Original Dewey - Introdução ao pensamento educacional de John Dewey

July 5, 2017 | Autor: Antonio Kuntz | Categoria: Philosophy, Political Science
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Original Dewey Introdução ao pensamento educacional de John Dewey

Antonio Valter Kuntz

Original Dewey Introdução ao pensamento educacional de John Dewey

2a. edição - 2009

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Copyright © 2007 by Antonio Valter Kuntz

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Capa, diagramação e revisão http://kntz.com.br

A reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio, somente será permitida com a autorização por escrito do autor. (Lei 9.610 de 19/2/1998)

CIP - CATALOGAÇÃO NA FONTE Kuntz, Antonio Valter Original Dewey/ Antonio Valter Kuntz ISBN 978-85-7794-014-1 1. Sociologia 2. Política 3. Filosofia da Educação 4. John Dewey I. Título

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“Ser de esquerda é estar do lado dos fracos e não dos poderosos; dos oprimidos e não dos opressores; dos dominados e não dos dominadores. [...] Se encolhemos os ombros perante o sofrimento evitável dos fracos e dos pobres, dos que são explorados e maltratados, ou que simplesmente não têm o necessário para viver decentemente, não somos de esquerda. Se dizemos que o mundo é assim, e sempre será, e nada há que possamos fazer, não somos de esquerda. A esquerda procura mudar esta situação. [...] É um fato que, historicamente, a esquerda encontrou ― ou julgou encontrar ― o fundamento para os seus objetivos políticos no marxismo (o que permite compreender a rapidez com que, ao abandonar o marxismo, abandonou também esses objetivos), mas da falsidade do marxismo não se segue a falsidade dos valores da esquerda. Isso seria como argumentar que se adotássemos o liberalismo isso conduziria a um maior bem-estar para toda a gente e depois, perante a falência do liberalismo, concluíssemos que esse bem-estar era impossível. Da mesma maneira que, neste caso, não há motivos para acreditarmos que o bem-estar é impossível, também, no caso do marxismo, não há motivos para pensarmos que os objetivos da esquerda devam ser abandonados.” Peter Singer in Darwinian Left. Weidenfeld & Nicholson, London, 1999.

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Primeiras Palavras

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Uma pequena História

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As Bases do Pensamento Educacional de john Dewey

37

O contexto metahistórico

41

Iniciação à Obra de Dewey

49

O contexto epistemológico

55

Monismo versus Dualismo

65

Tradição versus tradução

73

Ocupação versus vocação

81

O Contexto Social da Educação

85

O contexto político

95

A Educação Democrática

99

O legado de John Dewey

111

Considerações finais

121

Referências bibliográficas

129

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Primeiras Palavras

A ideia temática original para o desenvolvimento deste livro aconteceu em meados do ano 2000, quando finalizava meu curso de graduação em Filosofia na Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. Este ano divisor de águas, além de ter sido o último ano do século XX foi, ao mesmo tempo, uma avant-première da mídia internacional para o terceiro milênio do mundo ocidental, pois este só começaria mesmo, matematicamente, em 2001. Mais amiúde, também serviu de palco para as comemorações dos 500 anos de “descobrimento” do Brasil e, mais afeito a nós, do centenário de nascimento do professor Anísio Teixeira (1900-1971), o mais ilustre tradutor e discípulo brasileiro de John Dewey (1859-1952), filósofo, pedagogo, ativista político e, por que não destacar, norte americano. Durante o ano 2000 a partir da Bahia, o estado natal de Teixeira, diversos eventos acadêmico-culturais foram realizados em todo o país, de janeiro a dezembro, recuperando Antonio Valter Kuntz

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e revitalizando a memória daquele que foi um dos principais pensadores da educação – e da educação brasileira. Portanto, um trabalho sobre Dewey – e não sobre Teixeira, cabe lembrar – no Brasil, sem a mínima menção a Teixeira seria uma descortesia intelectual. Em tempo, esta digressão inicial a Anísio Teixeira se faz necessária pois, como principal divulgador das ideias de John Dewey em língua portuguesa, sua condenação ao ostracismo, físico e cultural; levado adiante pela “intelectualidade” acadêmica brasileira a partir do período do governo militar acarretou, por extensão, um preconceito a qualquer “deweyanidade”, o que poderia implicar em se classificar previamente e equivocadamente o presente trabalho em categorias que não lhe comportam, tais como escola nova (no senso comum), escolanovismo e até, vai se saber, construtivismo. Por ironia histórica, quase ao mesmo tempo, no mesmo ano 2000, a partir de Minas Gerais, o nome de Gustavo Capanema também merecia recordações similares. Citando Schwartzman que resenhou Badaró: 1

1 SCHWARTZMAN, Simon. Gustavo Capanema e a Educação Brasileira.Texto prepara-

do para o Seminário “Gustavo Capanema: Política, Educação e Cultura”, organizado pela Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, com o apoio do Ministério da Educação e do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, e 8 de agosto de 2000. Disponível na internet via: http://www. schwartzman.org.br/ simon/cent_minas.htm. Acessado em 7/1/2004.

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Badaró nos diz também que Capanema fez uma revolução na cultura brasileira, [...], começa pela relação dos intelectuais que circulavam ao redor do Ministério da Educação nos anos 30, menciona os vínculos entre o Ministro e Alceu Amoroso Lima, então líder do pensamento católico conservador, e insiste que Capanema se mantinha aberto a todas as correntes de pensamento, inclusive os da esquerda, terminando com uma extensa citação do jornalista VillasBoas Corrêa a respeito. Vemos que Capanema acompanhava com simpatia as ideias dos modernistas, mantinha um esquerdista, Carlos Drummond, como seu chefe de Gabinete, encomendava trabalhos a Portinari, tido como comunista, e levou à frente o projeto arquitetônico do edifício do Ministério da Educação (em um estilo modernista que, por razões hoje difíceis de entender, era também considerado "progressista"). Capanema foi ainda o criador do Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, a partir de um projeto de Mário de Andrade, e se preocupou com a Biblioteca Nacional, com o Canto Orfeônico, o Rádio, o Teatro, e várias outras iniciativas; enquanto, ao mesmo tempo, aceitava os vetos de Alceu (Amoroso Lima) para cargos no ministério, copiava a legislação educacional italiana, contratava o arquiteto de Mussolini para edificar a Cidade Universitária, fechava a Universidade do Distrito Federal, e tentava proibir o trabalho feminino. O resultado de tudo isto foi abrir uma pequena janela de educação e modernidade que, no entanto, ficou limitada às camadas médias e altas das grandes cidades, deixando à margem a grande maioria da população, e mantendo o Brasil, como ainda hoje, como um dos países mais desiguais e relativamente menos educados em todo o mundo. [...] A resposta é que, apesar do cultivo da cultura, das artes e dos temas educacionais, o Ministério da Educação daqueles anos ajudou a consolidar o modelo de modernização conservadora e excludente que caracterizou o regime Vargas como um todo. Gestos de mecenato e a construção de edifícios e monumentos arquitetônicos são perfeitamente compatíveis com este modelo, e é fácil entender como podem fascinar a muitos intelectuais. No entanto, descentralização, autonomia, pluralismo autêntico, transferência efetiva de recursos e poder, estímulo à iniciativa e à criatividade, nada disto era aceitável ou compatível com uma política educacional e cultural aonde tudo deveria ser previsto,

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regulamentado, e comandado do centro. Foi assim que a Universidade do Distrito Federal foi fechada; que Anísio Teixeira, educado nos Estados Unidos, foi perseguido como comunista perigoso; que os imigrantes perderam o direito de educar seus filhos em sua língua materna; e que iniciativas pioneiras como as reformas educacionais dos anos 20 e 30 em Minas Gerais e na Bahia acabaram se perdendo.

