Orfeu emparedado: Hilda Hilst e a perversão dos gêneros

June 3, 2017 | Autor: Marcos Lemos | Categoria: Literary Theory, Hilda Hilst
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LIT. COMPARADA

Marcos Lemos Ferreira dos Santos

Orfeu emparedado Hilda Hilst e a perversão dos gêneros

São Paulo 2010

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LIT. COMPARADA

Marcos Lemos Ferreira dos Santos

Orfeu emparedado Hilda Hilst e a perversão dos gêneros

Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Jorge Mattos Brito de Almeida, como parte do requisito para a obtenção do título de Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada.

São Paulo 2010

Resumo: A partir de uma perspectiva que valoriza a teoria dos gêneros literários, o presente trabalho busca verificar como se processam, na obra da escritora brasileira Hilda Hilst, as relações entre lírica, teatro e prosa narrativa. Seu principal parâmetro teórico é o trabalho de Peter Szondi: Teoria do drama moderno, livro em que o crítico alemão aborda a mistura de gêneros literários como tentativas de superar, na criação estética, problemas objetivos relacionados à situação histórica de determinada forma literária. No caso de Hilda Hilst, serão analisadas como as incursões da autora no teatro e na prosa narrativa funcionam como resposta problemática à recepção de uma lírica inicialmente balizada pelos ideais poéticos da Geração de 45. Demonstro, assim, como as tentativas da autora em outras modalidades discursivas produzirão alterações formais significativas em sua obra, a partir da contaminação estrutural de um gênero para o outro. Palavras-chave: teoria dos gêneros, lírica moderna, Peter Szondi, Hilda Hilst, indústria cultural.

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Abstract: Taking into consideration a perspective that privileges the Theory of literary forms, this study aims at verifying the way it works, in the production of the Brazilian writer Hilda Hilst, the relations among lyrics, theater and narrative prose. The theoretical parameter is the works Theory of Modern Drama, by Peter Szondi, in which the German critic deals with the question of mixture of literary forms as an alternative to overcome objective questions related to the historical situation of a certain literary form. Concerning Hilda Hilst, we intend to analyse how the incursions of the author in theater and narrative prose appear as a problematic response to the reception of a lyrics initially guided by the poetic ideals of the Generation of 45. As we intend to demonstrate, the attempts on the part of the author in other discursive types will produce significant formal modifications in her work, by means of the contamination of structures of one gender to another.

Keywords: literary genres, modern lyric, Peter Szondi, Hilda Hilst, culture industry.

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Aos porcos com asas.

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AGRADECIMENTOS São muitas as pessoas que, de modo especial, fizeram parte da minha vida, no período em que este trabalho foi elaborado. Infelizmente, o espaço é curto. Então selecionei as que, de algum modo, foram especiais e imprescindíveis para a conclusão da minha pesquisa. Dentre elas, estão os professores Jaime Ginzburg, Ligia Chiappini, Fábio de Souza Andrade e Samuel Titan Jr. Em particular, agradeço as leituras atentas e produtivas de Iumna Maria Simon e Viviana Bosi. Também agradeço ao professor João Adolfo Hansen, pelas aulas maravilhosas e pelos textos indicados. Além deles, foram de extrema importância os auxílios de Marcus Mazzari, Marta Kawano e Marcos Natali. Seria injusto esquecer, também, a atuação dos funcionários do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, em particular a de Luiz de Mattos Alves, cuja dedicação e disposição em ajudar no que for possível são louváveis. A companhia de amigos também foi essencial e seria igualmente injusto esquecê-los: a Patrícia Nakagome, César Faustino, André Odashima, Thiago Augusto Dias de Oliveira e Julio Macedo, entre muitos outros, deixo o meu “muito obrigado”! Agradeço também à CAPES/CNPQ pela bolsa concedida. E o agradecimento mais especial vai para Jorge de Almeida, pela confiança e, sobretudo, pela incondicional liberdade de pensamento que ele proporciona aos seus orientandos.

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ÍNDICE

Advertência

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Introdução

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Capítulo 1: Lírica enclausurada

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Capítulo 2: A lírica em cena

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Capítulo 3: De cima para baixo

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Capítulo 4: Nostalgia e ironia

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Capítulo 5: Literatura em cartas marcadas

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Palavras finais

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Bibliografia

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ADVERTÊNCIA A partir de 2001, as obras de Hilda Hilst passaram a ser publicadas pela Editora Globo, sob a organização de Alcir Pécora. Salvo indicação contrária, todos os trabalhos da autora citados neste trabalho foram retirados dessas edições. Para facilitar o acesso a esses textos, foram usadas as seguintes siglas: • Baladas (Bal): reúne Presságio (1950), Balada de Alzira (1951), Balada do festival (1955); • Exercícios (Ex): reúne Roteiro do silêncio (1959), Trovas de muito amor para um amado senhor (1960), Ode fragmentária (1961), Sete cantos do poeta para o anjo (1961), Trajetória poética do ser (1963-1966), Exercícios para uma ideia (1967), Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo (1967); • Teatro completo (TC): reúne as peças escritas por Hilda Hilst entre 1967 e 1969; • Fluxo-floema (FF): originalmente publicado em 1970; • Júbilo, memória, noviciado da paixão (JMNP): originalmente publicado em 1974; • Tu não te moves de ti (TMT): originalmente publicado em 1980; • Da morte. Odes mínimas. (DMOM): originalmente publicado em 1980; • A obscena senhora D (OSD): originalmente publicado em 1982; • Poemas malditos, devotos e gozosos (PMDG): originalmente lançado em 1984; • Caderno rosa de Lory Lamb (CRLL): originalmente publicado em 1990; • Cartas de um setudor (CS): originalmente publicado em 1992; • Bufólicas (Buf): originalmente publicado em 1992; • Do desejo (DD): reúne Sobre tua grande face (1986), Amavisse (1989), Alcoólicas (1990) e Do desejo (1992). Para informações completas sobre cada uma dessas edições, consultar “Bibliografia”. 7

“Memória, raciocício, descalabro, liberdade do obsceno e do divino, e essa janela aberta na obsessão, de não ser esta mão e a pena abaixo desta mão escrevendo sem poder, sem poder sossegar para morrer.” (Jorge de Lima, Invenção de Orfeu, Canto VIII)

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INTRODUÇÃO “...tudo o que é formal, em oposição ao temático, contém em si sua tradição futura como possibilidade”.1 Em 1970, quando a escritora Hilda Hilst lançou seu primeiro volume em prosa, intitulado Fluxo-floema, o crítico Anatol Rosenfeld fez uma pertinente observação quanto a um procedimento que, a partir daquele momento, passaria a ser recorrente na obra dessa escritora brasileira: a “mistura de gêneros literários”. Antes desse trabalho, Hilda já era detentora uma obra centrada no gênero lírico: começara a “poetar” cedo e seu primeiro livro fora lançado em 1950 (Presságio), recebendo críticas positivas e até mesmo um carinhoso incentivo de Cecília Meireles. Seguiram-se, a partir de então, mais dois livros – Balada de Alzira (1951) e Balada do Festival (1955) –, ambos bastante similares ao primeiro volume, que, segundo Sérgio Milliet, era constituído por uma “[poesia] muito simples na sua expressão, avessa às metáforas herméticas, desprovida de grandiloquência”.2 De fato, um poema como “Quando terra e flores / eu sentir sobre o meu corpo, / gostaria de ter ao meu lado tuas mãos / E depois, guardar meus olhos dentro delas”,3 concentra, em seu único quarteto, beleza e simplicidade, alcançando um potencial lírico que, na literatura brasileira, seria comparável a muitos versos de Manuel Bandeira ou Vinicius de Moraes. Existe nessa poesia inicial, como salienta Pécora, toda uma “dicção informal e paradoxalmente sentenciosa”, que se espraia em versos muitas vezes livres, divididos em várias estrofes e com alguns estribilhos, aproximando o texto de um tipo antigo de balada, normalmente acompanhada por música e feita justamente para ser executada em bailes, onde se encontrariam uma “multidão de amigos e amigas” a trocar, entre si, “confidências e fatigas”.4 Interessantemente, a própria vida da autora, na época, 1

Szondi, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Tradução de Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 183. 2 Apud Albuquerque, Gabriel Arcanjo Santos de. Deus, Amor, Morte e as atitudes líricas na poesia de Hilda Hilst. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, julho de 2002, p. 13. 3 Bal, p. 39. 4 Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Baladas. São Paulo: Globo, 2001, p. 8-9.

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aproximava-se de um ambiente de festas: sua figura chamava a atenção e causava certo escândalo, por fugir do estereotipo de “mulher do lar”, “único papel aceitável para uma moça de boa família”.5 Ademais, Hilda também se manifestava “a favor da liberdade feminina, tanto no âmbito profissional e artístico, como no amoroso e erótico”,6 ao que se acrescentava um comportamento provocante, e uma beleza ímpar, que seduziu muitos homens, dentre eles inúmeros artistas. Hilda foi, sobretudo, uma mulher desejada, em meio às “espécies grã-finas” das colunas sociais, a “emergir entre as musselinas”, a “fazer chacrinha” entre “giroflês” nos salões de festa de São Paulo, como galanteia Drummond, em poema a ela dedicado. Mas o autor de Claro Enigma, em seus versos galanteadores,7 foi arguto o suficiente para tecer, meio que obliquamente, um perspicaz comentário crítico: Tanto vestido enfeitado Cobre e recobre de vez Sua preclara nudez. Me sinto mui perturbado.

Os usos de um adjetivo como “preclara” (e a sua própria posição, anteposta ao substantivo), ou de um arcaísmo como “mui”, parece remeter ao tom que seria dominante na lírica hilstiana, a partir do final da década de 1950: a simplicidade de antes cederia espaço, cada vez mais, a uma dicção sublime, bastante condizente com os rumos que a Geração de 45 havia dado à produção poética após o segundo modernismo. No entanto, esse aparente retrocesso apresentava certos acordes dissonantes: em seus poemas, as formas clássicas – cantigas, odes, elegias, sonetos – apresentavam-se desestabilizadas (como os “Sonetos que não são” ou suas trovas), ao mesmo tempo em que, a certa grandiloquência, somava-se uma amargura irônica. Esse momento coincide com o abandono, por parte de Hilda Hilst, da vida pública. Após a leitura de Carta a el Greco, de Nikos Kazantzakis, ela decide retirar-se em sua “torre de capim”, definição dada pelo amigo Mário Schenberg à chácara

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Blumberg, Mechthild. “Hilda Hilst: paixão e perversão no texto feminino”. In: Leitura, n. 5, ano 21, maio de 2003. Idem, Ibidem. 7 “Não me tapeias, Hilda / Esclareçamos o assunto / Nada de beijo postal/ No Distrito Federal / O beijo é na boca e junto”. O poema é citado no artigo de Mechthild Blumberg. 6

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pertencente à família,8 onde a escritora erigiria sua “Casa do Sol”: um casarão construído em terreno localizado nas proximidades de Campinas-SP, isolado por muros e protegido por um enorme portão de ferro, marcado com as iniciais HH. Lá, afastada das “invasões cotidianas” e da “multiplicidade de contatos agressivos”,9 a autora passou a viver em meio às sombras “das copas entrelaçadas em trama tensa de um vasto renque de árvores”,10 como em uma espécie de emparedamento voluntário. Após a reclusão imposta por ela mesma, a amplitude de sua obra se expandiu: não bastava mais pronunciar-se através de seus poemas, e o resultado fora a busca por outras formas de alcançar o público. O trabalho em gêneros literários diferentes foi a solução encontrada e, entre 1967 e 1969, em intenso processo criativo, a autora escreveu nove peças de teatro e um livro de novelas, publicado em 1970. Este último era justamente Fluxo-floema, que recebeu de Rosenfeld uma apreciação crítica bastante positiva e reveladora: “É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar os três gêneros fundamentais de literatura – a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa – alcançando resultados notáveis nos três campos”.11 Ainda segundo o crítico, a incursão da autora em outros gêneros deveu-se, sobretudo, a “problemas de ordem objetiva”:12 ao migrar para a dramaturgia, por exemplo, ela teria adicionado elementos dialógicos ao seu texto, de forma a romper com a unicidade de uma voz, não mais possível depois de “rompida a unidade espiritual de origem”.13 Colocando em outros termos as palavras de Rosenfeld, seria melhor dizer que, nesse caso, para a autora, a forma lírica, na qual plasmara sua obra inicial, já não conseguia sedimentar determinados conteúdos que a escritora gostaria de amalgamar em sua obra. No entanto, esse procedimento não só ocasionou uma mudança de gênero, como também uma espécie de contaminação, uma vez que traços de determinada forma passaram a outra. Para a verificação desse fenômeno, é preciso, primeiramente, esclarecer em que termos se discute o conceito de gênero literário. O próprio Rosenfeld possui, no 8 Destri, Luisa & Diniz, Cristiano, “Um retrato da artista”. In: Pécora (org.). Por que ler Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2010, p. 37. 9 Rosenfeld, Anatol. “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga”. In: Hilst, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 13. 10 VV. AA. Cadernos de literatura brasileira n. 8. Instituto Moreira Sales, São Paulo, outubro de 1999, p. 25 11 Rosenfeld, Anatol. “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga”, op. cit., p. 13. 12 Idem, ibidem. 13 Idem, ibidem.

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início de O teatro épico, um capítulo sobre o assunto, em que divide a ideia em duas acepções: uma substantiva, outra adjetiva. A substantiva corresponderia à forma histórica em si, a começar pelas posições de Platão sobre os modos miméticos, no Livro III da República, passando pela sistematização aristotélica, e mais tarde a de Horácio, para chegar à tríade de formas básicas encontrada em Hegel. O segundo significado relacionaria os três adjetivos – lírico, épico, dramático – a modos atemporais que designariam estados de espírito humanos ou mesmo de situações,14 tese bastante afim com a ideia de Staiger, que em sua Grundbegriff der Poetik, pretendeu caracterizar ontologicamente os gêneros. Longe de pensar metafisicamente o gênero literário como uma “atitude atemporal do Espírito”, interessa-me seguir um caminho histórico, como faz Peter Szondi ao analisar como estruturas épicas e líricas alteraram formalmente o “drama moderno”. Segundo o autor de Teoria do drama moderno, as tentativas de salvamento da forma – com seus fracassos e superações – indicam o trabalho do artista na busca por conciliar as forças de preservação das características do gênero com as de atualização da obra em relação aos vetores que definem a sua validade histórica. Essas tentativas representam indagações relacionadas à própria possibilidade de concretização, em obras particulares, da forma em questão, colocando-a em confronto direto com outras. Desse enfrentamento depende a sua sobrevivência ou a sua diluição. Assim, a obra pode ser entendida como o vetor resultante de uma dialética. Ela nasce do enfrentamento do enunciado da forma com o enunciado do conteúdo: em obras concretas, as contradições entre as possibilidades de conteúdo e a forma que deverá abarcá-las passam a ser entendidas como “dificuldades” a serem superadas,15 o que parece condizer com a verificação feita por Rosenfeld de que as tentativas de Hilda Hilst em outros gêneros teriam surgido de uma insuficiência de sua lírica em concentrar e apresentar determinados conteúdos. Em seu trabalho, Szondi toma o cuidado de delimitar o objeto com o qual lida: trata-se de um tipo de drama surgido na época do Renascimento, pautado, sobretudo, em relações intersubjetivas que sustentavam o andamento da peça. Não havia mais, nessas obras, um prólogo, coro ou epílogo que mediasse o desenvolvimento do enredo e

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Rosenfeld, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985, p. 17-18. Szondi, Peter, op. cit., p. 26.

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a relação entre público e apresentação.16 Contudo, traços da antiga tragédia, tais como a ausência de um narrador, as relações fortes de causa e consequencia entre uma cena e outra (contrária à ideia de “autonomia das partes” presente no discurso épico), persistiriam no drama moderno, uma vez que ele não é criado ex nihilo, mas sim provém da tradição de uma forma. Com isso, chegamos próximo à delimitação que pretendo: o gênero literário não é uma entidade a-histórica, a pairar idealmente sobre os objetos estéticos, que buscam a ela integrar-se. Trata-se, na verdade, de formas engendradas pela ação humana que amalgamam em si não só conjuntos de procedimentos e temas, como também as leituras e interpretações realizadas sobre a própria forma. Logo, há sim um “sistema de gêneros”, que, como afirma coerentemente Todorov, está sempre em transformação. Ele, como fato social, mantém relações estreitas com a ideologia dominante e com a sociedade a que pertence: trata-se de um “ato de linguagem institucionalizado”, e cada um de seus elementos – o gênero em particular – corresponde a um “modelo de escritura” para o autor e um “horizonte de expectativa” para o leitor.17 Essa última observação do crítico russo aproxima-se de outra desenvolvida por teóricos da “estética da recepção”: Jauss, por exemplo, contrário aos argumentos ahistóricos de Benedetto Croce, defende que toda obra pertence a uma classe, definida por um conjunto de regras preexistentes, que servem para orientar a compreensão do público.18 Seriam, portanto, como os idiomas, e deveriam ser analisadas do ponto de vista histórico e sincrônico.19 Por isso, o sensato não seria pensar no gênero a partir de uma perspectiva normativa (ante rem) ou classificatória (post rem), mas sim verificar como funcionam as relações entre as estruturas sociais e os conteúdos que seriam abarcados pelas obras concretas.20 Assim, ao analisar as formas medievais, o autor de A história da literatura como provocação à teoria literária verifica que ideias modernas como “valor de uso” ou “arte pura”, “didatismo” ou “ficção”, “tradição” ou “individualidade”, e até mesmo o conceito de “literatura” como é entendido hodiernamente, perderiam o sentido se 16

Szondi, Peter, op. cit., p. 30. Todorov, Tzevan. “A origem dos gêneros literários”. In: Os gêneros do discurso. Tradução de Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 46-47. 18 Jauss, Hans Robert. “Littérature médiévale et théorie des genres”. In: VV. AA. Théorie des genres. Paris: Èdition du seuil, 1986, p. 42. 19 Idem, p. 43. 20 Idem, ibidem. 17

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fossem simplesmente aplicadas a epopeias populares, à poesia dos trovadores ou às encenações dos mistérios, uma vez que essas categorias não pertenceriam nem ao horizonte de expectativas do público nem ao do autor.21 Igualmente produtiva é a ideia intuída por Bakhtin, em “Epos e romance”, de um sistema de gêneros que funcionaria como células interligadas, de modo que, qualquer mudança em uma delas, agiria como ondas de um ruído de fundo, abalando as demais. A preocupação do teórico russo, nesse caso, é com a romance, cuja entrada nesse sistema teria feito com que os outros gêneros ressoassem de modo diferente.22 Daí surge uma questão que, no caso da obra de Hilda Hilst, é fundamental: o que aconteceria se colocássemos uma subjetividade lírica problemática, como a produzida em seus poemas da década de 1960, como narradora de um texto em prosa? E se essa mesma subjetividade inventada fosse “herói” de uma peça teatral? Experimentos como esses ocasionam a mistura de gêneros na obra de Hilda Hilst: ao migrar para a prosa, ela desestruturou o gênero narrativo e transformou suas “novelas” em uma espécie de palco no qual os problemas relativos à posição do poeta em uma “sociedade sem poesia” são discutidos. Essa importância da lírica em seus dramas e narrativas pode ser concluída a partir de uma declaração da própria escritora: Cadernos: No seu teatro e na sua ficção, a linguagem poética está sempre presente. Seu trabalho seria, portanto, o resultado de uma poesia expandida? Hilda Hilst: É verdade, eu acho que sim. Toda a minha ficção é poesia. No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre.23

Ao fazer isso, a autora faz com que as formas “conversem entre si”, diluindo as fronteiras entre elas. Mas não se trata de uma “mistura de gêneros” que aponta para a liberdade incondicional da criação, como sonhavam os românticos. Esse procedimento, para a escritora, assumiu um interessante tom crítico, uma vez que nasceu de problemas de ordem objetiva. Daí a escolha da Teoria do drama moderno, de Szondi, em que as contaminações épicas e líricas sofridas pelo drama são estudadas como dificuldades a serem superadas pelo trabalho formal, mais como mola propulsora do pensamento do que como conjunto de ferramentas teóricas à espera de aplicações. 21

Idem, p. 39. Bakhtin, Mikhail. “Epos e romance”. In: Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp/Ucitec, 1987, p. 427. 23 Cadernos de literatura brasileira, n. 8, op. cit., p. 39. 22

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Assim, no decorrer de toda a reflexão crítica, que também é um processo, interessei-me mais pela ideia de uma perversão dos gêneros, no lugar de uma possível explosão ou implosão. Além das acepções de desvio comportamental ou de devassidão, as raízes latinas do vocábulo também apontam para o sentido construtivo de um texto: relaciona-se com as possibilidades de transposição e inversão de estilo.24 Outra opção importante, neste trabalho, foi a de fazer uma leitura cronológica das obras, não no sentido de uma visada teleológica a converter uma obra como mera etapa da seguinte, mas sim para apresentar as tentativas, as soluções encontradas e as novas dificuldades criadas como um processo que também se insere no tempo e no espaço. As formas possuem sua historicidade. Hilda Hilst produziu sua obra em um Brasil convulsionado por transformações políticas, culturais e sociais, e não se pode ler seus textos sem levar isso em consideração. Optei, então, em cada capítulo, por mostrar como esse processo de tentativas dialogava com problemas do período; daí, a menção a confrarias literárias, tais como a poesia concreta, o teatro participante, o grupo de poetas marginais, nem sempre afins com o tipo de literatura da autora. Essa perspectiva histórica será importante no entendimento da imagem de um “Orfeu emparedado” pelas vicissitudes do momento histórico. Assim, o primeiro capítulo focalizará a criação de uma persona lírica problemática, por meio da análise de poemas escritos entre 1959 e 1967, destacando os que fazem parte do livro Trajetória poética do ser (1963-1966), e da seção “Quase bucólicas”, de Ode Fragmentária (1961). Os termos de comparação, nesse momento, serão, sobretudo, o orfismo e o misticismo de Jorge de Lima e a obra lírica de Eliot. O segundo mostrará como duas peças criadas pela autora – Aves da noite (1968) e Auto da Barca de Camiri (1967) – trabalham a inserção da subjetividade lírica criada no movimento anterior em uma obra do gênero dramático. Começa, nesse momento, a aventura da mistura de gêneros, a partir da ressemantização de formas antigas – o auto medieval – e da corrosão que os elementos líricos provocarão no andamento dessas peças. No terceiro, serão trabalhados aspectos das novelas “Fluxo” e “O unicórnio”, para demonstrar como o lírico e o grotesco pervertem as estruturas de uma narrativa. 24

De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss: “perversio, onis : 'transposição ou inversão (da construção no estilo); alteração de um texto; no b.-lat. depravação'; ver ver(t/s)-“.

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Para isso, os paralelos com a obra de Beckett, Rilke e novamente Jorge de Lima mostrar-se-ão essenciais. A volta ao lírico será o principal ponto do quarto capítulo. Nele, serão apresentadas as mudanças ocasionadas pelas tentativas da autora em outros gêneros em sua lírica, salientando aspectos formais e temáticos que passaram a integrar os poemas da autora. Por fim, no quinto capítulo, novas aporias serão detectadas a partir da análise de um livro da chamada fase obscena de Hilda Hilst: Cartas de um sedutor, em que a autora brinca com as premissas formais do romance epistolar, ao mesmo tempo em que se aproxima perigosamente da forma mercadoria. Assim, na aventura das tentativas, perversões de gêneros e teorias, insere-se também o trabalho crítico, com sua sempre necessária liberdade. “Livre para fracassar”, aproveitando uma citação de Bataille tão cara a Hilda Hilst.

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CAPÍTULO 1 LÍRICA ENCLAUSURADA

Em 1967, Hilda Hilst lança Poesias (1959-1967), livro em que a autora faz uma recolha de sua obra poética anterior, deixando de incluir seus três primeiros trabalhos – Presságio (1950), Balada de Alzira (1951) e Balada do festival (1954). Essa edição reunia Roteiro de silêncio (1959), Trovas de muito amor para um amado senhor (1960), Ode fragmentária (1961), Sete cantos do poeta para o anjo (1962), e os inéditos Trajetória poética do ser (1963-1966), Exercícios para uma ideia (1967) e Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo (1967).25 Nesses livros, os poemas, divididos em seções, não recebem títulos e, em algumas partes, são numerados. Em outras, apenas são colocados na folha em branco, como se formassem fragmentos de um discurso lírico. O texto a seguir faz parte de uma das seções de Trajetória poética do ser, intitulada “Iniciação do poeta”: De luto esta manhã e as outras As mais claras que hão de vir, aquelas Onde vereis o vosso cão deitado e aquecido De terra. De luto esta manhã Por vós, por vossos filhos e não por meu canto Nem por mim, que apesar de vós ainda canto. Terra, deito minha boca sobre ti. Não tenho mais irmãos. A fúria do meu tempo separou-nos E há entre nós uma extensão de pedra Orfeu apodrece luminoso de asa e de vermes E ainda assim meus ouvidos recebem A limpidez de um som, meus ouvidos Bigorna distendida e humana sob o sol

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Como especificado em “Advertência”, Neste trabalho, será utilizada a edição organizada por Alcir Pécora, que reúne todos esses livros e que recebeu o nome de Exercícios. As setas colocadas ao lado de versos que se encontram no fim da página indicam que a estrofe continua na seguinte.

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Recordo a ingênua alegria de falar-vos E se falei submissa e se cantei a tarde E o deixar-se ficar de uns velhos cavalos, Foi para trazer de volta aos vossos olhos A castidade do olhar que a infância vos trazia. Mas só tem sido meu, esse olho do dia.26

No poema, ouve-se uma voz ressentida, a lamentar-se pela ausência de irmãos. Essa condição, imposta pela “fúria” do tempo, coloca o enunciador em um estado de luto; no entanto, ele reafirma seu canto, que, por meio de paisagens amenas (“E o deixar-se ficar de uns velhos cavalos”) e da recordação de um passado marcado pela felicidade e ingenuidade (“A castidade do olhar que a infância vos trazia”), procura estabelecer algum tipo de comunicação com a alteridade. Ao final, verifica que sua tentativa não alcançou o sucesso pretendido (“Mas só tem sido meu, esse olho do dia”). Essa tentativa de comunicação fica patente na própria forma do poema, que remete ao que Kaiser classifica como “apóstrofe lírica”.27 Nesse modo de enunciação, há uma voz que se dirige a uma segunda pessoa do discurso, nesse caso um “vós”, a quem se destina o lamento. Existe, porém, um elemento dissonante, que é bastante característico da lírica moderna, de acordo com as concepções de Hugo Friedrich:28 o “vós” em questão encontra-se indeterminado, não se conhecendo, ao certo, a quem o enunciador se reporta.29 Assim, o tratamento dispensado à segunda pessoa do discurso – o “vós” –, no poema de Hilda Hilst, institui um afastamento do eu lírico em relação ao “outro”. O efeito de seu uso, aqui, transita entre a melancolia e a ironia: o enunciador lamenta a 26

Ex, p. 107. Kaiser, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Tradução de Paulo Quintela. Vol. 2. Coimbra: Armenio Amado Editor, 1970, p. 230. 28 Friedrich, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução de Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 117. 29 Trata-se de uma segunda pessoa diferente da que aparece, por exemplo, nesse quarteto inicial de um poema de Francisco Vasconcelos, poeta seiscentista português: “Olhos negros, que da alma sois senhores, / duvido com razão desse atributo, / que é muito, que quem mata traga o luto / E é muito ver na noite resplendores”. O “vós” do poema seiscentista retoma os “olhos negros” do início do verso e serve para identificar a destinatária do galanteio. O pronome, então, exerce adequadamente sua função de dêitico, retomando anaforicamente um termo anterior. O mesmo não acontece nos versos de Hilst: o “vós” não recupera nenhum termo e permanece vago a quem ele se refere: aos leitores? Ao outros homens, de um modo geral? 27

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falta de irmãos; ao mesmo tempo afirma não ser atingido pelo luto que toma conta da manhã (“... De luto esta manhã / Por vós, por vossos filhos e não por meu canto / Nem por mim, que apesar de vós ainda canto”), numa espécie de supervalorização do próprio canto. Ao final, lastima a própria solitude, dizendo ser somente seu esse “olho do dia”. Além da solidão causada pela “falta de irmãos”, mais uma imagem que passará a ser recorrente nos textos da autora reforça a condição de isolamento do eu lírico: a do muro, que no caso do poema, aparece na forma de uma “extensão de pedra” engendrada pela “fúria do tempo”. Trata-se de uma imagem que lembra bastante o leitmotiv do emparedamento, bastante caro aos escritores do final do século XIX. Em Poe, por exemplo, ele é encontrado nos contos “O gato preto” e “O barril de Amontillado”; na literatura brasileira, teve vez em um texto em prosa de Cruz e Souza (“O emparedado”). No conto do escritor americano, o muro é concreto: o assassino literalmente empareda o cadáver da esposa; no texto do simbolista brasileiro, por sua vez, o muro adquire um significado metafórico, relacionando-se com a condição social do poeta negro em uma sociedade violentamente escravocrata. Já para o eu lírico do poema de Hilda Hilst, a metáfora se torna ainda mais esgarçada, uma vez que o muro a separar o enunciador de seus irmãos é mais temporal que espacial: é a fúria do tempo que o cria. Essa condição em que se encontra a voz enunciativa do poema, e que é similar a um emparedamento, gera três movimentos no texto: da melancolia proveniente da percepção de seu isolamento, o eu lírico passa euforicamente para o enaltecimento do próprio canto, colocando-o como algo que se mantém acima do luto que se espraia, ao modo de uma imprecação, sobre o enunciatário e seus descendentes; porém, o estado de tristeza retorna por meio da constatação de que a iluminação proveniente de seu canto não atinge a alteridade. Mesmo assim, a supervalorização de sua voz permanece, ficando imageticamente concentrada na barroca metáfora final (o “olho do dia”), produzida analogicamente para representar o sol. Esses estados de euforia e disforia presentes no poema podem ser associados ao conceito de ironia romântica, no sentido de eles se configurarem como um movimento que verifica a impossibilidade de recuperar uma unidade que se rompeu para, em seguida, ansiar por um processo de reencantamento que instaure novamente a ligação mágica entre a subjetividade prejudicada e o mundo.30 Ao final do poema, 30

Loureiro, Inês. “Sobre a noção de ironia romântica e sua presença na escrita de Freud”. Revista Latino-Americana de Psicopatologia, n. 2, abril de 2004, p. 83.

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contudo, esse movimento pendular não aponta para a onipotência completa do sujeito poético, por conta da própria situação de aprisionamento em que a subjetividade lírica parece se encontrar. É possível, também, constatar laivos de um romantismo ingênuo que contaminam o discurso; mas a imagem central – Orfeu luminosa e agonicamente apodrecendo entre asa e vermes – introduz um tom dissonante. Ao contrário da metáfora analógica que encerra o texto, e que curiosamente remete ao potencial lírico do enunciador, há aqui a construção moderna de uma metáfora: a imagem não nasce de uma comparação de termos devidamente identificáveis, mas se presentifica no corpo do texto, colocando-se como um oxímoro – Orfeu, símbolo da poesia lírica, apodrece, pois os vermes o consomem; participam desse processo de decomposição, no entanto, elementos como “asa” e “luz”. Paradoxalmente condensada, em uma mesma imagem, encontram-se a euforia e a disforia que conduzem os movimentos do poema. Ora, não só o quadro descrito como a ideia de “ironia romântica” podem ser relacionados a um famoso ensaio de Freud, intitulado “Luto e melancolia”. Segundo o autor de A interpretação dos sonhos, a perda de uma pessoa querida (ou de “uma abstração que esteja no lugar dela”) provoca uma reação de luto, caracterizada por um “desânimo profundo e doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e inibição de toda atividade”.31 O luto, segundo Freud, não corresponderia a um estado patológico, mas sim a um estágio importante no processo de cura: após a percepção de que o objeto amado não mais existe, ocorreria a retirada completa das ligações entre a libido e ele, o que possibilitaria, enfim, a superação do trauma. A melancolia, por sua vez, apresentaria as mesmas características do luto, acrescentando-se a elas uma disposição ao rebaixamento da autoestima (Selbstgefühl). Nesse caso, haveria um completo esvaziamento do ego e o indivíduo reconheceria que algo fora perdido sem, no entanto, conseguir identificar o que realmente se perdeu. No poema em questão, essa falta pode ser associada a um momento passado, marcado por uma alegria ingênua, pelo contato com a natureza (“o deixar-se ficar de certos cavalos”) e pela castidade de um olhar proveniente da infância. Alegria, natureza, castidade e infância são variáveis que, na visão do enunciador, combinam-se para formar uma espécie de Idade de Ouro, incorporada pela subjetividade como objeto 31

Freud, Sigmund. “Luto e melancolia”. Tradução de Marilene Carone. In: Novos estudos CEBRAP, n. 32, março de 1992, p. 131.

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perdido. Daí o estado de melancolia em que ela se encontra. Contudo, o rebaixamento da autoestima característico desse estado é compensado pela força de sua atividade poética: há a persistência em cantar, e o poema criado, com todas as suas imperfeições, é proveniente desse “olho do dia” que busca, ainda, plasmar liricamente as suas precariedades e, por meio do reencantamento do mundo, reestabelecer a unidade perdida. Essa ação de, por meio da palavra poética, reestruturar harmonicamente um mundo fragmentado é, como notara Pécora, um motivo da poesia órfica,32 que tem como autoridades principais, no caso de Hilda Hilst, Rilke e Jorge de Lima. Cavalcanti, em trabalho sobre Invenção de Orfeu, apresenta resumidamente o surgimento do orfismo e explica a leitura que os poetas modernos realizaram do mito:33 da mitologia grega, sabe-se que Orfeu perdeu sua amada Eurídice, morta por conta de uma picada de serpente. Para recuperá-la, agradou aos deuses com seu canto e conseguiu a permissão de descer aos infernos, para trazê-la de volta. Recebera, no entanto, o aviso de que, enquanto conduzia a amada, não deveria olhar para trás, recomendação que o herói, por motivos que não ficam claros no mito, não obedeceu. Como resultado, Orfeu ficou sem Eurídice e prometeu nunca mais pertencer a outra mulher, decisão que enfureceu as mênades, as seguidoras do deus Baco, que despedaçaram seu corpo, após matá-lo. Como castigo, o país dessas ninfas campestres foi tomado por uma praga enviada pelos deuses, que só cessou quando um pescador encontrou a cabeça de Orfeu no rio Meles, erguendo-se, em seguida, um templo para o seu culto. A lira da deidade, por sua vez, foi parar em Lesbos, ilha onde viveu Safo e que é tradicionalmente como berço da poesia lírica. Essa tradição, com o passar dos anos, fora recuperada de distintas maneiras: o cristianismo, por influência de Paulo de Tarso, associou a imagem de Orfeu à de Cristo, uma vez que a leitura que o apóstolo fez do messias do mito bíblico se aproximava, primeiramente, do ideal de uma potência capaz de harmonizar as discórdias humanas e garantir a paz; em segundo lugar, essa imagem recuperaria também a ideia de Queda e Salvação (a “descida aos infernos” e a “construção do templo”), que configura toda a mitologia cristã.

