que seja, Orfeu da Conceição é obra que
também se define historicamente, já que se refere ao viés estético
referendado pelo meio literário que, de resto, compõe esta representação
especular, embora com suas particularidades, dos conflitos étnicos e
sociais presentes sob o arco ideológico. Essa questão e sua ambiguidade
constitutiva se originam, me parece, na imagem venal do Vinicius de Moraes
cantor mitômano do amor e da fraternidade. Em Vinicius, no caso da tópica
amorosa, a mulher, enquanto estilema desse formalismo sentimental de certa
tradição poética, ainda tem muito que ver com a musa-mulher da poesia
trovadoresca e que está nas antípodas da mulher-súcubo, demonizada, por
exemplo, como feiticeira pelo pensamento medieval inquisitorial. Aliás, no
Orfeu da Conceição esses tipos femininos díspares estão emblematizados
respectivamente na mulata Eurídice e na negra Mira. Mais adiante tratarei
da manifestação verbal desse atrito entre as duas figuras femininas no
interior da peça.
A Eurídice da tragédia carioca se encaixa na figura trovadoresca da
mulher que excede a todas do mundo em formosura (de que resulta o tema do
elogio impossível e, por extensão, do amor impossível). O sambista Orfeu
cumpre, igualmente, o rito do trovador que despreza todos os títulos, todas
as riquezas e a posse de todos os impérios e pretendentes, indo parar
temerariamente na mansão dos mortos para resgatar sua musa e amante. Já no
tocante à figuração universalizante desse amor – que desborda as margens da
parelha romântica e que se vincula, antes, a uma frátria – o mesmo eixo
mitômano do caráter de Vinicius de Moraes é que o levou a cunhar esse
enunciado erístico com que se define, a partir de certo momento, como sendo
"o branco mais negro do Brasil". Enunciado, diga-se, que mais irriga o
senso comum do preconceito amistoso da formação brasileira do que o põe em
causa.
Dar crédito a essa afirmação significa pôr a perder o debate que diz
respeito às tensões da diferença. Vinicius, entre cortês e simplista, dilui
o conflito frutuoso na convicção desse universal enquanto clichê de
congraçamento. Compare-se a boutade do poeta brasileiro com a confissão
sartreana que, por assim dizer, não faz vista grossa ao foco do problema e
diz assim: "el blanco ha gozado durante três mil años del privilegio de ver
sin que lo vieran".[12] Notável a percepção do filósofo que se vê de
maneira não edulcorada na prática dessa invisibilidade de narrador
onisciente e que, por todos os meios, inventa, através da reificação de
clichês de negação da diversidade étnica, o não branco como o adequado
"homem invisível", homem irrelevante.
Luís Tosta Paranhos defende a noção de que o "erro de linguagem"[13]
– um vacilo de interpretação – está na fonte do princípio trágico. Tomando
como ponto de partida essa proposição, avento a possibilidade de ler por
detrás ou na origem mesmo da tragédia de Vinicius de Moraes uma espécie
particular de tragicidade (na acepção de Paranhos o termo quer significar
"qualidade específica do discurso trágico"[14]). Dito de outro modo, Orfeu
da Conceição dá continuação ou reproduz, através de generalizações
apressadas, uma mirada convencional a respeito de algumas invariantes da
cultura negra. Por esse ângulo entendo a obra como um fracasso
interpretativo, pois ela se constrói, em boa medida, calcada sobre uma rede
de estereótipos, de implicâncias e de enganos que apontam para o desfecho
trágico de nossa própria realidade onde os prejuízos de uma tensão étnica,
que atravessam a história da nossa formação, são escassamente discutidos. É
óbvio que, como obra de arte, Orfeu da Conceição não tem obrigação de
encontrar uma solução para isso. Todavia, o ambiente no qual ela deita suas
raízes se esforça em não nos fazer esquecer de sua autonomia discursiva,
reforçando com isso ideias feitas e padrões fixos embutidos em muitas
dessas obras que, espelham e irrigam, sim, entre outros, o preconceito
naturalizado contra o negro na sociedade brasileira. E o perverso disso é
que essa depreciação formada a priori, essa simplificação por via dos ardis
da memória se efetiva graças à aura do artístico, do literário.