Neste caminho, Ghiraldelli escreveu, 2

Nada pior para um intelectual que ser descaracterizado, de ser roubado em sua verdade. Nada pior para uma comunidade quando um de seus membros mais inteligentes é desfigurado. Quando acontece isso, todos perdem. E foi o que ocorreu: todos nós perdemos. Todos nós, digo, todos nós da minha geração de pós-graduandos que fomos "ensinados" a ler Anísio Teixeira como escolanovista, tecnicista, americanista e, pior que tudo isso, liberal – em um contexto de semântica de tempos de guerra, onde essas palavras eram pejorativas.

Aos textos citados eu acrescento aqui meu próprio depoimento pois, quando ainda aluno das disciplinas sobre Educação, necessárias à licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (MG), bem como nos conteúdos ministrados durante aulas do Mestrado em Educação, presenciei, em pleno final dos anos noventa e início do terceiro milênio, ainda uma relevância indefensável dos cânones bibliográficos muito 2 GHIRALDELLI JR., Paulo. Anísio Teixeira: um neopragmatista avant la lettre? [online] Disponível na Internet via www.ghiraldelli.pro.br. Arquivo capturado em 14 de dezembro de 2002.

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mais voltados à crítica histórica-social sociológica – “durkheimianamente travestida de marxiana” – que à análise ontológica ou epistemológica dos conhecimentos pedagógicos, sem uma única citação isenta de ideologia a Dewey ou sequer Teixeira, evidência de uma prática hermenêutica castrada em sua objetividade por um historicismo estruturalista. Mas é bom lembrar, estamos finalmente no terceiro milênio, século XXI, ano 2004, e é a “semântica de tempos de guerra” que, desta vez, caiu em ostracismo. Pode-se ler Anísio Teixeira, e principalmente John Dewey, em sua integridade e, mais do que isso, pode-se investigar seus pressupostos epistemológicos isentos de premissas ideológicas, na medida da metanarrativa possível em um contexto pós-moderno . Citando, mais uma vez, Guiraldelli: Lyotard denominou "pós-moderna" a época em que nossas teorias não conseguem convencer mais muita gente, do modo como até então elas faziam ou, pelo menos, parecia que faziam. Elas, as teorias, diziam: nossas narrativas sobre a vida, o homem e o mundo podem até estar erradas, mas nossos pés são sólidos, porque essas teorias que professamos são apenas a periferia de uma metateoria, uma metanarrativa, na qual todos os fundamentos que precisamos estão lá. O mundo pós-moderno, na fórmula de Lyotard, caracterizou-se como a época, a nossa época, de perda de credibilidade na metanarrativa (ou nas metanarrativas). Nenhuma suprafilosofia ou

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supraciência pode estar na base da ciência, por que muita gente usa da ciência, vê que ela funciona, diz que ela é verdadeira, mas jamais encontraria razões para justificar hoje tais teorias como necessárias a partir de uma grande narrativa, uma metanarrativa como, por exemplo, a metanarrativa do Iluminismo, do hegelianismo, do marxismo e assim por diante. Essas metanarrativas perderam a credibilidade. Essa posição que entende que este é o clima intelectual, moral e estético em que vivemos, que esse é o espírito do nosso mundo contemporâneo, é a posição genericamente chamada de pós-moderna.

Pode-se ler e escrever sobre Dewey sem receio de patrulhas com óculos cor-de-rosa à frente de olhos vermelhos ou antipanglosianos. Podemos chegar a uma verdade entre as melhores verdades possíveis pois, como não poderia deixar de ser, esta é uma dissertação pretensiosamente neopragmática. Mais interessada em ser efetivamente bem escrita, precursora de novas categorias, linguisticamente palatável e refinadamente compreendida que demonstrar uma verdade científica absoluta (solecismo paradoxal!), erudição citatória, verborrágica ou de supedâneo autoritário. O pragmatismo histórico (peirciano, jamesiano ou deweyano) advém da tese fundamental de que a verdade de uma doutrina consiste no fato de que ela seja útil e propicie alguma espécie de êxito ou satisfação – criticado alhures (Bertrand Russel e outros) por usar um conceito de verdade não compartilhada como verdade válida. O neopragmatismo (nietzschiano, rortyano), por sua vez, dispensa a procura metafísica ou transcendental de “a” verdade, por uma investigação do uso concreto do termo “verdadeiro” em todos os casos possíveis. (id, Guiraldelli)

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Posto em seu devido lugar na história da educação e, mais além, na História mesma, o filósofo John Dewey foi um dos maiores pedagogos, quiçá, o maior filósofo da educação norteamericano, contribuindo intensamente para a divulgação dos princípios do que se chamou “vulgarmente” de Escola Nova (uma tradução atravessada de new school – termo utilizado por Dewey para diferenciar de old school, isto é, diferenciar a escola tradicional herbartiana da escola contemporânea com seus diversos experimentos pedagógicos e práticos subordinados às necessidades sociais e econômicas – e jamais um conceito propriamente deweyano original. Dewey assim descreve a teoria Herbatiana em Democracia e Educação, cap. VI: (...) um tipo de teoria que nega a existência de faculdades e que dá ênfase ao papel da matéria de ensino no desenvolvimento mental e moral. (...) Herbart é o melhor representante histórico deste tipo de teoria. Ele nega, absolutamente, a existência de faculdades inatas. A mente é, simplesmente, dotada da capacidade de produzir várias qualidades, como reacção às várias realidades que actuam sobre ela.