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Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Exercícios. São Paulo: Globo, 2001, p. 8. Cavalcanti, Luciano Marcos Dias. Invenção de Orfeu: a utopia poética na lírica de Jorge de Lima. Tese de doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, São Paulo, 2007, p. 34ss. 33

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Já o poeta moderno, a partir de seu substrato romântico, lê o mito em termos de uma falta: Orfeu, para ele, funciona como motivo literário. O poeta, para esse tipo de orfismo, corresponderia a uma espécie de sacerdote, cujo verbo, com suas imagens e assonâncias, instauraria uma nova realidade. Ao dizer, o poeta cria. Mas o dizer do poeta moderno, seguindo as observações de Hugo Friedrich, não se pauta pela linguagem cotidiana, engessada pelo utilitarismo da prática burguesa;34 ao contrário, ela conserva os elementos que reforçam o seu caráter mágico, principalmente sua sonoridade harmonizadora: “Contente de mim mesma, me inauguro sonora”, canta o eu lírico de um dos poemas de Hilda Hilst. Assim, a obscuridade e, ao mesmo tempo, a grandiloquência desempenhariam o papel de “armas poéticas” na luta contra o rebaixamento da linguagem produzido pelas práticas burguesas. Mas, a menção a Orfeu também comporta um significado formal: é uma espécie de etiqueta que direciona a leitura do texto em termos de gênero, mais especificamente do gênero lírico. Orfeu, agora convertido em metáfora, passa a ser lido como fundador de uma forma: seu instrumento, como dito anteriormente, fora enviado a Lesbos, ilha que representaria um gênero. Ora, sabe-se que, em Invenção de Orfeu, ilha não só é uma palavra recorrente como aponta para diferentes significados ao longo dos dez cantos que compõem o poema. Ela pode remeter tanto a um lugar delimitado no tempo e no espaço – a “Ilha de Santa Cruz”, primeiro nome dado ao Brasil – como à subjetividade do próprio poeta, que é, ao mesmo tempo, potência criadora (“asa”) e corpo perecível, ilharga,35 outra palavra recorrente tanto em Jorge de Lima quanto em Hilda Hilst. Mas ilha também é o poema em si e a utopia que ele representa: a da restauração de uma infância, de um tempo anterior à Queda, à margem de um processo histórico desumanizador e violento. Daí a referência, também, às ilhas utópicas: a de Camões e a de Morus. No entanto, essa poesia só é possível por conta dessa falta. Em sua leitura do mito de Orfeu, Blanchot salienta a importância do momento em que o herói olha para trás e perde a amada. Segundo o poeta, é a ausência do objeto desejado que possibilita a arte do filho de Calíope.36 No texto de Jorge de Lima, por sua vez, o canto é suscitado não pela figura de uma amada, e sim por uma alusão literária: em Invenção de Orfeu, 34

Friedrich, Hugo, op. cit., p. 15. De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss, ilharga corresponde, no homem, a “cada um dos lados do corpo, dos quadris aos ombros”. 36 Blanchot, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 172. 35

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Inês de Castro desempenha o papel de Eurídice. Mas não se trata de uma Inês historicamente determinada, amante de Pedro, o Cru, e sim de um topos literário, que Camões aproveitou como momento lírico em sua epopeia, e que mais tarde serviu de motivo a inúmeras outras obras da literatura em língua portuguesa. Os cantos de Invenção de Orfeu, portanto, apresentam essa instância metalinguística – a Inês literária – como amada-ausente propiciadora da criação poética.37 Nesse sentido, esse longo poema de Jorge de Lima pode ser lido como uma tentativa de síntese de experiências que, no indivíduo, agem com forças conflitantes: nele, o social, o histórico, o literário e o individual espraiam-se numa profusão de imagens e formas que se metamorfoseiam ao longo da obra por meio de procedimentos antigos, como a metáfora analógica, e modernos, como a montagem surrealista.38 Conduzindo essa viagem entre formas e temas, há um Orfeu. No entanto, trata-se de um herói decaído, como o que aparece no poema XI, do Canto II: A mão de Orfeu enorme destra abateu-se no peito, funda ausência, tão suave inexistente mão; foi delação das coisas, inibida mão, ecos martelando-a, ecos que são cruéis e inexoráveis como as sublevações que retornaram e retornaram quando o deus construía; e agora há éguas nulas no silêncio, as éguas da fecundação final planturosas e cheia de pistilos viscosos como suas lesmas, vermelhos como os seus relinchos que martelam a mão êxul de Orfeu, os retinidos ecos temperados de cor, eram dele, de Orfeu deus sonoro e terrível, hoje vago, vago → 37

Em entrevista concedida ao jornal Tribuna da Imprensa, em 7 de junho de 1952, Jorge de Lima afirmou: “(...) em Invenção de Orfeu o episódio de Inês de Castro representa um símbolo poético correspondente à perenidade da própria poesia. Portanto, em vez de uma Inês posta em sossego é uma Inês que se transforma a todo momento, mas conserva a sua integridade e perfeição através dos tempos”. In: Lima, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2007, p. 63. 38 Como se demonstrará no terceiro capítulo deste trabalho, esses são mecanismos de criação bastante produtivos na prosa poética de Hilda Hilst, assim como a ideia de metamorfose.

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tão vago como sua vaga destra; nem mais diuturna nem com os androceus dos dedos musicais, amanhã cinco apenas dedos reais humanos, cinco apenas, cinco sinos sem seus íris; funda submersão desse deus, agora com seu deão de cerimônias inventando-lhe os gestos, conduzindo-lhe a mão ao seio dos infernos, contando-lhe até cinco apenas dedos fiéis à delação desse deão que aponta a aparência de Orfeu.

O campo semântico do texto gira em torno da ideia de falta: sua mão, órgão que tocaria a harpa, revela-se como “funda ausência”, “tão suave inexistente mão”. Os sons do instrumento musical são transformados em ecos provenientes de “éguas nulas no silêncio” que martelam a mão do herói, e a própria deidade, em sua submersão ao mundo material, é substituída por um “deão de cerimônias”, por uma “aparência de Orfeu” que passa a conduzir-lhe os dedos criadores, agora humanos. A ação desse martelo aprisionador, repercutido pela própria disposição rítmica do poema, com seus versos curtos, as vírgulas no interior destes e as repetição de vocábulos, intensifica o caráter corpóreo que o deus da lírica passa a apresentar em sua descida à condição humana. Como na filosofia de Plotino, a queda, aqui, representa o afastamento em relação à unidade cósmica – o Um – e seu peso é responsável pela materialização do ser, ou seja, pelo surgimento de seu corpo, índice de impermanência e contingência. Por isso, nessa visão neoplatônica, a reiteração da ideia de aparência, encontrada nos ecos (que podem ser lidos não como vozes, mas como sombras delas) e no próprio “deão” que passa a controlar os movimentos do deus, apontam não para o tempo mítico, mas sim para o histórico, o tempo em que “os cordeiros se suicidaram no armistício”, em que nasceu no mar “um cogumelo imenso, um cogumelo”, alusão à bomba nuclear que deu fim à Segunda Guerra Mundial, feita por Jorge de Lima no penúltimo canto de sua “biografia épica”. Nesse mundo, o poeta não é mais Orfeu, mas sim sua aparência.

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“É este tipo de herói que encontraremos em Invenção de Orfeu. Um herói que se refugia na interioridade, na metapoesia, no lirismo e no distanciamento entre o poeta e a sua sociedade, levando-o a se caracterizar como: clone, palhaço, pantomimo, etc.”,39 verifica Cavalcanti, em sua análise. No entanto, como o crítico percebe ao analisar o mesmo poema, embora esse Orfeu tenha se transformado em “clone” e “pantomimo”, ainda existe a possibilidade de se retornar à unidade cósmica. É nesse momento que a tradição órfica, em Jorge de Lima, reencontra suas raízes cristãs: o filho da musa Calíope é equiparado a Cristo; Inês/Eurídice veste-se de Virgem Maria, e o mundo é conduzido à Salvação. Sabe-se, por meio de declarações da própria Hilda Hilst, como a leitura de Jorge de Lima lhe foi fundamental. De fato, o orfismo da autora apresenta traços religiosos, provenientes da educação católica que tivera no Colégio Santa Marcelina, em São Paulo. A própria autora declarou que, quando criança, imaginava-se santa, o que soa interessante se pensarmos em sua opção pelo isolamento. No entanto, a forma como essa religiosidade é trabalhada por ela difere em muito das concepções quase ortodoxas de Jorge de Lima: o Deus de Hilda Hilst aproxima-se não da tríade Amor, Potência e Verdade da mitologia cristã, mas sim do demiurgo violento e vingativo do Velho Testamento e do pensamento gnóstico, como percebeu Willer.40 Não cabe aqui trabalhar minuciosamente essa diferenciação, e sim destacar como a tradição órfica e opção pela poesia como meio de transcender à unidade cósmica operam como reação às vicissitudes do momento histórico. Mas essa reação, como fica patente em outros poemas de “Iniciação do poeta”, passa por um crivo irônico. São várias as menções à impossibilidade de cantar, e à inutilidade desse procedimento, em um tempo no qual a poesia se encontra distante do cotidiano. Em outro poema da mesma seção, o eu lírico afirma:

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Cavalcanti, Luciano, op. cit., p. 44. Cf. Willer, Claudio Jorge. Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH/USP, 2007.

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Afundarei nesse teu vão de terra E a brasa da tua língua Há de marcar em fogo o mais vivo da pedra. Uma palavra nova há de nascer, mas clara Palavra aérea, em ti se elaborando asa. Em tudo nesta morte és inocente Mas minha boca feriu-se em uns cantares E agora, silenciosa, goiva de si mesma, Não sabe mais dizer sem se ferir e breve Há de fechar-se Porque tem sido tudo amenidade E não é este o tempo de florir. Sabias Que um pouco da tua terra endurecida Deitou-se sobre mim? E respirei minha morte E acendi memórias em ti reconfluída E convidei meus hóspedes antigos Aqueles mais longinquos, rigidez e cal Sobre um corpo de pranto agora ungido.41

As palavras do texto praticamente se movimentam no mesmo campo semântico do primeiro poema analisado: a terra, no entanto, não recebe mais o beijo do enunciador, mas se deita sobre ele, em uma espécie de extrema-unção feita de “rigidez e cal” que retoma, de outro modo, o motivo do emparedamento. O canto, agora, transforma-se num misto de dor e claridade: faz-se necessário, mas ao mesmo tempo machuca (“goiva de si mesmo”), como cantares agudos que obrigam o eu lírico a calarse. A imagem da língua como brasa de fogo recupera o episódio bíblico da Torre de Babel, no qual um idioma único, que irmanava os homens, rompeu-se em inúmeros outros, constituindo uma espécie de queda, de abandono de um tempo idealizado. Esse estado indica também a própria situação do homem moderno, já desprovido de asas, e que, com a queda, perdeu “os atributos angélicos da ubiquidade, da imortalidade e à custa de suor e de lágrimas, sofrendo e chorando”, procura “reconquistar, em vão, esses atributos perdidos, com a televisão, o rádio”,42 como lastima Jorge de Lima.

41 42

Ex, p. 108. Apud Cavalcanti, Luciano, op. cit., p. 20.

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E novamente, no poema de Hilda Hilst, percebem-se o isolamento e a precariedade da palavra poética, tudo isso reforçado pela afirmação de que não é mais “tempo para florir”. Mas o poeta, por meio de seu poder de criação, ainda tem forças para lutar e reestabelecer sua condição de “ser alado”, como também pensa Jorge de Lima: “Nós perdemos com a queda; procuramos reconquistar as nossas asas que perdemos, a nossa visão ubíqua e a imortalidade pelos poemas sem tempo e sem espaço que possamos construir”.43 A luta pela reconquista das asas perdidas, contudo, é árdua. Na “Iniciação do poeta”, de Hilda Hilst, a tensão vai se tornando cada vez mais acentuada à medida que um texto sucede ao outro, num crescendo. Na décima estância da seção, o enunciador incorpora em si a violência contra a qual a palavra poética se degladia: “Parte de mim / estilhaça uma asa num círculo de ferro”.44 A cena é forte: o componente de luminosidade que compunha a imagem paradoxal de um Orfeu em decomposição – a “asa” – é violentamente atingida pelo próprio eu lírico, que, no final, afirma: “Sou descanso e rudeza”.45 No penúltimo texto do bloco, o enunciador declara ter o “canto partido”, pois: “Minha morte não é a mesma que recobriu de pedra / Vosso ouvido, mas é como se fora, porque é morte / Cantar assim e nunca ser ouvido (...)”. E a gradação atinge seu limite no final do último poema, por meio de uma hipérbole: “(...) Não tenho mais boca (...) E não há sede de águas / Nem a vontade dolorida da palavra. / Estou no centro escuro de todas as coisas. / Mas a visão é larga / Como um grito que se abrisse e abrangesse todo o mar”.46 Extingue-se a vontade da palavra e o escuro envolve a atividade poética; sua visão é larga, mas em vez de iluminar, como o “olho do dia”, transforma-se em um grito que ocupa todo o mar. Desse modo, a partir dos exemplos analisados, pode-se verificar que ocorre, na sucessão dos poemas, uma espécie de enaltecimento da palavra poética seguido da tomada de consciência de sua precariedade. Esses movimentos se configuram como estados que se alternam mediante o uso da ironia romântica, até um limite no qual eu lírico passa a incorporar a própria violência que recebe. Ao atingir esse ponto, resta-lhe o silêncio e o único som possível é o de um grito desesperador. Não à toa, a seção se intitula “Iniciação do poeta”. 43

Lima, Jorge de, op. cit., p. 65. Ex, p. 110. 45 Idem, ibidem. 46 Ex, p. 113. 44

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Trata-se, nesse caso, de uma visão bastante dura e amarga da atividade poética, principalmente quando se considera que, no período em que o livro fora publicado, a poesia brasileira havia se transformado em uma espécie de laboratório de experimentos das neovanguardas, que almejavam estabelecer uma ligação entre arte e cotidiano mediante, muitas vezes, procedimentos provenientes das teorias da comunicação ou dos meios de comunicação de massa, em particular da pop art.

Ora, o problema da relação entre a lírica e o acolhimento desta em um mundo capitalista e reificado sempre foi uma questão de ordem, desde os primórdios do modernismo. Em um trabalho sobre temas recorrentes na poesia de Baudelaire, Benjamin constata as “condições inglórias” para o acolhimento da poesia no mundo moderno, situação que começou a se firmar na segunda metade do século XIX. O pensador alemão aponta três motivos para isso: a mudança de perspectiva da sociedade em relação ao poeta, ja não mais visto como “vate”, mas sim como especialista em determinado gênero discursivo; o fato de Baudelaire ter sido o último poeta a ter certa repercussão na Europa, em termos de público, e, por fim, o fato de os leitores também já não se encontrarem receptivos nem mesmo à tradição lírica anterior.47 Se há uma alteração na relação entre poeta e público, o mesmo deve acontecer na que existe entre aquele e a sua criação, na medida em que algo compele o artista a se tornar um “vate de seu próprio tempo”.48 Se a experiência do leitor agora lhe é diversa, cabe ao poeta transformar o choque que isso representa em matéria poética: a pouca recepção passa a ter, desse modo, papel estrutural na criação. Conforme Benjamin lembra, Paul Valery atingiu o cerne da poética baudeleriana ao notar que o autor francês almejava tornar-se um “grande poeta” e atingir as massas, “sem ser nem Lamartine, nem Hugo, nem Musset”.49 O autor de As flores do mal tinha consciência da dificuldade que isso representava e, dessa forma, criou uma poesia que, se não atingiu o seu público imediato, teve forte impacto nos poetas das gerações seguintes. Para isso, ele se igualou aos seus possíveis leitores, como muito bem ilustra o poema “Au Lecteur”. Habitam em 47

Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 103-104. 48 Idem, ibidem. 49 Idem, p. 111.

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ambos, leitor e poeta, “la sottise”, “le péché” e o “la lésine”. Agora já não é mais sua poesia proveniente de um sopro divino, como para os iluminados vates românticos. Quem agora o manuseia é o Diabo, anjo que perdeu as asas e vive entre os homens. Para Baudelaire, portanto, o poeta é um amaldiçoado, e não é dos céus que recebe a “Bénédiction”. Fora renegado pela mãe (“Ah! que n'ai-je mis bas tout un noeud de vipères, / Putôt que de nourrir cette dérision!”), os desejos da amada são de agressão (“Et mes ongles, pareils aux ongles des harpies, / Sauront jusqu'à son coeur se frayer un chemin”), mas o poeta não se intimida diante das adversidades e a poesia transforma-se em resistência: Je sais que la doleur est la noblesse unique Où ne mordront jamais la terre et les enfers, Et qu'il faut pour tresser ma courunne mystique Imposer tous les temps et tous les univers.

Na literatura brasileira, essa separação entre público e poeta começou a mostrar-se produtiva na verve irônica de Álvares de Azevedo, escritor romântico que, segundo Candido, destacou-se por sua consciência crítica e teórica.50 Em “Boêmios”, poema em forma de peça dramática, Níni sonha em construir uma obra-prima: (...) Escuta, Puff, eu sinto no meu crânio Como em seio de mãe um feto vivo. Na minha insônia vela o pensamento. Os poetas passados e futuros Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro Tenho um grande poema. Hei de escrevê-lo, É certa a glória minha!

Puff, Por sua vez, não recebe a ideia de Níni com o mesmo entusiasmo (“Pensei-te menos doudo. O teu poema / Seria uma sublime carapuça / Mas, já que

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Candido, Antonio. “A educação pela noite”. In: A educação pela noite. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006, p. 13.

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sonhas tanto, olha, meu Níni, / Tu precisas de um saco [...]”) e dorme enquanto este lhe apresenta a obra. Mais tarde, os poetas modernistas também tiveram de enfrentar o problema. Desejavam ser ouvidos, ou em outras palavras, queriam atingir o grande público. Em carta a Manuel Bandeira, de 5 de agosto de 1923, Mário de Andrade confessa: (...) Vê mais o trecho da Escrava que sairá no número de setembro da América Brasileira. Verás nela o que penso sobre o tradicionalismo e o hermetismo. (...) É preciso acabar com esse individualismo orgulhoso que faz de nós deuses e não homens. Hoje sou muito humilde. Meu desejo é ser homem entre os homens. Transfundir-me. Amalgamar-me. Ser entendido. Sobretudo isso. QUERO SER ENTENDIDO.51

Oito anos depois, o mesmo Mário, ao ser criticado por Bandeira devido à “artificialidade” de sua “língua brasileira“, responde: Resta o argumento interessante sobre a minha língua brasileira que você (como eu) reconhece que as pessoas simples que leem sentem dificuldade em me compreender. (...) Mas Manu, o caso é um bocado mais sutil do que isso. Quando falei que houve um sacrifício de mim, e há, no que faço, creio que não me referi ao sacrifício de linguagem que embora exista, tenha existido principalmente nos primeiros tempos (...). O sacrifício penoso é o das minhas liberdades morais cerceadas; o mais penoso ainda é o das minhas verdades intelectuais, independentes até de mim, e por mim mesmo rejeitadas no que escrevo e ajo, em proveito da normalização, da fixação, da permanência de outras verdades humanas, sociais que eu friamente sei que são mais importantes.52

Mais tarde, o autor de Lira paulistana relembra, no texto “O Movimento Modernista”, que um dos três princípios fundamentais que caracterizou a fase heróica do modernismo havia sido justamente a “pesquisa estética” (os outros dois eram “a atualização da inteligência brasileira” e a “estabilização de uma consciência criadora nacional”) e, dentro dela, a reverificação do instrumento de trabalho do poeta: sua própria língua. Recalcada pelo academicismo parnasiano, fazia-se necessário reconduzi51

Moraes, Marcos Antônio de (org.). Correspondência Mario de Andrade & Manuel Bandeira. 2 ed. São Paulo: Edusp/IEB, 2001, p 101. 52 Idem, p. 520.

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la ao seu “estado comunicativo“, aproximando-a da oralidade.53 Não é à toa que Mário brada, na primeira carta citada, sua vontade de ser entendido. O próprio poeta modernista reconheceu não ter alcançado satisfatoriamente o objetivo: embora prosaica, sua linguagem ainda era criação literária, uma oralidade artificial que, para muitos, ainda soava hermética. Às conquistas da fase heróica, sobreveio um período de contenção, uma volta a formas e temas que haviam sido colocados em segundo plano (para não dizer abolidos) da “poética moderna”. Obviamente, não cabia aos poetas desse momento retornar aos ensinamentos da cartilha parnasiana diante das irrevogáveis conquistas do primeiro modernismo: temas metafísicos e transcendentais passaram a conviver muito bem com o verso livre. Dos poetas que caracterizam esse novo momento, no entanto, sobressaiuse João Cabral, que soube afastar-se desse grupo ao colocar tanto na forma quanto nos conteúdos as contradições do momento histórico, o que chamou a atenção do sempre perspicaz Drummond, como se pode verificar na seguinte carta que o autor de A rosa do povo enviou ao poeta pernambucano, após ler a primeira versão de “Psicologia da composição”: (...) Se lhe desagradar a opinião dos jornais e revistas, não publique para eles; publique para o povo. Mas o povo não lê poesia... Quem disse? Não dão ao povo poesia. Ele, por sua vez, ignora os poetas. É certo que sua poesia tem muito hermetismo para o leitor comum, mas se v. a faz assim hermética é porque não pode fazê-la de outro jeito, se você é hermético, que se ofereça assim mesmo ao povo. (...) Já meditou na fascinante experiência que seria fazer livros de custo ínfimo, com páginas sugestivas, levando a poesia moderna aos operários, aos pequenos funcionários públicos, a toda essa gente atualmente condenada a absorver uma literatura de quarta classe porque se convencionou reservar certos gêneros e tendências para o pessoal dos salões e das universidades? Eu acredito de certo que sua fase poética atual é fase de transição e que v., com métodos, inclusive os mais velhos, está procurando caminho, e que há muita coisa ainda a fazer antes de chegarmos a uma poesia integrada ao nosso tempo, que o exprima limpidamente e que ao mesmo tempo o supere.54

53

Andrade, Mario de. “O Movimento Modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. 4 ed. São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1972, p. 244-247. 54 Carta enviada em 17-1-1942. Süssekind, Flora (org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 174-175

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Uma poesia que supere e, ao mesmo tempo, exprima o presente: eis a principal meta colocada por Drummond. Para o poeta moderno, no entanto, o presente é ruína a ser superada por um futuro utópico que deverá ser construído com o auxílio da arte. Existe uma intenção engajada no “fazer poético” moderno, uma crença no potencial de transformação propiciado pela atividade artística. No modernismo brasileiro, optou-se, principalmente em sua fase inicial, uma aproximação mediada pela valorização da linguagem cotidiana. Era uma atituda distinta daquela que Friedrich apontou nos primórdios da lírica moderna: em vez do hermetismo, prosaísmo. Essa “lírica da cordialidade”, que se esforça no sentido de tentar estabelecer uma comunicação crítica com a alteridade, aproximando-se dela, difere em muito de certa atmosfera de animosidade claustrofóbica criada por Hilst em seus poemas, e que a aproxima de procedimentos semelhantes a da poética baudeleriana. O futuro utópico, para essa “lírica emparedada”, estaria impossibilitado pela existência de uma barreira comunicativa, assim como a linguagem prosaica funcionaria justamente como símbolo de um utilitarismo que valorizaria, sobretudo, a referencialidade imediata. Coloca-se, então, um problema: afastar-se por completo dessa “língua utilitária” ou usá-la como arma poética? Para a neovanguarda concretista, contudo, não parecia haver barreiras: ela prentendia instaurar o Futuro, quase que por decreto, e numa atitude messiânica, na esteira do clima de euforia pelo qual o país passava devido às transformações socioeconômicas que ocorriam na segunda metade da década de 1950: a rápida industrialização, a construção de uma capital na região central, o aumento gradual das taxas de alfabetização e também do acesso aos meios de entretenimento ligados à indústria cultural: cinema, revistas, programas de rádio e, mais tarde, a televisão. Ora, também há nessa trajetória das neovanguardas uma ambição de trazer a arte, de forma transformadora, ao cotidiano burguês e capitalista. Obviamente, não existia, nesse roteiro, o orfismo ingênuo e romântico de propiciar o reencantamento do mundo a partir da visionaridade de um versejador iluminado pelas potências do espírito, como em alguns momentos se deixa entrever nessa poesia inicial de Hilda Hilst, na qual também se esboça o problema da comunicação que tanto preocupava o modernismo em sua fase heróica; no entanto, ao mesmo tempo em que ela se fecha às experimentações que aproximariam, no entender dela, a poesia da antiliteratura, verifica ironicamente a 32

impossibilidade de uma união, por meio da palavra literária, entre poesia e mundo reificado. O silêncio, o vazio e a amargura transformam-se, assim, em produtos de uma poética, que, operando em surtos eufóricos e disfóricos, aponta para o próprio limite de sua dicção. A voz de seus poemas pode ser, então, entendida como a própria lírica: uma antiga e agonizante senhora que parece haver perdido a validade em meio a tantos produtos culturais.

A essa lírica, emparedada pelas contradições do momento histórico, resta o lamentar-se por um mundo perdido, pelo fim de uma Idade de Ouro constantemente rememorada por um eu lírico saudosista, tomado por uma espécie de romantismo tardio, crente em sua potência criadora, mas ao mesmo tempo sentindo-se vazio pela própria impossibilidade de retornar a esse passado idealizado. Sobre essa perda, Friedrich cita uma declaração de Mallarmé segundo a qual a poesia havia perdido o caminho a partir da grande “aberração de Homero”.55 Ao afirmar isso, o poeta francês partia justamente em defesa de uma poesia órfica, inseparável não só da ciência, do pensamento e do mistério como também da própria linguagem e da práxis vital. Também é possível detectar, em relação ao eu lírico do poema de Hilda, a defesa dessa mentalidade poética: essa é a “Idade de Ouro” da qual o enunciador lamenta a falta: um tempo em que ele ainda possuía irmãos, como fica subentendido no verso “Não tenho mais irmãos”, mas que se encontra em um passado remoto. Nessa poesia, mesmo o espaço, pela valorização dos elementos naturais, possui indícios de algo arcaico: há nos textos, como nota Pécora, uma religiosidade “imanentista, terrena”, e por vezes “estranhamente silvestre”,56 que comparece na relação do enunciador com a terra (“Terra, deito minha boca sobre ti”). Em outro poema, por exemplo, o eu lírico habita uma ilha, isolada do restante do mundo, e sua única ação é a de semear o solo que guarda os seus antepassados: “O corpo se fechava / À entrada dos portais / A mão direita resguardava o plexo / E só para plantar / Se abria em novo gesto”.57

55

Friedrich, Hugo, op. cit., p.138-139. Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Exercícios, op. cit., p. 9. 57 Ex, p. 68 56

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Em outro grupo de textos, devidamente reunidos sob o título “Quase bucólicas”,58 o lugar aprazível que serve de cenário a esse tempo mítico acaba se revelando como uma espécie de paisagem sem vida. Nos textos dessa seção, os índices que deveriam compor o locus amoenos aparecem desativados: Era um vale De um lado Seu verde, suas brancuras. Do outro Seus espaços de cor Trigais e polpas Azuladas de sol Ensombradas de azul Era um vale Deveria ter pastores E água E à tarde umas canções Alguns louvores.59

O vale, com seus trigais e polpas, é apresentado como se fosse um quadro: as cores da descrição compõem as imagens do lugar aprazível, constituído por trigais e polpas iluminados pelo sol. Mas não se trata de um mero uso de um topos antigo, como uma leitura apressada poderia deixar entender. Há um elemento dissonante: o verbo que inicia o poema, colocado no pretérito imperfeito, coloca a ação em um momento passado. Nesse locus, não há mais pastores e, como consequencia, faltam também as canções e os louvores, elementos que, reunidos, teceriam a imagem de um idílio ou de um écloga. Ora, certas expressões servem como etiquetas que, definidas pela tradição literária, remetem a determinadas formas de composição. Assim, quando o enunciador desse poema de Hilda Hilst fala de pastores, vales e de canções, automaticamente esses 58

Na edição de 1979, o título da seção é somente “Bucólicas”, diferentemente do que ocorre na recolha de sua poesia reunida em Poesias (1959-1967). Optei por seguir a edição organizada por Pécora, que conservou o nome original da seção. 59 Ex, p. 150

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índices remetem a elementos que, reunidos, indicam um gênero; no caso, a poesia pastoril ou bucólica, que tem como autoridade mais longínqua os poemas de Teócrito, no século II. a.C., e Virgílio, na poesia latina do século I. a.C. De modos distintos, os elementos que compõem essa forma foram incorporados aos poemas produzidos desde então, passando por imitações contemporâneas às autoridades do gênero até chegar à modernidade, por meio de poemas de Camões, Sá de Miranda, Pope, Milton, Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, entre outros. O romantismo também o incorporou, revestindo de sentimentos paisagens que apenas serviam de cenário para o apascentar poético de pastores-poetas, e o português Bocage é um prenúncio dessa transformação: em alguns de seus poemas, o espaço muitas vezes sofre juntamente com os personagens que nele transitam ou com o eu lírico que o enuncia. O primeiro modernismo brasileiro, por sua vez, recuperou os elementos bucólicos da tradição, colocando-os em tensão com o dado local, como faz Oswald de Andrade, em um poema justamente denominado “Bucólica”, no qual, transgressoramente, “(...) uma passarinhada nos vaia / Num tamarindo / Que decola para o anil”. No entanto, quando esses elementos chegam ao poema de Hilst, a “extensão de pedra” que separa o eu lírico do mundo reificado os perverte: o lugar aprazível é esvaziado e, consequentemente, as canções provenientes dos pastores que o habitariam são sugadas pelo silêncio. Novamente, reitera-se a negatividade, e a forma clássica se torna vazia, como se fosse inapropriada para o momento presente. Como resultado da ausência das propriedades que definiriam o espaço da bucólica, também não há a possibilidade de enunciação de uma instância humana, de um pastor-poeta que transforme em versos a sensações propiciadas pelo ambiente (“Deveria ter pastores (...) / E à tarde algumas canções / Alguns louvores”). É como se esse espaço tivesse se convertido numa espécie de terra desolada, o que nos remete a um famoso poema de T. S. Eliot, aproximação que não é fortuita, uma vez que a epígrafe que abre o volume no qual essa seção se encontra é justamente um trecho de AshWednesday (“Lady of silences/ Calm and distressed/ Torn and most whole/ Rose of memory”), que, lido no contexto da obra, adquire um novo sentido. Vale lembrar que, na terceira parte de Ash-Wednesday, o autor de The Waste Land toma como referência um episódio da Divina Comédia (Purg., IX, 94-120), no qual Virgílio conduz Dante à porta do Purgatório, localizada no topo de uma subida 35

composta por três escadas. Trata-se de um ritual de purificação: o anjo que guarda a entrada risca-lhe, na testa, sete vezes a letra “P”, fazendo referência aos sete pecados originais; em seguida, pede-lhe que lave tal mancha assim que entrar no local. Essa ideia de “limpeza” também está presente em Ash-Wednesday, pois a voz enunciativa, livre da tentação da dúvida quanto à sua fé (ela, já na segunda escada, contempla um vulto ainda a se debater contra um demônio), ao pisar na primeira volta da terceira escada, tem um momento de tentação: por uma estreita janela, visualiza uma cena pastoral (“pasture scene”), na qual Pã (“the broadbacked figure drest in blue and green”), encanta idilicamente o espaço com sua flauta. O enunciador, no entanto, não se deixa seduzir pelo deus pagão: no canto seguinte, a deidade do jardim silencia seu instrumento, e o que ressoa é somente o trecho da oração que é citado por Hilda Hilst na epígrafe do livro. Infelizmente, a partir da composição de Ash-Wednesday, que coincide com a conversão de Eliot ao anglicanismo, as dissonâncias suscitadas pela composição fragmentária de sua obra passam a se harmonizar na ideia de uma redenção à Palavra do Senhor. Ao evitar a cena pastoril e ignorar o canto de Pã, o poeta passa a defender, conservadoramente, uma única fonte possível de poesia: a que provém do universo cristão. A resposta de Hilda Hilst a esse movimento que parte dos fragmentos justapostos ao uníssono de uma ladainha quase beata é interessantemente crítica, embora ainda apresente certa postura religiosa: na seção anterior à de “Quase Bucólicas”, intitulada “Heróicas”, os demônios da escada surgem na forma de espíritos que mantêm um tenso diálogo com o poeta. “Não temes/ As deidades atentas da memória / Os gnomos secretos, a loucura / A morte”, dizem eles, ao enfrentar um eu lírico que, “com um jeito de flor e um não quê de brisa”, exige verdades” e busca “punir os líricos enganos da beleza”. Formalmente, a voz desses espíritos ameaçadores é indicada em itálico e inseridos no corpo do poema, o que resulta numa espécie de balada macabra. Fortes são as invectivas lançadas por eles, e algumas delas lembram o motivo do poeta amaldiçoado, como na “Bénédiction”, de Baudelaire: “Queres o verso ainda? Assim seja. / Mas viverá a vida nesses breus”. O conflito entre subjetividade e forças demoníacas se estende em outros textos do conjunto, até o momento de um embate fatal, na sétima estância, na qual permanece ambíguo o desfecho da luta: 36

Vós, humanos, De gesto tantas vezes suplicante, De coração ardente, dizeis? A nós parece exangue Esse pulsar contínuo E tarefa insensata Porque nós, divinos, Temos no peito a força O altar A lança (...) Vós, humanos, De invólucro oscilante E impermanente Mortais e fustigados Pretendeis o mais alto? Amargados destinos. Buscar a rosa Cabe a nós, divinos. Em nós a claridade. Em nós tamanho amor E sol e santidade... E suas gargantas de aço Inundaram de lava Aquilo que era espaço.

