\"Origem da produção de milho em Santa Catarina da Serra: séculos XVII-XIX\", in «Luz da Serra», Santa Catarina da Serra, Ano XLIII, n.° 512 (no original, 532), maio de 2017, p. 14.

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LUZ DA SERRA

MAIO

-- histórias da História --

14

2017

Origem da produção de milho em Santa Catarina: séculos XVII-XIX

No número 676 do mensário de Minde, Ano LX, de 30 de abril de 2015, p. 4, foi editado um artigo, pelo autor deste trabalho, subordinado ao título "Cultura do milho em Minde: séculos XVII-XX", através do qual se procurou descrever todo o ciclo daquele cereal, desde a semeadura à transformação dos grãos em farinha , que, aliás, era idêntico ao verificado no território da atual União das Freguesias de Santa Catarina da Serra e Chainça. Neste estudo, porém, a ambição é maior, procurando-se determinar, com a maior precisão possível, o período em que se começou a cultivar milho no território serrano.

A produção de milho (de sequeiro, entenda-se) nas aldeias que constituem, hoje, o território da referida União das Freguesias permitiu, provavelmente em oitocentos, que o dito cereal se tornasse na base da alimentação dos habitantes da paróquia, como, aliás, sucedeu em outros espaços enquadrados no denominado Maciço Calcário Estremenho em consequência do rápido aumento populacional verificado. Assim, a marcada dependência relativamente àquela planta levou a que os santacatarinenses e os chaincenses, tal como os outros serranos, transpusessem, voluntária ou involuntariamente, o respetivo cultivo e, sobretudo, a colheita para o designado plano dos "usos e costumes". Neste contexto, as escamisadas, ou descamisadas, são, indubitavelmente, exemplos do que se referiu. De facto, o labor nas eiras, ao serão, permitia não só separar, meticulosamente, o folhelho das maçarocas, isto é, o trabalho em si, mas também agrupar jovens, rapazes e raparigas, que, no referido Maciço, aí, nas eiras, conviviam,

cantando e bailando ao som de instrumentos musicais preparados para o efeito, o que denotava uma evidente imbricação do serrano com a planta sobredita, permitindo deduzir daí a importância para a sobrevivência do estremenho. Da significância do milho, atentese, ainda se recordam os moradores de mais idade, aspeto que, por não se verificar com os mais novos, os grupos folclóricos, caso do senecto e prestigiado Rancho Folclórico de São Guilherme, procuram fazer recriações históricas .

Todavia, ao contrário do que acima se referiu, da documentação minuciosamente analisada foi possível inferir que a cultura do milho não fez parte, até muito tarde, do passado de Santa Catarina da Serra. Na realidade, o cereal consumido em todo o espaço onde se encontram, entre outras, as serras de Aire e Candeeiros era o triticum, o trigo, esse sim, consumido na região desde o período medievo. Em seiscentos, por exemplo, em O Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria, manuscrito redigido por volta de 1657, pode ler-se, na secção referente ao ordenado do cura, que o mesmo recebia «oitenta alqueires de trigo, vinte e cinco almudes de vinho, em mosto, e o prelado lhe dava 2$000 reis em dinheiro, e vinte e cinco almudes de mosto, e o bispo D. Pedro de Castilho accrescentou-lhe mais 2$500 reis, em dinheiro, dão-lhe os freguezes bolo de pão, azeite, vinho e carne, de porco; tem casas por conta dos freguezes; tem algumas amentas perpetuas, de meio alqueire de trigo cada uma, e um responso, de que lhe dão um alqueire de trigo» . Não há, por isso, qualquer referência, naquela fonte histórica coeva, o