Aqui, cabe mais uma ressalva, pois o termo Escola Nova, embora vulgarmente utilizado como “categoria” pedagógica é apenas um dos nomes dados a um movimento de renovação do ensino que foi especialmente forte na Europa, na América e no Brasil, na primeira metade do século XX . “Escola Intuitiva”, Antonio Valter Kuntz

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"Escola Ativa", “Escola Aberta” ou "Escola Progressiva" são termos também usados para descrever esse movimento que, apesar de muito criticado, trouxe muitas ideias interessantes. De acordo com a história da educação tradicional, os primeiros grandes inspiradores da Escola Nova foram o escritor JeanJacques Rousseau (1712-1778) e os pedagogos Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e Freidrich Fröebel (1782-1852). Também, de acordo com o senso comum ou uma generalizada história da educação, o grande nome do movimento na América foi o filósofo e pedagogo John Dewey (1859-1952). O psicólogo Edouard Claparède (1873-1940) e o educador Adolphe Ferrière (1879-1960), entre muitos outros, foram os expoentes na Europa. No Brasil, as ideias da Escola Nova foram introduzidas já em 1882 por Rui Barbosa (1849-1923). Mas como apresento mais adiante, Abílio César Borges (1824-1891), fundador do Colégio Bahiano, embora não comumente citado como escolanovista, foi professor de Rui Barbosa, com ideias e métodos bastante diferenciados em sua época. Enfim, além destes, vários educadores se destacaram, especialmente após a divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932. Entre eles mencionamos Lourenço Antonio Valter Kuntz

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Filho (1897-1970) e Anísio Teixeira (1900-1971), divulgadores 3

de Dewey. Um conceito essencial do movimento aparece especialmente em Dewey. Para ele, as escolas deviam deixar de ser meros locais de transmissão de conhecimentos e se transformar em pequenas comunidades. Lourenço Filho nos fala sobre a escola laboratório que Dewey dirigia, na Universidade de Chicago onde, "as classes deixavam de ser locais onde os alunos estivessem sempre em silêncio, ou sem qualquer comunicação entre si, para se tornarem pequenas sociedades, que imprimissem nos alunos atitudes favoráveis ao trabalho em comunidade". Nesta antiga foto, vemos uma "playhouse" construída pelas próprias crianças da Escola Laboratório de Dewey em Chicago, 1901.

3 LOURENÇO Filho. Introdução ao estudo da Escola Nova, p. 133. São Paulo: Melhoramentos, 1950.

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O suíço Claparède defendia a ideia da escola "sob medida", mais preocupada em adaptar-se a cada criança do que em encaixar todas no mesmo molde. Ferrière e outros pedagogos, como o belga Decroly (1871-1932), insistiam que o interesse e as atividades dos alunos exerciam um grande papel na construção de uma "escola ativa". A Escola Nova recebeu muitas críticas. Foi e é acusada principalmente de não exigir nada, de abrir mão dos conteúdos tradicionais e de acreditar ingenuamente na espontaneidade dos alunos. A leitura das obras e a análise das poucas experiências em que, de fato, as ideias dos escolanovistas foram experimentadas com rigor mostram que essas críticas são válidas apenas para interpretações distorcidas do espírito do movimento. Apesar de todo o seu sucesso, a Escola Nova não conseguiu modificar de maneira significativa o modo de operar das redes de escolas e perdeu força sem chegar a alterar o cotidiano escolar. Hoje, quando continuamos a buscar rumos para nossa educação, as ideias e experiências dos autores da Escola Nova, mesmo que contenham algumas concepções ultrapassadas ou ingênuas, podem continuar nos servindo como fonte de prazer literário e de inspiração pedagógica. 4

Dada a ressalva acima, portanto, não cabe a esta dissertação o papel de apenas adicionar mais umas linhas sobre Dewey a partir de uma concepção histórica ou historicista convencional. Pois além do âmbito histórico narrativo-cronológico – e 4 RISCHBIETER, Luca. Glossário Pedagógico. Disponível na internet via: http:// ww.educacional.com.br/pais/ glossario_pedagogico/default.asp. Acesso em 25/07/2004.2004.

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aqui posicionamos a ênfase metahistórica lógico-dissertativa deste trabalho – há o poder do discurso deweyano de fundamentar e construir e compreender um movimento histórico, muito mais do que estar subordinado a ele. Ou seja, em vez de analisarmos Dewey sob o prisma da Escola Nova, tentaremos demonstrar que sua obra é ponto de partida e ponto de reflexão que extrapola a categoria ou o movimento “Escola Nova”. Destacamos que o pensamento deweyano, assim considerado, ocupa o lugar de uma das matrizes principais da paideia contemporânea, e assim ele foi tratado, antes de condicionado à história, é condicionador da história. Os objetivos desta obra, portanto, são os seguintes: destacar, definir, esclarecer e, eventualmente, discernir a propedêutica original do filósofo John Dewey sobre a educação da propedêutica usualmente considerada oriunda da proposta deweyana, ou seja, a Escola Nova ou Escola Progressiva enquanto instituições estanques, pois para Dewey são apenas modos de atuação educacional, e não parâmetros. Neste intento, também visaremos escrutinar algumas considerações ideológicas que permeiam as principais tradições pedagógicas da atualidade. Finalmente, esperamos contribuir para Antonio Valter Kuntz

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uma apresentação e uma compreensão mais profunda do método pedagógico de John Dewey e suas implicações históricas para a educação brasileira. A obra de John Dewey, filósofo pragmático, apresenta-se como fundamental colaboração ao exercício de um raciocínio em direção à compreensão efetiva do que podemos conceituar enquanto educação transformadora, bem como verificar os parâmetros de tal conceituação, sua utilidade e extensão concretas. Enfim, a partir do diálogo contextual com a obra original de Dewey, sem descartar algumas passagens de outros autores antagônicos, complementares ou úteis ao raciocínio supracitado – destacando sempre a proeminência das concepções originais de Dewey que das concepções de seus comentadores – poderá ser possível buscar e selecionar as raízes de uma fundamentação histórica, filosófica-científica diferenciada, mas não divorciada, das estratégias pedagógicas em vigor, e assim contribuir para o resultado almejado, uma compreensão menos axiológica e mais ontológica do que seja uma pedagogia humanista por sua concepção e não por sua consequência. Tal hermenêutica da obra original de John Dewey é necessária, de Antonio Valter Kuntz

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maneira a estabelecer um critério de análise da validade das asserções do autor em respeito à educação – independente dos conflitos de valores relacionados aos ideais liberais ou socialistas quanto à formação do cidadão – para aferir sua verdadeira influência na pedagogia contemporânea e contribuir para recuperação de suas ideias originais. Segundo Umberto Eco, em sua obra Como se faz uma tese, cabe escolher entre a intenção de desenvolver um raciocínio consequente ao de um autor ou escola específica, aproveitando-se de seus ombros para ver mais longe, de acordo com a metáfora medieval, ou a compilação de ideias e suas relações ou variações em torno de um mesmo tema. A decisão tomada, embora ousada, é a de evitar a simples compilação em nome do raciocínio consequente a partir dos ombros deweyanos. A partir da leitura e análise dos originais em inglês das obras de John Dewey, relativas à pedagogia, da pesquisa de comentadores conterrâneos ao autor e, em segundo plano, comparar com obras e pesquisas de comentadores nacionais e internacionais, tanto do trabalho, como das consequências da utilização das ideias deweyanas como apoio das mudanças pretendidas pelo ideário educacional no munAntonio Valter Kuntz

