Origens Morais da Propriedade Intelectual
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A legitimidade da Propriedade Intelectual Sofia Seixas Martins
Com a imparável mutação das sociedades desenvolvem-‐se em paralelo sistemas reguladores destas mesmas, aos quais intitulámos genericamente de ordenamentos jurídicos. Ora, se há regime jurídico que melhor caracterize a época contemporânea por nela ter encontrado o seu genuíno auge, tendo sido desconsiderada no passado, será o da Propriedade Intelectual (não sendo minha intenção depreciar o Direito Internacional Público que espero encontrar-‐se longe ainda do seu apogeu). Existente em termos que tais desde um estatuto de 1474 emitido pela então República Venezianai, ou desde o “Act of Anne” de 1709 em Inglaterra, este instituto foi ganhando terreno com a crescente intelectualização das gerações, solidificando as hoje popularizadas patentes e os direitos autorais, abrangendo o seu espectro com a invenção da impressora por Gutenberg no século XV. Não obstante a sua antiguidade, foi apenas com escândalos como os de Napsterii e da Polaroid que alcançou um tão (in)desejado holofote no mundo dos Media, quebrando assim a sua dita pacífica vivência até ao dia. Surgiram então problemáticas circundantes, nomeadamente com a vulgarização da Internet e a consequente divulgação em massa de dados. Os perigos típicos daquilo a que os economistas chamam choque tecnológico provêm maioritariamente da falta de protecção e de controlo contra um mecanismo ainda por desvendar. No entanto, certos males vêm por bem: a discórdia que a cibernética gerou no mundo da propriedade intelectual, foi a impulsão necessária ao desenvolvimento que encontra hoje nas actuais sociedades de consumo. Tal é o peso desta figura que em 2010 representou a percentagem mais considerável (60.7%) em termos da totalidade das exportações de mercadorias efectuada pelos Estados Unidos da Américaiii, facto a considerar tendo em conta encontrarem-‐se no primeiro lugar do ranking económico mundial (utilizando como critério o PIB). Não obstante Portugal é a lebre no final desta corrida...Qualquer estudante já presenciou discursos críticos da parte dos professores à impressão “clandestina” de manuais; ou às grandes editoras que pouco ou nada conseguem restituir aos autores pelo seu árduo trabalho; ou talvez discursos persuasivos e quase que publicistas quanto às obras primas que o mesmo elaborou (relembrando sempre o crime que é gravar aulas sem autorização). Tais são discursos testemunhos do atraso em que nos encontramos em questões de propriedade intelectual, que poderia muito bem vir a ser um dos grandes sectores económicos deste pais, mormente pelo seu carácter inovador nas economias. É graças à protecção e às recompensas associadas que este regime jurídico proporciona, como analisaremos posteriormente, a criação de novas ideias da parte de empreendedores. Ora, face à evidente falta de concorrência dos sectores transaccionáveis Portugueses a nível internacional -‐ tendo em vista por instantes o mercado dos automóveis, correspondente à segunda maior percentagem de exportações de Portugal e no entanto, face à comunidade europeia, não consta nos vinte primeiros exportadoresiv -‐ as diversas matérias sobre as quais incide a propriedade intelectual têm algo em comum: todas são exportáveis (à excepção do segredo industrial per si, que incide mesmo assim sobre objectos exportáveis). Alem disso, é até mesmo possível avançar um
investimento nesta área como uma solução alternativa à austeridade na resolução da crise presente. Efectivamente, o contágio gerado pelo comportamento económico dos países membros da União Europeia face à crise bancária de 2008 – cuja fonte foram países onde esta vertente económica era mais pesada no balanço geral da economia, como é o caso da Irlanda e dos Países Baixos -‐ gerou uma inflação das taxas de juro de toda a zona euro, que resultou por sua vez na desvalorização do cambio monetário do euro face ao exterior (o chamado “crowding-‐out”). Logo, as repercussões que Portugal sofreu seriam evidentemente menores se este fosse um país privilegiadamente exportador, e não importador como é a nossa actual realidade. Neste enquadramento proponho uma análise aos fundamentos que legitimam moralmente a propriedade intelectual (no âmbito dos sistemas jurídicos europeu e anglo-‐saxónico), percorrendo assim as três principais teses de suporte a este conjunto de direitos que, nas palavras do Professor Australiano Peter Drahos, se associam a objectos abstractos tipicamente fabricados pelo intelecto dos indivíduos, e em certa medida introdutórios de uma inovaçãov. Uma das teses existentes é a do utilitarismo, perfilhada pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidosvi em inúmeras circunstâncias, que proclama o progresso social como motivo e razão de ser da criação – através de mecanismos enquadrados pela propriedade intelectual – de incentivos à inovação. O objectivo aqui em questão será portanto o de tornar possível a disseminação ao público dessas mesmas inovações, ponto que veremos ser débil e a propósito do qual diversos autores dirigem as suas críticas. Posner e Lander referenciam a característica dos