É nessa perspectiva que um conteúdo trágico, porém de outra ordem,
informa a tragédia carioca/negra do poeta Vinicius de Moraes, talvez à sua
revelia. Mas no caso do poeta pode-se imaginar um contraveneno ao equívoco
de linguagem, que seria sua consciência de linguagem apoiada na lição
estética de que não há uma coincidência entre a palavra e a coisa designada
por ela. Por essa razão o equívoco de linguagem radica num crédito
excessivo dado ao discurso verbal como o signo tradutor por excelência. A
tarefa poética ensina que tudo é equívoco ou ambíguo, a começar pela
própria linguagem. Aproveito a oportunidade para evocar um brevíssimo poema
de José Paulo Paes intitulado "Lembrete cívico" que cabe à perfeição como
ilustração ao dilema subjacente à linguagem e sua determinação para a
nomeação, essa tecnologia impura, porosa a uma série de forças em conflito,
diz o epigrama: "homem público/ mulher pública"[15]. As demarcações e os
mecanismos de controle de territórios e de espaços de poder começam já no
étimo, no léxico. No poema em causa, o qualificativo "público" assume
acepções radicalmente opostas dependendo do substantivo que esteja a
acompanhá-lo. José Paulo Paes faz uma leitura crítica da "ambiguidade" com
que a sociedade, dependendo da situação, utiliza-se do referido
qualificativo na construção dos seus discursos. Vale dizer, aí temos um
evidente equívoco de linguagem com consequências trágicas.
"A fatalidade não está situada fora da ação do herói. Seu destino
reside no desejo de liberdade de ação. Como, no entanto, esse desejo está
fundamentado em erro de julgamento (válido ou não), transforma-se em
fatalidade".[16] Ou, ainda, "o fatalismo não reside no acontecimento nem na
liberdade em si, mas na(s) palavra(s) pronunciadas(s) e interpretada(s)
erroneamente"[17]. Sem deixar de lado uma parcela de ironia, digamos que
esse pequeno conjunto de leis sobre o que põe em movimento o processo
trágico pode servir de sistema de aferição para uma abordagem crítica
(sincrônica e vertical) dos sobrepassos que, hoje, podemos acentuar na peça
de Vinicius. Não nos esqueçamos de que, segundo Lester, "Comedy is tragedy
plus time".
"A tragédia instaura-se na sequência de tentativas de apreender os
signos".[18] A tresleitura que não se situa, espécie de decodificação sem
margens dos signos à sua disposição, pode engendrar um evento trágico.
Contudo, em Orfeu da Conceição, tal "tentativa de apreender os signos" ou
de figurar/transfigurar alguns dos signos da cultura afro-brasileira
resulta tributária das convenções da ideologia dominante. Pode-se,
entretanto, relevar esse limite interpretativo do poeta invocando a moldura
da época. Pode-se, inclusive, reconhecer que, para o momento de então, o
texto de Vinicius de Moraes cumpriu, ao lado de outras manifestações
teatrais, uma função desbravadora. Antes mesmo que Abdias do Nascimento
trouxesse a público com o TEN (Teatro Experimental do Negro) a questão do
mercado de trabalho para o ator negro, Vinicius de Moraes já estava às
voltas com a redação do Primeiro Ato do seu Orfeu. O mesmo Abdias, na
introdução do seu Dramas para negros e prólogo para brancos (1961), declara
que o poeta "estava estudando profundamente o tema de Zumbi, para uma peça
futura".[19] Enfim, deve-se louvar os esforços de Vinicius na abordagem
desse "tema" que lhe foi tão caro e, no qual, precisou se enfronhar
dobrando-se longamente sobre o objeto de estudo com uma mirada plongèe
(termo da gramática cinematográfica que designa o plano onde a câmera
enquadra o ator ou um objeto de cima para baixo). Entretanto, o ponto de
vista diz muito sobre o resultado de tal esforço, isto é, a obra, com
efeito, não consegue falar de-dentro, o texto fica no meio do percurso.
Orfeu da Conceição representa o movimento inacabado de uma subjetividade
que não alcança presentificar uma outra subjetividade, já que o narrador
não se sente implicado (não se reconhece) na limitação que afeta ambas as
subjetividades, isto é, a limitação de só conseguirem viver na
intransigência.