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do e no Brasil desde 1930, enquanto categorias de pensamento oriundas das esferas científica e filosófica. Também busquei – na mídia impressa e na mídia eletrônica-artigos e livros do âmbito educacional que mencionassem ideias de John Dewey, tendo em vista ilustrar as diferenças cruciais entre a real proposta deweyana e a chamada “influência” deste filósofo-educador sobre o “escolanovismo” brasileiro. Porquanto, tendo em vista um termo final para tal empreendimento, procurei pontuar os temas mais relevantes da obra pedagógica de Dewey, sem intenção de escrutiná-la em toda sua totalidade, tarefa muito mais pretensiosa que as poucas páginas que se seguem. Tentarei, na medida do possível, realizar uma parte do trabalho proposto pelo próprio John Dewey, em Experience and Education, em 1938: I have used frequently in what precedes the words "progressive" and "new" education. I do not wish to close, however, without recording my firm belief that the fundamental issue is not of new versus old education nor of progressive against traditional education but a question of what anything whatever must be to be worthy of the name education . I am not, I hope and believe, in favor of any ends or any methods simply because the name progressive may be applied to them. The basic question concerns the nature of education with no qualifying adjectives prefixed. What we want and need is education pure and simple, and we shall make surer and faster progress when we devote ourselves to finding out just what education is and what conditions have to be satisfied in order that Antonio Valter Kuntz

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education may be a reality and not a name or a slogan. It is for this reason alone that I have emphasized the need for a sound philosophy of experience. Usei, frequentemente, em meu texto, os termos educação nova e progressiva. Não desejo, entretanto, concluir sem registrar minha firme crença de que a questão fundamental não é a educação velha versus nova, nem progressiva versus tradicional, mas de alguma coisa – seja qual for – que mereça o nome de educação. Não sou, espero e creio, a favor de quaisquer fins ou quaisquer métodos simplesmente porque se lhes deu o nome de progressivo. A questão básica, repito, prende-se à natureza de educação sem qualquer adjetivo qualificativo. Aquilo por que ansiamos e o de que precisamos é educação pura e simples. Faremos progresso mais seguro e mais rápido se nos devotarmos a buscar o que seja educação e quais as condições a satisfazer para que ela seja uma realidade e não um nome ou uma etiqueta. Por este só motivo é que procurei salientar a necessidade de uma adequada filosofia da experiência. 5

5 DEWEY, John. Experiência e Educação. Trad. Anísio Teixeira. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976.

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“Particularly is it true that a society which not only changes but-which has the ideal of such change as will improve it, will have different standards and methods of education from one which aims simply at the perpetuation of its own customs. To make the general ideas set forth applicable to our own educational practice, it is, therefore, necessary to come to closer quarters with the nature of present social life.” DEWEY, John. Democracy and Education. [online] Disponível na Internet via http://ase.tufts.edu/cogstud/. Arquivo capturado em 19 de junho de 2001. É especialmente verdadeiro que uma sociedade que não apenas muda, mas tem o ideal de mudar, não só vai melhorar como vai possuir diferentes padrões e métodos de educação daquela que almeja simplesmente perpetuar os próprios costumes. Para fazer que as ideias gerais aqui lançadas sejam aplicadas em nosso próprio ensino é, portanto, necessário estar bem próximo da real natureza da vida social atual.

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John Dewey © David Levine/NYRB

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Uma Pequena História

Em 20 de outubro de 1859 nascia John Dewey, na mesma época, Lincoln se tornava presidente dos Estados Unidos da América, a primeira torre de petróleo começava a funcionar no país, “The Origin of the Species” de Charles Darwin e “A Contribution to the Critique of Political Economy”, de Karl Marx, eram publicadas. Não há que duvidar que o jovem Dewey foi fortemente influenciado pelos acontecimentos de seu tempo, pela guerra civil americana e por todo o ambiente sócio-cultural em transformação da segunda metade do século XIX. Os próprios pais de John Dewey, Archibald e Lucina, deixaram a tradição familiar de cuidar de fazendas para abrir um armazém de secos e molhados numa pequena cidade chamada Burlington, no estado de Vermont, nordeste dos Estados Unidos. No ritmo das mudanças históricas, seu pai vendeu o armazém e se alistou no exército da União e, depois de participar da guerra civil americana contra a escravidão, a favor dos direitos iguais,

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da liberdade de expressão e da união nacional, se tornou um próspero dono de uma loja de cigarros. Assim, John e seus dois irmãos cresceram em uma casa de classe-média numa comunidade que incluía americanos, imigrantes e negros libertos, compartilhando valores e ideais liberais. Sua mãe participava como voluntária em atividades de auxílio aos pobres e, por causa dela, John frequentava a Igreja Congrenacional, embora, quando mais velho ele viria a se tornar muito mais aberto, religiosamente, que sua mãe um dia imaginaria. Em 1865, a décima terceira emenda à constituição americana abole a escravidão nos Estados Unidos. Em 1867, na primeira vez que Dewey entrou em uma sala de aula, viu mais de quarenta alunos, com idades variando de sete a dezenove anos. Nessa época, ideias reformadoras do ensino americano ganhavam espaço e no ano seguinte um sistema de ensino centralizado dava os primeiros passos, voltado para educação de cidadãos dentro de padrões urbanos, mantendo alunos de mesma idade nas salas. Como toda reforma, sua implementação tinha mais forma que conteúdo, ainda identificando o ensino com a repetição monótona de sílabas e lições. Antonio Valter Kuntz

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Quando chegou aos doze anos de idade (1871), Dewey terminou seu “ensino fundamental” de quatro anos numa escola pública. Conseguiu ser selecionado para uma “escola preparatória” (equivalente a ensino médio ou colégio) em 1872, de onde saiu em 1875, com dezesseis anos para entrar na Universidade de Vermont, cujo currículo clássico enfatizava o latim, o grego, literatura inglesa, matemática, retórica e, o mais interessante, a faculdade encorajava seus alunos a buscar seus próprios caminhos e pensar por si mesmos. Assim, enquanto Dewey se formava, vivia imerso em estudos sobre política, sociologia e ética (ou filosofia moral). Finalmente, ele se formou em 1879 e, indicado por um parente, começou a dar aulas em uma escola secundária de Oil City, Pennsylvania, aos 20 anos de idade, ensinando álgebra, latim e ciência. Em 1881 retornou a Vermont e, por um curto período de tempo, foi o único professor numa escola rural próxima de Burlington. Ao longo destes anos, e graças ao encorajamento de seus ex-professores de Vermont, escreveu também três ensaios filosóficos que foram aceitos para publicação no “Journal of Speculative Philosophy”. O sucesso conseguido nesta área consolidou o seu interesse para continuar os seus próprios estudos. Antonio Valter Kuntz