bens ditos típicos da propriedade intelectual -‐ que revestem a forma de bens não concorrenciais, isto é, bens cuja utilização por uma pessoa não é um obstáculo ou um impedimento ao seu futuro aproveitamento por terceiros – como um entrave financeiro ao qual se depara o criador por não conseguir reaver os custos da produção. Ora, ao proporcionar a possibilidade e estes autores de deterem os direitos exclusivos de cópia das suas obras, elimina-‐se o desincentivo ulteriormente mencionado. Não obstante, esta solução não é isenta de rejeições ela mesma. Se a finalidade – neste caso defendida por utilitaristas tais como Kant – é permitir o acesso do público às novas obras (no interesse iluminista de guiar as pessoas para fora da “caverna”), então será do interesse deste mesmo não se ver sujeito a direitos exclusivos do autor, que bloqueiam de certa forma este acesso. A este propósito entram em jogo dois contra-‐argumentos: o da livre informação defendido por autores como Barlow, e ou da impossibilidade de ser proprietário de informação, visto que esta é imaterial e a posse é um conceito físico. Este ponto fraco da tese é uma consequência da indefinição a que “propriedade” e “informação” estão sujeitos. Relativamente à questão da livre informação o regime norte-‐americano baseia-‐se no princípio geral da boa-‐fé, sendo que é permitido copiar materiais protegidos pelos direitos de autor dentro dos limites impostos por este princípio, que são basicamente os do uso pessoal ou do uso que não visa o lucro, sendo que é permissível tornar esse uso público através de citações. No caso das patentes é mesmo bloqueado o direito do criador a usos por pessoas cuja intenção é a de satisfazer meras curiosidades de aprendizagem
ou lazer. Há que evitar cair na ingenuidade tais considerações não são totalmente da ordem da justiça mas antes do pragmatismo, sendo que apenas com grande relutância se podem controlar e restringir este tipo de usos. Com embargo, outras teses vieram contestar estas observações. Da herança de Locke chega-‐nos uma abordagem alternativa aos fundamentos da propriedade intelectual. Principal defensor da propriedade privada, o autor em questão introduz a questão de mérito como justificação para a atribuição de direitos de protecção àquele que teve a seu cargo a produção de determinada obra, sendo que posteriormente terá que restar suficientes e igualmente proveitosos bens para uso comumvii, pressuposto que afasta o contra-‐argumento das desigualdades decorrentes da existência de propriedade. Derivado da ideia de o homem ser única e exclusivamente o dono de si mesmo, o trabalho por ele produzido e o consequente objecto que dele resultou fazem parte dele mesmo, e como tal são sua propriedade. Igualmente, o trabalho efectuado sobre esse bem comum acrescenta-‐lhe valor, nem que seja pelo facto de este bem poder doravante ser proveitoso para outra pessoa. De certa forma são aqui discerníveis elementos da terceira tese que aqui será exposta, à qual retornaremos adiante. Uma vez mais, Grant, Hettinger e outros que tais, repertoriaram uma fragilidade a atacar: admitindo que a força física tem por única origem o homem, já a força intelectual é produto da aquisição de informação proporcionada ao longo da existência do Homem por outros inventores, sem as quais o trabalhador não conseguiria alcançar o produto do seu labor (por exemplo, sem a invenção da escrita ou das cores utilizadas na pintura). Sendo que essa informação pertence à sociedade em geral não poderia pertencer a ninguém em particular. Conhecido como o argumento da primeira causa – em que apenas Deus é causa própria e qualquer outro evento é consequência da sua existência – falácia igualmente conhecida como post hoc ergo propter hoc , extrai de uma relação cronológica entre dois factos a causa de uma em consequência da outra. Certamente que sem a invenção da escrita, seria impossível um autor criar um livro; no entanto, é empiricamente inexequível a prova de que se tal não tivesse ocorrido na Mesopotâmia por volta de 400 a.C., tal não viesse a suceder no futuro. Nem é plausível fazer uma ligação tão remota entre a invenção da escrita e a criação de uma ideia original que na realidade apenas necessitou da escrita para ser exteriorizada para o papel. E tal argumento é aplicável á generalidade das inovações. Efectivamente, o importante a sublinhar é o critério da novidade, essencial a qualquer tipo de propriedade intelectual, sem a qual este argumento teria cabimento. Esta tese influenciou extensamente o regime germânico e francês. Foi acima mencionada a contiguidade entre este tese e uma outra, a tese personalista, vastamente divulgada e utilizada na Europa. Ambas abordam a questão da propriedade individual, uma no âmbito do trabalho e a outra no da personalidade, respectivamente. A tese personalista representada por Hegel entre outros, defende que o individuo é detentor de direitos morais sobre a sua personalidade -‐ incluindo as suas experiências, talentos e sentimentos -‐ seguindo a lógica de que é fruto da imaginação e do entendimento da pessoa a obra que fabrica ou modifica através do seu trabalho, e como tal, corresponde à