consumo de milho, o que, apesar de tudo, não quer dizer que não ocorresse. Diplomas mais precisos, datados de meados do século XVIII, caso da memória paroquial da freguesia em estudo, redigida, a 7 de abril 1758, pelo cura João Pedro, observa-se que de azeite «he a maior quantidade que ha nesta freguezia» , em conformidade com as outras paróquias do Maciço Calcário Estremenho, embora sem especificar que cereais se produziam no dito território. Contudo, em 1747, no tomo I do Dicionário Geográfico do Pe. Luís Cardoso, natural de Pernes, na entrada "AYRE", de serra de Aire, ficou registado que nas «partes aonde he cultivada, produz trigo excelente, e milho grosso» , sobretudo em Arrimal. Este excerto textual comprova, efetivamente, a semeadura de milho, mas destaca, sobretudo, a do trigo, o que permite deduzir que aquele cereal não era, como viria a ser mais tarde, o produto mais cultivado. O Maciço permanecia, portanto, arreigado ao trigo. É preciso ter em consideração que o milho dito grosso, com origem na América, trazido em quinhentos, necessita de ser regado, facto que limitou a sua produção em todo o espaço serrano, por oposição ao que viria a suceder com o de sequeiro. A análise de documentação similar para outras freguesias do Maciço Calcário Estremenho permite verificar que o cereal produzido era o trigo e não o milho. Deste modo, na paróquia de Fátima, a norte, o cura João Pereira, registou, a 12 de abril de 1758, que a «maior abundancia que tem esta [p. 175] freguezia he de alecrim e nam tem plantas speciais e se cultiva em algumas partes e a maior abundancia que colhem

os moradores deste termo he trigo sevada, e azeite» . A sul, em Minde, o clérigo responsável pela paróquia anotou que «os frutos da terra, que os moradores de Minde recolhem em maior abundancia, são azeite, e vinho» . A sudoeste, em Arrimal, Tomás da Costa, cura, escreveu, a 13 de junho, que os frutos que «produs esta terra com mais abunda[n]cia sam trigo, sevada, e milho, e azeite que satisfas aos moradores» , onde se encontra, efetivamente, explícita a produção de milho, indo ao encontro do citado tomo I do Dicionário Geográfico do Pe. Luís Cardoso para aquela área. Por último, na freguesia de Mira de Aire, o religioso Manuel Dias, deixou escrito, a 15 de março de 1758: «15. Os frutos da terra, que recebem em mais abundancia os moradores desta freguezia, he azeite, posto que as oliveiras estão, a maior parte dellas, metidas por entre as pedras, tanto, que apenas cabe mais que o pé das oliveiras entre pedra, e pedra e por todo o lugar, que he extenso, ou lugar (sic) estão sem ordem, pam pouco vinho alguns annos pouco, outros mais, quando as cheias, não inundão fora de tempo as vinhas».

Do que acima se escreveu, verifica-se, de forma clara, que, no século XVII, as fontes consultadas mencionam, tão-só, o cultivo do trigo, do qual os habitantes tinham de dar uma percentagem aos curas das paróquias do Maciço Calcário Estremenho. No século seguinte, por meados do mesmo, através da leitura dos trabalhos de Luís Cardoso, continua a não se verificar a semeadura de milho, à exceção da área de Arrimal, onde já se produzia algum. No setor norte do Maciço, também não havia. De

facto, data de 1790 um texto de Tomás António de Vila Nova Portugal, publicado pela Academia Real das Ciências de Lisboa, através do qual o silvicultor apresenta soluções para que o milho passasse a ser cultivado na parte do termo de Ourém que ficava na serra, abarcando a freguesia de Fátima, cerca de um terço da de Santa Catarina da Serra e parte da de São Mamede. O autor informa que a não produção de milho no espaço em questão tinha a ver com o facto de os habitantes não terem terrenos onde semear o dito cereal, aspeto que os levava a cultivar trigo. O milho que era comprado aos produtores das ribeiras, isto é, no espaço situado já fora do Maciço, onde o cereal, aí sim, era produzido, o grosso, que veio da América, desde o século XVI. As propostas do estudioso para a produção de milho na serra vieram a ser postas em prática ao longo do século XIX, conforme constatou o historiador Alexandre Herculano, quando atravessou o Maciço em 1853,

Vasco Jorge Rosa da Silva Paleógrafo e Epigrafista Leiria - Ourém em trânsito para Leiria, tendo observado e registado que os serranos andavam a arrotear extensas áreas [11] para a produção de cereais, designadamente milho.

Em suma, a produção de milho na serra ocorreu, sobretudo, ao longo do século XIX, pelo que os "usos e costumes" relacionados com o ciclo daquele cereal, designadamente as já mencionadas escamisadas ou descamisadas não serão, desta forma, anteriores a oitocentos, admitindo-se que as mesmas poderão ser mais antigas, mas nas imediações do Maciço Calcário Estremenho, onde existem cursos de água.

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