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Em 1882, entrou no programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade John Hopkins (Baltimore, Vermont), onde obteve seu Phd, título de Doctor of Philosophy, para todos os efeitos, equivalente ao nosso grau de Doutor mas com atividades equivalentes a de um mestrado no Brasil (bem, este é um assunto para outra dissertação ou tese); na época, esta universidade era a primeira a reunir ensino e pesquisa, uma novidade da Europa recém adaptada ao ensino superior americano. Mesmo assim, Dewey foi alertado que provavelmente não conseguiria um cargo de professor de filosofia sem estudar profundamente Teologia Cristã. A despeito do aviso, Dewey continuou com seus estudos de filosofia, história e ciência política, bem como frequentar aulas de importantes pensadores de seu tempo. Entre seus professores incluíam-se Charles Sanders Peirce (Ló6

gica), G. Stanley Hall (Psicologia), e George Sylvester Morris, 7

6 Charles Sanders Peirce (1839-1914). Uma das principais preocupações de Peirce era encontrar um método, segundo o qual a filosofia poderia aproximar-se do rigor dos procedimentos científicos. Tal método foi denominado por ele como pragmatismo, que possuiria a função de aclarar o significado dos diversos termos empregados pelo discurso filosófico, que muitas vezes pecam pela imprecisão. Além de Dewey, o pensamento de Peirce influenciou importantes filósofos norte-americanos, entre eles, William James, seu discípulo direto e amigo pessoal. 7 Psicólogo americano que advogava o estudo intensivo das crianças e adolescentes para determinar os métodos de ensino apropriados em cada fase de seu desenvolvimento. Publicou em 1904 uma obra de dois volumes intitulada “Adolescência” que

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cujo interesse em Hegel e Kant influenciaram Dewey que, em 1884, completou sua dissertação com o título de “The Psychology of Kant”, cujo texto se perdeu e jamais foi publicada . 8

Morris era chefe do Departamento de Filosofia da Universidade de Michigan (Vermont) e, para lá, indicou Dewey para assumir a posição de Professor de Filosofia. Juntos, no Departamento de Filosofia que tradicionalmente apenas promovia uma combinação entre filosofia clássica e teologia cristã, passaram a enfatizar estudos das filosofias inglesa e alemã (neohegelianismo). Como os demais professores, Dewey ministrava diversas aulas e escreveu vários artigos. Dois de seus artigos chamaram a atenção da comunidade científica, publicados no jornal “Mind”, nos quais ele apresentava a psicologia e filosofia juntas, argumentando que a primeira prescindia de uma metodologia exclusiva e que a filosofia era sua forma “expandida” (Ecker). Ainda em Michigan, Dewey – se não foi o professor interpretado por Robin Williams em “A sociedade dos Poetas ficou como modelo para qualquer trabalho sobre este tema durante um quarto de século. 8 Há um artigo “Kant and Philosophic Method,” publicado em “The Journal of Speculative Philosophy” (abril, 1884) que, acredita-se, resume a temática da dissertação.

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Mortos”, chegou perto, pois – fundou e apoiou várias organizações estudantis, incluindo, “Philosopical Society”, “Students' Christian Association” e o “Michigan Schoolmasters' Club”, que desenvolveu estudos das ligações entre o ensino secundário e o superior. Nessa época (1886), ajudou na instauração da política “universidade aberta” para todos os estudantes do “ensino médio” (aprovados) em Michigan, que durou 15 anos, permitindo estudantes a conhecer e se envolver com a vida universitária antes de ingressar nela. O primeiro livro de Dewey se chamou “Psychology” e foi publicado em 1887, no qual apresentava um sistema filosófico baseado em conexões entre psicologia científica e filosofia neohegeliana (idealismo alemão). Embora bem recebido pela comunidade e adotado para aulas em outras universidades, foi criticado por G. Stanley Hall, e pelo orientador de Hall, o filósofo pragmatista William James. Crítica que serviu, provavelmente, para o desenvolvimento do pragmatismo deweyano. Com o crescimento de sua reputação como professor e cientista, aceitou a cadeira de professor de Filosofia Moral e da Mente na Universidade de Minnesota, onde ficou apenas um ano, voltando a Michigan para substituir Morris – que falecera – na chefia do Departamento de Filosofia, em 1889. Antonio Valter Kuntz

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Em 1894, a Universidade de Chicago, inaugurada há quatro anos e com interesses em formação e pesquisa, chamou Dewey para fazer parte de sua equipe de renomados professores, famosos pela excelência tanto em sala de aula como em publicações acadêmicas. Junto com ele vieram James H. Tufts, George Herbert Mead e James R. Angell, que mais tarde iriam formar a “Escola de Chicago”. Uma vez em Chicago, Dewey foi alocado no Departamento de Filosofia, Psicologia e Pedagogia, enfocando o estudo das relações entre os professores do ensino fundamental, médio e superior. Para Dewey, a pedagogia merecia um departamento separado para treinar e formar especialistas em educação. O reitor William Rainey Harper gostou da ideia e fez de Dewey chefe do Departamento de Filosofia e do Departamento de Pedagogia. A partir de 1890, com a experiência acumulada pelo exercício da chefia e das novas responsabilidades, os escritos de Dewey deixaram de refletir o estilo neohegeliano (idealista) e se tornaram mais concretos, um estilo que foi reconhecido mais tarde como pragmático ou pragmatista.

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Em 1896, a Escola Experimental iniciou suas atividades, voltada para pesquisa de técnicas pedagógicas e treinamento de professores. Em 1900, 23 diferentes cursos da área de educação eram oferecidos à comunidade pelo chamado, a partir de então, Departamento de Educação da Universidade de Chicago, reconhecido como o “mais completo do país” , associado a duas 9

escolas de ensino fundamental e a uma escola técnica de ensino médio. Seus trabalhos, encabeçados por John Dewey, reconhecido agora como líder e celebridade da Filosofia da Educação americana, tiveram grande repercussão, nacional e internacional, e entrou para a história com o nome de Escola de Chicago, tornando seus integrantes mais famosos e importantes que a própria Universidade de Chicago. O que promoveu atritos e conflitos entre os interesses da Universidade e os de “seu” Departamento de Educação. Como na maioria das vezes acontece quando a mudança e a conservação se enfrentam, o conservadorismo venceu, e Dewey teve de deixar seu cargo e todo o trabalho já desenvolvido. No mesmo ano, 1904, ele assumiu a direção do Departamento de Filosofia da 9 DYKHUIZEN, G. The Life and Mind of John Dewey. Carbondale, IL: Southern Illi-nois Univ. Press, 1973.