O longo discurso final dos demônios, no qual estes afirmam a eternidade de seu poder, é, contudo, abruptamente interrompido por outra voz, aparentemente a de uma terceira pessoa, que narra a violenta tomada do espaço por parte da lava que nasce das gargantas de aço dos seres que sujeitam o poeta. Porém, a voz poética, a despeito de uma possível “morte” diante das palavras dos demônios, ressurge no texto seguinte, assim como os ossos brilhantes da primeira seção de Ash-Wednesday; por outro lado, as vozes das deidades deixam de ser ouvidas, 37

permanecendo uma ambiguidade: teriam eles se extinguido ou o eu lírico os incorporado? No poema de Eliot, ao final, os ressurretos entoam uma litania dirigida à Virgem Maria; no de Hilda Hilst, inicia-se, também, um canto de louvor que se reporta à divindade e, concomitantemente, reflete sobre a necessidade de os indivíduos se deterem diante de “coisas efêmeras”. Aqui, ocorre uma diferença substancial de atitudes: após a litania, a voz poética de Eliot escolhe a elevação espiritual, ignorando a cena idílica que se oferece pela pequena janela, ao passo que a escritora brasileira opta por deter-se diante do deus pagão: o livro continua justamente com a seção intitulada “Quase bucólicas”. Mas o cenário que se abre ante o eu lírico nada tem de animador: trata-se daquele espaço vazio, desprovido dos vetores que definem o gênero bucólico. O poeta, por meio de sua palavra, tenta reanimá-lo: “O cavalo no vale / E mais além / O meu olhar mais verde que o vale / E claro de esperança / E querer bem.../ E com muito cuidado / Como tem na mão a flor e o quadro // Espero que a paisagem desta tarde // Adormeça / O cavalo no vale / O vento no capim / Os roseirais em mim”.60 A crença no poder da palavra poética, no entanto, reencontra novamente a barreira de seu tempo, e a reconstrução desse espaço idílico, por meio do verso, não se processa. Ocorre novamente, aqui, a declaração da própria precariedade da voz enunciativa, ao atestar, no momento presente, para a impossibilidade de sua enunciação lírica: A noite não consente a veleidade De retomar na memória e no tempo O tempo em que eu, senhora de vaidades, Dissipava no verso o meu lamento Tempo não é, senhora, de inocências Nem de ternuras vãs, nem de cantigas Antes de desamor, de impermanência Tempo não é, senhora, de alvoradas Nem de coisas afins, toques, clarins. Antes, da baioneta nas muradas. 60

Ex, p. 155.

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Tempo não é, senhora, de pastores Nem de roseiras, madrigais, violas. Nem é tempo, vos digo, de ter pássaros azuis Em vossas douradas gaiolas. (Não houvesse paredes, língua e som, Apartando de nós, coisas antigas. A palavra na boca, o falar neste tom Dá-me tanta saudade da cantiga: Persegues Te persigo Vais e vens E nas idas e voltas te bendigo.)61

Vale a pena deter-se um pouco mais nesse poema, levando-se em conta que ele ocupa o centro de “Quase bucólicas” e que os textos dessa seção, desprovidos de títulos e não numerados, embora possuam autonomia, reportam-se uns aos outros, construindo uma espécie de trajetória da voz poética. O mote que o sustenta, o paralelismo criado pela repetição da expressão “Tempo não é, senhora (...)”, encontra ecos literários novamente em Eliot, sobretudo no de Four Quartets (“The time of the coupling of man and woman /And that of beasts. Feet rising and falling. / Eating and drinking. Dung and death”), mas principamente em Drummond (“Nosso tempo”) e em Brecht (“Schlecht Zeit für Lyrik”). A forma escolhida para plasmar o lamento é, interessantemente, o verso decassílabo. Ora, a seção anterior denominava-se “Heróicas”, nome que a tradição literária dá ao verso de seis sílabas, também denominado “decassílabo quebrado”; por isso, alguns de seus textos eram escritos nesse metro, embora a maioria seguisse uma versificação livre. No poema em questão, a voz poética sustenta a metrificação regular até o momento em que ela se rompe na forma de uma canção. Isso acontece após um estranho alexandrino (o terceiro verso da última estrofe, que parece atuar como uma espécie de nota dissonante), quando o eu-lírico diz sentir falta de um cantar antigo, impossibilitado pela existência de “paredes”, “língua” e “som”. Nesse momento, o 61

Ex, p. 162.

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decassílabo se quebra: “Persegues / te persigo / Vais e vens” em três versos, a formar uma canção que revela o movimento paradoxal do eu-lírico, a perseguir um objeto que o persegue e, ao mesmo tempo, ser por ele perseguido. Interessantemente, essa breve canção, caso fosse reunida em um único verso, corresponderia também a um decassílabo, revelando, em nível formal, uma tensão entre continuidade e descontinuidade. As rimas também operam em torno da tensão entre o trabalho poético e as vicissitudes do tempo: “tempo”/“lamento”, “alvoradas”/“muradas” e a rima imperfeita, praticamente toante, em “inocências”/“impermanência”, a indicar um momento de um pouco mais agudo relacionado à ideia ingênua de que a experiência presente possa ser aprisionada pela rigidez de uma forma fixa. Não à toa, a estrofe seguinte, agora um quarteto, apresenta uma única rima: “gaiola”/”viola”, antecedendo o momento de libertação – aquele em que a canção se solta do prisão formal em que se encontra. Mas essa libertação permanece no âmbito da “saudade”, e a estrofe em que ela ocorre se encontra igualmente aprisionada pelos parênteses que a separam do restante do poema (mais uma vez, o motivo do emparedamento). É como se ela delimitasse uma temporalidade distinta, não mais a do presente, e sim a de um tempo no qual ainda havia a possibilidade de se entoar uma canção. Esse poema recupera, a seu modo, um motivo caro à lírica moderna: Drummond, em “A flor e a náusea”, já dissera fazer parte de um tempo de “fezes, e maus poemas, alucinações e esperas”; Brecht, por sua vez, refletia sobre a insolência de se criar uma rima no interior de uma canção: “In meinem Lied ein Reim / Käme mir fast vor wie Übermut”, enuncia o eu lírico de “Schlecht Zeit für Lyrik”, ao sentir-se dividido entre a experiência real (“das Entsetzen über die Reden des Anstreichers”) e a criação poética, que, em seu texto, é representada como um idílio (“Die Begeisterung über den blühenden Apfelbaum”). Curiosamente, as palavras que formam a primeira rima do poema de Hilda são “veleidade” e “vaidade”. O escritor alemão opta, como sua própria obra indica, por uma valorização do dado real, e os seus poemas, muitas vezes, podem mesmo ser lidos como crônicas de determinado momento histórico. Drummond, sobretudo em A rosa do povo, transforma em produtividade criadora a tensão entre experiência e invenção, e o poema “Procura da poesia” funciona como um tratado poético, ao afirmar que os versos não nascem de acontecimentos e que o poeta deve “penetrar surdamente no reino das palavras”, 40

recuperando uma ideia de valorização da técnica poética que remonta à famosa afirmação de Mallarmé de que não são as ideias que compõem poemas, mas sim as palavras. O eu lírico de Hilda Hilst, por sua vez, desobedece à regra drummondiana, também presente em “Procura da poesia”, de não tentar recompor a “sepultada” e “merencória” infância, algo que o próprio poeta, mais tarde, também fará em seus poemas memorialísticos. Mas, no caso da escritora, a infância não corresponde à biografia da autora; essa época, na realidade, está associada um tempo órfico, no qual arte e vida faziam parte de uma mesma esfera. Ao tentar restaurar esse momento mágico, no entanto, esse eu lírico saudoso descobre-se impossibilitado por um presente descrito a partir de termos que gravitam ao redor do campo semântico da guerra, do conflito e do aprisionamento: “desamor”, “impermanência”, e “baioneta nas muradas”. Os elementos que poderiam compor o discurso lírico, nesse contexto, revelam-se por negação: não é tempo para “alvoradas”, “inocências”, “pastores”, “roseiras”, “madrigais”, “violas” e, principalmente, em uma imagem preciosística, de se ter “pássaros azuis” em “douradas gaiolas”. São constatações bastante amargas, ainda mais se levarmos em consideração que a filiação estética inicial da autora fora com a Geração de 45, preocupada em proporcionar novamente à lírica uma dicção elevada e um retorno às formas tradicionais, e que a poeta, em seus primeiros livros, realiza imitações não muito satisfatórias, sobretudo, de Vinicius de Moraes, que exerce em seus três volumes iniciais a função de autoridade poética. Aliás, não parece ser casual o fato de Hilda Hilst, ao reunir suas obras iniciais em Poesias (1959-1967), desconsiderar Presságio (1950), Balada de Alzira (1951) e Balada do festival (1950). Entre esses dois momentos, foram substanciais as mudanças: as formas tradicionais (o soneto, a elegia, a ode, a bucólica) passaram a ser construídas a partir de uma perspectiva irônica e a dicção elevada encontrou como contraponto o isolamento e a amargura, elementos que já se ensaiavam em poemas anteriores aos de “Quase bucólicas” e de “Iniciação do poeta”, como fica patente no seguinte texto, presente em Roteiro de silêncio (1959): Tenho pedido a todos que descansem De tudo o que cansa e mortifica: O amor, a fome, o átomo, o câncer. Tudo vem a tempo no seu tempo. → 41

Tenho pedido às crianças mais sossego Menos riso e muita compreensão para o brinquedo. O navio não é trem, o gato não é guizo. Quero sentar-me e ler nesta noite calada. A primeira vez que li Franz Kafka Eu era uma menina. (A família chorava). Quero sentar-me e ler mas o amigo me diz: O mundo não comporta tanta gente infeliz. Ah, como cansa querer ser marginal Todos os dias. Descansem anjos meus. Tudo vem a tempo No seu tempo. Também é bom ser simples. É bom ter nada. Dormir sem desejar Não ser poeta. Ser mãe. Se não puder ser pai. Tenho pedido a todos que descansem Do que cansa e mortifica Mas o homem Não descansa.62

Nos versos simples, quase prosaicos, nos quais se detectam até lugares comuns presentes em máximas populares (“Tudo vem a tempo no seu tempo” ou “O navio não é trem, o gato não é guizo”), o contato com a literatura se revela como experiência solitária e dolorosa: a criança lê Kafka sozinha, enquanto a família chora, e uma voz lhe diz que o mundo já não comporta tanta infelicidade. O ato da criação poética comparece como atuação marginal, afastada da experiência do real, que é representado pela “fome”, pelo “átomo”, pelo “câncer”, mas também pelo “amor”. Mesmo assim, a poesia continua a ser uma resposta possível, ainda que nascida do sofrimento e da incomunicabilidade: “Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito”, diz a poeta em outro poema de Roteiro do silêncio, no qual também escreve dolorosos versos, tais como: “Não há mais espaço para sorrir e boceja de tédio. / As casas estão cheias. As mulheres parindo sem cessar. / Os homens amando sem amar (...)” e “Preparo-me e 62

Ex, p. 239.

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aceito-me / Carne e pensamento desfeitos. Intentemos / Meu pai, o poema desigual e torturado”.63 Impossível, ao ler o último verso citado, não se lembrar da flor que nasce na rua, a “forma insegura” do poema de Drummond (“A flor e a náusea”) que, acariciada pelo eu lírico, conseguiu romper “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. As formas inseguras engendradas por Hilda Hilst também almejam vencer essas dificuldades, muitas vezes incorporando em si a violência contra a qual se colocam (“Vou dizer coisas terríveis à gente que passa. / Dizer que não é mais possível comunicar-me”),64 mas, sobretudo, acreditando no amor como potência harmonizadora: “Amor, o desejado. / Filho varão à espera de um condado”.

Conforme as análises realizadas anteriormente, é possível estabelecer variáveis que balizam esse segundo estágio da produção poética de Hilda Hilst. De uma lírica simples presente em seus primeiro trabalhos, a tratar de assuntos cotidianos, do amor e da morte, a autora parte para uma reflexão acerca da precariedade da lírica em um mundo violento e reificado. Os procedimentos, à margem das experimentações formais empreendidas pelas neovanguardas do período, permanecem, no entanto, a ser a manutenção de uma dicção elevada e o trabalho, ainda que irônico, com as formas tradicionais. No plano temático, sobressaem-se, também, momentos de euforia, nos quais a poeta parte em defesa de uma poesia órfica que reúna arte e vida, e de desforia, em que se verifica a impossibilidade de que essa união ocorra, resultando em sentimentos que oscilam entre a saudade de certa “infância da poesia” e a reação violenta. Além disso, detectam-se também elementos de retorno aos primórdios da lírica moderna, como a ideia da poesia como uma espécie de “maldição necessária”, que é proveniente, sobretudo, de Baudelaire. Ao mesmo tempo, retoma-se a discussão acerca da relação entre arte e vida, ponto central de algumas vanguardas do início do século XX e preocupação presente, em termos da comunicação entre literatura e público, entre poetas modernistas brasileiros.

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Ex, p. 227. É justamente o que faz a personagem de A obscena senhora D, texto em prosa publicado em 1980.

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Assim, que respostas serão esboçadas, por Hilda Hilst, aos problemas com os quais se deparou? Como observa Rosenfeld, no momento de publicação do primeiro volume de novelas da autora, após as incursões desta no teatro, “a autora chegou à dramaturgia porque queria ‘falar com os outros’; a obra poética ‘não batia no outro’. Era um desejo de comunicação (é difícil evitar o termo que, desde que deu o nome a uma teoria, faz de imediato pensar em canais) e a obra poética não lhe parecia satisfazer esse desejo”.65 Assim, Hilda Hilst procurará soluções ainda em âmbito literário, partindo para ensaios em outros gêneros: inicialmente, o drama; em seguida, a prosa. As novas obras criadas não se apresentarão, contudo, de forma pura e bem-acabada. Trarão, em si, marcas de uma violência poética que as desestabilizarão, para transformá-las em uma espécie de palco no qual as questões ligadas à relação entre lírica modena e práxis vital, entre poesia pura e poesia engajada, e entre autor e mercado editorial, serão colocadas em cena.

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Rosenfeld, Anatol. “Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga”, op. cit., p. 16.

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CAPÍTULO 2 A LÍRICA EM CENA

Abruptamente, sons de uma metralhadora e o anúncio de um trapezista, a aparecer dependurado diante do público, iniciam Auto da barca de Camiri, peça escrita por Hilda Hilst em 1967: Trapezista (no trapézio): Senhores: No nosso tempo de desamor e lamento É raro ser bom prelado Ser passarinheiro Ou trapezista. Escurecimento. Ruído de metralhadoras. Silêncio. Uma voz (tom de comando, em tensão): No coração! No coração! Logo em seguida, estampido de um tiro de revólver. Luz.66

Comparece, neste pequeno trecho, já marcado por uma tensão, a ideia de um tempo inapropriado para “portar asas”: as três funções elencadas na fala inicial – o trapezista, o passarinheiro e o prelado – comungam do mesmo campo semântico em que, nos poemas anteriores, trafegavam ideais que, segundo a escritora, deveriam balizar a atividade criadora – o poeta como ser alado, a pairar sobre uma realidade violenta e opressora. A tensão inicial, no entanto, logo é interrompida pela entrada de dois juízes – um novo e um velho –, que, a despeito do clima de violência que parece imperar do lado de fora, passam a debater calmamente acerca do significado da palavra escatologia. A situação que dá ensejo à conversação é uma constatação, por parte do juiz mais velho, de que os homens fedem. O mais novo, então, argumenta:

66

TC, p. 187

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Juiz jovem: Tem razão. Tem razão. Os homens são seres escatológicos. Esse tema é ótimo para discorrer. Veja. (Vira-se para a platéia) Escatologia, certamente os senhores saberão o que é: nossas duas ou três ou mais porções matinais expelidas quase sempre daquilo que convencionalmente chamamos de bacia. Enfim (curva a mão em direção à boca e estende em direção ao traseiro), esse entra e sai. Para vencer o ócio dos senhores que dia a dia é mais frequente, não bastará falar sobre o poder, a conduta social, a memória abissal, o renascer. É preciso agora um outro prato para o vosso paladar tão delicado. (Vira-se para o velho) E se pensássemos num tratado de escatologia comparada? Nada mais atual e mais premente. Juiz velho: Comparada com o quê? Juiz jovem: Com tudo! Com tudo! Juiz velho: Ah, talvez bem pensado porque... Juiz jovem: Porque tudo se compara se estende. E se transforma em conflito quase eminente. Juiz velho: Tudo isso é bom para o teatro. Fale merda para o povo e seja sempre novo. Ah, nossa boca de vento... (Põe a mão na boca num gesto de desprezo). Blá, blá, blá.67

A existência de conflito é um elemento configurador necessário do drama. A partir dele, os vínculos entre as ações se estabelecem em uma sucessão de consequências e causas que desenovelam o enredo e apontam para um momento de síntese, no qual as aporias da fábula encontram sua solução. Por isso, a tradição de sua forma, como aponta Szondi, é dialética: as relações intersubjetivas instauradas sintagmatizam a sucessão de presentes absolutos que compõem a temporalidade da peça, o que faz do diálogo a função linguística estrutural do gênero.68 Mas o crítico húngaro demonstrou como a inserção de características épicas e líricas desestabilizaram a forma, evidenciando a precariedade das relações intersubjetivas: em Tchékov, por exemplo, a conversa entre Andrei e Ferapont, que na realidade de As três irmãs se configura como dois monólogos (a surdez do segundo impede o sucesso comunicativo), é um índice dessa crise que, mais tarde, receberá tentativas de solução de outros dramaturgos. O drama épico de Brecht é uma delas: o ato de virar-se ao público, de modo a quebrar a barreira imposta pelo palco italiano é 67 68

TC, p. 189-190. Szondi, Peter, p. 32-34.

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uma tentativa de incluir o espectador como instância comunicativa, procedimento já bastante banalizado na contemporaneidade. A disposição do teatro de arena, de largo uso nos anos 1960, também objetiva esse tipo de tentativa de recuperar a dimensão dialógica do espetáculo, buscando a inclusão do público. No Brasil, por exemplo, principalmente antes do recrudescimento do regime militar, com o AI-5, o teatro tornou-se um importante veículo de comunicação cultural. Esse fortalecimento visava, sobretudo, a manutenção do espaço de debate político que marcou o período imediatamente anterior ao golpe de Estado; contudo, essa situação sofreu forte refluxo por conta dos mecanismos de repressão instaurados pelo governo ditatorial.69 De um momento em que o país parecia “irreconhecivelmente inteligente”, com a ação dos Centros de Cultura Popular, os novos métodos educacionais de Paulo Freire e discussões favoráveis à reforma agrária, passou-se a outro em que dúvidas sobre a crença na Trindade de determinado intelectual ou a virgindade de certa atriz ganhavam o primeiro plano nos debates.70 Mas, como notara Schwarz, por conta de uma espécie de cultura de esquerda que havia começado a se firmar no período anterior, e que não fora completamente reprimida pelo golpe de 1964, as ideias revolucionárias continuaram a ter espaço nos gêneros públicos, em particular na música popular, no cinema e no teatro.71 A literatura, por sua vez, entrou em segundo plano, embora seja realmente admirável a qualidade das letras de canções apresentadas em festivais que, cada vez mais, assemelhavam-se a atos políticos. Esse crescimento da atuação do teatro começara a evidenciar-se já no final da década de 1950, com importantes peças, como é o caso de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, apresentada com enorme sucesso no Teatro de Arena. E foi justamente a partir desse período que, por meio da experimentação de novas técnicas, sobretudo advindas de leituras brechtianas, esforçou-se fortalecer a dramaturgia brasileira, trazendo ao palco questões sociais e políticas prementes no momento.72 É interessantemente nesse período que Hilda Hilst, isolada em sua Casa do Sol, começa a dedicar-se ao gênero dramático. De acordo com declarações da própria

69

Cf. Vincenzo, Elza Cunha de. “O teatro de Hilda Hilst”. In: Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. xv. 70 Cf. Schwarz, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969”. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 70. 71 Idem, p. 80. 72 Vincenzo, Elza Cunha de, op. cit., p. 9.

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escritora, tratava-se de uma tentativa de estabelecer um vínculo comunicativo com o público: Nós vivemos num mundo um momento em que as pessoas querem se comunicar de uma forma urgente e terrível. Comigo aconteceu também isso. Só poesia já não me bastava (...). Então procurei o teatro. Considero o Teatro uma arte de elite, mas não no sentido esnobe da palavra. O que eu quero dizer é que o homem quando entra numa sala de Teatro deve sentir uma atmosfera diferente daquela que sente no cinema.73

Duas ideias transparecem de modo interessante nessa declaração da autora: primeiramente, a de uma limitação no alcance da própria palavra poética e da especificidade de determinada forma: o dramático é colocado como propiciador de certa “atmosfera”. Em segundo lugar, evidencia-se o próprio lugar histórico em que a produção artística precisa se firmar: trata-se de um tempo em que se precisa estabelecer comunicação “de forma urgente e terrível” (grifo meu). A abertura de Auto da barca de Camiri, de certa maneira, coloca em cena esse problema: o trapezista, no ar, por meio da caracterização do tempo, “de desamor e de lamento”, indica a impossibilidade de uma forma (como já dito, as funções enunciadas pelo personagem são índices de certa noção de lírica). E sua declaração é ratificada pelo som da violência – os estampidos das metralhadoras – e pelo início, no tablado, da ação dramática. No entanto, o diálogo que se estabelece entre os personagens que entram em cena – o Juiz Velho e o Juiz Novo –, em vez de se pautar por uma relação intersubjetiva que conduziria a ação da peça, transforma-se em discussão metalinguística que busca analisar a própria atuação em cena. Primeiramente, inicia-se um debate filológico acerca do significado do termo escatologia. O vocábulo possui dois sentidos, provenientes de raízes distintas: o primeiro provém de éskathos, a significar “último”, “extremo” e que, como antepositivo de -logos, passa a ser lido como “doutrina das coisas que devem acontecer no fim dos tempos”; o segundo, de skátos, ou seja, fezes, o que tornaria escatologia uma espécie de “tratado acerca dos excrementos”.74 E esse elemento de flutuação é que norteia não só a peça, como as feições que terão a obra da autora a partir de suas tentativas no gênero 73 74

Apud Vincenzo, Elza Cunha de, op. cit., p. 33. Cf. Dicionário eletrônico Houaiss.

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dramático: na homonímia do termo, amalgamam-se as ideias de alto e baixo, de espiritualidade e matéria, ainda nesse momento apresentadas de maneira por demais esquemáticas. Mas a própria forma em que isso ocorre é tratada ironicamente. Nesse início, o elemento estruturador do drama, a menção ao conflito, comparece apenas na enunciação do juiz mais jovem, justamente em um momento de concordância entre os personagens que estão em cena. Como nota Vincenzo, “os dois interlocutores são um prolongamento ou eco um do outro e estão sempre de acordo”:75 Juiz velho: Ah, talvez bem pensado porque... Juiz jovem: Porque tudo se compara se estende. E se transforma em conflito quase eminente.

O juiz mais velho logo complementa, dizendo que toda aquela teoria acerca da escatologia engendrada pelo seu interlocutor é “boa para o teatro”, afinal o destino da cultura é a matéria: Juiz jovem: Mas nossa boca de vento, que aparentemente é vazia, seria o primeiro elemento de uma escatologia... comparada. Boca de vento... na verdade (põe a mão no traseiro e na boca) duas bocas do nada. Partindo do nada, chegaríamos a infinitas conclusões. Depois do nada, vem tudo de mão beijada. A cultura... Juiz velho (muito surpreendido): A cultura?! Juiz jovem: Espere... espere. Você sabe que o verme come o homem. E a cultura de material abundante seria no futuro nossa única forma de leitura. Cultivar na matéria! Ler na matéria! O mundo se transformaria num grande laboratório de análises. Acostumar as narinas! Já no início ficaríamos todos livres da parasitose. Depois, quem sabe o que se descobriria na matéria... quem sabe o quê!76

Em uma brincadeira com a flutuação semântica das palavras, é possível detectar nesse trecho princípios de uma pequena estética: as acepções de matéria, por exemplo, são postas lado a lado, de modo que o termo pode ser lido em seu sentido mais concreto, ou seja, como os excrementos aludidos pelo Juiz Jovem, e ao mesmo tempo

75 76

Vincenzo, Elza Cunha de, op. cit., p. 53. TC, p. 190.

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como assunto de uma obra. E isso é bastante revelador em relação às posições literárias que Hilda Hilst começara a tomar: dos píncaros órficos em que sua poesia lamentosa, ainda que irônica, se situava, a autora resolve agora lidar com outro tipo de material, numa espécie de descida aos infernos. Nesse novo campo de atuação literária, o sublime e o grotesco convivem lado a lado, e a escatologia teológica encontra como sua contraface a escatologia excrementícia, a marcar um final dos tempos que conduzirá a humanidade à “coproesfera”: Juiz jovem: Mas está perfeito! Uma surpreendente analogia! No fim do mundo, sobre nossas cabeças, uma nova esfera! A coproesfera! Sobre nossas cabeças enfim o que os homens tanto desejam: a matéria! Você não se entusiasma? Sobre nossas cabeças, como um novo céu, a matéria! Escatologia pura!77

Embora essa teorização assuma um caráter ambíguo na boca do personagem, essas ideias, para a autora, assumem uma importante função estrutural no tratamento que passará a ser dado à sua linguagem, como ficará evidente em um depoimento dado por ela anos mais tarde: Depois eu lido com situações-limite do homem, o que implica explorar todas as grandezas e debilidades, seguranças e dúvidas. É como se o que sempre se trata como “espírito” no abstrato – reverenciado à distância ou menosprezado no imaterial – ganhasse um corpo com vísceras. É aí que eu quero perscrutar e [isso] é, para mim, uma busca apaixonante que se traduz numa linguagem.78 (grifo meu)

O prólogo metalinguístico, além de apresentar uma espécie de tratado estético, antecede a ação que norteará a peça: os dois juízes haviam sido enviados a uma pequena cidade para uma espécie de julgamento. Tem-se, então, um dos valores semânticos da palavra “auto”, contida no título da peça: o seu significado jurídico evidencia-se na função dos personagens que a iniciam e no próprio cenário, que, de acordo com as 77 78

TC, p. 191. Apud Vicenzo, p. 44.

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indicações da autora, deveria ser “severo”, com “símbolos da justiça” nas paredes, “cadeiras negras altíssimas” e uma “mesa com livros e papéis muito volumosos”. Mas a escritora novamente brinca com a ambiguidade dos vocábulos: a palavra “auto” também recupera a tradição de uma forma: um tipo de peça comum no teatro medieval e que tem sua origem no rito religioso. Da encenação, na missa, ainda em latim, da paixão de Cristo,79 partia-se para uma dramatização, independente da liturgia, de toda uma história da humanidade pautada pela mitologia judaico-cristã, cujo encerramento se dá com a final dos tempos, a escatologia. Tratava-se de um novo tipo de peça: o mistério, a ser encenado não mais na igreja, mas sim na cidade, em língua vulgar, por cidadãos, e não pelo clero. A extensão, no tempo, do conteúdo a ser tratado na peça continuava a garantir certa epicidade, antes nela embutida por uma espécie de narrador que organizava os fatos. Outro ponto a se destacar nessa mudança é a inserção de caracteres que, aristotelicamente, eram considerados baixos, como os feirantes e os vendedores ambulantes de uma cena em que as Santas Mulheres compravam, no mercado da cidade, os produtos que seriam utilizados para embalsamar o corpo de Cristo.80 O toque épico dado à encenação de um mistério evidencia-se também no uso do palco simultâneo, surgido no século XII, e no qual todos os cenários eram colocados lado a lado. Assim, o desenrolar do enredo acompanhava o caminhar dos próprios personagens, obrigando também o público a locomover-se com a história.81 Isso proporcionava ao espectador uma visão total dos acontecimentos, como se tivesse diante de si todo um poema épico no qual os próprios personagens, diferentemente dos de uma tragédia, também conheciam o seu próprio fim. Desse modo, tanto quem está no palco como quem se encontra fora dele depara-se com toda a ação, o que constitui a própria simultaneidade do logos divino, concepção judaico-cristã da história da humanidade, de acordo com a qual o “então originário” coincide com o “então escatológico”.82 Mais tarde, quando as Virtudes e os Vícios tomam o lugar das divindades nessa contenda, o mistério se transforma em moralidade. Nessa nova forma, cuja cristalização se deu no século XVI, a luta deixa de ser travada pelas entidades que regem os destinos 79

Mais precisamente, o ponto de partida para o teatro medieval encontra-se no canto antifonado estabelecido, no século VI, pelo papa Gregório. Como no ditirambo, do qual proveio a tragédia ática, dialogavam, nessas apresentações, o coro e um solista (na tradição grega, o corifeu), o que constitui o gérmen do diálogo dramático. Cf. García, Flavio. Compilaçam de estudos vicentinos. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006, p. 12. 80 Rosenfeld, Anatol, O teatro épico, op. cit., p. 43-44. 81 Idem, p. 47. 82 Idem, p. 48.

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do homem e transfere-se para o interior de cada indivíduo. A principal figura desse modo de encenação passa a ser a alegoria: os tipos transitam pelo palco representando, cada um deles, as virtudes e vícios, que deverão ser ou não rejeitados pelos espectadores. Obviamente, o caráter dessas apresentações é também moralizante e, de certa maneira, recupera indiretamente os passos da mitologia judaico-cristã encenada nos mistérios.83 Persistem, ainda, nesse tipo de peça, elementos épicos, tais como prólogo e alocuções ao público, cujo “fito didático”, marcado pelas sucessões de “interpretações” e “comentários”, assim como a não inserção total do personagem no ator, migraram posteriormente para o drama de Brecht, Claudel e Wilder.84 A própria ação desmembrase em esquetes, quase que independentes, nas quais os vícios e virtudes entram e saem do palco, passando por uma espécie de julgamento. Por isso, como lembra Rosenfeld, são frequentes as cenas de tribunal, em que há sempre um “elemento de direção para o público”.85 Na tradição do teatro em língua portuguesa, em um sentido parecido, destaca-se a obra de Gil Vicente, em particular a trilogia das barcas. Como nota Surtz, na obra do dramaturgo português, há tanto uma ambiguidade espácio-temporal (que faz o crítico comparar seus autos a éclogas de Juan de Encina) quanto a ausência de ilusão dramática, acarretando a fusão entre a fábula apresentada e a realidade do espectador que a acompanha.86 Enquanto a primeira característica acentua o caráter de mistério da obra (embora a intriga apresentada seja temporal e particular, ela se torna umbra futurorum por ser participante de uma suposta “Verdade” proveniente da mitologia judaico-cristã87), a segunda indica o seu sentido de moralização, uma vez que não há uma distinção forte entre ator e público: os ensinamentos pelos quais o primeiro passa também servem para o segundo. Por isso, a principal função da trilogia das barcas – composta pela Barca do Inferno (1516?), Barca do Purgatório (1518) e Barca da Glória (1519) – é a de edificar quem assiste às encenações. O único conflito pelos quais passam os personagens – e também os espectadores – é o de saber se ganharão a salvação ou a danação eterna.

83

Valle, Ricardos Martins. “As barcas: uma moralidade?”. In: Vicente, Gil. Auto da barca do Inferno. Hedra: São Paulo, 2009, p. 16. 84 Rosenfeld, Anatol, O teatro épico, op. cit., p. 55. 85 Idem, ibidem. 86 Surtz, R. E. “Liturgy and Theater”. In: The Birth of a Theater – Dramatic Convention in the Spanish Theater from Juan de Encina to Lope de Vega. Madri: Castaglia, 1979, p. 35ss. 87 Valle, Ricardos Martins, op. cit., p. 18.

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Ora, todas essas variáveis, que vão do substrato religioso ao didatismo épico, funcionam como vigas estruturadoras da peça de Hilda Hilst, que também é um “auto da barca”. Primeiramente, o prólogo, constituído pelo aparecimento do passarinheiro que, de forma didática, apresenta o tema da encenação: a instauração de um tempo de violência, no qual não há mais espaço para a poesia. Em segundo lugar, o diálogo entre os juízes que, com técnicas de aproximação ao espectador, expõe o principal elemento configurador da peça: a flutuação entre o “alto” e o “baixo”, que se encontra presente no vocábulo escatologia. Essa conversa entre os juízes é interrompida, no entanto, por um trapezista, que invade o tribunal antes do início do julgamento. Ao aparecimento abrupto dele, segue-se mais uma cena cujas raízes também pode ser encontrada nos autos medievais: canções e danças invadem o palco, por meio de figurantes que, fazendo as vezes de povo, entram em cena e cantam juntamente com o trapezista, dando o “acento festivo e cerimonial”, que Rosenfeld coloca como elemento dos milagres e autos medievais.88 Somente após essas cenas (o prólogo metalinguístico e o aparecimento festivo do povo), é que se inicia o julgamento propriamente dito, com a entrada das testemunhas. Nesse momento, a peça se aproxima ainda mais de um auto vicentino, tendo em vista que as personagens (o Trapezista, o Passarinheiro, o Agente Funerário e Prelado) passam a “entrar e sair de cena”, como as esquetes independentes que compunham o texto do dramaturgo português. No entanto, há um fio que liga essas aparições: a visão de um homem que, ao chegar ao pequeno vilarejo, havia desestabilizado o local por conta de suas ações. A partir desse momento, certo lirismo passa contaminar os diálogos: rimas internas e assonâncias marcam versos escritos, muitas vezes, em ritmo popular, o que acontece tanto na fala das testemunhas quanto na dos juízes:

Juiz velho: Pedem-nos o impossível. Saber de um homem Que bem poucos vêem.

88

Cf. Rosenfeld, Anatol, O teatro épico, op. cit., p. 45. A cena em que o povo invade o tribunal, cantando e dançando, não existia na versão original, de 1968. Ela foi introduzida para a montagem realizada por Tom Santos, em 1987, no Grupo de Teatro Aplicado. Cf. Vincenzo, Elza Cunha de, op. cit., p. 54, e também: Rodrigues, Éder. O teatro performático de Hilda Hilst. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da UFMG, 2010, p. 150.

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Juiz jovem: Tão poucos o sabem Que é o mesmo Que falar do invisível. Juiz velho: O que se vê já é tanto E tão difícil. Se olhardes no mais fundo Um rosto se acrescenta. Mas se o olhardes muito Talvez desapareça. Juiz jovem: E apareça um outro rosto Até então submerso Esquecido E quase sempre adverso Ao próprio dono. Juiz velho: Ou cúmplice inconfesso. Juiz jovem: Então é melhor julgarmos O que parece mais real Não é?89

Em um diálogo no qual novamente as falas dos juízes parecem se completar, reitera-se a missão de ambos na pequena cidade: atestar a “não-existência” do homem que desestabilizou o local. Para isso, resolvem optar não pelo real, mas sim pelo que, a eles, parece verossímil. Essa atitude contrasta com as declarações do Passarinheiro, do Trapezista e do Prelado, para os quais a existência do personagem polêmico se pautava sobretudo pelas suas ações: o Passarinheiro o vira ressuscitar um pássaro que tinha “três plumas raras entre os olhos” e o peito “tão claro quanto o sol”; o Trapezista disse que ele se movia com liberdade, possuía um “andar elástico, espaçado”, que dificilmente poderia ser imitador por outro homem (“É leve... É pesado/ É flor e cajado”); o Prelado, por sua vez, presenciou a luta dele contra uma sombra, fato que espantou os juízes: Juiz velho: E a sombra de quem seria? Trapezista e Prelado (juntos): A sombra do... Juiz jovem: De quem? De quem? Prelado: Senhor... a Demonologia 89

TC, p. 196-197.