Os personagens de Orfeu da Conceição são e não são verossímeis,
afinal o poeta parece lidar mais com estereótipos, ou com tipos. Seu ponto
de partida talvez nem seja exclusivamente o da tradição das convenções
dramatúrgicas onde os caracteres das personagens devem ser potencializados
e sintetizados dentro dos limites do entrecho e da performance do
espetáculo, não; essas convenções e tipos, Vinicius acabou recuperando-os,
talvez um pouco inconscientemente, aos discursos e aos atos da
estupidificação que, mais do que explicações da vida, são, infelizmente,
parte inextrincável dela. Analisando a personagem no âmbito da ficção
romanesca Antonio Candido afirma "que há afinidades e diferenças essenciais
entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão
importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é
a verossimilhança".[20] Além disso, o crítico sustenta que, não raro,
notamos, no trato direto com as pessoas, "o contraste entre a continuidade
relativa da percepção física e a descontinuidade da percepção, digamos,
espiritual, que parece frequentemente romper a unidade antes
apreendida".[21] Ou seja, o ente de ficção ao se movimentar nesse intervalo
de afinidades e diferenças com o ser vivo presentifica em sua atuação o
sentimento de verdade existencial de uma pessoa. Simula esse ser uno que o
olhar ou o contato nos apresenta e, à medida que mais nos aproximamos de
sua interioridade estetizada, mais notáveis são as variações de modos-de-
ser e de qualidades por vezes contraditórias que exercita em resposta às
circunstâncias.
Eugène Ionesco afirma que o personagem trágico não muda, se rompe ou
se quebra. Seu destino experimenta uma revolução no espaço de uma, duas
horas no máximo. Isso justifica em parte o desenho metonimizado, elíptico,
reduzido ao essencial, das figuras em atuação em uma montagem teatral e,
particularmente, no Orfeu da Conceição. É claro que as personagens vivem
não no mundo real, mas na realidade cênica de um palco. Entretanto, toda
essa compressão exigida pela linguagem teatral, torna mais previsível ainda
os gestos e as atitudes do elenco negro da peça; são reféns, em fim de
contas, não de um código estético, mas de uma superestrutura social da qual
o texto de Vinicius em sua mimese involuntária não consegue escapar.
Atento à questão da verossimilhança, Vinicius tenta alcançar esse
"sentimento de verdade" recriando o mito órfico no ambiente do morro
carioca do seu tempo – ainda assim, as paisagens, humana e física, são
descritas em pauta idílica. O apelo que faço à consideração dos
personagens, em Orfeu da Conceição, como figuras em situação liminar com a
estereotipia, vem da ideia de que o estereótipo se situa indecidivelmente
entre o "ser vivo e os entes de ficção".[22] Por isso eles são e não são
verossímeis. Estereótipo: essa catalogação de um conceito, de um pensamento-
ideia, na faixa mais estreita de seu significado. A expectativa prevalece e
se projeta sobre a curiosidade pelo outro. Hábitos de julgamento,
generalizações falaciosas. Lugar-comum, modelo, padrão básico.
Luiz Tosta Paranhos se refere ao interesse de Vinicius pelo "ambiente
do favelado"[23] usando como exemplo uma das parcerias do poeta com o
músico Tom Jobim e cita o trecho de "O morro não tem vez": "Quando derem
vez ao morro/ toda a cidade vai cantar". Paranhos arremata: "Sem dúvida,
Orfeu da Conceição é uma abertura de caminho para a voz do morro".[24] A
relação direta estabelecida entre "ambiente do favelado", metáfora social e
cênica das personagens (negros) da peça, e a tragédia carioca por meio da
qual é transmutado o mito grego de Orfeu não escapa ao modus faciendi das
convenções de classe. Por via de consequência fica evidente uma visão
patriarcal do poeta que, apesar de representar, por assim dizer, uma voz do
asfalto (voz de branco bem-intencionado?), alcança, mercê de uma analogia
também órfica, a condição heroica de antena dessa raça de que não é filho
e, assim, falar do que inere a esse mundo, mas tão-só a partir de uma ótica
onde a coisa é lida pelos seus efeitos. Subjaz à nota do estudioso a noção
de que Orfeu da Conceição, além de cumprir os requesitos de obra estética,
atina, subsidiarimente, para o aspecto social apresentando a "problemática
do negro". Mas apresentando-a, afinal, para quem?