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Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, onde ficou até se aposentar em 1930, mas continuou até 1939 como professor emérito, quando finalmente deixou de dar aulas. No período em que esteve na Universidade de Columbia, Dewey deu cursos de filosofia e educação na universidade de Pequim em 1919 e em 1931; elaborou um projeto de reforma educacional para a Turquia, em 1924; visitou o México, o Japão e a Rússia (ainda União Soviética), estudando os problemas da educação nesses países, deixando sua marca e sua influência. Desde a primeira guerra mundial demonstrou interesse pelos problemas políticos e sociais através de suas atividades como pensador reconhecido. Ao falecer, em 10 de junho de 1952, com 92 anos de idade, Dewey deixou extensa obra na qual se destacam: Psychology (1887; Psicologia); My pedagogic creed (1897, Meu Credo Pedagógico); Psychology and Pedagogic Method (1899; Psicologia e Método Pedagógico); The School and Society (1899; A Escola e a Sociedade); How we think (1910; Como pensamos); Democracy and Education (1916); Democracia e educação; Reconstrution in Philosophy (1920; Reconstrução na Filosofia); Human Nature and Conduct (1922; Natureza Humana e Antonio Valter Kuntz

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Conduta); Philosophy and Civilization (1931; Filosofia e Civilização); Art as Experience (1934; A Arte como experiência); Experience and Education (1938, Experiêcnia e Educação) Logic, The Theory of Inquiry (1938; Lógica, a Teoria da Investigação); Freedom and Culture (1939; Liberdade e Cultura); Problems of Men (1946; Problemas dos Homens). Ao todo, são 36 livros e um grande volume de artigos, discursos e aforismos. Como bem lembra Marcos Vinicius da Cunha: O pensamento filosófico-educacional de John Dewey foi elaborado ao longo de meio século; durante esse tempo, nosso autor presenciou as mais diversas transformações sofridas pela civilização, talvez as maiores transformações já vividas pela humanidade em um período tão curto de tempo. Dewey viveu a consolidação do império norte-americano e suas mazelas; o nascimento e a estagnação da União Soviética; o notável avanço tecnológico e a proliferação da sociedade de massas. Viu o predomínio da escola tradicional e a tentativa de aplicação de suas próprias teses educacionais; percebeu o modo descuidado como muitas delas foram transpostas para a prática de sala de aula. Dewey não foi um mero observador desses fatos; ele soube assimilá-los de modo a pôr e repor continuamente suas ideias, numa demonstração viva de que seu pensamento é dinâmico e que se constrói no processo de experienciar as condições do ambiente social.10

10 CUNHA, Marcus Vinicius da. John Dewey. Uma filosofia para educadores em sala de aula. Coleção Educação e Conhecimento. Petrópolis, RJ. Vozes, 200.

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As Bases do Pensamento Educacional de john Dewey

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Cabe observar que a discussão proposta não se restringe à categoria Escola Nova, expressão que congrega tendências diversas e mesmo opostas de pensamento, como os principais difusores do escolanovismo claramente perceberam. [....] sugeri que o ideário da Escola Nova poderia ser qualificado como aquele que buscava equilibrar o respeito pelas necessidades psicológicas individuais com as exigências da ordem social, sob a inspiração das ideias de John Dewey, entre outras. Mas esta era apenas uma das tendências do que se chamou escolanovismo: havia também, desde o início, uma forte inclinação para desequilibrar esses dois pólos, deslocando o eixo das finalidades educacionais na direção de privilegiar os requisitos estritamente sociais, sem atender às peculiaridades do universo psicológico individual.11

11 CUNHA, Marcus Vinicius da. O discurso educacional renovador no Brasil (19301960): Um estudo sobre as relações entre escola e família. Disponível na Internet via: http://www.geocities.com/Athens/ Atrium/4778/ LivreDocencia/Indice.html. Acesso em 16/12/2004.

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http://home.earthlink.net/~fheapblog/id28.html

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O contexto metahistórico

Antes de falar diretamente das bases epistemológicas para o bom entendimento do pensamento educacional deweyano, aproveito para uma pequena digressão metahistórica para citar Abílio César Borges e sua revolução pedagógica no Ginásio Baiano em 1862, não nos Estados Unidos da América, mas nos Estados Unidos do Brasil (sic). Digressão para ilustrar que mais do que uma cronologia ou evolução compulsória de ideias pedagógicas, faz-se necessário um aprofundamento dos estudos lógico-epistemológicos dessas mesmas ideias, os porquês de seus sucessos e fracassos, como escreve Anísio Teixeira : À luz do conhecimento mais perfeito que temos hoje, do nosso país e do seu curso histórico, nada nos fere mais a atenção, ao examinarmos certas figuras do nosso passado, do que a sua desproporção com o meio e o tempo. Abílio César Borges constitui um destes casos. Entre 1856 e 1880, período de sua atuação, o Barão de Macaúbas se alteia, no Brasil, como uma figura que nada tem a dever às dos grandes educadores, então dominantes no mundo. Pertencia, sem favor, à linhagem dos grandes diretores de escola, que, na época, iniciavam, tanto na Europa quanto na América, a revolução educacional que viria produzir, depois, a educação popular univer-

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sal e o cultivo geral da ciência, de que nasceriam, ou que acompanhariam, as grandes transformações do nosso tempo. Não há como não estranhar essa coincidência, quando o país, na realidade, não passava, então, de uma atrasada subnação americana, dividida entre senhores e escravos, com uma pequena classe livre, sem meios, nem recursos, nem progressos e desprovida de qualquer consciência do seu problema educacional.12

A partir do estranhamento revelado por Teixeira, cabe acrescentar que Abílio César Borges (1824-1891), nasceu em Minas do Rio Claro, Bahia, e trocou a carreira médica pela atividade de educador ao fundar, no ano de 1858, o Ginásio Bahiano, em Salvador, que foi responsável pela formação de grandes personalidades, tais como, Castro Alves e Rui Barbosa. O Ginásio Bahiano inovou e agradou pais e alunos com uma disciplina branda, livre da férula (palmatória), apresentou novos processos para aprendizagem da leitura e métodos para o estudo de línguas vivas, recebendo, então, elogios e comendas por todo o país. Em 1871 Borges transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde instalou o Colégio Abílio, retratado elogiosamente pelo escritor Raul Pompéia em O Ateneu. Abílio teve atuação de destaque no ensino do período imperial quase republicano, abolindo o 12 TEIXEIRA, Anísio. Um educador: Abílio Cesar Borges. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.18, n.47, jul./dez. 1952. p.150-155.

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castigo corporal na suas escolas e fazendo-as modelo para instituições similares no restante do país. Foi também um dos precursores do livro didático nacional. Por suas contribuições na área educacional, em 1881 ganhou o título de Barão de Macaúbas, concedido por D. Pedro II. Escreveu e discursou o futuro Barão, em 1862, ainda na Bahia: Desde a fundação deste instituto (o Ginásio Bahiano), dei à marcha dos estudos preparatórios uma direção diferente da até ali geralmente seguida no país; e uma das reformas que empreendi e pus em efeito com grande vantagem, a qual assaz autorizada vai já por uma prática de cinco anos, consistiu em fazer cada menino frequentar duas, três e até quatro matérias simultaneamente. É justamente essa reforma proveitosa que, apesar em parte já imitada por alguns de meus colegas educadores, merece a censura de outros, e a completa reprovação dos sectários da uniformidade rotineira. (...) Dizem os que criticam o meu sistema de estudos, que nunca poderão os meninos aprender com perfeição e profundamente preparatório algum, tendo de dividir sua atenção por três ou quatro; e figuram entre eles até amigos meus, de boa fé e talentosos, mas que talvez nunca tiveram a paciência de refletir seriamente sobre o modo de desenvolvimento do espírito humano, sobre a prodigiosa faculdade de abstração de que é dotado. Tome-se o menino desde o momento em que veio à luz: reflita-se na multiplicidade de impressões que simultaneamente recebe e na intensidade de ideias que vai adquirindo e guardando ordenadamente no espírito, de sorte que nunca se confundem: considere-se, além disto, que até certa idade o menino aumenta seus conhecimentos quase que unicamente pela memória, porque a razão só mais tarde e mui lentamente se desenvolve; de modo que, podendo aprender muitas coisas, não pode aprofundar nenhuma; e compreender-se-á quanto vai errado aquele que se propõe ensinar a fundo esta ou aquela matéria a meninos que ainda