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Explicaria bem. Juiz velho: Ora, ora... E por que não a sombra do Divino? Trapezista: Mas luta-se com Deus? Juiz velho: Luta-se com a vida Com a morte, com o destino E por que não com Deus? Juiz jovem (Com ironia): Quem sabe assim Nós O conheceríamos. Trapezista: Oh! Prelado: Oh! Juiz velho: Estou muito cansado. Afinal, o que quereis de nós? Trapezista e Prelado: Que declarem o homem existente!90

Os pedidos do Prelado e do Trapezista, contudo, encontram tanto a resistência dos juízes quanto a do Agente Funerário, que, preocupado com a possibilidade de não encontrar mais compradores para seus caixões, insiste em agredir o Passarinheiro, alegando que não faz sentido a ressurreição de um morto (“Nunca! Não posso permitir / Que um morto seja vivo!”). Mas o homem misterioso acaba tornando-se vítima da violência que ocorre fora de cena (são constantes os ruídos de metralhadora, que surgem principalmente quando algum personagem pronuncia a palavra “lei”): uma rajada vigorosa de tiros, que faz com que o Prelado se ajoelhe e comece a rezar, serve de ensejo para a entrada do Trapezista, portador de uma notícia que conduzirá a peça ao seu desfecho:

Trapezista (ofegante): Senhores, o homem está morto! Tudo o mais é suposto! Juiz jovem: Morto? O homem do milagre?

90

TC, p. 217-218.

55

Não era tão milagroso? Juiz velho (para o Trapezista): Acalmai-vos! Acalmai-vos! Há de vos fazer mal esse nervoso! (Para o jovem) Os homens quando ficam nervosos Fedem mais.91

E a violência acentua-se ainda mais: são mortos os cães e pássaros que acompanhavam o misterioso homem, assim como os três personagens que defendiam a sua existência, que terminam a peça metralhados, com os corpos estendidos diante dos juízes. Estes, por sua vez, dão como concluída a missão na pequena cidade: Juiz jovem: Por favor, Excelência, não insista, não insista. Venha, vamos embora. (Vai empurrando o velho até a porta) Venha depressa, que cidade, que visita! Um homem fazendo milagre, pura fantasia, Que vaidade! Nem lícito seria que vivesse, Quem assim vivia. Pausa. Juiz velho: Mas agora o que fazer? Pequena pausa. Juiz jovem: Agora, Excelência, agora... Agora vamos comer!92

E assim termina o auto, sem qualquer indício de uma suposta moral a ser dita ao público. Mas, como percebera Pécora, a autora apenas simula seguir um modelo literário, uma vez que inverte o sinal das variáveis que a tradição define para a forma empregada.93 A mais evidente – e que acaba por tornar-se o achado mais interessante da peça – é a ausência do réu.

91

TC, p. 222. TC, p. 227. 93 Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Teatro completo. São Paulo: Globo, 2008, p. 9. 92

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Ora, nos autos vicentinos, por exemplo, as personagens incorporam tipos que representam vícios e virtudes, e estes, ao se apresentarem, como réus, diante dos juízes – Deus e o Diabo –, recebem o veredicto de acordo com a conduta que apresentaram em vida. Na peça de Hilda Hilst, também há dois juízes; contudo, como dito anteriormente, a fala de um funciona como eco de outro. Não há conflito entre eles e isso os personagens deixam claro no próprio diálogo que inicia a encenação. Além disso, a missão deles mostra-se extremamente inusitada: eles não estão na pequena cidade para, como nos autos religiosos, extirpar vícios e recompensar virtudes, mas sim com o intuito de apagar a existência de determinado indivíduo. Vale a pena deter-se um pouco na caracterização que é dada ao homem misterioso: segundo o jovem juiz, que chegou a vê-lo quando chegaram à cidade, ele tinha em mãos “um possível maná”; de acordo com as testemunhas, ressuscitava mortos e o seu olhar demonstrava ao mesmo tempo benevolência e conhecimento (“O... olhar é de quem sabe. / De quem viu muita coisa.”). Por fim, no momento em que vem ao conhecimento do público a sua morte, são projetados imagens da figura de Cristo. A associação do personagem à figura de um mártir não é gratuita: embora na encenação não existam indícios que determinem espacial e temporalmente a ação, o nome da peça traz uma informação elucidadora: Camiri é nome da vila em que Che Guevara fora morto em outubro de 1967. Segundo Vincenzo, na época da morte do guerrilheiro, foram divulgadas imagens de seu rosto muito parecidas com as de Cristo.94 Além disso, havia certo movimento, entre alguns setores cristãos, de dar mais importância não à imagem de um suposto filho da divindade, mas sim de valorizar o seu lado humano. Assim, a figura de Cristo cedia espaço a de Jesus de Nazaré, uma espécie de revolucionário que invadia templos e se colocava contra a mercantilização da religião. Três anos antes, Pasolini havia lançado um filme que valorizava justamente esse lado humano da personagem histórica: O Evangelho segundo Mateus, e essa era a imagem que os “setores raciocinantes da Igreja”,95 para usar uma expressão de Schwarz, que estavam mais ligados à teologia da libertação, preferiam do suposto Messias cristão. Mais tarde, a cultura pop chegou a transformar Jesus em hippie, protagonista de musicais...

94 95

Vincenzo, Elza Cunha de, op. cit., p. 37. Schwarz, Roberto, op. cit., p. 62

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Desse modo, a aproximação feita entre Che e o “filho de Deus” não chega a ser completamente disparatada. Encontra-se de acordo com um tipo de ideologia revolucionária corrente em meados dos anos sessenta, principalmente nos países da América Latina, na época vítimas de ditaduras que, mediantes violentos mecanismos repressores, esforçavam-se por sufocar quaisquer formas de manifestação contrárias ao regime, em particular as culturais. Daí, a preferência, por parte dos artistas, em não aludir diretamente aos fatos, mas sim partir para figuras que, de algum modo, os representassem. Nesse aspecto, evidencia-se a escolha da alegoria. Como metáfora continuada, a alegoria atua como mecanismo lógico de substituição. Ela funciona como uma sucessão de imagens que, sintagmatizadas, apontam para um referente. Por isso, o seu significado depende do arcabouço sintático do receptor, que, ideologicamente, criará uma imagem a partir das metáforas que a compõem. Por isso, uma parábola bíblica, por exemplo, pode assumir diferentes sentidos, dependendo da maneira como cada imagem que a constitui é interpretada. Evita-se, assim, a menção direta à “coisa”, deixando-se a cargo do receptor a formulação da ideia subversiva, a partir dos fragmentos de discurso que formam a alegoria. É o que acontece quando em Zumbi, musical montado pelo Grupo Arena, em 1965, o público pode ler a luta entre escravos e senhores como referência à própria situação de exceção em que o país se encontrava: bastava, para isso, uma operação semântica que substituísse “senhores” por “ditadura”, e “escravos” por “povo”.96 Tratase de um esconde-esconde compositivo comum ao teatro da época, frequentado, sobretudo, por jovens universitários que exultavam a cada menção oblíqua ao regime opressor, como se, unidos pelo fracasso que representou a regressão imposta pelos militares, ainda fosse “preciso cantar” não só para alegrar a cidade, como também denunciar o Estado instaurado. Os produtos criados, então, exerciam a função de “indulgências afetivo-políticas” – novamente uma expressão de Schwarz – que, de certa forma sublimavam a dor da derrota, muitas vezes partindo para um didatismo simplório que fazia com que os espectadores comungassem diante de verdades já conhecidas: “que existia o imperialismo, que a justiça é de classe”.97 Em seu estudo sobre a produção cultural das décadas de sessenta e setenta, Heloísa Buarque de Hollanda comenta como a opção revolucionária acabava se convertendo em “opção espiritual”: os 96 97

Schwarz, Roberto, op. cit., p. 83. Idem, p. 79.

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espetáculos transformavam-se em “verdadeiros meetings onde a intelligentzia” renovava “entre seus pares suas inclinações populares, anti-imperialistas, socialistas e revolucionárias”.98 Todo esse contexto proporcionou, muitas vezes, obras ingênuas, de forte apelo didático, problema do qual a maior parte das peças escritas por Hilda Hilst, nesse momento, não escapa. No entanto, há nessas peças da autora uma ambientação que se afasta do tom revolucionário encontrado nas apresentações do Teatro de Arena ou do Show Opinião. Certa claustrofobia, não muito diferente do clima propiciado pelos seus melhores poemas, e bastante semelhante à encontrada em Kafka, permeia a ação. De O rato no muro – em que freiras enlouquecem no isolamento de seu claustro –, ao tribunal em que se julga um réu ausente, verifica-se uma gama de personagens imersos em um mundo aparentemente paralelo à realidade histórica, embora os muros que os separam do real ainda permitam que sons de metralhadora sejam ouvidos. Mesmo indiretamente, os temas tratados nessas peças são ecos daquela declaração em que a autora proclamava a necessidade de se comunicar “de forma urgente e terrível”, o que sua poesia, naquela ocasião, não possibilitava. Mas esse era, naquele momento, um problema da literatura, de modo geral: Hollanda, em seu estudo, mostra como o trabalho literário deixou de “corresponder às necessidades colocadas pela situação política”, tendo a cultura sido canalizada para o circuito dos espetáculos: festivais de música, cinema e peças de teatro.99 Desse modo, as tentativas da autora no gênero dramático são condizentes com as necessidades culturais do momento, assim como o teor alegorizante e didático de suas peças são características encontradas em muitas obras criadas no período. Mas a autora não deixa de atender ao seu modo a essas necessidades. Rosenfeld, em texto sobre a produção teatral da época, destaca o fato de o teatro de Hilda Hilst não se filiar necessariamente a nenhum grupo, atuando como uma espécie de “unicórnio dentro da dramaturgia brasileira”.100 O crítico destaca, principalmente, o “teor lírico” desses textos, compostos, em grande parte, “por versos coloquiais adequados à cena moderna”.101 Além disso, aponta neles certa tendência ao “impressionismo”, por conta da “abstração que dá aos personagens cunho arquetípico”, 98 Hollanda, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem – CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 31. 99 Idem, ibidem. 100 Rosenfeld, Anatol. “O teatro brasileiro atual”. In: Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 167. 101 Idem, p. 168.

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o que proporcionaria a impressão, em diversos momentos, de que os acontecimentos ocorrem em um plano distante da realidade histórica. Para Vincenzo, esse seria um ponto positivo para o teatro da autora, uma vez que os fatos seriam retirados de suas “circunstâncias empíricas” para serem erguidos “à categoria de uma reflexão mais ampla”.102 Essa atemporalidade é uma das marcas de Auto da barca de Camiri, em que se tem a sensação de que os verdadeiros acontecimentos não ocorrem no tribunal inventado. Eles se processam do lado de fora, em meio a tiros e violência, enquanto no interior do mundo ficcional cabe ironicamente à Lei apagar os indícios da repressão que, como um ruído de fundo, desafina o lirismo que contamina os diálogos da peça. Mas, como o desfecho demonstra, essa redoma não se encontra completamente protegida: os tiros invadem o tribunal, matam as testemunhas e nem há mais barcas com quais se possa partir para a danação ou para a salvação. O que resta é o vazio criado pelo “Agora vamos comer” proferido, ao final, pelo juiz mais jovem. Nesse aspecto, o auto de Hilda Hilst mostra-se tecnicamente muito mais robusto que as outras peças da autora, em que na maior parte das vezes se peca pelo excesso de didatismo, como no desfecho de O novo sistema, em que os atores, ao final, dirigem-se ao público para clamar ingenuamente por um mundo em que “a poesia, a filosofia e a ciência”, mediante uma “lúcida alquimia”, preparem o Homem para uma “transmutação”. Certamente essa é uma solução muito diferente da encontrada pela autora em seu auto: o assassinato do misterioso homem coloca um ponto final na possibilidade de qualquer revolução. E, mais do que isso, aponta para a impossibilidade da própria poesia naquele tempo de violência e repressão. Ora, como dito anteriormente, a fala com que o Trapezista abre a peça recupera uma ideia contida em um poema publicado nos anos imediatamentes anteriores: a de uma “tempo de lamento”, inapropriado para o trabalho poético. Além disso, vale lembrar que uma das principais autoridades poéticas da autora fora Jorge de Lima, que, em conjunto com Murilo Mendes, em meados da década de 1930, inspirado pela sua militância católica, pretendia “restaurar a poesia em Cristo”.103 Essa ideia fica bem nítida no poema 24, do Livro de sonetos:

102 103

Vincenzo, Elza Cunha de, op. cit., p. 58. Andrade, Fábio de Souza. O engenheiro noturno. São Paulo: Edusp, 1997, p. 35.

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Vinte séculos de revolução E inda há fome do pão que é a poesia. Quando tento saciá-la, tento em vão É meu ritmo perene, noite e dia. Cristo, quero escutar Teu coração: pendo a cabeça e escuto-o. Essa agonia de fazer o poema, essa paixão, na Última Ceia começou. Seria, um de nós... um de nós era suspeito um de nós entre os doze Te trairia. E sob o peso dessa suspeição, repousei a cabeça no Teu peito. E esse ritmo de vida que eu ouvia era o ritmo de fome deste pão.

No poema, o “pão que é a poesia” provém de Cristo, cuja batida de coração corresponde ao ritmo que marca os versos do poeta. Como o próprio Jorge de Lima revelou, em depoimento concedido ao suplemento cultural do periódico O Jornal, em 1945, sua intenção, naquele momento era de partir daquilo que ele considerava particular – a poesia regionalista – para um voo mais universal. Isso, para ele, significava aprofundar-se no misticismo cristão, uma vez que considerava como autêntica Verdade aquela que se encontrava na Bíblia,104 o que explicaria, por exemplo, o apoteótico e beato fecho dado à Invenção de Orfeu. Porém, o que vale a pena destacar no soneto acima transcrito é o fato de que a poesia nasce de um Messias prestes a ser executado (“...Essa agonia / de fazer o poema, essa paixão, / na Última Ceia começou”). E é partir desse momento que começaria uma suposta revolução (“Vinte séculos de revolução”), proveniente de um ideal poético que o vate tenta, com seus versos, alcançar. Assim, ao investir seu Che Guevara de características cristológicas, Hilda Hilst também coloca o personagem como simbolo de um ideal poético. Mais precisamente, 104

Cf. Lima, Jorge de., op. cit., p. 45-46.

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da concepção de lírica que não só Jorge de Lima, como ela mesma, havia demonstrado em seus poemas. Mas o mundo em que se intenta construir esse ideal lírico não o suporta mais: o réu, a própria lírica, encontra-se ausente, sem voz defender-se de uma Lei que se empenha para o seu total apagamento. Do lado de fora, em meio à violência, morre um signo – o homem misterioso – que é, ao mesmo, tempo uma ideia de revolução e de poesia.

Essa constatação bastante amarga também comparece em As aves da noite (1968), peça em que a autora esforçou-se para “ouvir o que foi dito na cela da fome, em Auschwitz”.105 Embora também possua como tema o martírio, o enredo dessa peça é de mais fácil identificação, se comparada à anterior: ela encena as últimas horas de vida de um grupo de prisioneiros da “cela da fome” – um joalheiro, um jovem poeta, um estudante de biologia, um carcereiro e o padre franciscano Maximilian Kolbe, que se ofereceu para ocupar o lugar de outro prisioneiro. Em termos formais, é a peça que mais se aproxima de uma ideia clássica de tragédia: tanto o espaço como o tempo são bem delimitados (uma noite em um porão do campo de concentração de Auschwitz), e há também um herói – o padre – cuja hybris é oferecer a si mesmo como sacrifício. No entanto, há na peça laivos de lirismo que corroem a forma: na situaçãolimite descrita, as dúvidas existenciais, a interrogação quanto à existência do mal e em relação à suposta bondade de um Deus omisso à barbárie servem de ensejo a uma linguagem que, pouco a pouco, vai se tornando lírica, o que é condizente com a afirmação da autora, na apresentação do texto, de que somente nos momentos extremos “é que interrogamos esse grande obscuro que é Deus, com voracidade, desespero e poesia”.106 Assim, ao ouvir a descrição de como os cristais são colocados nos respiradouros, para sufocar os prisioneiros que serão sacrificados, e que é feita pela mulher jogada na cela pelos agentes nazistas para manter relações sexuais forçadas com o religioso, os personagens parecem conversar com eles próprios, como numa espécie de monólogo: Carcereiro: E o que é isso?

105 106

TC, p. 237. Idem, ibidem.

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Pausa. Mulher: É o sinal. Pausa. Carcereiro: Que sinal? Pausa. Mulher: O sinal para que lancem os cristais pelos respiradouros. Pausa. Poeta (Sem entender): Pelos respiradouros... Mulher: Pelas aberturas. Depois as aberturas são seladas. Estudante (Rindo. Sorrindo. Nervosamente): Não, não. Joalheiro: Cristais... Mulher: A cor é azul... A cor dos cristais é azul-ametista. Joalheiro (Apreensivo, sem acreditar): As ametistas são pedras muito bonitas, mas... Mulher (Interrompe): Eles ficam depois olhando através do vidro das vigias.107

Mas é no personagem do jovem poeta que a subjetividade exarcebada mais se acentua. E é ele, também, o único a morrer diante do público, tornando-se, em seguida, alvo do humor negro dos oficiais da SS: SS: Um poeta? Muito bonito... Hans, leva prá fora, leva prá fora o porco poeta. (Todos se aproximam muito do Poeta) Para trás, para trás. (O ajudante afasta todos com violência) Vamos, todos cantando, cantando, la, la, ra, la... Não querem mais cantar? Pena, pena. (Hans começa a arrastar o corpo do Poeta para fora) Então um poeta... muito bonito... nós também temos grandes poetas... espera um pouco, Hans. (Começa a dizer lentamente): Sobre todos os cimos O repouso. Sobre todos os cumes Apenas leve sopro. Continua comigo, Hans. (Os dois juntos) Calam os pássaros na mata 107

TC, p. 262-263

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Espera, pois, e em breve Também descansarás. (Vão saindo, o SS dá risadas discretas e Hans só sorri) Muito bonito... muito bonito...108

A cena é de uma crueldade imensa: o “porco poeta”, enquanto tem seu corpo arrastado violentamente para fora da cela, recebe como “homenagem” um dos poemas de Goethe considerado como exemplo puro do gênero lírico. No entanto, a paz que o poema enuncia, no contexto em que é declamado, é a do vazio proveniente de um ato de barbárie. O mundo descrito nesse texto, como na peça anterior, é desfavorável à existência da poesia. Ao poeta, então, resta a matéria que é seu corpo, já desprovido de qualquer subjetividade que possa ser transmutada em versos. Ao final da peça, a imagem que fica ao espectador é o de um círculo de violência, a girar sem salvação ao redor de si próprio, como aquele que o agente SS pede para que os prisioneiros façam, antes que a cortina anuncie o fim do espetáculo: SS: (...) Daqui por diante, senhores, (Lentamente) uma santa madrugada, um santo dia, uma santa madrugada, um santo dia, como uma roda, senhores, uma roda perfeita. (Faz com uma só mão um movimento circular cada vez mais rápido) Perfeita, infinita, infinita. (Riso discreto. Sai abruptamente.)109

Tanto As aves da noite quanto Auto da barca de camiri trazem à cena, de alguma maneira, a morte de um poeta: enquanto na segunda peça isso ocorre de modo indireto, a partir do assassinato de um mártir que incorporaria em si determinado ideal de poesia, na primeira isso se processa ainda mais claramente, com o sacrifício de um personagem que, não tendo o nome revelado, é, durante todo o texto, tratado como “Poeta”. A mesma impossibilidade de cristalização de uma subjetividade lírica enunciada em seus poemas anteriores comparece aqui, não mais moldadas na forma de um poema, mas sim como ação dramática, na qual a falta de seus heróis e mártires ainda é acreditar no potencial da palavra poética. À primeira vista, as peças escritas por Hilda Hilst em tão curto espaço de tempo parecem desprovidas de vigor, às vezes didáticas e alegorizantes ao extremo. 108 109

TC, p. 272. TC, p. 297.

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Críticas como essas não chegam a ser inteiramente falsas: de fato, como notara Palotini, são textos teatrais escritos não por uma dramaturga, mas sim por um poeta lírico, aparentemente ainda a lutar contra cacoetes da Geração de 45 que permeavam o seu trabalho em poesia. Por isso, a preferência não pelos atos, mas sim pela construção de personagens, de subjetividades que expressam justamente a “incomunicação”, que é expressão da “impossibilidade do amor, da impossibilidade do entendimento, da impossibilidade, finalmente, da ação”.110 Qual seria, então, o alcance cênico desse tipo de teatro? Para Rosenfeld e Pécora, seriam necessários mais grupos interessados em encená-los para verificar o seu alcance real. Por outro lado, é inegável que essa tentativa em outro gênero marcou inevitavelmente o trabalho de Hilda Hilst, como ficará claro em sua prosa e na poesia posterior. Tirando proveito das palavras do jovem juiz de Auto da barca do Camiri, a transcendência ingênua e espiritualizante da lírica anterior da autora cederá espaço ao trato com a “matéria”, esta às vezes putrefata como o cadáver do “porco poeta” de As aves da noite, obrigado violentamente a aceitar na peça os baixios de seu próprio corpo. Orfeu, então, continua sua descida aos infernos, não mais nos pássaros azuis que se protegiam em douradas gaiolas, mas sim na ave disforme que o Demônio de A morte do patriarca cavalga, enquanto atira para todos os lados com a metralhadora que tem em mãos, na cena final da última peça escrita por Hilda Hilst, em 1969, um ano antes da publicação de seus primeiros textos em prosa.

110

Pallotini, Renata. “Do teatro”. In Hilst, Hilda. Teatro completo. São Paulo: Globo, 2008, p. 485.

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CAPÍTULO 3 DO ALTO PARA O BAIXO

As palavras que compõem o título do primeiro volume de textos em prosa de Hilda Hilst, Fluxo-floema, lançado em 1970, após as tentativas da autora no teatro, servem de parâmetro para se inferir o tipo de narrativa que aguarda o leitor. Fluxo, por exemplo, pode ser rapidamente associado à técnica do stream of consciousness usada por romancistas como James Joyce, Virginia Wolf, Clarice Lispector, entre outros. Floema, por sua vez, corresponde ao tecido que, a partir da raiz, conduz a seiva para os demais órgãos e tecidos de uma planta. Se o primeiro vocábulo remete a uma ideia de interiorização, em que o discurso indireto livre direciona o foco narrativo cada vez mais aos meandros da consciência individual, o segundo sugere uma espécie de ligação vital entre as partes de um mesmo corpo. Essas mesmas palavras são as que nomeiam, respectivamente, a primeira e a última narrativa do volume, de modo que o título funcione não como o rótulo de um conjunto de histórias independentes, mas como tecido que garante certa uniformidade ao livro. Ora, uma asserção como essa certamente gera surpresa, uma vez que as narrativas do volume, distante de se aparentarem a um corpo uniforme, parecem espalhar-se em fragmentos conduzidos por uma linguagem caótica e sem a menor preocupação com o estabelecimento de um sentido unívoco e totalizador. Em primeiro lugar, dificilmente se apreende com precisão o enredo desses textos, embora as ações centrais de “Osmo” e “Lázaro” pareçam delinear de modo mais concreto a fábula de uma narrativa. Em segundo, há ataques contundentes às categorias de pessoa, tempo e espaço – vetores de sustentação da prosa ficcional – desestabilizando consideravelmente até mesmo os textos em que se pode detectar algum fio narrativo, por mínimo que ele seja. Seria possível, então, cogitar a existência de um tecido floemático que interligasse objetos tão díspares como as histórias desse conjunto? Isso não é perceptível, à primeira vista, no nível temático; porém, uma visada mais apurada na estruturação da obra pode indicar que o título, mais que um rótulo que nomeia um conteúdo, refere-se à própria forma de composição, em que elementos do discurso lírico 66

hilstiano corroem e desorganizam os alicerces narrativos. Como afirma Willer, trata-se do discurso em processo, como se deparássemos com fragmentos de um texto infinito.111 Chega a ser impressionante a discrepância estilística, caso se compare a verborragia caótica dessas narrativas à concisão e ao apuro formal dos poemas escritos nas décadas de 1950 e 1960,112 e mesmo ao alegorizante e moralizante, embora já com elementos corrosivos, teatro escrito pela autora anos antes dessa aventura no universo da prosa. Leo Gibson Ribeiro os equipara a um “palimpsesto mesopotâmico”, somente comparável ao que Joyce havia produzido em Finnigans Wake.113 Colocando um pouco de lado a pretensiosa comparação feita com o autor de Ulisses, talvez o palimpsesto seja a metáfora mais apropriada para esses escritos: uma profusão de ideias, formas discursivas e alusões literárias dispostas como se em camadas, mesclando gêneros e estilos, em um discurso labiríntico e vertiginoso. Diante de textos como esses, a apreciação crítica chega a um impasse: a dificuldade em delinear um sentido ou possível verdade a partir de categorias tradicionais de análise. Tempo, espaço, enredo, tipologia de narradores, tudo isso parece ganhar nova dimensão nessa realidade hermética que a linguagem da autora instaura. É necessário, contudo, valer-se de uma espécie de fio de Ariadne que permita caminhar em meio a esse caos de imagens, remissões, formas e sons. Para isso, é preciso demonstrar como essa desestruturação, ocasionada por elementos líricos, no nível formal, mantém relações estreitas com a matéria enunciada e com problemas que já apareceram na poesia e no teatro da autora. Uma das questões centrais da obra anterior de Hilda Hilst era a da possibilidade de constituição de uma subjetividade lírica pautada por um orfismo que, mediante uma espécie de reencantamento do mundo, trouxesse novamente a poesia ao cotidiano do homem, agora imerso em afazeres burgueses e consolado pelos divertimentos apaziguadores dos meios de comunicação de massa. Essas tentativas, baseadas principalmente numa dicção sublime, herdada da Geração de 45, e numa religiosidade meio cristã, meio panteísta, salpicada de elementos gnósticos, advindas do contato da autora com Jorge de Lima e Rilke, revelaram-se ingênuas e encontraram como contraponto a violência e a amargura. Em seu teatro, personagens que de algum modo recuperavam esse ideal poético – o homem misterioso de Auto da Barca de 111

Willer, Cláudio Jorge, op. cit., p. 367-368. Idem, ibidem. 113 Ribeiro, Leo Gibson. “Apresentação”. In: Hilst, Hilda. Ficções. São Paulo: Quíron, 1977, p. 13. 112

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Camiri, o poeta de As aves da noite, além de América, em A possessa e a Irmã H, de O rato no muro – tornavam-se vítima da violência de seu tempo. Nessas ficções, contudo, começa a aparecer um tipo de personagem que ganhará relevo especial principalmente na prosa obscena do início dos anos 1990: trata-se do escritor, um tipo que já se deixa entrever nos fiapos de narrativa que compõem “Fluxo”, a história que abre o livro lançado em 1970. Personagens parecidos habitarão outros textos desse livro, como a narradora de “O unicórnio” e, de maneira não tão direta, o Koyo, de “Floema”. E mesmo os protagonistas de “Osmo” e “Lázaro”, que não se ligam diretamente ao problema da escrita, apresentam preocupações metafísicas semelhantes aos personagens-escritores que habitam o universo ficcional hilstiano.114 Uma diferença substancial, contudo, marca essa nova caracterização do poeta, se comparada com a que se entrevia nos poemas anteriormente analisados: como contraponto da possibilidade de transcendência, a partir da escrita, surge a constatação da perecibilidade do proprio corpo. O poeta, como afirma Ruiska, o escritor de “Fluxo”, em relação a si mesmo, é um “porco com vontade de ter asas”. Preso às necessidades do cotidiano, precisa prestar contas ao editor (ou “o cornudo”, como Ruiska se refere a ele), que o obriga a escrever banalidades que lhe renderão o dinheiro utilizado para comprar a “gamaglobulina” necessária ao seu filho, Rukah, portador de encefalite, e sustentar a esposa, Ruisis. Indiferente a esse novo Orfeu, que agora “desce as escadas da repartição”,115 a preocupação desse novo tipo de mecenas não é mais com a qualidade estética da obra, mas sim com sua rentabilidade. Esse rebaixamento, no caso de Hilda Hilst, cria um tipo de narrador bastante peculiar: é como se a subjetividade lírica de seus poemas amargurados precisasse afinar seus instrumentos linguísticos para a execução de uma nova forma. Inserido no reino do prosaico, aquele eu lírico problemático, que cantava a impossibilidade da poesia em tempos de mercadoria e barbárie, parece encontrar dificuldade em plasmar os conteúdos no novo gênero em que atua: “... ah, mas este não é o meu tom, eu sei que poderia escrever ficção... mas isso não é bem ficção... isso que eu estou contando”,116 lamentase a narradora de “O unicórnio”. Por isso, em sua prosa, há momentos de reflexão

114

Pode-se dizer o mesmo de Hillé, de A obscena senhora D, e de Tadeu, protagonista do conto que abre o livro Tu não te moves de ti. 115 Andrade, Fábio de Souza. O engenheiro noturno, op. cit., p. 47. 116 FF, p. 155.

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quanto à precariedade da própria voz que enuncia e também em relação ao modo de enunciação, o que acontece desde os parágrafos iniciais do volume: Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte, havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menino vem para a minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorálos, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é um menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. Oi ai. Não há salvação.117

Ao analisar esse mesmo trecho, Eliane Robert Moraes identifica temáticas que, segundo sua leitura, seriam fundamentais para a compreensão da obra de Hilda Hilst: “o desamparo humano”, representado pela condição do “menininho”, às voltas com suas ambições – salvar o crisântemo – e com os perigos suscitados por ela – deparar-se com o “monstro medonho”; o “sublime”, que teria na flor o seu símbolo; e a “bestialidade”, a fera à espera de uma criatura para devorar.118 Certamente, essas questões podem ser identificadas na passagem; no entanto, é importante destacar que o trecho, como a própria crítica notara, constitui uma “breve narrativa”.119 Na pequena fábula, é possível detectar os personagens (o “menininho” e o “monstro medonho”), a função de cada um deles (a do menininho, salvar o crisântemo; a do monstro medonho, impedir que o herói tenha sucesso em sua ação) e o problema que ocasiona a intriga (o crisântemo caiu no “lago escuro”). Essas informações, contudo, são apresentadas por um “eu” que se reporta diretamente a um ouvinte (ou

117

FF, p. 19-20. Moraes, Elieane Robert. “A medida estilhaçada”. In: VV. AA. Cadernos de literatura brasileira, n. 8. São Paulo: Instituto Moreira Sales, p. 115. 119 Idem, p. 114. 118

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leitor-enunciatário), assumindo tanto a voz do menino quanto à de seu antagonista, sem que ocorra, para isso, marcas indicadoras de discurso direto, como se o narrador incorporasse em si os polos de conflito que dariam ensejo à ação. Ao final, ocorre um distanciamento, no qual se explicitam as funções de cada elemento para o sucesso do que seria uma narrativa bem comportada: “se você é o menininho”, fará isso; se é o “monstro medonho”, aquilo. Essa parada metalinguística corresponde ao momento de reflexão de uma voz que, afinando seus instrumentos, tenta adaptar-se à nova forma em que atua e, ao mesmo tempo, reflete sobre ela. Esse descompasso entre uma voz enunciativa desacostumada com os expedientes de determinado gênero e a matéria narrada pode ser detectado, por exemplo, no momento em que o narrador se apresenta e informa quais são os demais personagens da trama: Gosto de enfrentar quem se mostra. Olhe aqui, Ruiska – Ruiska sou eu, eu me chamo Ruiska para esses que se fazem agora, para os que se fizeram, para a multidão que se fará, e para não perder tempo devo dizer que minha mulher se chama Ruisis e meu filho se chama Rukah. Não me percam de vista, por favor.120

O leitor toma conhecimento dessas informações algumas páginas depois do início do texto. É uma situação diferente da de um narrador em primeira pessoa que, mesmo assumindo a precariedade de suas lembranças, esforça-se por manter coesas as rédeas do discurso, como ocorre, por exemplo, em São Bernardo, em que a voz autoritária de Paulo Honório, logo no primeiro parágrafo, denuncia seus anseios de dominação. Ou da de Riobaldo, de Grande sertão: veredas, que, mesmo perdido entre os acontecimentos de sua vida, ainda guarda em si centelhas daquele tipo de narrador sertanejo repleto de estórias e “causos” para contar. A melhor aproximação em relação a essa subjetividade problemática com dificuldades de se enunciar seria a prosa de Beckett. Esse autor irlandês, do qual Hilda aproveita um trecho de Molloy como epígrafe de Fluxo-floema, encena, em sua trilogia francesa (Molloy, Malone morre e O inominável), uma espécie de esfacelamento gradual do “eu”: primeiramente, por um desdobramento em duas vozes que relatam visões diferentes de uma mesma narrativa (Molloy), passando pela encenação da morte gradual da primeira pessoa do discurso 120

FF, p. 23.

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(Malone morre), até alcançar uma espécie de “identidade deslizante” que descaracteriza sua própria fonte (O inominável).121 Neste último romance, o processo chega ao seu limite: o eu que havia dito não mais autodenominar-se “eu”, em Malone morre, retorna, mas de forma compulsiva, sem fixar-se em pessoas concretas, como uma espécie de fantasmagoria que, embora queira expressar-se, não encontra mais meios para tal. Como comenta Hansen, no prefácio à tradução brasileira, em O inominável perdem-se os liames entre o “Eu substancial” – a assumir corpos que cada vez mais se aproximam do inanimado – e o “eu pronominal”, em uma “somatória de eliminações de representações”.122 Como dito, a escolha de Hilda Hilst para o prefácio de seu livro recai em justamente no primeiro romance da trilogia beckettiana. E isso, como acontece com toda a alusão literária feita por ela, não ocorre fortuitamente. Assim, vale a pena deter-se um pouco nessa citação: Havia, em suma, três, não, quatro Molloys. O das minhas entranhas, a caricatura que eu fazia desse, o de Gaber e o que, em carne e osso, em algum lugar esperava por mim. (...) Havia outros evidentemente. Mas fiquemos por aqui, se não se importam, no nosso circulozinho de iniciados.