E o que é, enfim de contas, essa "problemática do negro" senão algo
que à força de tanta reiteração (ardis de séculos de representações e
simbologias no mínimo duvidosas) nos faz ratificar sua existência como fato
consumado. Aprendemos a reagir infantilmente à África-tipo, feérica,
selvagem e bela, e suas sinédoques – o escravo, o negro liberto, a mucama,
o sambista e a cabrocha – às vezes temendo-as e outras vezes cedendo ao
elogio de fachada. O mito fundante da democracia racial está na raiz da
nossa imagem como nação. E sequer suspeitamos de que nossa tradição, graças
também ao engenho de muitos autores e intelectuais, acabou inventando um
"problema" na tentativa de fazer um outro invisível aos olhos de todos. Ou
seja, o que sempre tivemos e ainda temos mesmo – deixando de lado
superciliosos eufemismos – é uma imensa "problemática do branco". Desse
branco que segundo Sartre, cabe mais uma vez lembrar, gozou durante três
mil anos do privilégio de ver sem que o vissem. O filósofo complementa, "el
hombre blanco, blanco porque era hombre, blanco como el dia, blanco com la
verdad, blanco como la virtud, iluminaba la creación como una antorcha,
sacaba a luz la esencia secreta y blanca de los seres".[25] Não obstante a
boa vontade ou as boas intenções de Vinicius de Moraes, infelizmente, não
se percebe em Orfeu da Conceição o olhar do negro que, quem sabe, permitira
ao onisciente homem branco um tipo de observação que o fizesse olhar, em
primeiro lugar, para dentro de si.
Páginas atrás fiz referência ao embate simbólico entre as personagens
Eurídice e Mira, isso porque na peça elas não se encontram em nenhum
momento. Entretanto, o antagonismo vem à tona essencialmente nas
imprecações de Mira ou em seus diálogos sempre beligerantes com Orfeu que a
abandona para desposar Eurídice. A não aceitação, por parte de Mira, da
nova paixão de Orfeu é atravessada pela aceitação da naturalização do
preconceito ou sua inconsciência no próprio discurso revoltado de mulher
abandonada que ela reifica. Mira se dirige a Orfeu e diz, por exemplo, o
seguinte: "Talvez você precise/ De alguém pra refrescar sua memória/ Alguma
suja, alguma descarada/ Alguma vagabunda sem vergonha/ Alguma mulatinha de
pedreira/ metida a branca".[26] Quando Mira percebe que, de fato, perdeu
seu amado Orfeu para Euridíce decide apelar à desqualificação da outra pela
cor da pele, "mulatinha metida a branca", mas sem esconder o despeito, a
inveja. Ao contrário de Mira que é negra, Eurídice resta imantada com os
epítetos "morena", "mulata". O preconceito introjetado na rival Mira a faz
reagir violentamente porque Eurídice teria a vantagem de ser "mais clara".
Eurídice suplanta em beleza as pretendentes de Orfeu por esse detalhe, por
esse dégradé para o mais claro. Cabe lembrar aqui o baixo índice de
tolerância do senso comum com relação ao negro como possibilidade de
autoimagem. Em contrapartida estamos familiarizados com a maior tolerância
desse mesmo senso comum com relação à morenidade enquanto clichê
identitário da "brasilidade". A idealização de trovador medieval com
relação à figura da mulher em Vinicius o impediu de visualizar a musa de
Orfeu como uma mulher negra, mas a rival, essa Mira vingativa e ciumenta,
espécie de Othelo de saia rodada, essa, sim, é negra sem meios-tons. Na
versão cinematográfica esses papéis, caracteres e atributos físicos se
mantêm idênticos aos da peça de Vinicius de Moraes. A Eurídice brasileira,
menos negra que mulata, menos mulata que morena, serve ao modelo da senhora
que enseja o amor leal, inatingível, sem recompensa (porque ela deve ser a
dama sans merci).
Por sua vez, o temperamento de Mira nos é apresentado como sendo tão
vil e irascível que chegamos a achar plausível que suas palavras tirem do
sério o poeta do morro e os dois acabem entrando num pugilato; repete-se a
tradicional cena da lição aplicada à mucama abusada e respondona. Vejamos a
cena em questão:
MIRA
Vendido! Porcaria!