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não passaram dos 12 ou 13 anos de idade. É sem dúvida por falta destas reflexões que, em geral, os mestres sobem com a criança a elevadas questões de linguística e filosofia da gramática, incompreensíveis ainda para as jovens inteligências; e perdem assim completamente o tempo e o trabalho que poderiam ser aproveitados em lições mais práticas do que teóricas; porque em vez de captarem a atenção, desgostam e causam sono aos seus pequenos ouvintes que, por os não entenderem, não podem atender.13

Fatos como esse, comparáveis a Kant elogiando o jardim de 14

infância no século XVIII, ou Sócrates discutindo a importância 15

da esgrima na educação dos jovens (para promover a coragem) levam a pensar que o ponto de vista histórico não comporta suficientes categorias para compreensão do fenômeno educacional. Ligada à história, mas não relativa ou diretamen13 COLEÇÃO DE DISCURSOS PROFERIDOS NO GINÁSIO BAHIANO, Paris, Aillaud, Guillard & Cia., 1866. 14 KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba, SP. Editora Unimep, 1996. 15 Diálogo platônico Laques: Lisímaco e Melésias pais de Aristides e Thucidides observam o treino dos seus filhos com um combatente fortemente armado (a cena deve passar-se num ginásio público) acompanhados de dois generais atenienses Nícias e Laques. A propósito do treino surge a discussão entre os presentes sobre a melhor maneira de educar as crianças. O verdadeiro sujeito do Laques não é a coragem mas a propósito da coragem à educação das crianças ou seja a ciência dos estudos e exercícios que mais lhes convém. Sócrates que também se encontra presente é abordado por Laques para que intervenha na conversa dando conselho sobre os melhores meios de desenvolver as faculdades morais e físicas das crianças. Sócrates mostra-lhes que a vantagem da educação é de fazer nascer a virtude na alma das crianças. É óbvio que para a fazer nascer é necessário possuí-la ou pelo menos conhecê-la. Chegados a este momento estamos a ver que a questão a resolver não seria outra senão esta: o que é a virtude? Mas é uma questão tão vasta que Sócrates propõe, em lugar de examinar o que é a virtude em geral, limitar a análise a procurar se se conhece bem uma das suas partes, a coragem que é a que está mais ligada ao exercício das armas. In http://www.franciscotrindade.com/acad/acad_014.htm. 28 de setembro de 2004.

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te subordinada a ela, a educação é produtora do movimento histórico. Do que podemos derivar que a instituição escola é subordinada à história e à sociedade, mas o fenômeno educação é instância diferenciada, é prática humana determinante de ações e valores, constrói a sociedade que determina a escola, mas permanece livre como fenômeno de transformação, a-histórica por sua própria natureza, não pode ser subsumida a representações que ela mesma condiciona. Por isso é possível pensar a educação sem pensar em escolas, embora se possa construí-las sem pensar em educação, do que podemos diferenciar escolas com fins educacionais e escolas com fins sociais. As primeiras educam, as segundas adestram. As primeiras têm um fim em si mesmas, incomensurável, as segundas têm um fim que pode ser medido, qualificativamente e quantitativamente. Em tempo, para Dewey, Filosofia e Educação são sinônimos, e ele utiliza os termos de forma indistinta, não como uma instância de pensamento ou teoria, mas como instrumentos de ação e prática. Entender Dewey através de Dewey torna esclarecedor diversos conceitos e paradigmas educacionais a ele relacionados. E auxilia a compreensão dos fenômenos concretos problemáti-

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cos do pensamento educacional. Guiomar Mello escreveu que faltam à análise educacional categorias teóricas: [...] que dêem conta da complexidade concreta do nosso fenômeno (educacional) e que nos permitam tomar como um único bloco de problemas tanto as condições sociais que determinam acesso, a permanência, e a exclusão nas instituições educacionais, como os mecanismos internos pelos quais este acesso, permanência e exclusão se concretizam.16

Ao que Bernardete A. Gatti comenta: Esta dificuldade que aponta (Mello) faz com que a investigação em Educação se reduza, ou ao atacado com o sociologismo e o economicismo, ou ao varejo, com o psicologismo, o tecnicismo e o psicopedagogismo. Propõe, para superar estas reduções, um entendimento mais claro e real da natureza da própria educação, das concepções da educação que inspiram as práticas de pesquisa, o que em resumo significa capturar a estrutura desse fenômeno bem como sua dinâmica, não enquanto ideias que delas fazemos, mas captadas em sua concretude, donde a importância do método.17

Aceitando o convite de Gatti, a proposta de análise metahistórica do texto deweyano, portanto, se impõe como um experimento para compreender o fenômeno educacional independente de seu tempo histórico, selecionando seu tempo lógico, 16 MELLO, Guiomar N. A Pesquisa Educacional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 46, p.67-72, agosto, 1983. 17 GATTI, Bernardete A. Pesquisa em Educação. Um tema em Debate. Cadernos de Pesquisa, n. 80, p.106-111. São Paulo. Fevereiro de 1992.

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que não se confunde com o cronológico. Trata-se de abrir mão da prática historicista convencional em nome de uma compreensão mais racional e mais abrangente do fenômeno em movimento, e não do fenômeno que já passou ou interpretado por terceiros. Os textos de Dewey não servem apenas a uma leitura historiográfica, mas como uma leitura histórica e contemporânea de um contexto educacional vigente na sociedade ocidental. Da mesma forma que – para podermos compreender as ideias do passado – precisamos esquecer que estão no passado e nem podemos condicioná-las ao seu tempo presente. Não se pode confundir a Escola Platônica com o Liceu, ou Escola Aristotélica com a Academia da mesma forma que não se deve confundir Escola Deweyana com a Escola Nova. Eis a principal proposta desta dissertação com relação ao trabalho de Dewey. O texto de Dewey, uma vez localizado historicamente e socialmente, não torna imprescindível à análise presente a investigação psicológica das ideias como consequentes de um ambiente determinado, mas é imprescindível sua identificaAntonio Valter Kuntz

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ção metahistórica: é preciso identificar sua lógica interna e sua atemporalidade para só assim e somente assim apreender sua condição de fato gerador de história, ou seja, onde começa a história, o efeito, o fato, e onde começa a ideia, a causa, o ato – não potência. Não se trata de dialética, mas uma condição disciplinar de coerência com o objeto de análise, um objeto de análise do tempo presente, da atualidade que presenciamos. Trata-se de História e não historicismo.