Esse momento precede o da partida de Moran, uma espécie de agente que recebera como missão, por meio do mensageiro Gaber, encontrar um homem chamado Molloy, personagem com o qual o leitor teve contato na primeira parte do romance. No início, a ação é narrada pelo próprio Molloy, um velho decrépito, já impossibilitado de movimentar-se, e por isso preso ao quarto que ele cogita ser o de sua falecida mãe, onde tem como única ação a de escrever; em troca das folhas que preenche, possivelmente com a narrativa de sua própria peregrinação para chegar ao local em que se encontra, ele recebe o suficiente para sobreviver (“Esse homem que vem toda semana, é talvez graças a ele que estou aqui. Ele diz que não. Me dá dinheiro e leva as folhas. Tantas folhas, tanto dinheiro”123). Algo semelhante acontece com o Ruiska do texto de Hilda Hilst (“Toma, toma quinhentos cruzeiros novos e se não tá com inspiração vai por mim, pega essa tua folha luminosa e escreve aquela palavra às avessas (...). Amanhã eu pego o 121

Andrade, Fábio de Souza. Samuel Beckett. O silêncio possível. Ateliê: Cotia, 2001, p. 146. Hansen, João Adolfo. “Eu nos faltará sempre”. In: Beckett, Samuel. O inominável. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009, p. 8. 123 Beckett, Samuel. Molloy. São Paulo: Globo, 2007, p. 23. 122

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primeiro capítulo, tá?”)124, como uma diferença: a prisão escolhida pelo escritorpersonagem é voluntária. Para escrever os seus textos, ele se isola em seu escritório, protegido por uma “porta de aço”, uma espécie de nova versão do motivo do emparedamento. No interior do gabinete, seu contato com o mundo externo é mediado pela janela, e por uma claraboia e um poço dispostos no mesmo eixo. Desse poço é que aparecerá o grotesco anão, personagem que passará a acompanhar os questionamentos existenciais de Ruiska. Também como Molloy, Ruiska apresenta dificuldade para organizar o seu discurso. Ao comentar o romance de Beckett, Souza destaca a “incompetência do narrador”, que é atestada, em vários momentos, por ele mesmo: Molloy diz “não saber grande coisa”, além de ter “esquecido a ortografia e metade das palavras”.125 Fora isso, ele apresenta problemas na hora de concatenar as ações, não conseguindo estabelecer relações de causa e consequência: Pois tudo se liga, por obra do Espírito Santo, como se diz. E se não mencionei essa circunstância em seu devido lugar, é que não se pode mencionar tudo em seu devido lugar, mas é preciso escolher entre as coisas que não valem a pena ser mencionadas e as que valem menos ainda. Pois se se deseja mencionar tudo, não se termina nunca, e tudo está aí, terminar, terminar. Oh, eu sei disso, mesmo mencionando algumas das circunstâncias existentes, não se termina também, eu sei, eu sei. Mas muda-se de merda. E se todas as merdas se parecem, não faz mal, faz bem mudar de merda (...).126

Para Molloy, o próprio conteúdo da narrativa é tratado como matéria excrementícia e, embora conheça o preceito aristotélico de que não se pode contar a Ilíada ab ovo, o personagem simplesmente ignora o ensinamento de que se devem escolher apenas os fatos essenciais, como se percebe no trecho em que apresenta a contagem de flatos que havia dado no dia: “Um dia os contei. Trezentos e quinze peidos em dezenove horas, dando uma média de mais de dezesseis peidos por hora”.127 Por isso, a “rarefação do enredo” notada por Andrade, a impedir que o romance “apresente

124

FF, p. 21. Souza, Ana Helena. “Molloy: dizer sempre, ou quase”. In: Beckett, Samuel, op. cit., 2007, p. 9. 126 Beckett, Samuel. Molloy, op. cit., p. 66. 127 Idem, p. 52. 125

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um desenvolvimento, no sentido tradicional do termo”, seja quanto à trama, seja quanto à psicologia dos personagens.128 O mesmo problema ocorre na segunda parte do romance, em que Moran assume as rédeas da enunciação. Este, ao contrário de Molloy, começa seu relato de forma metódica, mostrando-se seguro em sua pretensa capacidade de concatenar as ações. Pouco a pouco, no entanto, essa impressão se esvai e ele se mostra tão confuso quanto o andarilho decrépito. Esboroa-se, também com o agente, a possibilidade de uma narrativa bem-comportada, por conta de uma sucessão de anulações de elementos que poderiam constituí-la: “Não tenciono narrar as diversas aventuras que aconteceram a mim e a meu filho, em conjunto e em separado, antes da nossa chegada ao país de Molloy”,129 diz ele, colocando sinal negativo em um motivo tradicional da ficção: o da viagem de aventuras. Não há, nem em Moran, nem em Molloy, tentativas de atribuição de sentido à existência a partir da matéria narrada. Eles se adequam bem ao modo de composição que Beckett, em oposição ao work in progress joyceano, chamou de work in regress, e que, levado às últimas consequências, conduzirá o escritor aos restos discursivos de Como é e ao paroxismo das coisas mal vistas e mal ditas de sua obra final. Mesmo as tentativas em outros gêneros e mídias, como o teatro, o rádio, a televisão e o cinema, correspondem, em Beckett, ao questionamento dos princípios narrativos: em Fim de partida, por exemplo, os personagens são narradores precários, “voltados para dentro de si mesmos”, como Hamm, sempre a refletir sobre as anedotas e histórias que conta, ironizando “a beleza e a eficácia de seu próprio texto”.130 Em Hilda Hilst, por sua vez, os problemas que se colocam estão relacionados à constituição de uma subjetividade lírica: “Olhe aqui, Ruiska, não fale tanto em si mesmo agora, porque o certo em nosso tempo é abolir o eu, entendes?”,131 aconselha o anão, após ouvir o seguinte poema, escrito por seu interlocutor: Reses, ruídos vãos vertigem sobre as pastagens ai que dor, que dor tamanha de ter plumagens, de ser bifronte → 128

Andrade, Fábio de Souza, Samuel Beckett. O silêncio possível, op. cit., p. 53. Beckett, Samuel, op. cit., p. 181. 130 Andrade, Fábio de Souza, Samuel Beckett. O silêncio possível, op. cit., p. 106-107. 131 FF, p. 40. 129

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ai que revezes, que solidões ai minha garganta de antanho ai minha garganta de estanho garganta de barbatanas e humana ai que triste garganta agônica.

O tom do poema de Ruiska é de lamento: a voz, modulada com aliterações em “r” e “s”, que parecem atuar como incômodos ruídos de fundo, enuncia-se a partir de uma garganta que, paradoxalmente, é resistente (o estanho é conhecido justamente por essa propriedade), e concomitantemente agônica. O par antanho/estanho fundamenta sua similaridade sonora em uma ambiguidade: o estanho é pouco oxidante, o que garante que resista mais a efeitos corrosivos; ao mesmo, porém, o seu som, ao se quebrar, assemelha-se ao de um grito agonizante, semelhante ao de cristais, quando se rompem. Esse oximoro produzido pela rima encontra sua tradução imagética no grotesco de uma garganta constituída por elementos humanos e animais. Trata-se de uma voz condizente com a vicissitude dos tempos, o que novamente recupera um leitmotiv presente nos poemas da produção anterior de Hilda Hilst. O escritor Ruiska, por meio de sua enunciação, serve de porta-voz a essa subjetividade lírica problemática, repetindo até mesmo versos que a autora havia escrito em Ode fragmentária: “Também não precisa chorar, anão, sim compreendo, eu mesmo estou chorando, era bonito cantar, trovar, mas bem que diziam: tempo não é, senhores, de inocências, nem de ternuras vãs, nem de cantigas, diziam e eu não sabia que a coisa ia ser comigo, entende?” (grifo meu).132 Assim, se Beckett respondia à questão da impossibilidade da narrativa com a sua “poética da falta”, caracterizada pela anulação de elementos formais constituidores do gênero e pela redução de um “eu-narrador” ao resto quase inanimado de uma individualidade precária, a autora de Fluxo-Floema hipertrofia o “eu” que, mediante metamorfoses contínuas, fagocita as individualidades por ele mesmo enunciadas. Hilda Hilst, com sua “poética do excesso”, parece trazer à economia da narrativa o “Eu é um outro” de Rimbaud, assim como as alucinações de Moran misturavam, na consciência do personagem, as diferentes representações de Molloy:

132

FF, p. 41.

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(...) Não Ruiska... deves... penso que deves... que nunca mais... quenuncamaisdevesescrever... há meios mais eficientes de comunicação, a coisa é visual agora, entendes? Estás me matando, anão, para. Ruiska, eu sei que não é um sapo coaxando dentro de um só lago, eu sei, mas os outros te veem sapofundo no lago. Que bonito sapofundo, que bonito. Sim, mas não adianta, eu sei desse teu ser que também é o meu, sei que Ruisis é também você, e Rukah é o ser a três que também és, inventaste muito bem, és tão só, eu compreendo. Para, não diz que é invenção. Ora, Ruiska, vão saber de qualquer jeito. Tenho vergonha, para. Por agora, mas fica sabendo que a tua metafísica de dentro é coisa pra depois, entendes? E anda mais depressa, estás mancando. Anão, por favor, o meu de dentro o teu a dor o vazio palavra morta da minha boca tudo trevoso queria amo não sei demais paredões da memória memória memória cascalho confundindo o percurso das águas dor pátio onde os homens caminham chamados ai AAAAAAAAAIIIIIIIII que chamados estiletes a terra os dentes pó pó mas a memória os girassóis o Deus Deus Deus o azul o ovo a periferia da galáxia vida vida ali se faz mais matéria ali começa a matéria ai eu e eu nunca mais o meu de mim sempre agora o meu do outro meu mais longe ou meu mais perto não sei o outro não é eu ou não sei umbigo centro de mim ou do universo não sei ando querendo colocar o bilhete na parede alguém vai pegar vai ler diz diz que é também o teu de dentro diz que não sou só eu que tento diz por favor lê lê vou vomitar ninguém para pôr a mão na testa goi goi chin chin roseiral-mirim laranjeiras correria vida goiabada em lata memória memória memória morrer ficar saliva gosma gosma esticando sempre teia teia de aranha centro umbigo AAAAAAIIAAAIAAI. (...)133

O trecho revela o mecanismo de funcionamento da narrativa: Rukah, Ruisis, o anão e, por que não, todos os demais personagens são desdobramentos de Ruiska. Em diversos momentos da história, a enunciação se embaralha: em um parágrafo, lê-se a narrativa sob o ponto de vista da esposa do personagem-escritor; em outro, é a voz do anão que se ouve. Daí o irônico “Não me percam de vista”, dito por Ruiska no momento em que se apresenta. Pécora chama esse modo enunciativo de “consciência em fluxo”, como se, numa espécie de cena de possessão, as mal-ajambradas vozes, formadas na “mesma garganta”, degladiassem-se entre si para tomar posição no discurso.134 O resultado é uma pletora de “eus” instáveis, incapazes de organizar os signos que enunciam. É como se o narrador fosse falado pelo discurso, que toma a palavra; ou 133 134

FF, p. 64-65. Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2002, p. 11.

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melhor, jorra-as, sem estabelecer vínculos entre elas. Na explosão verborrágica do narrador de “Fluxo”, não há conectivos que permitam quaisquer ligações semânticas seguras entre os vocábulos, embora se perceba um fio de sentido que gira em torno das ideias de “individualidade” (os pronomes em primeira pessoa) e de “morte”. Pécora também fala em “ensaio de cerimônia litúrgica, ritualística, quase tão estranha à narrativa ficcional quanto à informação factual”,135 o que soa interessante, tendo-se em vista que essa é uma operação discursiva com raízes órficas e gnósticas. Nesses textos, o “isto ou aquilo” do pensamento ocidental, como nota Paz, cede espaço à integração, muitas vezes entre termos contrários, que é realizada pelo “isto é aquilo” das doutrinas orientais,136 em uma operação que é metafórica. Expediente semelhante é usado por Jorge de Lima, no poema que fecha o canto “Audição de Orfeu”, em Invenção de Orfeu: (...) Quantas selvas escondo! Sou cavalo, corro em minhas estepes, corro em mim, sinto os meus cascos, ouço o meu relincho, despenho-me nas águas, sou manada de javalis; também sou tigre e mato; e pássaros, e voo-me e vou perdido, pousando em mim, pousando em Deus e o diabo. Nasço floresta, grasso grandes pestes porquanto, jazo em mim, rejo-me, reflito-me. Sei dos pássaros, sei dos hipopótamos, sei de metais, de idades, aconteço-me, embebo-me na chuva que é do céu, abraso-me no fogo dos infernos. Porquanto, como conhecer as coisas senão sendo-as? Abrigo as minhas musas, amam sobre. Aflijo-me por elas, sofro nelas, encarno-me em poesia, morro em cruz, → 135 136

Idem, p. 12. Paz, Octávio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 43.

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cravo-me, ressuscito-me. Petrus sum. Sou Ele mas traindo-o, mas em burro, com esses cascos na terra, e ventas no ar, cheirando Flora; minhas quatro patas rimam iguais, forradas, alforriadas, burro de Ramos, levo sobre o dorso Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém. Contudo, burro épico, vertido pra crianças, transporto-as à outra margem, sou Cristovão Colombo, sou columba, Deus Espírito que desce sobre o início, sou palavra, antes de mim, eu evo, Ave Maria, Eva sem culpa, tem de mim piedade. Pia sacramental de que emerjo ilha. (...)

O que Hilda Hilst elabora, não só na narrativa de “Fluxo”, como em muitas outras, é trazer para o âmbito de sua prosa um mecanismo metafórico presente tanto em Jorge de Lima quanto em muitos outros poetas modernos que converteram em estilo literário operações discursivas encontradas em textos gnósticos e hinos órficos. Em determinado trecho da narrativa, por exemplo, Ruiska abandona o próprio corpo, uma tópica tradicional em textos gnósticos, e passa, como no poema anterior, a ser o que existe ao seu redor: (...) eu me alongando como um peixe-espada, eu me tornando todas as árvores, todos os bois, as graminhas, as ervinhas, os carrapichos, o sol doirado no meu corpo sem corpo (...), é mais bonito ser tudo isso, ser água, escorregadia, amorfa, o que a água é quando está dentro de uma coisa que é uma apenas, ser o rio, o copo, ser todos os rios, todos os copos – o cornudo que me esqueça –, ser leve, tatuado de tudo, tatuado de nada, ser o estilete, a mão, a tinta, a figura, ser um mitocôndrio (...)137

137

FF, p. 26-27.

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Essas operações não são estabelecidas por meio de símiles, em que um elemento conjuntivo estabeleceria ligações entre os objetos sem fundi-los. Aqui, como se em transmutações alquímicas, o eu chega a ser até mesmo referentes desprovidos de signos que o possam nomear (“o que a água é quando está dentro de uma coisa que é uma apenas”). Ao tentar alcançar verbalmente o indizível, ocorre na linguagem de Hilda Hilst o que Carone detectou na poesia de Trakl: os significados perdem a possibilidade de ser encontrados mediante “vias normais” que dariam acesso a “referentes empíricos”, e as imagens passam a construir um universo próprio, muitas vezes obscuro e hermético.138 É a criação a partir de metáforas absolutas. O significante, nesse processo, também ganha importância: aliterações e assonâncias passam a ter o mesmo valor que o significado dos vocábulos, na busca pela sugestão, que estabelece correspondências, às vezes improváveis entre as palavras, operação de raízes simbolistas que Canabrava também aponta em Jorge de Lima.139 Ao refletir sobre a criação poética, Paz destaca o papel fundamental da metáfora, recorrendo ao argumento aristotélico de que o homem é o único animal com a capacidade de imitar e comprazer-se com a imitação. Esta, por sua vez, processa-se por contemplação mediante semelhança ou comparação, o que torna a metáfora “o principal instrumento da poesia”, uma vez que “por meio da imagem – que aproxima e torna semelhantes os objetos distantes e opostos – o poeta pode dizer que isto é parecido com aquilo” (grifo meu).140 O poeta moderno, no entanto, substitui as relações miméticas analógicas de uma metáfora padrão pelo intrincamento de imagens não necessariamente conexas, como as que sintetizam o Orfeu hilstiano, com sua luminosidade proveniente de asa e de vermes. Assim, ao instaurar a própria linguagem, o poeta passa a agir como um demiurgo que vê em sua obra um mundo autônomo.141 Voltando às observações de Paz, esse expediente é também uma forma de resistência, uma maneira de lutar contra o imediatismo do cotidiano burguês, no qual o potencial metafórico da linguagem cede espaço para a referencialidade mecânica requerida pelo utilitarismo capitalista.142 Daí a obscuridade voluntária de poetas como Rimbaud, Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Benn, Trakl, entre muitos outros que criaram uma espécie de linguagem própria, a ser entendida apenas por iniciados, a “sociedade 138

Carone, Modesto. Metáfora e montagem. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 91-92. Canabrava, Eulálio. “Jorge de Lima e a expressão poética”. In: Lima, Jorge, op. cit., p. 113. 140 Paz, Octavio, op. cit., p. 78. 141 Andrade, Fábio de Souza, op. cit., O engenheiro noturno, p. 111. 142 Paz, Octavio, op. cit., p. 48. 139

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secreta” estabelecida entre poetas e leitores.143 Mas o autor de O arco e a lira também aponta um perigo nessa escolha: não só estranho, mas agora distante dos homens, o poeta poderia cair em um solipsismo que afastaria completamente a poesia da práxis vital.144 Em Jorge de Lima, como observa Andrade, há um tráfego do poeta entre dois polos: um que o direciona para o ensimesmamento; outro que busca reoorganizar fragmentos da realidade – o caos moderno – em imagem concreta, embora obscura.145 É aquela ideia de pensar a obra não como um reflexo do real, mas sim como refração que, dependendo da densidade metafórica do poeta, filtraria com menos ou mais exatidão os elementos da realidade. No caso do autor de Invenção de Orfeu, um expediente teria fundamental importância na sintagmatização das imagens: a montagem. Ora, esse é um mecanismo de construção que “recorta os objetos do real e os reorganiza em uma nova ordem objetiva”,146 uma operação muito valorizada pela vanguarda surrealista. E, contrário a uma ideia de escrita automática que mimetizaria o funcionamento dos sonhos, Adorno sustenta que o surrealismo teria como bases a “decomposição e o rearranjo”, e não a mera dissolução mediante a aproximação de objetos singulares.147 “No mundo de detritos do Surrealismo, não vem à tona o em si do inconsciente”, diz o autor de Teoria estética.148 Em Jorge de Lima, principalmente em Invenção de Orfeu, os pedaços que compõem as inusitadas imagens são provenientes tanto do universo íntimo do autor – suas lembranças de infância, por exemplo – quanto da paideuma de sua formação literária. Virgilio, Dante, Camões, Milton, Baudelaire, Rimbaud, as leituras do poeta, fragmentam-se e recompoem-se em sístoles e diástoles que formam o seu discurso. O mesmo ocorre em Hilda Hilst, com a diferença de que a autora leva esse expediente para a sua prosa de forma tão visceral que chega a contaminar até mesmo o foco narrativo. Em “O unicórnio”, a multiplicidade de vozes se explicita imageticamente em um trecho no qual a narradora diz ter a sua face dividida em três, o que se configura, de fato, como uma montagem: 143

Idem, ibidem. Idem, p. 49. 145 Andrade, Fábio de Souza, op. cit., p. 113. 146 Fernandes, Ana Maria Sampaio. “(Mais uma) Leitura de Invenção de Orfeu”. In: Riedel, Dirce Cortes. Leitura de Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Editora Brasília, 1975, p. 30. 147 Adorno, Theodor W. “Revendo o surrealismo”. In: Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 136. 148 Idem, p. 137. 144

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(...) Olha o meu rosto. Toca-me. Vê, ele está dividido. Onde? Olha, você traça uma diagonal partindo desta saliência do lado esquerdo da fronte, e termina a diagonal na mandíbula direita. Pronto? Bem, agora da minha narina esquerda e portanto quase no centro da diagonal, você puxa outra linha que vai cortar o canto da boca e termina essa linha na mandíbula esquerda, formando então um ângulo de quarenta e cinco graus. Agora o meu rosto está dividido em três partes, não é mesmo? O lado esquerdo é o meu irmão pederasta, o lado direito é a minha irmã lésbica e o pequeno triângulo é o meu todo que se move desde que nasci, e é esse meu todo que ficou em contato com as gentes, esse todo que se expressa e que tem toda aparência de real. (...)149

Evidencia-se, no trecho, o caráter de construção ficcional da narrativa. O que se apreende, da voz enunciativa, é não a realidade, mas sim a aparência desta, construída objetivamente: são os lados de um triângulo equilátero que ligam os fragmentos de individualidade que montam o narrador. Por isso, estaria malograda qualquer leitura que procurasse dar um tratamento realista a esses textos, para usar uma advertência da própria autora em uma de suas peças de teatro. Acontece aqui um movimento que Candido detectara na prosa brasileira, a partir de Clarice Lispector: o nível temático perdia importância para a escritura, de modo que a tessitura textual permitia criar uma “realidade própria”, portadora de uma “inteligibilidade específica”.150 O crítico reitera que, como discurso ficcional, isso deveria acontecer em toda a obra, uma vez que o texto não é reflexo imediato da realidade. O que muda, no entanto, é a importância dada pelo autor a esse aspecto construtivo, fato não muito comum na prosa dos escritores da geração de 1930.151 E é difícil analisar a prosa hilstiana sem levar em consideração esse acento dado ao aspecto formal, cuja problemática é incorporada na própria narrativa: “Sabe, uma estória deve ter mil faces, é assim como se você colocasse um coiote, por exemplo, dentro de um prisma”, explica a narradora152, em “O unicórnio”. No entanto, mesmo distante da realidade, há marcas das vicissitudes históricas que mancham esse caleidoscópio de subjetividades incompletas que não conseguem 149

FF, p. 173. Candido, Antonio. “A nova narrativa”. In: A educação pela noite, op. cit., p. 250. 151 Idem, ibidem. 152 FF, p. 150. 150

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dominar satisfatoriamente – como um narrador realista – as rédeas do discurso. A viagem fantástica realizada por Ruiska e pelo anão, por exemplo, retira o personagemescritor de seu emparedamento voluntário para conduzi-lo à cidade, ao mundo real. Ao chegar lá, os dois – criador e criatura – são rechaçados à direita e à esquerda tanto pelos repressão militar (é importante lembrar que esse texto é de 1970) quanto pelos estudantes que, lutando pela liberdade das massas, criticam o excesso de subjetividade de escritores supostamente alienados, preocupados com a “própria tripa”, enquanto revolucionários caminham pelas ruas “carregando no peito um grito enorme”. A questão aqui é típica dos anos sessenta: a tentativa de reconciliação entre arte e público ganha conotações políticas. Em tempos de luta, cabe ao poeta largar suas flores de retórica, para colocar, no lugar delas, metralhadoras e fuzis. Acontece o que Paz detecta como um movimento em que o artíficie da palavra, na intenção de romper as barreiras entre ele e o mundo objetivo, tentam “buscar o auditório perdido”.153 No vocabulário da época, isso significava “ir ao povo”. Mas há, nessa busca, outro perigo: o de o poeta converter-se em “mero funcionário” ou, na pior das hipóteses, títere de partidos políticos, a enunciar palavras de ordem que não são suas. Ao apresentar esses argumentos, Paz lembra que não existe mais uma ideia de comunidade, como ocorria em tempos primitivos em que a voz do poeta seria também a voz de seu povo. Em vez disso, haveria “massas organizadas”, divididas em blocos e classes, com sujeitos em processo crescente de reificação. Agora em sociedade, a linguagem seria transformada em “sistema de fórmulas”, convenientes com as necessidades de comunicação rápida e eficaz.154 E o interessante é que mesmo as imagens e figuras de linguagem, tão importantes no processo de criação, passariam para esse outro lado, revestindo-se da utilidade prática requerida pelo bom burguês, como Hilda Hilst denuncia no seguinte trecho de “O unicórnio”, em que a narradora, após ser abandonada por seus “irmãos”, que a deixaram para assumir cargos importantes numa refinaria, escuta o discurso de um dos gerentes da empresa: (...) senhores, gostaria-vos de lembrar o seguinte: os filhotes dos coelhos, ao nascerem, são pelados e cegos. Os filhotes das lebres ao nascerem são peludos e aptos a cuidar de si mesmos. Este fato aparentemente estranho tem embasamento: os coelhos têm seus ninhos nas tocas profundas e as lebres têm os seus ninhos na 153 154

Paz, Octavio, op. cit., p. 49. Idem, p. 50.

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superfície exposta do solo. Senhores, sejamos lebres e portanto astutos! Das profundezas só nos interessam nosso amado produto. E viva a refinaria, companheiros lebres!155

Na fala do empregado, a alegoria assume sua função possível no imaginário de uma sociedade devidamente controlada, agora a seguir os evangelhos utilitaristas dos gurus da administração, verdadeiros best-sellers entre executivos e afins. Ela se transforma em salvo-conduto da exploração institucionalizada, seja pelo Estado, seja por empresas ou bancos, organizações que, nos dias de hoje, já não apresentam mais, entre si, limites tão bem definidos. A situação descrita corresponde ao outro lado da necessidade de transformar a arte em bandeira de um suposto engajamento, fato que já participava das reflexões de Adorno nos anos vinte, quando o crítico denunciava os perigos decorrentes das tentativas de tornar utilitárias as obras musicais, em um mundo em que a ideia de “comunidade”, onde as esferas da arte e do convívio social ainda poderiam ser as mesmas, perdera o sentido.156 Ao olhar da narradora de “O unicórnio”, esse mundo administrado é apresentado como um terrível universo grotesco, avesso às palavras do poeta: “(...) A irmã lésbica dizia: poeta, quando você morrer, eu quero fazer um bom discurso sobre o seu túmulo, sabe, até sonhei com isso. E ela dirá: meus amigos, esta era minha irmã que arranjou para mim um emprego numa refinaria de petróleo, mas eu era poeta e, apesar de hoje ser superintendente da companhia, nunca mais pude escrever com dignidade. Eu escrevo. AÇÕES, PRODUÇÃO, SALÁRIO, QUOTAS, SIGLAS, MÁXIMO DE RENDIMENTO. Os irmãos sobem a escada. Seus corpos fazem um ruído: tec-ter, tec-tec, tec-ter, tecnologia e terror, tecnologia e terror, param nos degraus de aço, olham os reservatórios cilíndricos, vestem os capacetes, as mãos são hastes de metal, os dentes são de ouro, o céu da boca é de platina, a boca é de vidro e a cada palavra essa boca se estilhaça e novamente se recompõe. (...) Os dois irmãos continuam subindo. Agora são rampas largas, cor de prata, agora os elevadores, a célula fotoelétrica, a subida, zinzunzinzunzinzun, quinquagésimo sexto andar. A voz sem boca: senhores, quinquagésimo sexto andar, diretoria, diretoria, poder, poder. (...) Os empregados trazem três cadeiras, a superintendente senta-se bem 155

FF, p. 179. Cf. Almeida, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno. Música e verdade dos anos vinte. São Paulo: Ateliê, 2007, p. 148-149. 156

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à frente, os conselheiros-chefes sentam-se logo atrás. A disposição das cadeiras forma um triângulo isósceles, veja, estão contando os passos, sete metros de base, seis metros de lado. (...) Experimentam o microfone, há ruídos sibilinos, o discurso vai começar, todos olham para mim que estou ridiculamente esparramada pelo chão. (...)157

As imagens criadas apresentam um mundo ao mesmo tempo familiar e estranho, característica importante da arte grotesca, em que as categorias da realidade cotidiana são abaladas pelo “fantástico, monstruoso, macabro, excêntrico”158 e, o que soa particularmente interessante no caso de Hilda Hilst, também o obsceno. Como nota Rosenfeld, no grotesco, apagam-se as distinções entre o orgânico e o inorgânico, em uma espécie de enregelamento da vida, que passa a ser dominada por mecanismos que usam seres humanos como fantoches. Isso ocorre no trecho citado: em um cenário com descrição similar aos de ficção científica, clean e geometricamente desenhado, os restos de vida que nele se movimentam apresentam atributos humanos e tecnológicos: as línguas são de vidro, os braços são “hastes de metal”, o céu da boca é de platina. A imagem é forte e terrível, como um quadro de Goya. Os movimentos são matematicamente controlados, administrados, e os indivíduos revelam-se como autômatos desprovidos de vontade, como se fossem meros circuitos que propiciam o funcionamento do sistema. E é fundamental perceber também que, na prosa hilstiana, o grotesco das imagens associa-se àquilo que Spitzer havia percebido na prosa de Rabelais: a verborragia do autor de Pantagruel, em que o discurso metódico e correto cede espaço, de repente, a “demônios vocabulares”, corresponde também a um “grotesco linguístico”.159 A questão também é formal: contra a facilidade tacanha de uma prosa descartável, destinada somente a satisfazer as necessidades de lazer dos indivíduos, praticamente convertidas em necessidades fisiológicas, coloca-se uma escrita que, ao fundir elementos semanticamente distantes, com uma sintaxe própria e quebrada, almeja retirar seus destinatários da inércia bovina propiciada pela maioria dos produtos criados pela cultura de massas. Nem sempre, porém, esse intento alcança o resultado esperado. Como dito anteriormente, ele pode encontrar como barreira o solipsismo ou, numa 157

FF, p. 179-180. Rosenfeld, Anatol. “A visão grotesca”. In: Texto/Contexto I. 5ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 61. 159 Apud Rosenfeld, “A visão grotesca”, op. cit., p. 67. 158

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hipótese não muito melhor, transformar-se em produto a ser consumido por um círculo restrito de “iniciados”. Esse hiato entre a vontade do escritor e as exigências mercadológicas, assim como a desestruturação da narrativa como protesto à mesmice da cultura de massas, evidencia-se no seguinte trecho de “Fluxo”: (...) Ruísis cochicha com a mulher do cornudo que chegou há pouco e postou-se toda de amarelinho no meu lindo sofá de couro preto, cruzou as pernas e agora palpita: todos nós queremos te ajudar. A vaca. Oh, pois não, peludinha, vocês têm me ajudado muito, isso é verdade, médicos etc. A vaca. É para teu bem que pedimos novelinhas amenas, novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião, no módulo, na cápsula. Agora ela tirou uma lima de couro do bolso e começou a limar as unhas. Eu digo: pare de limar as unhas no meu lindo sofá de couro preto. Oh, Ruiska, por que você é assim? E continua. Eu digo: pare. Ela diz: você é antissocial, é burguesinho besta. Muito bem, abro a braguilha e começo a me masturbar. Sorriem obliquamente. Guardo a coisa. Levanto-me. Grito: bando de inúteis, corja porca, até que inventei uma bela sonoridade, muito bem, corja porca, mas essa gente não percebe nada, eu poderia ter dito creme de leite, caju, caguei, anu, são uns analfabetos, uns intrujões, uns estrujões, uns intru, uns estru, os corjaporcagueicajuanu.160

O que interessa no trecho não é a evidente crítica à literatura de fácil digestão, mas sim o modo como ela se organiza. O gesto obsceno de masturbar-se ganha o seu equivalente linguístico na explosão de vocábulos semanticamente desconexos que culminam na joyceana “corjaporcacagueicajuanu”, típica palavra-valise tão cara aos poetas concretos. A tentativa, contudo, mostra-se vã: suas atitudes não despertam o interesse de um público para o qual as palavras são sempre elas mesmas, presas à referencialidade do discurso denotativo. A obscenidade do Ruiska, no trecho, tem fundo metafórico, seu significado transcende o gesto. Mas isso passa desapercebido aos seus interlocutores. Evidencia-se, nessa situação, mais um motivo que, de certo modo, já começava a ganhar espaço em suas peças de teatro: a impossibilidade de entendimento da imagem literária e a clausura da palavra em sua prisão referencial. A linguagem dos narradores/protagonistas do universo ficcional hilstiano corresponde, como já mencionado, a uma fala que desarticula os padrões linguísticos habituais, assim como os poetas simbolistas franceses, precursores do modernismo 160

FF, p. 31-32.

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literário, instauravam, com suas imagens, um universo particular, muitas vezes obscuro e hermético. Essa escolha formal, por parte da autora de Fluxo-floema, faz com que exista uma distinção entre a enunciação de seus narradores, tidos como pessoas diferenciadas, com asas, e os demais indivíduos, cuja convivência se resume à “vida besta” do chão cotidiano. Isso estabelece um problema de comunicação, que fica patente em “O unicórnio”. Nesse texto, a narradora, abandonada por sua fraternicade literária de iniciados – o irmão pederasta e a irmã lésbica –, que a troca pelo lucro fácil possibilitado pela refinaria, transforma-se, em determinado trecho, em um unicórnio, numa referência explícita à metamorfose kafkiana. Depois disso, a ação segue com um tratamento completamente não realístico: o leitor tem acesso à consciência em fluxo do animal que, por ser estranho, é enjaulado no zoológico da cidade. Lá, com seus parcos recursos comunicativos, ele tenta entrar com contato com a realidade que existe ao seu redor, como ocorre no seguinte trecho, que mescla o grotesco com o humor negro: Fiz o possível para agradar as pessoas – naturalmente dentro de meus parcos recursos – mas sei agora que não compreendem os meus gestos. As visitas estão rareando. Nesses dois anos vi uma vez a superintendente e os conselheiros-chefes (...). Eles pararam perto de mim e eu quis dizer que eles eram feitos um para o outro, e para expressar-me – sempre dentro dos meus parcos recursos – coloquei o meu traseiro entre as grades do meu quadrado e bem à frente do casal, dando a entender com esse gesto o seguinte: assim como as duas partes do meu traseiro se completam necessariamente, não podem separar-se, assim também vocês dois só poderiam acabar se entendendo muito bem. Fiz isso na melhor das intenções. Mas não fui compreendido. Sabem o que eles fizeram? Espremeram um cigarro aceso no meu ânus. Estrebuchei de dor aquela tarde inteira.161

De forma inusitada, usando seus parcos recursos – o traseiro, no caso –, o animal mítico cria aquilo que a retórica tradicional chama de tota allegoria, ou seja, uma alegoria “totalmente fechada sobre si mesma”, que se constitui como enigma, proporcionando,

em

sua

recepção,

um

efeito

de

“obscuritas

(obscuridade,

hermetismo)”.162 O resultado dessa tentativa é o entendimento literal, em vez de literário, da ação: para os conselheiros a quem o unicórnio se dirige a recepção é 161 162

FF, p. 198. Hansen, João Adolfo. Alegoria. São Paulo: Hedra, 2006, p. 54.

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meramente tautológica: um traseiro entre as grades sempre será igual... a um traseiro entre as grades. O que se encena, aqui, é a impossibilidade de compreensão da imagem literária em um mundo administrado e pragmático. E o interessante, nesse caso, também, é a escolha do unicórnio como portador dessa palavra literária não mais comunicável. Ora, sabe-se que uma das autoridades poéticas de Hilda Hilst é Rilke, autor de Sonetos a Orfeu, igualmente influenciado por ideias místicas e portador de uma linguagem grandiloquente, que privilegia o som e, sobretudo, a imagem. Um de seus poemas dedicados à deidade que simboliza a poesia lírica apresenta justamente a criação de um unicórnio a partir daquilo que Hugo Friedrich chamou de “fantasia ditatorial”.163 Diz o soneto: O Dieses ist das Tier, das es nicht gibt. Sie wusstens nicht und habens jeden Falls – sein Wandeln, seine Haltung, seinen Hals, bis in des stillen Blinckes Licht – geliebt. Zwar war es nicht. Doch weil sie’s liebten, ward ein reines Tier. Sie liessen immer Raum. Und in dem Raume, klar und ausgespart, Erhob es leicht Haupt und brauche kaum. zu sein. Sie nährten es mit keinen Korn, nur immer mit des Möglicjkeit, es sei. Und die gab solche Stärk an das Tier, dass es aus sich Stirnhorn trieb. Ein Horn. Zu einer Jungfrau kam es weiss herbei – und war im Silber-Spiegel und in ihr.164

163

A observação destina-se à obra de Rimbaud, na qual o crítico alemão detecta uma “liberdade ilimitadamente criativa” capaz de impor as imagens engendradas. Cf. Friedrich, Hugo, op. cit., p. 81. 164 Na tradução de Augusto de Campos: “Eis aqui o animal inexistente. / Sem saber, começaram a adorar / o passo, o porte, o dorso e lentamente / até a luz do seu sereno olhar // Não existia. Mas de o amarem tanto, / fez-se puro animal. Deram-lhe espaço. / E no espaço, ele, claro, do seu canto / soergueu a cabeça com cansaço // de ser. Não o nutriram com capim, / mas com eterno poder-ser, e assim, / de tal força dotaram o animal // que um unicórnio fez-se em sua testa. / Branco, o viu uma virgem, afinal, / e em seu espelho ele existiu e nesta.”