Filho duma cadela! Vai pro mato
Pegar a tua Eurídice!


(A essas palavras Orfeu avança sobre ela e agride-a a bofetadas.
A mulher reage e os dois lutam violentamente por um instante.
Numa separação momentânea, Mira, atemorizada, recua). [27]


Outros dados importantes para uma releitura crítica dizem respeito
aos indisfarçáveis ecos de um cristianismo demiúrgico na construção desse
Orfeu negro. Rival das divindades. É bem possível que Vinicius tenha
incorporado essa informação, esse lastro de fé religiosa, com
intencionalidade. Em determinado momento ouvimos Orfeu quase orar:
Cada homem no morro e sua mulher
Vivem só porque Orfeu os faz viver
Com sua música! Eu sou a harmonia
E a paz, e o castigo! Eu sou Orfeu
O músico! [28]


Entretanto, talvez por isso mesmo transpareça na superfície textual
da peça certa dificuldade em atinar para as singularidades de um outro
fenômeno ou parti pris religioso. Vejamos mais clichês supersticiosos sobre
a religiosidade afro-brasileira enredados ao texto de Vinicius de Moraes.
ORFEU
Orfeu é muito forte! Orfeu é rei!
Vá embora, Senhora!.


(Põe-se a tocar furiosamente em seu violão, em ritmos e batidas
violentos. Os sons, à medida que se avolumam, vão criando uma
impressão formidável de magia negra, de macumba, de bruxedo).
[29]


Notar a imagem, persistente ainda hoje, que consagra as manifestações
rituais e as mitologias religiosas de origem africana como coisas que têm
parte com o demônio, com o cujo. Para o senso comum o compósito "magia
negra" se insere numa área semântica indicativa de feitiço cuja intenção é
causar danos, propondo-se a destruir ou ferir outrem.
Segundo Ato – cena no clube d'Os Maiorais do Inferno. Transposição
livre para o mundo do morro carioca da descida de Orfeu à mansão dos
mortos, o Hades grego, em busca de Eurídice. Destaque para dois tópicos: na
cena em tela, embora o clube "Os Maiorais do Inferno" simbolize uma
agremiação carnavalesca, tudo o que acontece em seu interior evoca um culto
religioso de viés sincrético-fetichista, a princípio ou pretensamente, afro-
brasileiro. Essa metamorfose (que para todos os efeitos é interessante e
diz algo sobre as múltiplas fontes da cultura negra que costumam ser
conjugadas de modo simplista), no entanto, transfere à religiosidade afro-
brasileira acepções batidas e rebaixadas, e repisa a ideia feita
preconceituosa onde esses cultos e sua signância ritualística são
interpretados mais uma vez como "coisa do demônio", vertigem infernal, isto
é, rente ao imaginário que situa tal manifestação nas antípodas do céu
católico. Enfim, o que vemos se desenrolar diante de nossos olhos não passa
de uma representação distorcida e definitivamente clichê dos signos que
dizem respeito ao aspecto filosófico, espiritual e místico da cultura afro-
brasileira. Estereotipia. A versão fílmica francesa Orphée Noir (1959),
dirigida por Marcel Camus, por sorte não cai nessa armadilha – aliás, diga-
se, de passagem, que esse é único ponto relevante da obra. O diretor teve
consciência suficiente para não identificar o rito afro, espécie de macumba
estilizada (onde através do transe e da possessão Orfeu estabelece contato
com a mansão dos mortos) com esse inferno católico, cristão, a que Vinicius
de Moraes sucumbiu acriticamente. No Orfeu da Conceição a descrição da cena
do clube tem coisas do tipo: "Num trono diabólico"; "Esse casal [Plutão e
Proserpina] mefistofélico".[30] Em uma das rubricas dramáticas o poeta
escreve que o maioral e sua consorte devem "se caracterizar pelo tamanho e
pela gordura, gente gigantesca".[31] É interessante relacionar essa
observação do narrador com uma passagem da Divina Commedia, o sacrato
poema; refiro-me ao Canto XXXIV que narra a saída de Dante e Virgílio do
Inferno. Os poetas deixam o reino ínfero subindo pelo corpo de Belzebu,
esse verme imenso que perfura a terra, e seu tamanho é tão descomunal que
ele sequer percebe as minúsculas criaturas agarradas ao seu pelame.