exteriorização da sua personalidade. A ideia de propriedade intelectual surge então como uma extensão dos direitos de personalidade, direitos absolutos erga omnes (oponíveis a terceiros). Torna-‐se então lógica a necessidade de erguer defesas contra os riscos que estes autores enfrentam ao expor as suas personalidades nas obras que publicam, visto que estão, entre outros, sujeitos á paródia em que vêm as suas obras caricaturadas por outros que se limitam a manipular e editar ao sabor das ondas o que foi consideradamente produzido. Hegel menciona, em conformidade com Moore – utilitarista -‐ a questão dos incentivos sociais, sustentando que a fortificação legislativa proporcionaria um maior desenvolvimento da cultura. Esta é a meu ver a tese a perfilhar, pelo lugar privilegiado em que se encontrão os direitos de personalidade nos princípios gerais de Direito a nível universal, como concretização da dignidade humana que rege hoje qualquer suposição jurídica de base humanista. A defesa da identidade do ser humano -‐ que tem direitos imprescindíveis e inalienáveis sobre qualquer aspecto constitutivo da sua personalidade (corpo, imagem, religião, sexo, crenças, etc.) -‐ o que por sua vez consagra igualmente o principio da não discriminação, entre muitos outros considerados típicos do ius cogens, um direito universalmente vinculativo no topo da hierarquia normativa na génese da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A tal propósito vieram autores como Calandrillo obstar, e seria esta a meu ver a análise mais pertinente e ainda hoje por refutar, não fosse ela uma mera suposição. Quem nos garante que a propriedade intelectual promove suficientemente o bem-‐estar social assim como o seu desenvolvimento a nível cultural?viii A questão aqui funde-‐se acima de tudo com o problema da criação de monopólios. Pois na realidade o estado -‐ argumento cuja pertinência depende da economia e do poder financeiro estadual -‐ poderia incentivar ele mesmo por meio de fundos e projectos sociais, a produção social, que neste caso se transformaria automaticamente em propriedade da sociedade, e não apenas de um autor, apesar de este ter igualmente sido beneficiado pelas ajudas estatais que recebeu. Resta no entanto saber como seriam financiadas tais ajudas, com impostos? Não parece a solução mais acertada visto que apenas desvia a origem do problema. Contudo, o argumento aqui em questão não se cinge a uma alternativa estatal, mas ao facto de não terem sido exploradas alternativas ao regime legal da propriedade intelectual como incentivo à produção de obras intelectuais, sendo esta a primordial finalidade do instituto, já em várias ocasiões assumido e relembrado pelo Supremo Tribunal norte-‐americano. A hesitação trava no entanto face à falta de provas empíricas que demonstrem e exemplifiquem esses possíveis alternativas, ainda por descobrir. Notoriamente o poder dos enunciados apresentadas é limitado, nenhum saindo totalmente ileso às criticas que lhes são dirigidas. Proudhon afirmou que “toda a propriedade é roubo”, ora é da minha opinião que tanto a tese personalista – da qual como é sabido sou propulsora -‐ como a tese Lockeana concomitantemente levam à exaustão as razões de ser deste conceito, legitimando-‐o. Nas palavras do renomado Professor Justin Hugues, “a propriedade ou é personalidade, trabalho, ou roubo”ix. Condenar a propriedade intelectual nestas bases seria refutar a propriedade na sua integridade, erro que as sociedades actuais aprenderam a não reproduzir depois da queda dos estados
comunistas no século passado, governos que não passaram de utopias ideológicas. Resta nos então compreender melhor o desenvolvimento que este regime jurídico tem vindo a sofrer desde o início daquilo a que chamamos a Era dos Media, onde abusos de direitos tiveram lugar no seio da propriedade jurídica – nomeadamente ao serem concedidas patentes de maneira massificada e sem grande escrutínio do processo em questão -‐, assim como novos conceitos de personalidade e individualismo imergiram. Terá a validade da propriedade intelectual vacilado, exigindo agora uma reforma do instituto consagrando maior proteccionismo pela parte do Estado, ou terá ela sido reforçada com a emergência de sociedades capitalistas e proprietárias dos séculos XX e XXI? i The Genesis of American Patent and Copyright Law, Bugbee, 1967 ii Copyright and Digital Media in a Post-Napster World, Gartner G2 and The Berkman Center for Internet & Society at Harvard Law School, version 2005 iii United States Patent and Trademark Office, Intellectual Property and the U.S. Economy, http://www.uspto.gov/learning-‐and-‐resources/ip-‐ motion/intellectual-‐property-‐and-‐us-‐economy iv Eurostat, Intra-EU Trade In Goods and Service, http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-‐explained/index.php/Intra-‐ EU_trade_in_goods_-‐_recent_trends v A Philosophy of Intellectual Property, Peter Drahos, 1996 vi Theories of intellectual Property, William Fisher vii Two Treatises of Government, John Locke, 1970 viii Intellectual Property, Stanford Law School, http://plato.stanford.edu/entries/intellectual-‐property/#HisIntPro ix The Philosophy of Intellectual Property, Justin Hughes, 1988
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