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Valorizando o viés construtivo da poesia de Rilke, Campos destaca como o poeta alemão, por meio da sonoridade, das “rimas compactas”, dos “cortes precisos” dos versos e da combinação de “palavras-coisas”, faz “emergir do nada a figura mitológica”.165 De fato, o unicórnio figura, no soneto, como criação cuja possibilidade provém da linguagem. É o “O Dieses ist das Tier” que inicia o poema o instaurador da possibilidade (“der Möglichkeit”) de existência do mito, aqui transformado em imagem literária. Mas, além do verbo criador, participa dessa construção também o sentimento: o amor que o torna puro, assim como é a moça virgem que reflete a imagem da criatura no espelho que tem em mãos, lendo-a e, concomitantemente, incorporando-a. Há outro momento da obra rilkeana em que se utiliza a figura do unicórnio. Trata-se de Os cadernos de Malte Laurids Brigde, romance de formação, com pitadas líricas e autobiográficas, no qual, em determinada cena, o narrador contempla um conjunto de tapeçarias – Dame à la licorne – que, unidas, formam uma espécie de pequena narrativa.166 Essas peças, consideradas obras-primas da arte medieval, foram provavelmente tecidas por volta do final do século XV, e cada uma das cinco primeiras estaria associada a um sentido humano (paladar, audição, visão, olfato e tato), estando a última a representar um sentimento: o amor. A cena na qual Rilke havia se inspirado corresponderia ao terceiro tapete, associado à visão, o que condiz com a valorização de imagens na poesia do autor de Sonetos a Orfeu. O último tapete, no entanto, não apresenta uma interpretação tão imediata: nele, há uma barraca com a inscrição “À mon seul désir” (“Ao meu único desejo”), diante da qual a moça guarda o seu colar dentro de um baú. Alguns exegetas associam essa ação à renúncia, por parte da personagem, das paixões suscitadas pelos seus sentidos, ou seja, pelo seu corpo. Isso condiziria com o ideal poético de Hilda Hilst, que, numa atitude também gnóstica, valoriza a transcendência em detrimento da materialidade. Na sua ficção, portanto o unicórnio funcionaria como símbolo desse ideal poético. Interessantemente, trata-se de um animal cujo porte altivo e raridade são valorizados, ao contrário do bestiário que passará a ser comum na obra da autora e que é constituído, como nota Moraes, por animais de “dimensão mais prosaica”: “o cachorro,

165

Campos, Augusto de. “Introdução”. In: Rilke, Rainer Maria. Coisas e anjos de Rilke. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 22. 166 Imagens dessas peças, assim como breves textos explicativos, podem ser vistos no site do Musee du Moyen: http://www.musee-moyenage.fr/homes/home_id20393_u1l2.htm, onde se pode ver a tapeçaria citada por Rilke.

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o porco, a vaca, a galinha, o cavalo ou o jumento”.167 O unicórnio certamente não condiz com essa condição. Ao contrário dos outros bichos, mais facilmente associados à “vida besta” tão criticada pela escritora, o animal mítico é detentor de uma aura. Ele é especial, e não é à toa que a poeta da narrativa acabe se transformando em licorne. Mas há, nesse jogo de imagens e símbolos, laivos de fina ironia: embora superior, representante da poésie pure, do elevado, o animal usa suas partes baixas – seus “parcos recursos” – para criar significações, assim como a própria Hilda Hilst vai enveredar no terreno do cômico, o gênero baixo, para enunciar suas inquietações metafísicas e culturais. O que se encena, em nessa história de Fluxo-floema, em particular na imagem do traseiro do unicórnio entre as grades, é uma discussão genérica, em que se verifica uma opção estética. O mesmo acontece com o Ruiska, de “Fluxo”, que deixa de procurar anãs brancas com seu telescópio, apontado para a claraboia de seu escritório, para conviver com o anão grotesco que surgira em seu poço, ou com a Hillé de A obscena senhora D, que, também em um movimento que vai do alto para baixo, resolveu morar no vão da escada para tentar entender a natureza de Deus. De Fluxo-floema para as outras obras de ficção da autora, no entanto, há uma mudança substancial: se o unicórnio, na narrativa de 1970, é colocado em oposição aos “animais prosaicos” que simbolizariam a “vida besta”, os narradores de suas outras ficções passarão a ter a companhia desses bichos não tão raros quanto o animal mítico que o poema de Rilke engendra. Hillé, por exemplo, aceita conviver com uma porca, assim como o matemático Isaiah, de “Gestalt”, e o narrador de Com meus olhos de cão. Todos eles precisaram abandonar a torre de marfim em que viviam para perceber, recuperando aquela imagem do Orfeu apodrecido, que de asas também podem nascer vermes, como no seguinte soneto de Jorge de Lima, em que se percebe a relação entre alto e baixo: A torre de marfim, a torre alada, esguia e triste sob o céu cinzento, corredores de bruma congelada, galeria de sombras e lamentos.

167

Moraes, Eliane Robert, op. cit., p. 121.

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A torre de marfim fez-se esqueleto e o esqueleto desfez-se num momento, Ó! não julgueis as coisas pelo aspecto que as coisas mudam como muda o vento. E com o vento revive o que era inerme. Os peixes também podem criar asas, as asas brancas podem gerar vermes. Olhei a torre de marfim exangue e vi a torre transformar-se em brasa e a brasa rubra transformar-se em sangue.

A “extensão de pedra” que isolava o eu-lírico do sétimo poema de “Iniciação ao poeta”, converte-se, na cruel narrativa hilstiana, em um unicórnio que, embora tenha porte e seja raro, morre, ao final do texto, por conta de uma opção estética. As imagens que ele cria, como a palavra “amor” que ele tenta escrever com os restos de alimento em sua jaula, são alegorias herméticas que apontam para uma impossibilidade comunicativa. O desfecho de “O unicórnio” também remete a uma situação claustrofóbica, de aprisionamento, como o violento emparedamento que sufoca o narrador de “Floema”, às voltas com um demiurgo, chamado por ele de Haydum, na narrativa que fecha o livro lançado em 1970: (...) Haydum, um gozo não me tiras: NADANADA de mim quando me tomares, nem os ossos. Estou novamente no centro, as paliçadas ao redor, esta casaparede avança, vai me comprimindo. Porco-Haydum: tentei.168

Essas tentantivas no universo ficcional ocasionarão interessantes mudanças na lírica da autora, que passará a ter imagens ainda mais inusitadas e cruéis, além de nuanças de humor e de paródia, que passarão a conviver estranhamente com sua dicção, que insistirá, ainda, no sublime e no elevado.

168

FF, p. 249.

89

CAPÍTULO 4 NOSTALGIA E IRONIA

A maior parte da crítica que se debruça sobre a obra de Hilda Hilst aponta uma mudança substancial na lírica da autora, após as tentativas dela no teatro e na prosa. Coelho, por exemplo, fala de certa “tensão” que a poesia da escritora passaria a ter após essas incursões, sem, no entanto, explicitar como isso aconteceria em nível formal.169 Pécora, por sua vez, aponta para os “contrapontos surpreendentes de humor, de registro vulgar e de vivacidade dialógica”, que garantiram um considerável ganho estilístico aos seus versos.170 Ambas as apreciações são perspicazes: embora a dicção, nos poemas dessas novas fases, mantenha-se elevada e sublime, há notas dissonantes que causam estranhamento no conjunto. Mesmo assim, o retorno ao lírico, em 1974, após o lançamento das narrativas de Kadosh (1973), ainda é pautado por uma espécie de melancolia e de nostalgia, que foram detectadas nos poemas das décadas de cinquenta e sessenta. Mas há diferenças interessantes e, por isso, vale a pena deter-se com um pouco mais de cuidado nos textos de Júbilo, memória, noviciado da paixão. Como nota Albuquerque, nesse livro o amor aparece como memória, e por isso as experiências relatadas seriam sempre pretéritas, ao contrário do que aconteceria nos textos em prosa da autora, nos quais a escrita, liricizada, apresenta-se sempre em processo e no tempo presente.171 Por isso, os laivos de nostalgia que contaminam o discurso, embora exista ainda, como nos poemas da década anterior, uma crença de que a faculdade poética de criar poderia, mediante reencantamento, instaurar novamente o amor. A primeira seção do volume, intitulada “Dez chamamentos a um amigo”, corresponderia ao início dessa tentativa de reencantamento. A palavra “amigo” do título age como um rótulo que associa imediatamente o texto a uma tradição literária: a das cantigas medievais, em particular das chamadas “cantigas de amigo”, em que um eu lírico feminino, à espera do amado ausente, cantaria sua saudade e sua esperança de revê-lo. Contudo, sabe-se que desde Trovas para um amado senhor, as formas antigas 169

Cf. Coelho, Nelly Novaes. “Da poesia”. In: VV. AA. Cadernos de literatura brasileira n. 8, op. cit., p. 69. Pécora, Alcir, “Apresentação”. In: Hilst, Hilda, Teatro completo, op. cit., p. 8. 171 Albuquerque, Gabriel Arcanjo, op. cit., p. 67. 170

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passam, no filtro hilstiano, por uma ressemantização que as moderniza e, ao mesmo tempo, as investe de um olhar irônico. Isso fica patente desde o primeiro poema do livro:172 Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água Desejasse Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem. Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.173

Nele, a enunciadora exorta o amado ausente a contemplá-la, a perceber a sua presença, em um interessante jogo de perspectivas: o eu lírico assume o olhar do companheiro ausente e contempla a si mesmo, recuperando nessa ação a ideia presente no pensamento gnóstico de que se precisa transformar no objeto para comprendê-lo. É interessante notar que essa ideia também se encontra presente em um poema de Jorge de Lima transcrito no capítulo anterior, no verso em que o poeta diz: “como conhecer as coisas, senão sendo-as?”. E mais: o expediente assemelhasse ao usado por Hilda Hilst em sua prosa, na qual o foco narrativo, em uma sucessão de metamorfoses, anseia por buscar pontos de vistas diferentes para uma mesma situação.

172

Como nos livros anteriores, poucos são os poemas que recebem títulos. Em grande parte das vezes, eles são somente numerados. 173 JMNP, p. 17.

91

Ao partir para a perspectiva do amado-ausente, o que o eu-lírico vê é uma imagem literária. Mais precisamente, um símile: a água escapa de sua casa – o rio – sem sequer tocar na margem – a terra. Os campos semânticos em que gravitam a ideia do poema, então, passam a dividir-se em dois polos de tensão: água e terra, elementos da natureza que se tocam, e por isso estão intimamente relacionados, embora nao se misturem; e, por outro lado, o eu lírico e o amado, separados como se um já não entendesse mais a língua do outro, nao obstante estejam ainda tão intimamente relacionados como os dois elementos da natureza. Inicia-se, então, um jogo de sedução, cujo intuito é de persuadir o amado a aceitar o sentimento do eu lírico. O tom, aqui, é o do pedido ou de súplica. Daí a preferência pelo uso da função conativa da linguagem, um mecanismo de alto potencial dialógico que privilegia o “tu”, o que, nesse volume, não ocorre apenas nesse poema. Jakobson afirma que a função centrada na segunda pessoa do singular encontra “sua expressão gramatical” no imperativo ou no vocativo. A sentença imperativa não pode ser submetida à prova da verdade, como acontece com a declarativa. Exorta-se o “destinatário“ e cabe a este submeter-se ou não às ordens do “remetente“.174 Não apenas o uso da função conativa nos remete ao caráter persuasivo/sedutor dessa enunciação lírica. O eu poético recorre também ao caráter encantatório da poesia, fazendo uso de seus paralelismos rítmicos, sonoros e sintáticos. Vale notar, por exemplo, as rimas toantes em tErra/espEro/FratErno ou enTENdo/esTENda/aTENto; ou ainda, no nível sintático, a repetição de orações: “Olha-me de novo. Porque esta noite“ e “Olha-me de novo. Com menos altivez.“; e ainda, “Te olhei. E há tanto tempo / Entendo que sou terra. Há tanto tempo“. Trata-se, portanto, de todo um mecanismo de sedução articulado com as ferramentas poéticas dispostas pela amante. O diálogo entre o eu poético e o amado ausente, no entanto, não se realiza, o que pode ser formalmente representado pelos versos “Desejasse“ e “Espero“, ambos compostos por um único verbo, cada qual afastado de seu respectivo complemento por meio de um enjambement. Essses cortes bruscos, suscitados por uma sucessão de encavalgamentos, passam a ser comuns na poesia da autora. Assim como a pontuação – vírgulas e pontos que acarretam paradas súbitas – esses efeitos acarretam descontinuidades que indicam um discurso aparentemente produzido com muita 174

Jakobson, Roman. “Lingüística e poética”. In: Linguística e comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. 6ª edição. Cultrix: São Paulo, 1973, p. 110.

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dificuldade. Isso ocorre, por exemplo, no seguinte trecho: “Te olhei. E há tanto tempo / Entendo que sou terra. Há tanto tempo / Espero”. Há, ainda, a busca por uma exatidão imagética – elaborados, mas aparentando simplicidade – que contrasta com o barroco jorro linguístico da prosa de suas ficções anteriores. Evidencia-se, então, a escolha da comparação, em detrimento da metáfora. Ao contrário desta, a primeira mantém a integridade dos objetos cotejados, que preservam

sua

independência

semântica

sem

se

fundirem.

Essa

escolha,

interessantemente associada a uma relação mais racional, passará a ser constante na obra lírica de Hilda Hilst, embora aproximações inusitadas entre vocábulos, para a criação de imagens herméticas, continuem a aparecer, funcionando com surtos que minam a racionalidade. Nos demais poemas da seção, não só comparecem esses mesmos mecanismos poéticos, como a temática do desejo não correspondido. No entanto, um elemento, no plano semântico, revela uma nova camada de significação, que pode ser detectada no seguinte texto: Como quem semeia, rigoroso, os cardos Sobre a areia, sem ver a mulher à beira-mar Tu, meu amigo, tens os olhos fixos De límpida vigília, e nem me vês passar. E ficarás assim, para sempre Como se as águas estanques de uma tarde Jamais sonhassem a aventura do mar E ficarás assim, para sempre Como se o oceano se obrigasse A contornar apenas uma certa ilha E eu Faminta me desobrigasse Da minha própria água primitiva Como quem semeia, rigoroso, os cardos Sobre a areia, hei de ficar exata e coerente → 93

Construindo o meu verso, até que a morte Me descubra um dia, provavelmente Como quem passeia.175

Nele, os olhos do amado não se voltam para “a mulher à beira-mar”. Toda a aventura que a possibilidade de diálogo promete não se concretiza, porque as “águas estanques de uma tarde” não sonham com a “aventura do mar”, uma bela imagem que indica o quão limitado é o universo desse amado ausente. Este, diante do objeto desejante, mantém-se indiferente, como se estivesse a semear “cardos” – uma espécie de planta espinhosa – sobre a areia. Formalmente, o isolamento do eu poético diante da frieza do amado é reforçado pela segunda estrofe, constituída por um único verso de duas palavras: “E eu”, colocado precisamente na posição central do poema. É essa a chave para que o desejado expanda o seu universo de alcance, fazendo com que haja aqui uma interessante aproximação entre amor, desejo e conhecimento, novamente um tema do pensamento gnóstico. Todavia, continua a imperar a impossibilidade de comunicação, restando ao eu poético conservar-se também rijo, fazendo com que a figura dos cardos, antes associada ao amante esquivo, passe a refletir a própria situação do eu lírico. Há, no entanto, algo de novo em relação ao poema anterior. Enquanto no primeiro se vislumbra apenas um conflito de cunho erótico-amoroso, tem-se aqui outra camada de significação: não se trata somente de uma amante a sofrer pela ausência do amado, mas sim de uma poeta-amante a construir seus versos “como quem semeia os cardos”, de forma “rigorosa”, “exata” e “coerente”. O ato de elaborar versos adquire, então, um sentido de resistência, e a poeta, por vinganca, lança-os sobre o amado. Se no poema anterior a súplica e a exortação se destacavam, nesse o uso do futuro do presente (“ficarás”) evidencia o tom de imprecação: a poeta o amaldiçoa e seus “versos-cardos” transformam-se em verdadeiras pragas. Mas ainda há esperanças para a amante-poeta. Se os olhos do homem nao se voltam para ela, talvez assim o faça os da Morte, que um dia poderá descobri-la “como quem passeia”. Uma alusão ao fato de que muitos poetas só passam a ser considerados importantes após o falecimento? Pode ser. 175

JMNP, p. 36.

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Amante e amado. Poeta e leitor. O desejo deixa de possuir apenas a conotação erótico-amorosa e amplia o seu campo semântico, passando a denotar também o desejo de ser lido. Mas o que pode, então, a poeta-amante esperar do amado-leitor, se ambos se encontram em diferentes níveis de existência, como se percebe no seguinte poema: Tulio viaja. A sós. E o tempo passa. Túlio nos ares, asa, e amplidão E o poeta morrendo, a sós, na casa, O coração nos ares Ai, coração, lamenta e apaga Teu existir de sangue Essa desordenada convulsão Porque Túlio viaja e não te sabe. Sabe apenas de si, e das notícias Supremas da política, dos homens Fica atento à eloqüência E de ti, coração (antes que a pedra Se julgue irmã da tua matéria Ouve, contido): De ti, Túlio não sabe. Porisso176 volta à terra, esquece os ares.177

No texto, Túlio – nome cuja sílaba tônica corresponde ao pronome “tu”, evidenciando novamente o caráter exortativo dessa poesia – personifica o “homem político”, para o qual não há espaço para a poesia em seu mundo de negócios e “fidalguias”. Por isso, o eu poético e Túlio não se encontram no mesmo plano. O segundo permanece nos ares (novamente a imagem da “asa”!); já o primeiro, fica na terra (“casa”), morrendo, pois seu coração nos ares se encontra diante da indiferença do amado. O desejo, nesse poema, é ressaltado com o emprego do verbo “saber”, que também pode ser entendido no sentido de “ter gosto”, impregnando de erotismo o significado do verso “Porque Túlio viaja e nao te sabe”. O “saber” do amado-ausente 176 177

A autora prefere escrever “porisso”, em vez de “por isso”. JMNP, p. 42.

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está voltado para outro universo, o das “notícias supremas da política”. E também não é a eloquência do poeta que lhe interessa, mas sim a dos “homens”, cuja “arte de usar a palavra” não tem mais a poesia como objetivo e, dessa maneira, volta-se apenas ao que possui pragmaticidade. A palavra poética, por não encontrar mais função no campo de experiência de Túlio, passa a ser considerada inútil e, portanto, a ser ignorada. Resta, então, ao poeta indagar ironicamente, em outro poema: “E te pareço bela / Ou apenas te pareço / Mais poeta talvez / E menos séria / O que pensa o homem / Do poeta? (...)”.178 O mundo pragmático, em que o “homem político” transforma a linguagem em moeda para suas trocas utilitárias, parece encontrar-se distante desse universo que as imagens de Hilda Hilst formam: há uma clara preferência por elementos da natureza – a terra, a água, o ar, o fogo, os vegetais – e um quê de religiosismo arcaico que chega a contaminar o tempo em que a voz enunciativa se encontra. Em vez do vetor direcionado sempre adiante, a existência do eu lírico faz uso do círculo. Ora, o tempo na natureza não é histórico. É, na realidade, constituído por fenômenos que se sucedem em ciclos. E é nessa temporalidade da natureza que palavras do poeta se inserem, ao mesmo tempo em que buscam utopicamente trazer para ele o “homem político”. É o acontece, em dicção profética, nos versos que dizem: (...) Se te vou esperar Como é certo que ao fruto Antecede à arvore? Certo como a terra Antecede a árvore E a árvore antecede A semente na terra Me hás de vir buscar.179

O jogo temporal também evidencia essa separação: para se referir aos fenômenos do mundo natural, a enunciadora faz uso de tempos presentes (“Como é 178 179

JMNP, p. 22. JMNP, p. 82.

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certo que ao fruto / Antecede a árvore?”) e, para evidenciar o próprio desejo e finalizar o poema, utiliza o futuro (“Me hás de vir buscar”), proporcionando um tom profético ao texto. O gerúndio, por sua vez, reitera a condição de espera (“morrendo”). Novamente, nesse poema, as comparações delineam imagens construídas com rigor e exatidão. Mas, como dito anteriormente, há momentos de surto, em que aproximações inusitadas proporcionam obscuridade ao discurso, às vezes aproximando o discurso lírico do grotesco: Meu corpo no mar E o peixe movendo A barbatana tensa No ar Meu corpo de terra Mergulha no gozo E te pensa Em líquida quimera O corpo do peixe Olho abismado Hiato Guelra sem grito Morrendo.180

O poema possui duas imagens fortes: o poeta, cujo corpo é de terra, mas que se encontra mergulhado no mar; o peixe, com seu “olho abismado”, uma “guelra sem grito”, no ar. Ambos, poeta e peixe, fora de seus “habitats” naturais, espacialmente desarticulados. Ao redor do eu lírico, nada que o conecte à experiência, o que acaba por isolá-lo, relegando-o à falta de entendimento. A morte ecoada em gerúndio é resultante dessa desarticulação em que as imagens funcionam como correlato objetivo, para usar termos de Eliot, da sensação de deslocamento. Interessantemente, a figura que se 180

JMNP, p. 80.

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constrói aparenta-se à garganta agônica, de estanho e antanho, que o Ruiska de “Fluxo” criara em seu poema, a partir de uma montagem que misturava elementos humanos e animais. Se nesse poema, a imagem é instaurada imediatemente pelo ato enunciativo, em outro o eu lírico expõe os passos para a sua construção: As laranjas têm alma? Tu me perguntas calmo A testa no fruto. Examinas. Desenrolas A casca, o amarelo Escorre palpitante O sumo sobre a mesa. Proeza da tua fome. Tu ainda me amas? Eu te pergunto lívida Na manhã de tintas Amarelo e ocre Pulsando no meu sangue. E te levantas, me olhas E te fazes cansado De perguntas antigas.181

Nesse caso, a construção é dialógica: os termos da comparação encontram-se divididos entre as vozes do poema – a primeira, de forma mais concreta, com crueldade até, expõe o mecanismo dissecador/analítico de apreensão do conhecimento; a segunda, mais abstratamente, trata do sentimento, mais precisamente do amor, tema que soa cansativo para o enunciatário. Relacionando as duas falas, a tonalidade do amarelo, a ligar as duas enunciações como um conectivo de comparação. Aqui, é a cor a intersecção que possibilita a construção da metáfora, evidenciando mais um mecanismo que passa a ser importante na lírica da autora: a visualidade, também presente no poema em que “peixe” e “homem” aparecem deslocados. 181

JMNP, p. 90.

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É importante salientar que os poemas anteriores pertencem ao livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, considerado por muitos críticos como um dos mais importantes trabalhos de Hilda Hilst. Segundo Pécora, por exemplo, evidencia-se nele a “dialética erótica” da autora, na qual a tese é representada pela “devoção da persona lírica, definida como amante arrebatada” a desejar a presença do amado. O oposto dialético, por sua vez, corresponderia à indiferença do amado, voltado a outros afazeres, que atendem ao “rude decoro” de uma vida burguesa sedimentada na pragmaticidade das ações. A síntese seria aquilo que Pécora chama de “apologia ou encômio da poesia”.182 Como dito anteriormente, o crítico também salienta um aumento de intensidade nessa nova incursão no gênero, e atribui isso ao trabalho irônico da autora com as tradições camoniana e petrarquista que, certamente, encontram-se presentes nos textos desse livro. Contudo, é importante perceber que a matriz dessa mudança também é decorrente de um trabalho mais rígido com a linguagem, com o “corpo da palavra”, expressão muito cara à autora. Essa asserção parece entrar em desacordo com a ideia hilstiana de que a poesia, diferentemente da prosa, poderia nascer da inspiração, o que chegou mesmo a gerar, por parte da autora, ataques contundentes a João Cabral. Embora soe estranho falar em racionalidade ao se investigar a lírica de Hilda Hilst, essa é uma ideia também defendida por Albuquerque, quando ele comenta a estrutura bem planejada de Júbilo, memória, noviciado da paixão: sete seções organizadas rigorosamente.183 Ainda sobre essa questão, o crítico argumenta que, em relação ao gênero lírico, verifica-se que a autora é “mais uma poeta de livros que de poemas”: “Muito da poesia de Sobre tua grande face, Da morte – odes mínimas, Amavisse, Poemas malditos, gozosos, e devotos, Cantares de perda e predileção só fazem sentido se lidos no conjunto do livro”.184 Esse planejamento é bastante perceptível em Júbilo, memória, noviciado da paixão, na medida em que as imagens, operando em duas camadas – a do discurso amoroso e a do discurso metalinguístico –, funcionam como a demonstração de uma 182

Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2002, p. 13. 183 Albuquerque, Gabriel Arcanjo de, op. cit., p. 67. 184 Idem, p. 138.

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tese: dos chamamentos iniciais ao amado leitor, passando por uma discussão acerca das funções da inspiração e da racionalidade na criação literária (os amantes Túlio e Dionísio corresponderiam a símbolos dessas instâncias: o primeiro associado à razão, o segundo, ao inconsciente), a poeta termina com uma seção intitulada “Poemas aos homens do nosso tempo”. Nela, há textos que defendem, sobretudo, a construção de uma individualidade: “(...) Quando o poeta fala / Fala do seu quarto, não fala do palanque”, diz um dos textos. Em outro, encena-se a resistência em relação ao universo de consumo, mediante a palavra poética, que, numa perspectiva utópica, seria capaz de converter o “homem político” em irmão do poeta: Ávidos de ter, homens e mulheres Caminham pelas ruas. As amigas sonâmbulas Invadidas de um novo a mais querer Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas. Uma pergunta brusca Enquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto: E a entranha? De ti mesma, de um poder que te foi dado Alguma coisa clara se fez? Ou porque tudo se perdeu É que procura nas vitrines curvas, tu mesma. Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga, Tua aventura de ser, tão esquecida? Por que não tentas esse poço de dentro O incomensurável, um passeio veemente pela vida? Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada De ter seu rosto verdadeiro, desejarias nada.185

O interlocutor a que se dirige o eu lírico, em vez de ser, é conduzido pelo ter. Em contraste com outros poemas do livro, há certa simplicidade na linguagem, que destoa diante de um pomposo uso da segunda pessoa do singular, não tão comum no português brasileiro. O fecho também é por demais espetaculoso e lembra bastante a ideia de “chave de ouro”, não muito rara nos virtuoses parnasianos, e que, se funcionava 185

JMNP, p. 122.

100

adequadamente na lírica de Manuel Bandeira, soa pretensioso nesse texto de Hilda Hilst. É na imagem da curvatura – os indivíduos sobre as vitrines banais – que se pode perceber a força do poema: em vez de curvar-se em direção a si, em busca de entendimento (novamente uma atitude gnóstica), o movimento se dá na direção da mercadoria. Leitmotiv da seção, a relação entre ter e ser também se evidencia no penúltimo poema do livro, no qual o enunciador novamente exorta seu interlocutor a procurar o “seu ouro de dentro” em vez de “trabalhar” em busca de riquezas materiais. “Enquanto faço verso, tu decerto vives. / Trabalhas a tua riqueza, e eu trabalho o sangue / Dirás que o sangue é o não teres teu ouro / e o poeta te diz: compra o teu tempo”,186 diz a primeira estrofe desse poema. A perspectiva nele é também dialógica, uma vez que o eu lírico projeta a resposta do enunciatário: “Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”. Por fim, no texto que encerra o livro, as três palavras que compõem o título do volume, embora não sejam todas diretamente mencionadas, comparecem em uma espécie de síntese dos caminhos pretendidos em Júbilo, memória, noviciado da paixão: Tudo demora. E tudo é véspera e nostalgia Desse Agora, quando tu pensas que tudo se demora. E por isso, noviça, aos poucos conhecendo Repouso e brevidade desta vida, do meu ficar a sós Pretendo apenas, fruir pesares e partidas E júbilo também Porque o instante consente essas duplas medidas. Noviça da minha hora. Os rios correndo, o charco Soterrando minúcias, quem sabe a minha memória Conivências, o ouro do meu canto, irmãos Dionísio e Túlio. Os rios correndo. E todos os poemas, Fascinação de amantes e de amigos, os caminhos de volta Pretendendo.187

186 187

JMNP, p. 125. JMNP, p. 126.

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O eu poético encontra-se sob o signo de um “Agora” que é ao mesmo tempo “véspera” e “nostalgia”. E é nesse “instante eterno” que se estabelece todo o pathos oriundo desse sentimento de espera, que não é só constituído de “pesares” e “partidas”. É feito de júbilo também, pois embora a memória, os amantes, o canto do poeta sejam soterrados pelo rio a correr incessantemente (uma imagem heraclitiana utilizada para simbolizar a passagem do tempo), os poemas ainda pretendem o “caminho de volta”, lutando contra a avassaladora correnteza, na tentativa de perpetuar a palavra do poeta. Há portanto aqui, ao final do volume, o uso de uma conhecida tópica horaciana: a do exegi monumentum. Júbilo, memória, noviciado. Três termos importantes para pensar a poesia de Hilda Hilst, escritora que, como Baudelaire, almejava transformar-se em uma grande poeta (“o júbilo”). Para tanto, recolheu-se como uma noviça e desejou a si própria a perpetuidade que há poucos é concedida (“a mémoria”). Trata-se de uma atitude bastante discrepante, se comparada ao principal movimento poético brasileiro dos anos 1970: a chamada “poesia marginal”. Em vez de buscar uma escrita de permanência, essa geração se pautava pela valorização do “aqui e agora” e se colocava em posição de desconfiança quanto “à linguagem do sistema e do poder”.188 Daí o retorno ao coloquial, ao linguajar ligeiro, em uma prática textual que intentava agir como uma “escrita da e de circunstância”, com a intenção de conjugar ação e escrita.189 Esse expediente mostrou-se satisfatório em alguns, em outros nem tanto, o que valeu aos poetas dessa geração críticas bem duras, como a de Simon, segundo a qual a lírica da época passou por um “processo de ressubjetivação”, fazendo com que a forma cedesse espaço para uma pragmaticidade “sem mistérios nem nuanças”.190 Em Hilda Hilst, como contraponto de sua crença na inspiração poética, e em movimento contrário ao que acontecia na poesia brasileira dessa década, fica clara a existência de rigor, e de certa racionalidade, na escrita de seus poemas. O mais interessante, no entanto, é quando esse controle na construção da obra passa a servir como baliza, também, de sua prosa, de forma a estancar a verborragia que, em Fluxofloema, aproximava a construção do texto de uma ideia de “escrita automática”. Esse 188

Hollanda, Heloísa Buarque de, op. cit., p. 100. Moriconi, Italo. “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira. In: Poesia hoje. Rio de Janeiro: EdUFF, 1997, p. 15. 190 Simon, Iumna Maria e Dantas, Vinícius. “Poesia ruim, sociedade pior”. In: Novos estudos CEBRAP, junho de 1985. 189

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controle da verborragia a partir do rigor fica patente em uma de suas mais belas narrativas: “Matamoros (da fantasia)”, publicada no volume Tu não te moves de ti: Em mim o silêncio foi ganhando idade, em Simeona a palavra foi crescendo, em mim o silêncio de tão velho não falava, corcova, brancuras de barba, encolhendo, encolhendo, ouvia do silêncio alguns assovios de boca murcha repetindo uns rosários, palavras-fantasia destacavam-se: mormaria, pedaços feitos de morte e de meu nome, amormór, de morte ainda e de pesado amor, loucocim, pedaço feito de cima e inteiro de louco, tarDeus, de tarde avançando no de cima, poncartor, ponte de carne subindo na torre e outras vindas da terra de ninguém, balbucios melados, rouquidão de águas gotejando um telhado, suspiros arrulhentos, e lá no fim agora voz de garganta de Burra conversando com a mula: bicho de mim, sacrossanto bicho de peludosa montaria, vamo-nos porque a pequena Matamoros afundou-se no sono, assim é que está bem, e que esse que tem o corpo de um deus também vá-se embora e entre novamente no sem forma do pensamento, e que aquela cabeça que pensa Tadeus, pense em si mesma e procure a verdade junto aos seus.191

Pequenas inversões, neologismos, perturbações na sintaxe, entre outros procedimentos estilísticos, garantem, ao trecho, a construção de uma linguagem específica que se pauta na materialidade do signo: seus sons e sua morfologia. Os procedimentos, no entanto, apresentam-se muito mais comedidos e controlados, se comparados às experiências de Fluxo-floema, criando um estilo peculiar que, embora ressoe ecos de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, não se resume a mera imitação servil. Essas características, saturadas de um rigor proveniente do trabalho da escritora no gênero lírico, possibilitarão o aparecimento de narrativas espetaculares, trabalhos que se mostrarão superiores a muitas tentativas da autora no âmbito do lírico.

A década de 1970, segundo Moriconi, também foi marcada pela valorização do erotismo feminino, com a participação de poetas mulheres que celebravam “o próprio corpo como signo de diferença na arena pública, em uma “onda de subjetismo identitário, afirmativo e autocelebratório”, proveniente das conquistas femininas nos

191

TNMT, p. 95-96.

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anos sessenta.192 Hilda Hilst, para o crítico, estaria vinculada a esse grupo, assim como Olga Savary e Adélia Prado. A associação, porém, é bastante míope, tendo em vista o alcance temático da autora de Fluxo-floema e a metalinguagem operada por ela na configuração de sua lírica amorosa. Aliás, observação semelhante deve ser feita quanto aos outros dois temas tradicionais da lírica e que são tão caros à autora: Deus e Morte. Em seus poemas de cunho religioso, identifica-se uma luta entre o poder criativo do poeta e a violência de um demiurgo sanguinolento, muito semelhante ao Yahweh (“Pai filho passarinho”, como diz um dos versos do volume) da mitologia judaico-cristã, em particular a do Velho Testamento bíblico: Doem-te as veias? Pulsaram porque fizeste Do barro os homens. E agora dói-te a razão? Se me visses fazer Panelas, cuias E depois de prontas Me visses Aquecê-las a um ponto A um grande fogo Até fazê-las desaparecer Dirias que sou demente Louca? Assim fizeste aos homens. Me deste vida e morte. Não te dói o peito? Eu preferia A grande noite negra A esta luz irracional da vida.193 192 193

Moriconi, Italo, op. cit., p. 16. PMGD, p. 21.