Retomando o fio de Orfeu da Conceição na cena do clube d'Os Maiorais do
Inferno, temos ainda o séquito do casal mefistofélico Plutão e Proserpina,
séquito que dança, canta e bebe num transe contínuo, estão possuídos. A
possessão, segundo a visão cristã, exige o antídoto do exorcismo, mas nos
cultos afro-brasileiros a possessão é o momento exusíaco da interlocução
entre o homem e o orum, o reino dos mortos da mitologia iorubá.
Interpelando energicamente a Orfeu que entra no recinto dos Maiorais
do Inferno, brandindo o punho Plutão vocifera: "Em nome do Diabo, responde,
quem sois tu?".[32] Nas rubricas dramáticas nos deparamos com as
intencionalidades de forma e fundo do narrador. "A função narrativa [que]
no texto dramático se mantém humildemente nas rubricas (é nelas que se
localiza o foco), extingue-se totalmente no palco, o qual, com os atores e
cenários, intervém para assumi-la".[33]
Também no Segundo ato, que se passa todo no clube d'Os Maiorais do
Inferno, um detalhe a ser investigado: ao contrário do que acontece no
Primeiro e no Terceiro, neste Ato os personagens falam em prosa e não em
versos; os versos sofreriam uma espécie de interdição, uma proibição de
soarem no recinto presidido por Lúcifer? No romance Dom Casmurro, de
Machado do Assis, o volátil personagem Marcolini, um cantor de ópera já
aposentado, explica/representa a criação do universo, do mundo, como uma
ópera onde "Deus é o poeta, [e] a música é de Satanás". E como letra de
música (leia-se: o samba do Orfeu negro) não é bem poesia, é lícito dizer
que a letra tem mais relação com o profano do prosaico e do coloquial (e
sua corporeidade coreografada) do que com o sagrado que, em seus estados
mais remotos, relacionamos à poesia e ao inefável.
No início do Terceiro Ato entra em cena o Coro que canta a paixão de
Orfeu (na acepção relativa à derivação por metonímia que trata do martírio
de Cristo, dos santos); não é difícil vislumbrar traços hagiográficos
(traços ambivalentes, o devotamento tanto à arte, quanto ao amor à Eurídice
como sacrifícios do intelecto) na trajetória do herói, vejamos o que dizem
duas das vozes do Coro: "Quarta voz – E muito padeceu/ Sob o poder maior da
poesia.../ Quinta voz – E foi pela paixão crucificado...".[34] Mais adiante
o Coro, em uníssono, entoa: "Desceu às trevas, e das grandes trevas
ressurgiu à luz, e subiu ao morro onde está vagando como alma penada
procurando Eurídice...".[35] Notar, nesse momento, a frequência da
conjunção aditiva e que, na escrita dos evangelhos, sabe a uma marca de
estilo. Assim, a metáfora alusiva à santidade de viés cristão de Orfeu se
materializa na própria estrutura da linguagem que evoca, nesse trecho,
analogamente ao texto bíblico, a construção por justaposição do discurso
poético-dramático. Em outra situação e décadas antes de Vinicius de Moraes,
Cruz e Sousa escreveu o poema "Cristo de bronze" (incluído no livro
Broquéis, 1893). Sob a metáfora do sarcasmo Cruz e Sousa põe em questão uma
glamorização desmedida associada ao pathos desses "Cristos ideais, serenos,
luminosos", adornados com pedrarias, ouro, marfim e prata. Em
contrapartida, o poeta negro – ou o seu ego scriptor – chama a atenção para
o Cristo de bronze que, em sua ótica, funciona como contrametáfora a
valorizar um "Cristo humano, estético, bizarro,/ Amortalhado nas fatais
injúrias...". [36]

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.


Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.


Cristos de pedra, de madeira e barro ...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias ...


Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias! ...