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Novamente presencia-se a criação, por parte do enunciador, de uma imagem. Sua ação de moldar o vaso e depois destruí-lo é uma alegoria da condição humana diante da indiferença de um criador irracionalmente violento, associado à ideia de luz. O efeito alcançado pelo poema é muito forte, embora perca a intensidade na banalidade quase adolescente dos dois últimos versos. Em outro poema, o mais bem acabado do livro, a criação do texto como resistência ao demiurgo é ainda mais evidente: É neste mundo que te quero sentir É o único que sei. O que me resta. Dizer que vou te conhecer a fundo Sem as bênçãos da carne, no depois, Me parece a mim magra promessa. Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos. Mas tu sabes das delícias da carne Dos encaixes que inventaste. De toques. Do formoso das hastes. Das corolas. Vê como fico pequena e tão pouco inventiva? Hastes. Corolas. São palavras rosas. Mas sangram. Se feitas de carne. Dirás que o humano desejo Não te percebes as fomes. Sim, meu Senhor, Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto Com os enlevos → De uma mulher que só sabe o homem.194

As imagens do poema são fortíssimas. Nele, as características que passaram a configuar a lírica hilstiana a partir de Júbilo, memória, noviciado da paixão – o dialogismo, a sintaxe cortada, a maior obscuridade na formação das imagens, com preferência ao uso de alegorias ou metáforas absolutas – garantem a tensão e o efeito de estranhamento propiciado pelo discurso. Se a aproximação da divindade à carne recende

194

PMGD, p. 31.

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à blasfêmia, a inusitada relação entre as partes da flor, símbolo tão desgastado da lírica, e a carne proporciona aquele efeito que o grotesco tem de aproximar elementos distantes e construir monstruosidades, e que havia sido igualmente importante em Fluxo-floema. E mais: Deus aqui é inventor, e diante do tamanho grotesco de sua criação, a inventividade do poeta até parece pequena. E ele não só conhece os desejos da carne, como as quer para si (novamente a ambiguidade do verbo “saber”), além de ter a pretensão de que essa “fome de carne” não seja percebida pelos seres por ele criados, tão ávidos de conhecer/desejar quanto ele. O lugar em que se opera esse conúbio entre criador e criatura é o texto: “Te percebo. Deixe-me amar a ti neste texto”. Assim como a Agda de Kadosh, que imaginava ser penetrada pelo enome órgão sexual da divindade, também ocorre aqui uma aproximação entre os universos do religioso e do erótico. Contudo, há a mediação da metalinguagem, que assegura não só o caráter de invenção do texto, quanto o de resistência poética. Em outras épocas, certamente Hilda Hilst poderia acabar na fogueira. Quando aborda a temática da morte, também ocorre algo semelhante: Me cobrirão de estopa, Junco, palha, Farão de minhas canções Um oco, anônima mortalha E eu continuarei buscando o frêmito da palavra. E continuarei Ainda que os teus passos De cobalto Estrôncio Devem me preceder. Em alguma parte Monte, cerrado, vastidão E Nada Eu estarei ali →

106

Com a minha canção de sal.195

Novamente, o “frêmito da palavra” adquire valor de resistência contra a Morte, algo que Ghazzaoui percebeu com perspicácia em O passo, a carne e a posse.196 É importante salientar outro expediente que funciona como “arma poética” nas apóstrofes à morte: no decorrer do livro, ela recebe diferentes denominações (Insana, Fulva, Feixe de flautas, Calha, Candeia, Cavalinha...), assim como Deus, tanto em sua prosa quanto em sua poesia (Cara Cavada, Porco-Menino Criador de Mundos, Sorvete Almiscarado, Tríplice Acrobata, entre muitos outros). É um procedimento semelhante ao de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: veredas, no qual Riobaldo refere-se ao Diabo com diferentes nomes. As raízes desse ato também são gnósticas: trata-se da ideia de, por meio de sucessivas nomeações, chegar ao Ser da coisa. De novo, o anseio pelo conhecimento, associado à reflexão sobre a perenidade da palavra poética diante do absurdo, seja este um demiurgo sanguinolento ou a morte. Seguindo ainda o mesmo raciocínio, seria igualmente ingênua uma vinculação da obra de Hilda Hilst à lírica confessional, que teria como expoentes Sylvia Plath e Anne Sexton, Ironicamente, no entanto, a epígrafe de Júbilo, memória, noviciado da paixão é um verso de “The Couriers” (“Love, love, my season”), poema da autora de Ariel, fato que pode ocasionar esse tipo de associação, o que não seria produtivo no caso da autora de A obscena senhora D. No entanto, vale a pena deter-se no poema citado. Nele, Plath apresenta uma série de imagens herméticas para, em seguida, dizer que não as aceita: uma “palavra de lesma em prato de folha” (“The word of a snail on the plate of a leaf?”), “ácido acético em lata selada” (“Acetic acid in a sealed tin?”), “anel de ouro e nele o sol” (“A ring of gold with the sun in it”). Ao final, opta-se simplesmente pelo amor: “Love, love, my season”. Essa escolha pela simplicidade pode muito bem ligar-se à própria opção estética de Plath: uma lírica calcada em situações do cotiano, em especial o dia a dia de um casal burguês americano. Mas também é ingênuo ler a poesia de Plath somente nessa chave, tendo em vista que ela faz uso, em muitos de seus textos, de imagens herméticas, assim como se utiliza de perturbações sintáticas e sonoras, que desestabilizam a descrição de uma vivência supostamente empírica. Obviamente, como se sabe a partir da biografia da autora, elementos de sua vida, 195

DMOM, p. 55. Ghazzaoui, Fátima. O passo, a carne, a posse: ensaio sobre da morte. Odes mínimas de Hilda Hilst. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH/USP, 2003, p. 108. 196

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bastante conturbada, migraram para a literatura; porém, o texto dela é construção literária, e não reflexo de uma pretensa realidade. O que acontece, em sua obra, é a busca daquela mesma fides, a sinceridade poética, que fez com que os poemas de um elegíaco latino como Catulo fossem lidos, pelos românticos do século XIX, como expressão genuída de uma subjetividade. A resposta a essa leitura equivocada, como se sabe, foi o chistoso poema 16 de seu livro... Em Hilda Hilst, por sua vez, parece ser um pouco problemático falar em sinceridade poética. Certa artificialidade contamina seus poemas. As suas enunciações líricas, muitas vezes, apresentam molimentos, lamentações, uma série de “Ah!”, “Oh!”, “Ai!”’s que lhes dão algo de afetação. O mundo do qual partem essas vozes também apresentam um quê de fabricado: em Júbilo, memória, noviciado da paixão, como já dito, há duas temporalidades: a do poeta, cíclica e próxima da natureza, e a do “homem político”, histórica e, portanto, teleológica. De vez em quando, a proximidade que se dá entre os dois tempos denuncia o caráter de construção do primeiro: uma livraria, as gavetas de um escritório, as lojas em uma rua, esses instantâneos da vida urbana entram em contraste com as imagens associadas ao mundo natural. Isso faz com que alguns textos da seção “Poemas aos homens do nosso tempo” pareçam desarticulados do conjunto, quando não perdem a qualidade literária. Esse acento artificial problematiza qualquer busca por uma expressividade que poderia corresponder a sofrimentos reais de determinado sujeito empírico. Os da autora, por exemplo. E os poemas mais interessantes de Hilda Hilst são aqueles em que, de modo paródico, o enunciador, por meio da ironia, denuncia esse caráter de artificialidade. Isso ocorre nos melhores momentos de Amavisse, provavelmente o livro de poemas mais interessante da autora. É possível perceber esse tratamento irônico na seção “Via espessa”, em que se encena o diálogo da voz enunciativa com um “louco”, como no seguinte poema, que corresponde ao terceiro do grupo: Olhando o meu passeio Há um louco sobre o muro Balançando os pés. Mostra-me o peito estufado de pelos. E tem entre as coxas um lixo de papéis: – Procura Deus, senhora? Procura Deus? 108

E simétrico de zelos, balouçante, Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.197

Ou ainda, no sétimo poema da seção: Devo voltar à luz que me pensou De poeira e começos? Devo voltar ao barro e às mãos de vidro Que fragilizadas me pensaram? Devo pensar o louco (a minha sombra) À luz das emboscadas? Ai girassóis sobre a mesa de águas. – Estetizante – disse-me o louco Grudado à minha poética omoplata. – Os girassóis? Ah, Samsara, teu esquecido sol. Uma mesa de águas? Que volúpia, que máscara E que ambíguo deleite Para a voracidade de tua alma.198

O louco, ironicamente duplo da voz enunciativa, reflete sobre imagens engendradas pelo poeta e aponta para a afetação delas. O discurso metafísico, preocupado com a transcendência, é interrompido pelo interlocutor que devolve à voz a sua corporidade e precariedade: samsara corresponde, na doutrina hindu, ao mundo ilusório, apenas superado por meio da experiência do vazio – a sunyata –, pela qual se poderia alcançar o nirvana.199 Assim, as imagens criadas pelo enunciador, por meio de da parada irônica que separa os dois parágrafos do texto, são relacionadas ao devaneio, à quimera. Tem-se, aqui, novamente uma espécie de queda, do pensamento sublime às partes baixas da natureza humana, representado novamente por um “traseiro”, humoristicamente exibido pelo louco.

197

DD, p. 67. DD, p. 71. 199 Cf. Willer, Claudio Jorge, op. cit., p. 31. 198

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Surge, então, mais uma característica que pode ser encontrada na lírica hilstiana, após as suas incursões na prosa: o humor, na maior parte das vezes maldoso e cruel, como o de Machado de Assis ou o de Baudelaire. Expediente fundamental na dita “literatura obscena” da autora, inaugurada com Caderno rosa de Lory Lambi (1990), o humor negro passa a marcar presença em sua poesia. Sua importância cresce, a ponto de a escritora lançar um livro de poemas em que ele é um dos principais recursos. Trata-se de Bufólicas, conjunto de textos, escritos em versos livres, em que não só predomina a “dicção declamada dos contos de fada”, como também os personagens normalmente encontrados nesse gênero: a fada, a bruxa, o anão, o rei, a rainha, entre muitos outros.200 Como de costume na obra hilstiana, a forma é pervertida e os seus elementos, incluindo a famosa “moral da história” tão cara ao público burguês bem comportado, apresentam polaridade invertida. Mesmo nessas experiências, é possível detectar reflexões acerca da necessida da palavra diante do absurdo (como em “O reizinho gay”) e também metalinguagem, como em “A cantora gritante”: Cantava tão bem Subiam-lhe oitavas Tantas tão claras Na garganta alva Que toda a vizinhança Passou a invejá-la. (As mulheres, eu digo, porque os homens maridos às pampas excitados de lhe ouvir os trinados, a cada noite em suas gordas consorte enfiavam os bagos.) Curvadas, claudicantes De xerecas inchadas Maldizendo a sorte Resolveram calar A cantora gritante. → 200

Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Bufólicas. São Paulo: Globo, 2007, p. 8.

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Certa noite... de muita escuridão De lua negra e chuvas Amarraram o jumento Fodão a um toco negro. E pelos gorgomilos Arrastaram também a Garganta Alva Pros baixios do bicho Petrificado O jumento Fodão Eternizou o nabo Na garganta-tesão... aquela Que cantava tão bem Oitavas tantas tão claras Na garganta alva. Moral da estória: Se o teu canto é bonito cuida que não seja um grito.201

Ao humor grotesco do poema, repleto de termos considerados baixos e de situações absurdas, soma-se a violência, evidenciando outra característica proveniente dos textos em prosa da autora: a crueldade. A personagem da pequena fábula é uma cantora cujas notas estão sempre no alto (como a dicção da autora?). Sâo também puras, por isso sua garganta é alva e o seu canto, bonito. Ele, no entanto, incomoda a “vida besta” da vizinhança ao excitar os homens da cidade, como se fosse um canto de sereia. A voz da personagem os encanta. O castigo pela hybris de ter um belo canto é o silêncio forçado. A violência é igualmente perceptível no poema que abre Amavisse e que funciona como uma espécie de pequena estética, ao reunir motivos que não só estão no livro como também passaram a integrar a obra da autora: Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco À espera da Tua fome, permita-me a pergunta Senhor de porcos e de homens:

201

Buf, p. 29-30.

111

Ouviste acasa, ou te foi familiar Um verbo que nos baixios daqui muito se ouve O verbo amar? Porque na cegueira, no charco Na trama dos vocábulos Na decantada lâmina enterrada Na minha axila de pêlos e de carne Na esteira de palha que me envolve a alma Do verbo apenas entrevi o contorno breve: É coisa de morrer e de matar mas tem som de sorriso. Sangra, estilhaça, devora, e por isso De entender-lhe o cerne não me foi dada a hora. É verbo? Ou sobrenome de um deus prenhe de humor Na péripla aventura da conquista.202

No diálogo com o divino, a violência é mais um elemento que se insere entre o amor e o humor, evidenciado que pode haver muito mais entre duas palavras já antes aproximadas por Oswald de Andrade. A imagem é forte: trata-se do sacrifício de um porco que acontece, acima de tudo, na trama da linguagem. O poema em questão também é uma reflexão metalinguística. A crueldade, muitas vezes de mãos dadas ao humor negro, tornou-se, então, uma variável importante na produção hilstiana. Essas características marcarão presença, também, na chamada “obra obscena”, na qual se dará o interessante diálogo da autora com outra forma, também portadora de um tipo específico de violência: a mercadoria. Esse será o assunto do próximo capítulo.

202

DD, p. 41.

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CAPÍTULO 5 LITERATURA EM CARTAS MARCADAS

No inicio dos anos noventa, deu-se início à chamada tetralogia obscena de Hilda Hilst. Foram quatro volumes – Caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos de escárnio/Textos grotescos (1990), Bufólicas (1992) e Cartas de um sedutor (1993) – recebidos com consternação pela crítica: muitos, na época, entenderam a escolha de enveredar pela dita “literatura não séria” como jogada de marketing para aumentar a vendagem de seus livros: “Alguns amigos dizem: é um lixo! Eu digo: sabe qual o significado deste livro? Estou cagando pra vocês! Eu só tenho medo é que as pessoas me levem a sério”, respondeu a autora, na época, às recepções nada agradáveis de suas novas tentativas.203 De fato, algumas pessoas infelizmente “levaram a sério” a escritora: “(...) se a autora, Hilda Hilst, teve o mesmo projeto que seu personagem escritor, o pai de Lori Lamby – fazer um livro de caráter pornográfico – fracassou inteiramente”, comentou, no calor da hora, o crítico Jorge Coli.204 Apareceram, na época, contudo, apreciações mais percucientes: Moraes, por exemplo, destacou a polissemia que a palavra “língua” – órgão de extrema importância nos relatos sexuais da menina de oito anos que narra o Caderno rosa – assumia no contexto da narrativa, uma vez que o vocábulo assumia tanto a acepção de “lamber, chupar e sugar”, como a de “falar, fabular, narrar”.205 Embora míope, o comentário de Coli acertou num ponto: o fracasso no empreendimento de escrever um texto pornográfico. Contudo, errou ao cogitar que essa fora a intenção a autora. Como nota Azevedo Filho, as perturbações formais realizadas pela autora na forma escolhida propiciam uma “visão não realista da pornografia”, ocasionando um “desequilíbrio entre mimese e diegese”.206 De fato, a inserção de elementos grotescos, certamente provenientes de sua prosa anterior, uma retórica da amplificação que, como uma lupa, exagera as estruturas que caracterizariam um 203

Apud Azevedo Filho, Deneval Siqueira de. Holocausto das fadas – a trilogia obscena e o camelo bufólico de Hilda Hilst. São Paulo: Annablume, 2002, p. 23. 204 Idem, p. 22. 205 Idem, p. 23. 206 Idem, p. 28.

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“romance pornô”, além da recuperação de questões metafísicas e estéticas que sempre nortearam sua obra, transfiguram o gênero, minando qualquer possibilidade de se criar uma literatura descartável de fácil digestão. Seria ingênuo, e hoje qualquer crítica nesse sentido cairia em lugar comum, supor que as intenções da autora fossem ampliar o seu mercado de leitores, embora ela, sarcasticamente (e talvez, propositalmente) alardeasse sua vontade de ser entendida por uma empregada ou por um metalúrgico do ABC paulista.207 “Por que eu, vivendo num país capitalista, não posso ganhar dinheiro?”, afirmava Hilda Hilst, na época de lançamento do primeiro volume de sua tetralogia.208 Ironias à parte, tais brincadeiras podem trazer revelações críticas interessantes: a ideia de “alcançar o outro”, chegar a um possível leitor, que a fizera migrar para diferentes gêneros literários, no final da década de 1970, retorna, porém em uma chave diferente e, ao mesmo tempo, perigosa: mimetizar de modo crítico a forma mercadoria, que, em termos do mundo editorial, corresponderia ou ao best-seller ou aos livrinhos descartáveis – do tipo “Sabrina” ou “Júlia” – facilmente encontrados em bancas de jornal. Para isso, retorna um tipo que já havia aparecido em Fluxo-floema: o editor, que, no imaginário hilstiano, agiria como representante do mercado editorial. No entanto, esse personagem passa a assumir um valor estrutural na narrativa, principalmente em Caderno rosa de Lori Lamby e Cartas de um sedutor. Vale a pena deter-se neste último, para verificar como isso se processa. O texto lançado em 1991 inicia-se com a apresentação dos personagens Tiu e Eulália: dois miseráveis amasiados que vivem de restos (“Pedimos tudo o que os senhores vão jogar no lixo, tudo o que não presta mais, e se houver resto de comida, a gente também quer”). Tiu, ou Stamatius, é um escritor que abandonou os bens materiais e a vida em sociedade. Ele é o autor fictício que delegará a voz narrativa a Karl, uma espécie de ricaço bissexual que se corresponde com a irmã – Cordélia –, da qual ele se encontra separado há 16 anos, tendo dela somente a caixa-postal. Assim, instaura-se um complexo esquema narrativo: Stamatius cria, em seus textos, outro narrador – Karl –, o autor das missivas que compõem a coletânea de cartas. É a mão que escreve outra mão que também escreve, como no conhecido desenho de Escher. 207 208

Idem, p. 21. Idem, p. 27.

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A forma do conjunto, como nota Pécora, remonta aos romances epistolares de caráter libertino do século XVIII, dos quais o principal exemplo é As relações perigosas, de Laclos.209 Porém Cordélia, em vez de representar a moça inocente que, tal como Cécile Volanges, passa por uma espécie de “aprendizado erótico”, para entregarse a um sedutor cheio de lábia, encontra-se mais para a astúcia de uma Marquesa de Merteuil. Na coletânea de cartas escritas por Karl, é interessante notar como, ao mesmo tempo em que se recupera a forma do romance epistolar, inserem-se elementos dissonantes na estrutura do gênero. Mantém-se, nesses textos, uma retórica de persuasão, por meio da qual o remetente se esforça por seduzir o destinatário, utilizando-se de diversos métodos, tais como formas verbais no imperativo, perguntas retóricas e a antecipação dos atos e emoções do leitor diante da carta (“Quanto a Albert. Tem 16. É mecânico. Não faças essa cara e não rias”);210 em contrapartida, o tratamento respeitoso comumente empregado na forma original é substituído por uma linguagem ofensiva, muitas vezes chula. Logo na primeira carta, o sedutor interpela a irmã com versos dignos de entrar em quaisquer antologias de poemas satíricos: “Foste antanho putíssima, celebérrima. / Talvez senhora em alguns parcos segundos”.211 Outro elemento proveniente do gênero epistolar que comparece na narrativa de Karl é o estilo hiperbólico, caso se pense em termos do que Rousseau diz a um suposto amigo, em diálogo que faz as vezes de prefácio ao livro Júlia ou a nova Heloísa. O interlocutor do filósofo francês critica a forma “empolada”, o excesso de “exclamações” e de “afetação” e a ênfase por demais exagerada para dizer “coisas comuns”, o que Rousseau imediatamente rebate, expondo a seguinte tese: “No isolamento, temos outras maneiras de ver e de sentir do que nas relações com a sociedade; as paixões diferentemente modificadas expressam-se de outras maneiras; a imaginação, sempre impressionada pelas mesmas coisas, é mais vivamente afetada”.212 Tais disposições psicológicas, portanto, acarretariam no “aspecto bizarro e pouco variado que se observa nas palavras dos solitários”.213 Obviamente, há nessa teoria apresentada por Rousseau resquícios das ideias contidas em O contrato social: a sociedade, segundo ele, seria responsável pelo 209

Pécora, Alcir, op. cit., p. 7. CS, p. 26. 211 CS, p. 20. 212 Rousseau, Jean-Jacques. Júlia ou a nova Heloísa. Unicamp: Campinas, 2001, p. 28. 213 Ibidem. 210

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desvirtuamento do homem, bom por natureza. A carta, por sua vez, corresponderia ao mecanismo pelo qual os verdadeiros sentimentos seriam expostos, a partir do momento em que não estariam mais sendo mediados pelo comportamento em sociedade. Essa é uma visão que será bastante proveitosa aos escritores românticos, dentre os quais é válido destacar Goethe, cujo Werther ilustra bem esse modelo de forma epistolar. Como duvidar dele, quando lemos “Wie froh bin ich, dass ich weg bin! Bester Freund, was ist das Herz des Menschen!”.214 A retórica que molda o estilo e as palavras do jovem apaixonado corresponderiam, no modo de pensar romântico, aos seus mais puros sentimentos. Por isso, ao dirigir-se ao seu destinatário, chamando-lhe de “melhor amigo”, não haveria aí qualquer tipo de afetação. Mais tarde, Chordelos de Laclos, com As relações perigosas, colocará em xeque até mesmo esse suposto ato solitário e autêntico de escrita, carregando de artificialidade e hipocrisia a correspondência trocada por nobres desocupados que tratam como jogo o sentimento alheio. Das missivas do romance, aquelas que de fato expressam afeições verdadeiras, como as de Cécile Volanges ou as do jovem Cavaleiro Danceny, parecem deslocadas em meio a toda uma espécie de meneios retóricos que caracterizariam um convívio pautado sob o signo da aparência. Não à toa, ao transformar-se em joguete nas mãos de Marquesa de Meurteil, a pobre Cécile passa a entregar-lhes às cartas destinadas ao seu amado, antes que este as receba, para que a libertina possa opinar sobre o seu estilo e conteúdo, de modo que elas contivessem somente o que se convém dizer.215 É a subjetividade sendo mediada pela hipocrisia do convívio social. Baseada nesses princípios de que a carta deve ser mais uma construção que uma expressão da subjetividade, a marquesa denuncia, em certa altura do romance, a falta de verossimilhança em uma correspondência na qual o Visconde de Valmont declara, de maneira dissimulada, o amor que sente pela presidenta de Tourveil: Além disso, uma observação que nada me espanta terdes feito é a de que não há nada tão difícil, em amor, como escrever o que não sentimos. Digo escrever de maneira verossímil. Não é que não nos sirvamos das mesmas palavras, mas é que não as arranjamos da mesma maneira, ou antes, nós as arranjamos, e isso basta. Relede vossa carta; reina aí uma ordem que vos denuncia a cada frase.216 214

Goethe, Johann W. Die Leiden des jungen Werther. Hamburger Lesehefte Verlag: Hamburgo, 2005. Laclos, Chordelos. As relações perigosas. Biblioteca Folha: São Paulo, 2003, p. 70, carta XXIX. 216 Idem, p. 76, carta XXXIII. 215

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É, portanto, o “arranjo das palavras” que garante às cartas a aparência de artifício, colocando-as dessa maneira a par com a criação literária, o que torna evidente a possibilidade de seu uso literário. Essa questão foi posteriormente discutida de maneira bastante interessante por Kierkegaard. Em Diário de um sedutor, o mecanismo da sedução é iluminado, e o leitor acompanha pari passu os movimentos do libertinoescritor, chegando até mesmo a participar, quase como cúmplice, das jogadas empreendidas por ele. O leitor, desse modo, em uma espécie de aprendizado, teria acesso aos subterrâneos do funcionamento de determinada forma: “As minhas cartas acertam no alvo. Desenvolvem a sua alma [a de Cordélia], se não mesmo o seu erotismo. Para tal, aliás, as cartas não servem, mas sim os bilhetes. Quanto maior é o caminho já percorrido pelo erotismo, tanto mais curtas as cartas se tornam; mas vão tocar com maior certeza no ponto erótico”,217 explica Johannes em um trecho de seu diário. Mais adiante, ele demonstra sua teoria em uma das cartas mais bem construídas da coletânea: Minha Cordélia! Minha Cordélia – teu Johannes, estas palavras encerram o pobre conteúdo das minhas cartas como um parêntesis. Terás já reparado em como se encurta a distância entre os dois sinais de parêntesis? Oh! Minha Cordélia! É belo porém que enquanto mais o conteúdo diminui tanto mais o parêntesis ganha em significado. Teu Johannes

Assim, de Rousseau a Kierkegaard, é possível constatar como a forma do romance epistolar, ao receber novos conteúdos que nela se sedimentaram, passou por transformações que, de certa maneira, se relacionam com os pensamentos e/ou o funcionamento da sociedade em que esses autores produziram tais obras. Em Laclos, a possibilidade de uma manifestação subjetiva individual autêntica, condizente com a maneira romântica de se pensar, é problematizada diante de uma sociedade para a qual o importante é a aparência, e não a essência. Em seguida, a forma passa também a fazer parte do discurso filosófico, que se apropria dela para a exposição de uma teoria (no caso de Kierkegaard, as discussões acerca da ética e da estética). 217

Kierkegaard. Søren A. Diário de um sedutor. Série Pensadores. Abril Cultural: São Paulo, 1982, p. 71.

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A narrativa que se encontra por trás da troca de correspondências, em Cartas de um sedutor, por exemplo, beira o absurdo: por meio de amplificações, tudo é levado “aos extremos da desmesura e da incongruência”:218 Karl revela possuir um ardente desejo sexual pela irmã (resquícios de outro desejo pela mãe); Cordélia, por sua vez, quando mantinha relações com o irmão, pensava no próprio pai, e chegava a masturbarse com as roupas íntimas de seu progenitor. Além disso, seu irmão Karl costuma sair à caça de homens, aparentemente travestido (“Só o tesão, o brilho, a cintilante, o pó é que me arranca da mesmice. A vida aqui na cidade é um tédio sem fim. As mesmas caras circulando pela noite, e quando aparece um bofe de outras bandas surgem pentelhos de todos os lados, não dá tempo nem de lhe sentir o cheiro.”),219 além manter um caso com um rapaz de dezesseis anos. Seus empregados também respiram uma atmosfera de sexo e devassidão: o motorista Franz, além de sentir-se atraídos pelos lixeiros e masturbar-se admirando fotos de “seu Führer”, vive a bulinar, às escondidas, a copeira Frau Lotte; Gretchen, a empregada, tem como tara lamber as partes traseiras de Zé Piolho, o rapaz da mercearia. Nem o pai do remetente se encontra a salvo da perversão que move todos os personagens: em uma viagem a Salvador, teria ele conhecido um tal João Pater, que costumava o sodomizar em segredo. E, ao final, faz-se a revelação derradeira: Cordélia teria saído de casa após descobrir-se grávida do próprio pai e, desde então, morava no campo com o filho Iohanis, também participante das aventuras sexuais da mãe (“E enfim confessas: que Iohanis é louro, tem coxas douradas, 15 aninhos, adora tênis, e é a cara do pai. Sou irmão e tio. És mãe, irmã e amásia. Parabéns. Quantas mentiras. Marafona.”).220 Trata-se, portanto, de um enredo repleto de viravoltas, insinuações eróticas, bem ao gosto de quem costuma consumir literatura pornográfica barata. No entanto, as peripécias mirabolantes da história e suas alusões ao sexo são mediadas pela cultura da voz narrativa de Karl, que se manifesta tanto no nível das citações literárias quanto no da linguagem. O ricaço pervertido demonstra ser um escritor extremamente culto: passam por sua pena Tolstói, Bataille, Dante, Kierkegaard (cuja alusão é imediata por causa do título e do nome da irmã), Ovídio, Mishima, só para citar alguns. Da mesma 218

Pécora, Alcir, op. cit., p. 9. CS, p. 28. 220 CS, p. 87. 219

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forma, o trabalho elaborado com a linguagem convive com termos mais apropriados ao gênero baixo: Teu cuzinho sabia também a mel rosado, tua vagina no entanto era um misto de abius e nêsperas. Lembrei-me neste instante dessas duas árvores aqui no pomar de casa. Que complicadas alquimias para um hipotético e inalcançável gozo do pai, pobrezinho, longe de conhecer e provar as tuas e as minhas taras. (...) Aformoseia-te novamente, minha querida, retoma teus banhos de nectarina e leite, massageia a rosa com pequeninas folhas de romã mergulhadas e óleo de amêndoas doces, reativa com esse processo a umidade natural também da perseguida, tua pobre cona tão sem perseguidores.221

No trecho anterior, por exemplo, vale notar o uso arcaizante do verbo “saber”, que recupera seu sentido latino original: o de ter gosto. O nome dado ao órgão sexual feminino (“cona”) também é de uso antigo e culto, e convive no texto com sinônimos de origem popular, muitas vezes bem chulos. O mesmo se processa com as citações literárias, que flutuam de notícias de jornal acerca de assassinatos violentos a alusões a textos sagrados. As descrições dos banhos, assim como das partes da mulher, por exemplo, lembram trechos do Cântico dos cânticos, livro erótico da Bíblia, cujos cantos, segundo alguns exegetas, foram compostos para as esponsais do rei Salomão. Esses poemas bíblicos possuem um estilo rico em comparações, com as quais o corpo da amada é associado, sobretudo, à natureza (“Tu és jardim fechado, / Irmã e noiva minha; / és jardim fechado e fonte lacrada. / Teus brotos são jardins de romãs / com frutos deliciosos: nardo e zimbro e açafrão, canela e cinamomo, / com árvores de incenso, mirra e aloé,/ com os melhores bálsamos e aromas”).222 No caso das cartas, a escrita de Karl operaria uma subversão no original: primeiramente, com a palavra irmã sendo entendida em sentido literal; os banhos e perfumes também não serviriam mais para preparar uma virgem prestes a entregar-se ao esposo, mas sim a uma libertina que deverá banhar-se para dormir com o próprio irmão. Por fim, além das inúmeras alusões literárias, a própria estrutura da narrativa denuncia o ser caráter de artifício. Na décima terceira carta do romance, o leitor deparase com uma situação inusitada que, de certa forma, revela o caráter chistoso do texto: o 221 222

CS, p. 22-3. Ct 4,12-14. A tradução foi retirada da Bíblia do Peregrino (Paulus: São Paulo, 2004, p. 1.515).

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suposto personagem que compõe as missivas se revela amigo de Stamatius, o autor fictício do romance epistolar: Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá), que perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália, que deve ter nascido no esgoto. Muitos o procuram para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu quer escrever, só pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o conheceu. (...) A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! edito o seu livro! com capa dura e papel bíblia (...).223

Esse trecho, ao mesmo tempo em que recupera a primeira instância enunciativa, a fala de Stamatius, revela que estamos diante não de uma mera coletânea de cartas, mas sim de outro romance. Não é a história de Karl que nos é contada, como poderíamos ser induzidos a crer pelo título da obra; mas sim as possibilidades de construção de outros textos narrativos. De repente, mal o leitor já se acostumara com a linguagem libertina de Karl, o romance sofre um corte e o próprio Stamatius “demite” o personagem por ele criado: “Eu, Stamatius, digo: vou engolindo, Eulália, vou me demitindo desse Karl nojoso”.224 O autor fictício assume a voz narrativa e revela as situações nas quais se inspirou para produzir as cartas do sedutor: Que nojo todos! Se tu não lambe o rabo dos canalhas estás fritos. E que amigos! Aquele idiota do Karl só pensava em meter. Sabe-se que, menininho, pôs a bimba na boca da mãe. A mãe não suportava o menino Karl. Era um enfiar um dedo no oiti o dia inteiro. E gostar. E pendurar-se nas pernas da irmã, agarrar-se a ela como um bicho viscoso.225

Stamatius, agora assumindo sua posição de narrador, expõe-nos uma suposta realidade que lhe serviu de matéria para a construção do romance que escrevera. Essa 223

CS, p. 67. CS, p. 98. 225 CS, p. 124. 224

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“realidade”, no entanto, não corresponde tão-somente a fatos ou pessoas que ele conhecera, mas sim da transformação destes em ficção. Tiu não conta a sua própria história, mas acaba por contá-la ao inserir-se metonimicamente na fábula que constrói, assim como a própria Hilda Hilst também nele se insere. Trata-se de um expediente comumente empregado na prosa hilstiana, desde suas primeiras novelas, publicadas no volume Fluxo-floema (1970), nas quais, como demonstrado nos capítulos anteriores, o narrador se metamorfoseia constantemente em outros personagens. Mas esse expediente, que nas novelas anteriores acontecia por trás da narrativa, propiciando um efeito de sentido de confusão, é em Cartas de um sedutor deslocado para o primeiro plano, fazendo com que o leitor perceba como essas trocas de identidade se processam. Stamatius, ao final, demite sua companheira Eulália e termina por demitir a si próprio (“Vou engolindo Eulália. Vou me demitindo. E vou ficando muito mais sozinho. Restarão meus ossos. Devo polir meus ossos antes de dormir?”), em um “desfecho” que também nos engana, pois ele mesmo retorna para comentar um pequeno conto colocado em uma espécie de coletânea intitulada “Novos antropofágicos”. A autoria dessas pequenas histórias, presentes na última seção do livro, pode muito bem ser atribuída ao autor fictício criado por Hilda Hilst, o que corrobora com a tese de que Cartas de um sedutor é também um relato da construção das narrativas que o compõem. E mais que isso: encena-se também a possibilidade de escrita dessas histórias do ponto de vista mais terra a terra que se possa imaginar, chegando-se mesmo a se apresentar ao leitor as parcas condições materiais de Stamatius, o escritor que se põe a escrevê-las. Tiu, ao abandonar a sociedade (como Hilda Hilst?), desfez-se de seus bens, tornando-se uma espécie de miserável. A cena inicial corresponde justamente a uma reflexão sobre o estado em que ele se encontra: Como pensar gozo envolto nestas tralhas? Nas minhas. Este desconforto de me saber lanoso e ulcerado, longos pêlos te crescem nas virilhas se tu ousas pensar, e depois ao redor dos pêlos estufadas feridas, ouso pensar me digo, a boca desdentada por tensões e vícios, ouso pensar me digo e isso não perdoam.226

226

CS, p. 15.

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Nas condições em que sobrevive, o ato de pensar é uma ousadia, não condizente com uma sociedade que, para ele, seria baseada em relações de adulação e subserviência. Em trecho anteriormente citado, as relações sociais são descritas com metáforas que nos remetem a atos sexuais (“Que nojo todos! Se tu não lambe o rabo dos canalhas estás fritos”), assim como acontece em toda a atmosfera na qual os personagens de Stamatius transitam. Por não concordar com esse tipo de “contrato social”, o autor fictício escolhe o isolamento: passa a viver, em um casebre miserável, com uma garota de rua, aparentemente menor de idade, com a qual se amasia, e que, de quando em vez, consegue alimentos em troca de favores sexuais, o que demonstra, de certa forma, a impossibilidade de manter-se completamente afastado dos valores ditados pela sociedade. No dia a dia, recolhe o lixo alheio, do qual retira o que realmente lhe interessa: “(...) aí separávamos tudo: rato e bosta pra cá, livros pedras cacos pra lá. Comida nunca. Era um que fazer o dia inteiro. Depois eu lavava os livros e começava a ler (...). Que leituras! Que gente de primeira! O que jogaram de Tolstói e Filosofia não dá pra acreditar. Tenho meia dúzia daquela obra-prima A morte de Ivan Ilitch e a obra completa de Kierkegaard”.227 Os despojos representam, de alguma maneira, elementos que, desprovidos de valor para a sociedade, estimulam a escrita de Stamatius. Mas o personagem não consegue romper completamente os vínculos com mundo: usa Eulália com o intuito não só de satisfazer seus desejos sexuais, como também arrecadar dinheiro a partir da prostituição dela; para alimentar-se, procura restos e também imagina modos de vender o que agora produz: literatura. É aqui que entra o personagem que, no imaginário hilstiano, representaria o mercado de livros: o editor.

Em termos formais, a função do editor, no romance epistolar, corresponde à de garantir a verossimilhança da obra. Faz-se necessária a existência de alguém que recolha as es cartas e as organize em um volume. É ele, por exemplo, nos Sofrimentos do jovem Werther, que, com dedicação (“mit Fleiß”) as reúne (“Was ich von der Geschite des armen Werther nur habe auffinden können, habe ich mit Fleiß gesammelt

227

CS, p. 16.

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und lege es euch hier vor, und weiß, dass ihr mir’s danken werdet”);228 e, ao final, pela própria impossibilidade de Werther o fazê-lo, relata o desfecho trágico da história. Em Laclos, no entanto, já se opera uma alteração interessante: ocorre uma espécie de divisão do trabalho. Há, em As relações perigosas, a distinção entre autor e editor: enquanto o primeiro se afirma como organizador da correspondência, o segundo é que de fato estabelece a mediação entre a obra e os seus consumidores. Ele é quem vai ser o responsável pela transformação do texto (material literário) em livro (objeto de consumo). Por isso, precisa ser portador de um discurso afim com a mentalidade daqueles que comprarão o objeto cuja produção e cuja distribuição se encontram a seu cargo. É ele, que no início do romance de Laclos, apresenta-nos a obra, afirmando: (...) afigura-se-nos que o autor, embora pareça haver procurado a verossimilhança, a destruiu ele próprio, e bem desajeitadamente, dada a época na qual situou os acontecimentos aqui divulgados. Com efeito, muitas das personagens postas em cena têm tão maus costumes que é impossível supor hajam vivido em nosso século; neste século de filosofia, em que as luzes, espalhadas por toda parte, tornaram, como se sabe, todos os homens tão honestos e todas as mulheres tão modestas e reservadas.229

Obviamente, não devemos levar a sério o que ele nos diz! Trata-se tão somente de um expediente literário que, em vez de incidir sobre a própria obra, para garantir-lhe a verossimilhança, incide – ironicamente, no caso – sobre o objeto material – o livro – de modo a garantir-lhe a circulação. É a cultura tendo de adaptar-se a outra espécie de lei distinta da do patronato: a do mercado. Torna-se evidente, então, o fato de que a produção cultural tenha se transformado em mercadoria, como verifica Adorno ao discutir justamente as implicações do fim do patronato para o artista, em um ensaio sobre Heine.230 E é na literatura do século XIX que tal fato se mostra mais evidente. Em seus conselhos de Como pagar as dívidas quando se tem gênio, Baudelaire retrata o editor como um “comerciante rico e próspero”, pronto a aceitar encomendas de artigos ou

228

Goethe, Johann W., op. cit, p. 5. Laclos, Chordelos de., op. cit., p. 7. 230 Adorno, Theodor W. “A ferida Heine”. In: Notas de Literatura. Editora 34: São Paulo, SP, 2002, p. 130. 229

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folhetins, chamados devidamente pelo narrador de “transações”.231 Certamente o uso de palavras pertencentes ao campo semântico do mundo dos negócios não é ingênuo. Na literatura brasileira, Álvares de Azevedo, na segunda parte de sua Lira dos Vinte Anos, tem um poema justamente chamado “O editor”. Nele, após afirmar que até mesmo Torquato Tasso se lastimava por não ter “um centil para a candeia”, o poeta brasileiro surpreende o leitor com a seguinte estrofe: Provo com isso que do mundo todo O sol é este Deus indefinível, Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre, Mais santo do que os Papas – o dinheiro.

Nas duas últimas estrofes do mesmo poema, a crítica recai sobre os próprios poetas: Se não faltasse o tempo a meus trabalhos Eu mostraria quanto o povo mente Quando diz – que a poesia enjeita, odeia As moedinhas douradas. – É mentira! Desde Homero (que até pedia cobre), Virgílio, Horácio, Calderon, Racine, Boileu e o fabuleiro La Fontaine E tantos que melhor de certo fora Dos poetas copiar algum catálogo, Todos a mil e mil por ele vivem, E alguns chegaram a morrer por ele! Eu só peço licença de fazer-vos Uma simples pergunta. Na gaveta Se Camões visse o brilho do dinheiro – Malfilatre, Gilbert, o altivo Chatterton Se o tivessem nas rotas algibeiras Acaso blasfemando morreriam? 231

Baudelaire, Charles. Como pagar as dívidas quando se tem gênio, em Obras Completas. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1995, p. 556.

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O tema do poema é certamente o “dinheiro”, que obriga o poeta a mudar as relações que mantém com a obra que produz. O tempo, signo imprescindível para o sistema capitalista, apresenta-se como elemento modificador dessas relações (“Se não faltasse o tempo a meus trabalhos”), na medida em que a produção passa a ser por ele pautada. Sua força chega a ser forte o suficiente, a ponto de arrastar consigo até mesmo os períodos pré-capitalistas, como um torvelinho que transforma em mercadoria toda a produção cultural que o precede. Certamente, o romântico brasileiro é anacrônico ao acusar Homero de desejar, por seus “escritos”, os esperados “cobres” como pagamento; mas a sua visão, mesmo míope, coaduna-se com o tipo de pensamento que se tem em relação à cultura na época em que sua Lira fora publicada. E o mais interessante: embora o poema se chame “O editor”, em nenhum verso tal personagem se manifesta. No entanto, é justamente o dinheiro que a ele pode ser associado e que metonimicamente o representa, revelando o quão dependente de condições materiais a literatura se encontra. Assim, quando Hilda Hilst descreve o casebre miserável em que seu autor fictício inventa sua obra, é possível ouvir, como um eco por trás dele, a estrofe final do poema que fecha a principal obra do poeta romântico brasileiro: Minha desgraça, ó cândida donzela, O que faz que o meu peito assim blasfema, É ter para escrever todo um poema, E não ter um vintém para uma vela.

Se nos primeiros romances epistolares, tinha o editor primeiramente a função de garantir a verossimilhança da obra, e posteriormente a de permitir a circulação dela como mercadoria, o desenvolvimento do capitalismo acaba por ocasionar uma inversão de papéis. O editor, representante agora das leis do mercado, passa a funcionar como empecilho para a autonomia do artista.

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Em Cartas de um sedutor, por exemplo, ele é figurado como antagonista que obriga Stamatius a escrever de acordo com as leis da oferta e da procura, ou seja, os textos fáceis, de preferência de forte cunho erótico: tá bem. vou escrever “Filó, a fadinha lésbica”. não. escreve do menino que virou cachorro. mas só virou cachorro, só isso? uai, e não é coisa pra burro? é, é coisa pra editor sim, mas tem que ser um cachorro sacana, fodedor.232

Em O caderno rosa de Lori Lamby, o editor funciona como elemento estruturador da narrativa. Nesse volume, o expediente do autor fictício também é empregado, mas, ao contrário do que acontece em Cartas de um sedutor, a identidade desse autor é revelada a partir de uma peripécia, no final da obra. O livro, inicialmente, aparenta ser narrado por uma menina de oito anos que relata, em linguagem que imita a fala infantil, suas aventuras sexuais com homens mais velhos. O pai dela, descrito como uma espécie de proxeneta que alicia a própria filha em troca de dinheiro, é justamente um escritor que, para conseguir sobreviver, aceita a proposta do editor e passa a escrever contos pornográficos, as ditas “bandalheiras”: “Você quer saber, Cora, eu acho o Henry Miller uma pústula (Cora é nome da mami), isso mesmo, uma pústula, uma bela cagada”. “Você tem coragem de dizer que o Henry é uma pústula ?” “Tenho, e quer saber? sua judas, eu trabalho a minha língua como um burro de carga, eu sim tenho uma obra, sua cretina”. Aí mamãe começou a chorar e disse que adorava ele, que sabia que ele trabalhou muito a língua, que ele era raro e começaram a se abraçar e eu acho que eles iam se lamber, e eu não consegui perguntar do príncipe e da história que ele podia escrever e também não entendi essa coisa de trabalhar a língua, eu ainda quis perguntar isso pra ele mas ele já estava outra vez gritando que a nojeira que ele ia escrever ia dar uma fortuna, e que ele queria muito viver só pra gozar essa fortuna com a nojeira que ele estava escrevendo.

232

CS, p. 91.

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Ao final da narrativa, descobre-se que, na realidade, as histórias contadas não correspondem a experiências sexuais da criança, mas sim a conversas entre o pai e mãe, ou entre este e o editor, ouvidas pela menina e transcritas em tom infantil, intercaladas a trechos do texto pornográfico que havia sido encomendado ao pai, copiado pela criança, às escondidas, em seu “caderninho”. Este, por sua vez, acaba sendo apropriado pelo editor. Assim, ao contrário do que acontece em Cartas de um sedutor, as instâncias do editor e do autor-fictício se confundem, o que permitirá a transformação rápida do “caderninho pornográfico” em livro para ser consumido. Subordinada às leis do mercado, a criação literária também encontra restrições em relação ao gênero. No prefácio que escreveu para o livro Esses poetas, Heloísa Buarque de Hollanda afirma que, para “o bem ou para o mal, de todos os gêneros artísticos, a poesia é o que está mais alijado do mercado. Esse alijamento se traduz em escassez de leitores, confinando quase que fatalmente, o público-leitor de poesia aos próprios poetas e simpatizantes”.233 Nesse caso, a relação do editor com a poesia seria a de completo desinteresse, tendo em vista que esse tipo de gênero não lhe proporcionaria retorno financeiro imediato, como fica patente no seguinte trecho de O caderno rosa de Lori Lamby: “Deve ser tão bonito a gente fazer poesia. Papai diz que o Lalau [o editor] vomita só de ouvir a palavra poesia e que um dia o Lalau até peidou, fez pum, sabe?”.234 Quanto aos demais gêneros, ou eles se adaptam às leis do mercado ou então estão fadados à marginalidade. Com isso, possíveis experiências vanguardistas encontram-se fora de cogitação, enquanto as antigas acabam por ser devidamente apropriadas pelo discurso publicitário, como nota Jameson.235 No caso do romance, por exemplo, as fórmulas para criação de best sellers parecem renovar-se com o tempo, criando modismos que exercem, na contemporaneidade, o papel de uma “estética normativa”, aparentemente renovada a cada verão. Ora, Hilda Hilst começou a escrever seus textos em prosa no início dos anos setenta, década em que se iniciava, no país, a chamada “modernização conservadora”, pela qual, concomitantemente ao crescimento econômico, acentuaram-se também as desigualdades sociais, “aumentando ainda mais a distância” entre ricos e pobres.236 233

Hollanda, Heloísa Buarque de. Esses poetas. Uma antologia dos anos 90. 2. ed. Aeroplano Ed.: Rio de Janeiro, 2001, p. 13 234 CRLL, p. 73. 235 Jameson, Fredric. “Cultura e capital financeiro”, em A cultura do dinheiro. Vozes: Petrópolis, 2001, p. 165. 236 Otsuka, Edu Teruki. Marcas da catástrofe – experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque. São Paulo: Nankin, 2001, p. 17.

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Paralelo a esse desenvolvimento, ocorria a consolidação da indústria cultural no país, aumentando, junto com a renda da classe média, o alcance mercadológico dos meios de comunicação de massa.237 Com a ampliação do “parque editorial” decorrende desse desenvolvimento econômico, escritores, em vez de publicarem seus livros em “casas editoriais com traços paternalistas”238 (como fazia a própria Hilda Hilst), poderiam, a partir de então, maximizar suas vendagens, lançando seus livros por meio de grandes editoras, que assumiam, cada vez mais, o aspecto de empresas. Um dos resultados dessa mudança socioeconômica é um boom literário: aumenta-se o público leitor e, consequentemente, a produção livresca, para que a nova demanda seja atendida, afinal literatura também pode ser um negócio rentável. Por isso, como percebe Otsuka, em observação bastante percuciente, o “estudo da literatura contemporânea” precisa levar em consideração o “problema da indústria cultural, uma vez que ele também passa a ser incorporado nas obras como “reflexão metalinguística”.239 No caso Cartas de um sedutor, por exemplo, distinguem-se dois tipos de escritor: Karl possui um estilo envolvente, consegue mesclar o alto e o baixo com desenvoltura e uniformidade incomparáveis, é um escritor que conhece as regras do jogo. Sua escrita é sedutora. Mas quando se tem acesso à “consciência em fluxo” de Stamatius, a coisa muda. Seu modo enunciativo lembra, em muitos momentos, o dos narradores hilstianos de A obscena senhora D ou de Com meus olhos de cão: Eu despencando num caos laranja. Pinceladas ruivas dentro de um caos laranja. Bewusstsein. Bewusstsein, é muito mais Consciência que consciência. Consciência é sibilino, lânguido, Bewusstsein é grosso, quente. Como é, na realidade, a consciência. Ter consciência é bewusstseiniano. Pesado, chumboso, ardente. Estou em chamas. Sou mortal e fundo e consciente e ainda assim devo acabar a vassouradas, num canto, igual a um rato.

Além da reflexão sobre a própria corporeidade das palavras (a ideia de que a sonoridade do substantivo alemão para a palavra consciência remeteria a algo “grosso e quente”), a imagem pictórica que inicia o trecho – as pinceladas ruivas no interior de um 237

Idem, ibidem. Idem, p. 18. 239 Idem, p. 20. 238

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caos laranja – encontra-se afim com o tipo de construção de muitos versos da autora, como, por exemplo “Que há um oco fulgente num todo escancarado”; ou até mesmo com trechos de sua prosa anterior, como o do momento em que a Senhora D descreve as máscaras que usa para assustar a vizinhança: “(...) Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de papelão, pintados pregos), há uma máscara de ferrugem e esterco, a boca cheia de dentes, há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade – quadrados negros pontilhados de negros – alguém-mulher caminhando entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das córneas, no maldito brilho”. Para chegar à “crueldade em si”, Hillé, narradora de A obscena senhora D, elabora uma imagem incrivelmente semelhante às pinturas em negro de Reinhardt ou Rothko, que repudiava o rótulo de “abstracionista”, alegando somente o seu “interesse em expressar as emoções humanas básicas”.240 De fato, é isso que acontece tanto para Hillé quanto para Stamatius: a profusão de cores pouco distintas entre si serve de correlato objetivo às especulações metafísicas desses personagens, que se esforçam na tentativa de representar o indizível. Desse modo, o autor fictício de Cartas de um sedutor, como muitos outros personagens da prosa hilstiana, sofre pelo fato de sentir-se como um “porco com asas”. Sua linguagem também resvala, em muitos momentos, no lírico. Ele, como um poeta moderno, também tem certa preferência pelo hermetismo, pela criação de metáforas absolutas: “um colar de anêmonas circunda a cara e aos meus olhos ganha definitivamente uma moldura”, diz Tiu a um colega que lhe pergunta o que tanto o personagem escreve. Assim, Karl, como sua retórica sedutora, afim com as exigências do mercado editorial, e Stamatius, com o seu fechar-se em si mesmo e com sua linguagem poética, funcionariam como representantes de tipos distintos de escritor. Mas olhar essa situação apenas a partir dessa perspectiva esquemática seria demasiadamente redutor. Retomando aquele desenho de Escher, o que se tem, na realidade, é uma mão que desenha a própria mão que desenha: Karl e Stamatius, como uma face de Jano, são as imagens de um mesmo escritor. Karl é uma criação de Stamatius, assim como Stamatius é figura que existe por trás de Karl.

240

Apud Lasch, Chrisopher. O mínimo eu – sobrevivência psiquíca em tempos difíceis. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 133.

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O autor fictício criado por Hilda Hilst, em Cartas de um sedutor, também precisa inserir-se no mundo capitalista. Ele escreve para sobreviver. Seu modo de composição mimetiza o funcionamento do mercado editorial: em determinado momento, por exemplo, Eulália pede para Stamatius escrever qualquer “bestera”, e eis que o nome do próximo microconto é justamente... “Bestera”, sem que o título tenha qualquer tipo de ligação imediata com a história que relata. Após o abandono do romance epistolar, as diferentes narrativas que compõem o livro de Stamatius se sucedem rapidamente, assim como as diferentes vozes narrativas das primeira novelas hilstianas, com a diferença que, em vez dessas trocas súbitas servirem para expressão de subjetividades reprimidas, tal expediente apenas imita o funcionamento das lei sob as quais é obrigado a operar. E, no caso do O caderno rosa de Lori Lamby, as questões editoriais mais básicas, como as de revisão de um texto, são até mesmo propositalmente colocadas de lado, dando à obra uma falsa impressão mal-acabamento (“Papi hoje teve uma crse grande, quero dizer crise grande”),241 como a que possuem os jeans rasgados e “sujos” vendidos a preços exorbitantes nas lojas de grife. “O ambiente objetivo do homem adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria”, diz Benjamin ao discutir as relações entre a obra de Baudelaire e o seu tempo.242 De lá aos dias de hoje, o capitalismo aprimorou ainda mais os modos de garantir o lucro, assumindo diferentes formas para adaptar-se às crises pelas quais passou. E é inserido neste contexto que Hilda Hilst encena as possibilidades de criação literária a partir de um autor fictício, na qual ela própria, como escritora, também se insere. Outra questão importante na obra anterior de Hilda Hilst também pode ser detectada nessa “fase obscena”: a da impossibilidade de entendimento de uma imagem literária em um mundo que só consegue entender o que é literal. Nesses romances da tetralogia, e em particular em Cartas de um sedutor, a discussão de problema é ampliada, de modo a incindir sobre a própria estrutura da obra. Nesse aspecto, a conversa entre Eulália e Stamatius, no início do romance, pode ser bastante reveladora:

241 242

CRLL, p. 84. Benjamin, Walter, op. cit., p. 163.

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escreve de mim, de minha vida antes deu te encontrar, da surra que o Zeca me deu, da doença quele me passou, da minha mãe que morreu de dó do meu pai quando ele pôs o fígado inteirinho pra fora, do nenê queu perdi, do Brasil ué! escrevo sim Eulália, vou escrever da tua tabaca, do meu bastão. não fala assim, benzinho, só quero ajudá. Deita-se de bruços, chora um pouco, depois soluça, aí pego a pena de papagaio, uma daquelas com pluminhas verdes amarelas, e assoviando o hino nacional vou empenando sua bundinha, espeto a pena no anel, devagarinho vou alisando a lombada das nádegas e Eulália se ergue e se arreganha lassa, então vou entrando na mata, e deixo as polpas pra pena, bonita ali enfiada. Gozo grosso pensando: sou um escritor brasileiro, coisa de macho, negona. Vamos lá.

Misturam-se, na cena anterior, os campos semânticos da escrita e do ato sexual. Todas as questões sociais possíveis de serem tratadas, e relatadas pela língua estropiada de Eulália, são preteridas. O importante é falar da “tabaca” e do “bastão”, temas mais afeitos às cartas marcadas que são ditadas por um mercado editorial cada vez mais preocupado com o próprio lucro, mesmo quando cinicamente exige respeito aos “direitos autorais”. Nesse sentido, seria equivocado “ler literalmente” a sexualidade nessas narrativas da tetralogia. Ela, aqui, é também uma metáfora, que associa cruelmente à prostituição o trabalho do escritor em uma sociedade dominada pelos desígnios do capital. “A mercadoria procura olhar-se a si mesmo, ver a si própria no rosto. Celebra a sua humanização na puta”, diz Benjamin em suas reflexões sobre a obra de Baudelaire.243 E o divertido é que a própria Hilda Hilst brinca com a leitura de críticos que não conseguem distinguir o traseiro de um unicórnio grudado às grades de um zoológico da cidade de uma imagem literária. O último dos microcontos de Cartas de um sedutor, por exemplo, narra a história de um poeta que, após anos, conseguira finalmente escrever o primeiro verso de um poema. Feliz, ele o apresenta à esposa: Há dez anos ele tentava escrever o primeiro verso de um poema. Era perfeccionista. Aos 30, anteontem madrugada, gritou para a mulher: consegui, Jandira! Consegui! Ela (sentando-se 243

Benjamin, Walter, op. cit., p. 163.

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na cama, desgrenhada)

O quê? O emprego?

Ele

Claro que o verso, tolinha, olha o brilho no meu olho, olha.

Ela (bocejando)

Então diz, benzinho.

Declamou pausado o primeiro verso: “Igual ao fruto ajustado ao seu redondo...” Jandira interrompendo: peraí... redondo? Mas nem todo o fruto é redondo... Ele

São metáforas, amor

Ela

Metáforas?!?!

Ele

É... E há também anacolutos, zeugmas, eféreses.

Ela

?!?!? Mas onde é que fica a banana?

Ele enforcou-se manhãzinha na mangueira. O bilhete grudado no peito dizia: a manga também não é redonda, o mamão também não, a jaca muito menos. e você é idiota, Jandira. Tchau. Ela (tristinha depois de ler o bilhete) E a pêra, benzinho? E a pêra então que ninguém sabe o que é? E a carambola!!! E a carambola, amor!

Agudamente, o microconto revela o caráter chistoso da obra. Ele funciona como chave para a compreensão da narrativa: ela é uma metáfora, não corresponde ao real/literal, mas sim à construção literária. Cartas de um sedutor é uma narrativa sobre as possibilidades da literatura diante da mediocridade mercadológica da cultura de massas. Diante da possibilidade de compreensão de uma imagem literária, morre o escritor. Assim, a literatura parece se encontrar fora de cogitação em um mundo no qual o literal é levado ao extremo. Expediente semelhante – a inserção de uma chave que revela o caráter literário da obra – também comparece em Caderno rosa de Lory Lamb, novamente sob a forma de literatura dentro da literatura. A fábula escrita por Lory sobre o “cu do sapo Liu-liu”, ávido para receber a luz do sol em seu interior, recupera um texto de Bataille – O ânus solar –, em que o escritor francês interessantemente afirma ser o mundo pura paródia, “quer dizer, cada uma das coisas que olhamos é paródia da outra, ou ainda a mesma coisa com uma forma decepcionante”.244 No texto, o autor A história do olho (livro que Hilda Hilst emula com Caderno rosa de Lory Lamb) desenvolve sua teoria das correspondências, na qual o sexo, em particular a cópula, é associada ao verbo “ser”, 244

Bataille, Georges. O ânus solar. Tradução de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 45.

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elemento gramatical constituidor da metáfora: “Mas a cópula dos termos não irrita menos que a dos corpos. E quando exclamo: SOU O SOL, disso resulta uma ereção integral porque o verbo ser é o veículo do frenesi amoroso”.245 O erotismo é elemento que estabelece ligações, por isso a relação tão estreita entre as cópulas propiciadoras de metáforas e o contato erótico. Escolher a sexualidade como metáfora do trabalho literário, portanto, comporta dois lados: a de transcendência mediante criação – Stamatius – e a de prostituição por meio da transformação do erotismo em mercadoria – Karl. Escatologia para cima, escatologia para baixo. Com isso, é possível verificar a importância das alusões literárias na obra de Hilda Hilst. Elas atuam como indicadores que, ao mesmo tempo, direcionam a leitura para determinado sentido e provocam peripécias formais na estrutura da obra. Nesse sentido, o paralelo mais produtivo para entender essa “mistura de gêneros” é a sátira menipeia, na qual diferentes modalidades de discurso se mesclam com o objetivo de satirizar. E esse procedimento intensifica-se na fase obscena da obra da autora: como nota Pécora, é possível detectar, na total anarquia de gêneros desses livros, “romance memorialístico; diálogos soltos intercalados abruptamente à história; imitação de certames poéticos à antiga; apóstrofes aos leitores, maltratados o tempo todo como ignorantões e picaretas, bem como aos órgãos sexuais; alusões políticas; comentários etimológicos e eruditos; crítica literária (a ressaltar o ataque mortal a João Cabral, cuja obsessão de uma poética de rigor é traduzida como sequela de machismo nordestino); mistura babélica de línguas; coletâneas de instruções inúteis para performances estúpidas; paródias de textos didáticos; textos dramáticos politicamente incorretíssimos, que fazem completamente jus ao título de teatro repulsivo; fábulas e piadas obscenas; textos psicografados (...),”246 entre outras inúmeras formas que constituem a obra em que certamente essa anarquia é exarcebada: Contos D’Escárnio/Textos grotescos. A perversão com que se colidem esses gêneros possibilita a criação de uma obra multiforme, de difícil catalogação, dificultando até mesmo o serviço dos etiquetadores do mercado que, diante dessa babel de formas, devem sofrer para escolher em qual estante colocar esses produtos, nas livrarias que, cada vez mais, assemelham-se a shoppings, com praça de alimentação, parques de diversão para crianças etc. Derrubar os muros que separam os gêneros também é uma forma de resistência 245

Idem, ibidem. Pécora, Alcir. “Nota do organizador”. In: Hilst, Hilda. Contos d’escárnio/Textos Grotescos. São Paulo: Globo, 2005, p. 10. 246

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PALAVRAS FINAIS Quando deu início às suas tentativas em outros gêneros literários, Hilda Hilst continuou, a partir de outras formas, a tratar de questões que sempre lhe foram essenciais. Dentre elas, a do lugar da lírica em um mundo no qual a literatura perdia cada vez mais o seu espaço na sociedade, diante da violência e do processo de mercantilização da produção cultural. Como visto anteriormente, a própria autora afirmou, em entrevista concedidada ao Cadernos de literatura brasileira, que, embora tenha atuado na prosa e no teatro, o seu principal alvo sempre fora a poesia: “No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre”. Assim, ao aventurar-se nos outros gêneros, a escritora não só corroeu seus textos narrativos e dramáticos com a acidez melancólica que se deixava entrever nos poemas de seus livros anteriores, como também perverteu as formas com as quais trabalhou. No teatro, sua atuação ficou concentrada em um período específico: entre 1967 e 1969, em meio à repressão do violento militar intaurado no país. Marcas desse momento histórico podem ser detectadas em peças como Auto da barca de camiri ou mesmo O novo sistema, na qual as leis da física são convertidas em metáforas que justificam um regime opressor. Contudo, a força da obra hilstiana certamente não está nesse teatro, às vezes imbuído de um esquematismo alegórico que, por pouco, não cai simplório. O forte dessa dramaturgia, e nesse sentido a percepção de Rosenfel foi bastante aguda, está em uma espécie de ambientação claustrofóbica muito próxima a das narrativas kafkianas e ao teatro de Beckett, que infelizmente perde sua tensão ao apelar para o didatismo ou para o moralismo. Interessantemente, a peça mais bem construída é a justamente aquela que deveria portar uma moral, o auto da barca hilstiano, mas que paradoxalmente conduz o espectador a um mundo sem salvação. Assim, a partir, principalmente dos experimentos na prosa e no drama, sua lírica, inicialmente balizada por ideais poéticos da Geração de 45, impregnada por um orfismo muitas vezes romântico e ingênuo, agregou elementos do grotesco, o dialogismo do teatro e das inúmeras metamorfoses dos narradores de seus textos de ficção, e o humor. Manteve-se, no entanto, com o garbo e o porte de uma dicção sublime, e um rigor construtivo bastante discrepante da opção de movimentos da década de 1960 e 1970 que, por meio da aproximação com procedimentos da arte pop, ou 135

mediante o retorno ao prosaico do primeiro modernismo, buscavam alcançar uma enunciação lírica condizente com o contexto histórico da época. Esse rigor de seus livros de poema mostrou-se bastante produtivo quando, ao migrar para a prosa, estancou a verborragia de suas ficções iniciais, possibilitando a construção de uma linguagem ímpar, lírica e experimental, que, na literatura brasileira pode muito bem ser equiparada a obras de autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Nesse sentido, é possível afirmar que a prosa hilstiana conseguiu chegar a um grau de qualidade e reflexão estético-metafísica nem sempre alcançado por sua lírica. É irônico: Hilda Hilst começou escrevendo poemas, pretendia inicialmente, talvez, ter seu nome colocado na história literária ao lado de Drummond, Bandeira, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima, entre outros; no entanto, é bem possível que seja reconhecida mais pelo seu trabalho na prosa que na lírica. Indiscutivelmente, narrativas como A obscena senhora D, Rútilo nada, Com meus olhos de cão e, sobretudo, “Axelrod (da proporção)”, inseridada em Tu não te moves de ti, estão entre os trabalhos em prosa mais relevantes da literatura brasileira, na segunda metade do século passado. Particularmente nesta última, que relata a epifania de um professor universitário de história política, no momento em que ele urina na cabine apertada de um trem em movimento, reúne, em um único texto, reflexões metafísicas, estéticas e até mesmo físicas, ao deslocar para a estrutura da narrativa as ideias de Einstein sobre o funcionamento cosmológico do espaço-tempo. A partir dessa correspondência inusitada, o texto mina a concepção teleológica hegeliana de uma evolução permanente, seja ela na história ou na poesia, a exigir sempre o novo que, automaticamente, desativaria o passado e antigo. Nesse sentido, a perspectiva estétida de Hilda Hilst foi certeira. Ao se utilizar dos “buracos de minhoca” do espaço-tempo literário, ressemantizou formas antigas – as cantigas medievais, os autos, a sátira menipeia, as odes – colocando nelas discussões pertinentes ao momento presente, ao contrário de muitos poetas que, ao se apoiarem no meramente tradicional, ou na masturbação da forma, alienam por completam sua atuação literária, E a literatura é uma construção sobretudo humana. Está no espaço e no tempo. E Hilda Hilst, mesmo isolada em sua Casa do Sol, não deixou de participar, com sua literatura, das principais discussões da época, como, por exemplo, a do recrudescimento da atuação da cultura de massas e o pouco espaço da palavra literária na sociedade. 136

Obviamente, os poetas marginais, à sua maneira, também procuraram reagir ao processo de mercantilização da literatura que, no Brasil dos anos setenta, evidenciava-se com o fortalecimento de empresas editoriais que injetavam, e ainda injetam, mais e mais dinheiro para comprar “máquinas de fazer livros” (como aquela a que a pequena Lory se referia e na qual o editou Lalau imprimiu seu caderninho pornô) e atender, assim, a demanda do mercado: poetas como Cacaso, Chico Alvim, Chacal, para citar alguns, mimeografavam seus próprios textos, distribuindo-os depois. Colocavam-se à margem do sistema. Novamente uma ironia: na década de 1980 foram devidamente apropriados pelas editoras. Certamente isso não é de todo ruim, uma vez que facilita o acesso às obras desses autores; no entanto, esse movimento de abandonar a marginalidade e fazer parte do mainstream produz um questionamento interessante: até que ponto é possível resistir somente pelo isolamento ao torvelinho criado pelo mercado e que puxa tudo a para si, como naquele poema de Álvares de Azevedo visto no capítulo anterior? Ora, no campo da narrativa, evidenciou-se na contemporaneidade uma preferência por formas que se aproximam do naturalismo, naquilo que ele tem de interessante, mas também de mais perigoso: a redução ao meramente diferente e pitoresco de uma possível posição crítica. É muito assustador ler sobre a violência em uma favela, mas até que ponto esse elemento crítico não perde o vigor ao ganhar as telas de um cinema onde os protegidos filhos da classe média (ou em muitos casos, no Brasil, os “pobres não assumidos”) assistem a um assassinato enquanto comem pipoca. Mas há outras frentes, surgindo, que parecem ser mais interessantes, como Beatriz Bracher que, ao atualizar criticamente a forma do “testemunho”, em Antônio, conseguiu produzir uma obra interessante, sem render-se ao perigo de construir um pastiche de romances memorialistas ou de autobiografias. E a lírica? Qual o espaço dela na contemporaneidade? Se comparada ao romance e ao teatro, a atuação do gênero lírico tem sido bem mais reduzida. Em uma lista de poetas dos anos 1990, por exemplo, salta aos olhos o número de escritores ligados ao meio universitário, o que ocasiona o aparecimento de poetas conscientes em termos de forma e história literária. Essa profunda consciência da forma produz poemas bem-acabados e repletos de citações eruditas; mas até que ponto não estaria a lírica perdendo aquela intenção encontrada nos modernos de atingir a alteridade, mesmo que fosse a agressão da crueldade e do hermetismo? Tornaram-se os poemas assunto de poucos, que se autografam e que se citam mutuamente, mero sorriso de uma sociedade 137

de letrados? Outros, ainda, procuram aproximar-se do universo da cultura pop, mas o resultado acaba, na maior parte das vezes, transformando-se em mero pastiche Andy Warhol ou epígonos do tropicalismo. Seria preciso rimar Rilke com milk-shake para alcançar o grande público? Aparentemente, Orfeu, depois de descer as escadas da repartição, passou também a compor jingles para fast-food. Mas e as obras obscenas de Hilda Hilst? Teriam seguido um caminho distinto? Atualmente, depois da publição de suas obras completas, por uma grande editora, um público considerável passou a ter contato com a autora, o que certamente é muito bom. No entanto, ainda costumam estar entre os seus trabalhos mais citados as obras indevidamente chamadas de pornográficas. Basta lembrar que, recentemente, um filme comercial, de qualidade discutível, a tornou razoavelmente conhecida por conta da citação de um trecho erótico de Cartas de um sedutor... Levanta-se, então, uma questão bastante interessante: até que ponto é possível mimetizar criticamente a forma da mercadoria sem que o resultado obtido não se converta também em produto mercadológico? Após o lançamento de Estar sendo, ter sido, Hilda Hilst, alegando cansaço, afastou-se da cena literária. Mas os problemas atacados por ela ainda continuam e, na contemporaneidade, há poetas interessantíssimos que, no âmbito da lírica, têm conjugado de maneira satisfatória questões tais como: a relação entre cultura pop e literatura, a recuperação crítica de formas tradicionais, a busca por uma poesia combativa, de crítica social, sem que para isso o poeta precise abdicar da forma, transformando seu texto em panfletagem, entre muitas outras. Citando alguns: Valdo Motta, que conjuga sexo e suas leituras da mitologia judaico-cristã de forma surpreendente; Cláudia Roquette-Pinto, em que erotismo e crítica social comparecem de forma bastantante interessante; Fábio Weintraub, com uma poética corrosiva e, em alguns momentos, cruel, entre outros que, a despeito dos muros que ainda aprisionam Orfeu, esforçam-se na criação de uma lírica ainda possível.

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