Não me parece inviável uma leitura onde se considere que os termos
"tragédia carioca" podem dizer disfemicamente ou que representem por
ausência, por apagamento, os termos "tragédia negra". No prefácio ao seu
drama Vinicius reconhece a dívida com relação à cultura afro-brasileira,
mas a refere apenas no último parágrafo, talvez porque julgasse ocioso
referir o lastro da cultura negra já que esse assunto seria, por assim
dizer, visível a olho nu. De outra parte, tal agradecimento, quase como uma
nota de pé de página, acaba por ser, em fim de contas, coerente com a
tradição, ainda mais se aceitarmos o critério do poeta Oliveira Silveira
(1941-2009) que, segundo suas considerações, experimentos como Orfeu da
Conceição entrariam na conta de obra de cunho negrista. Cito alguns
exemplares dessa vertente negrista: os poemas negros de Urucungo de Raul
Bopp; "Irene no céu" de Manuel Bandeira; "Essa Negra Fulô" de Jorge de
Lima. Tais obras, na perspectiva crítica de Oliveira Silveira, são antes
objetos verbais que atendem a uma temática negrista, isto é, experimentos
eventuais de linguagem no percurso textual desses autores que, a rigor, se
prestam a simpatizantes (antipatizantes alguns) do "assunto". Em outras
palavras: brancos escrevendo sobre negros ou sobre elementos da cultura
afro-brasileira com vistas à ampliação do repertório e do seu discurso de
poder, no sentido em que esse discurso, talvez por ser estético,
restituiria a eles (os objetos, o assunto da vertente negrista) a "dimensão
humana" supostamente usurpada, ao longo do tempo, por uma série de eventos
históricos e sociais.
Portanto, do ponto de vista da diluição da ideologia subjacente ao
tecido verbal e sob certos aspectos, Orfeu da Conceição, para o paladar de
uma específica recepção contemporânea, pode ser interpretado como um poema
dramático ultrapassado. Em seus versos, formas clássicas de preconceito
racial e religioso com relação ao negro e à cultura a ele associada vêm,
como vimos, à superfície da linguagem em vários momentos.
Nesse sentido, a intenção pretensamente generosa de, como escreve
Vinicius no prefácio à peça, prestar "uma homenagem ao negro brasileiro"
por "sua contribuição tão orgânica à cultura deste país – melhor, pelo seu
apaixonante estilo de viver", estilo que permitiu ao poeta "sem esforço,
num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a
natureza de um dos divinos músicos do morro carioca"[37]; enfim, não
obstante todas essas, por assim dizer, atenuantes de fundo, a intenção de
"fazer justiça", por meio da voz dramática, tem algo de patético, pois a
conjunção intuída entre os divinos epítetos grego e negro se revela, ao fim
e ao cabo, tão vincada de superstições e clicherias com relação ao seu
objeto estético que acaba por obliterar a possibilidade efetiva de algum
desvelamento a partir da recriação dos signos sincréticos, mitológicos e
poético-musicais mobilizados na fatura da obra.
Encerro o ensaio com uma confissão de Vinicius de Moraes que, de
algum modo, faz menção aos seus esforços de olhar sua circunstância, seja
intelectual, seja sociocultural, a partir de diversa perspectiva. Na
advertência a Vinicius de Moraes – antologia poética, lê-se a seguinte
confissão do autor a propósito da mudança apresentada em sua linguagem a
partir da década de 1950 e que se opõe "ao transcendentalismo anterior",
revela o poeta que essa nova linguagem alcançada indica "a luta mantida
pelo A. contra si mesmo no sentido de uma libertação (...) dos preconceitos
e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão
inutilmente, lhe angustiaram a formação".[38] Se dermos crédito à confissão
de Vinicius de Moraes, podemos concluir que a peça Orfeu de Conceição está
no bojo desse movimento de revisão crítica e recusa dos enjoamentos e
interdições que informavam o poeta em seu processo de amadurecimento, seja
na dimensão existencial, seja no aspecto da sua condição de artesão da arte
da poesia. Vinicius de Moraes tentou um salto tigrino do tom elegíaco,
entre metafísico e decadentista, para a concretude corporal do samba e seus
filosofemas presentificados na superfície das palavras da canção popular.
Em Orfeu da Conceição esse salto tigrino, essa ruptura com sua angústia de
origem e formação, não se completa. É no seu cancioneiro que Vinicius de
Moraes vai alcançar, mais tarde, os melhores resultados em função de tal
mudança de rota.
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[1] Ronald Augusto ([email protected]) nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de
agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre
outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha
(1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de
Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-
pau.blgspot.com 



[2]O MITO DE ORFEU (Excerto de "La leyenda dorada de los dioses y de los
heroes", de Mário Meunier).
"Orfeu teve desgraçado fim. Depois da expedição à Cólchida, fixou-se na
Trácia e ali uniu-se à bela ninfa Eurídice. Um dia, como fugisse Eurídice à
perseguição amorosa do pastor Aristeu, não viu uma serpente oculta na
espessura da relva, e por ela foi picada. Eurídice morreu em consequência,
e desde então Orfeu procurou em vão consolar sua pena enchendo as montanhas
da Trácia com os sons da lira que lhe dera Apolo. Mas nada podia mitigar-
lhe a dor e a lembrança de Eurídice perseguia-o em todas as horas.
Não podendo viver sem ela, resolveu ir buscá-la nas sombrias paragens onde
habitam os corações que não se enterneceram com os rogos humanos. Aos
acentos melódicos de sua lira, os espectros dos que vivem sem luz acorreram
para ouvi-lo, e o escutavam silenciosos como pássaros dentro da noite. As
serpentes que formam a cabeceira das intratáveis Eríneas deixaram de silvar
e o Cérbero aquietou o abismo de suas três bocas. Abordando finalmente o
inexorável Rei das Sombras, Orfeu dele obteve o favor de retornar com
Eurídice ao Sol. Porém seu rogo só foi atendido com a condição de que não
olhasse para trás a ver se sua amada o seguia. Mas no justo instante em que
iam ambos respirar o claro dia, a inquietude do amor perturbou o infeliz
amante. Impaciente de ver Eurídice, Orfeu voltou-se, e com um só olhar que
lhe dirigiu perdeu-a para sempre.
As Bacantes, ofendidas com a fidelidade de Orfeu à amada desaparecida, a
quem ele busca perdido em soluços de saudades, e vendo-se desdenhadas,
atiram-se contra ele numa noite santa e esquartejam o seu corpo. Mas as
Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os
sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas
ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram
piedosamente recolhidas e guardadas." In: MORAES, Vinicius de. Orfeu da
Conceição (tragédia carioca). Rio de Janeiro: Editora Dois Amigos, 1956.
p.: 11
[3] PARANHOS, Luís Tosta. Orfeu da Conceição: tragédia carioca. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1980. p.15
[4] CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo:
Perspectiva, 1981. p. 75
[5] JAKOBSON, Roman. apud: PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São
Paulo: Perspectiva; (Brasília) : CNPq, 1987. p. XI
[6] PLAZA, Julio. op. cit. p. 90
[7] CAMPOS, Haroldo de. op. cit. p. 75
[8] Idem ibidem, p. 75
[9] Idem ibidem, p. 75
[10] Idem ibidem, p. 75
[11] GOETHE. apud: CAMPOS, Haroldo de. op. cit. p. 75

[12] SARTRE, Jean-Paul. La República del Silencio. Buenos Aires: Editorial
Losada, S.A., 1968. p. 145
[13] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 27
[14] Idem ibidem. p. 17
[15] PAES, José Paulo. Um por todos (poesia reunida). São Paulo: Editora
Brasiliense, 1986. p. 45
[16] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26
[17] DOMENACH, Jean-Marie. apud: PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26
[18] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 26
[19] Idem ibidem. p. 57
[20] CANDIDO, Antonio [et al.]. A Personagem de ficção. São Paulo:
Perspectiva, 2011. p. 55
[21] Idem ibidem. p. 55
[22] Idem ibidem. p. 55
[23] PARANHOS, Luís Tosta. op. cit. p. 62
[24] Idem ibidem. p. 62
[25] SARTRE, Jean-Paul. op. cit. p. 145
[26] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 35-36
[27] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 37
[28] Idem ibidem. p. 42
[29] Idem ibidem. p. 42
[30] Idem ibidem. p. 51
[31] Idem ibidem. p. 51
[32] Idem ibidem. p. 57
[33] CANDIDO, Antonio [et al.]. op. cit. p. 29
[34] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 66
[35] Idem ibidem. p. 66
[36] SOUSA, Cruz e. Obra Completa : poesia / João da Cruz e Sousa ;
organização e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
v. 1 (612 p.), pág. 391
Ri o Cristo de bronze das luxúrias! ...

[37] MORAES, Vinicius de. op. cit. p. 3
[38] MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio,
1977. p. x
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