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Iniciação à Obra de Dewey

Comecemos pela experiência pessoal do filósofo: vamos para a América, onde um fato pitoresco ocorreu e serve para ilustrar o ambiente educacional em que o norte-americano e filósofo da educação (ao mesmo tempo!), John Dewey vivia – e no qual ainda vivemos – e que fundamenta o embate pedagógico-ideológico sobre o papel do ensino na sociedade humana. Conta o próprio Dewey, em seu livro A Escola e a Sociedade que, um dia, à procura de secretárias e cadeiras (carteiras escolares) para sua Escola Elementar da Universidade de Chicago, que pudessem satisfazer perfeitamente as necessidades das crianças – sob os pontos de vista artístico, higiênico e educativo – teve muitas dificuldades, pois não encontrava nada que se adequasse. Até que um comerciante, mais inteligente que os restantes, comentou: “Receio não ter o que vocês desejam. Vocês querem carteiras onde as crianças possam trabalhar; todas essas são para ouvir". 18

18 DEWEY, John. A Escola e a Sociedade. A Criança e o Currículo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002.

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Segundo Dewey, este é o resumo apropriado da história de toda a educação escolar tradicional ou herbatiana. Salas de aula mantidas a chicote, físico ou ideológico-verbal, e regras imperativas com penalidades exclusórias, formatadas para condicionamento industrial ou feudal, ano após ano, século após século. Não é à toa que haja uma eterna crise escolar, mas trata-se de uma crise mais arquitetural ou ergonômica que institucional, pois esta (a instituição escolar) teima em sobreviver e sobrevive, às custas de uma subordinação histórica a ideais de massificação que determinam o design anacrônico e o modelo “econômico” dos estabelecimentos escolares. Dewey, como qualquer pensador da educação, refletiu sobre o “espaço-tempo” escolar, mas em vez de buscar simples soluções de adequação ao ambiente (matérias estanques, disciplina, rigor, técnicas pedagógicas e outros taylorismos, fordismos ou toyotismos), percebeu o óbvio, a sala de aula não era uma preparação para a vida, mas a própria “vida”. E a vida não se resolve entre quatro paredes e um quadronegro. Quatro paredes e um quadro-negro, aliás, excluem seus Antonio Valter Kuntz

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integrantes da vida real. E não há método ou teoria ou jogo de palavras ou retórica criativa que mude isso. A escola deveria ser um espaço de vida, integrado à vida da comunidade e só assim cumpriria seu verdadeiro papel educativo. Portanto, a primeira coisa necessária para se compreender Dewey, em sua magnitude, é abrir mão do lugar comum da sala de aula convencional no interior e uma escola tradicional, ou seja, quatro paredes, um quadro-negro e carteiras alinhadas, recursos pirotécnicos e similaridades tecnológicas à espera de “aulas”. Não há escola nova ou nova escola ou escola progressiva ou progressista genuína, se considerarmos “genuína” segundo a pragmática deweyana, quando apenas se adaptam salas de aula convencionais ou tradicionais para ministrar “aulas” com conteúdos hermeticamente preparados e tecnologicamente dependentes. Temos um problema histórico-conceitual então, um problema que extrapola a academia e, que para ser resolvido, exige discernimento político, social e econômico muito além da atividade pedagógica tradicional (sic). Se quisermos ser mais Antonio Valter Kuntz

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explícitos, a escola extra-familiar está para Dewey como o Estado está para Marx, é um mal necessário, mas que deveria ser “desnecessário” no futuro. “What the best and wisest parent wants for his own child, that must the community want for all of its children.” O que o mais sábio e melhor pai deseja ao seu próprio filho é o que a comunidade deve desejar para suas crianças.19

Embora as linhas acima possam dar impressão que Dewey seria uma espécie de radical, ao contrário, ele era um tradicionalista, embora não fosse um conservador no sentido de preservar o status quo em vigor. Podemos entender tradicionalista no sentido em que ele considerava o lar a instância efetiva da educação humana, a escola era uma necessidade da sociedade. O lar ideal, que para Dewey é a casa no campo, na fazenda, é o lugar onde a curiosidade da criança é estimulada como resultado das conversas e atividades do dia-a-dia. A divisão de tarefas neste tipo de lar desenvolve os hábitos de cooperação, trabalho e dependência. A partir da família a criança huma19 DEWEY, John. John Dewey: The Middle Works: 1899-1924, ed. Jo Ann Boydston, 15 vols.Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press, 1981-90

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na apreende que os problemas são resolvidos pela pesquisa e experimentação, a família é o ponto de referência para sua localização pessoal, seja no mundo natural ou no mundo cultural. Para Dewey, se a escola não for uma extensão da família e ligada à comunidade, ela não cumpre seu papel educacional prioritariamente, cumpre outros. Tal qual Kant que diferenciava a educação positiva da educação negativa, sendo a primeira de socialização e a segunda de disciplinarização, Dewey pensava uma escola diversa da institucionalizada como tal: Now if we organize and generalize all of this, we have the ideal school. There is no mystery about it, no wonderful discovery or pedagogy or educational theory. It is simply a question of doing systematically and in a large, intelligent and competent way what for various reasons can be done in most households only in a comparatively meager and haphazard manner. Se organizarmos e generalizarmos tudo isso (educação em família), temos a escola ideal. Não há nenhum mistério, nem uma descoberta maravilhosa ou uma teoria pedagógica ou educacional. É uma simples questão de fazer, sistematicamente, de uma forma competente, inteligente e abrangente o que, por diversas razões, pode ser feito na maioria dos lares de maneira aleatória e sem conteúdo.20

Segundo Boisvert , temos de manter em mente que Dewey 21

20 Id. Ibid. 21 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998.

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não aceita a continuação das práticas educacionais atuais, mas que as modificações devem ser motivadas por considerações tradicionalistas (familiares e fraternais). Não há educação sem o uso, ao mesmo tempo, do intelecto, da emoção, do afeto, das práticas manuais (do manuseio) e da moral (do trato pela convivência e do se importar com o outro). Enquanto filósofo, Dewey não separa a “educação” da “vida”, seus esforços para mudar a educação visam mudar a vida humana em geral.

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O contexto epistemológico Através das considerações a partir da Antropologia Filosófica e da Filosofia Política, enquanto instrumentos de uma investigação metahistórica, podemos reconhecer que toda e qualquer teoria de educação reflete uma visão específica da natureza humana. As diferentes propostas de educação de Locke, Rousseau, Herbart, Pestalozzi, Freyre, Saviani são diferentes apenas por serem fundadas em antropologias e políticas diversas. Compreender a antropologia filosófica desenvolvida por Dewey é o caminho para compreender sua visão educacional. Por um lado, a filosofia da educação deve estar consciente das possibilidades e limitações humanas; por outro lado, deve estar consciente do sistema político que estabelece os objetivos educacionais: The conception of education as a social process and function has no definite meaning until we define the kind of society we have in mind. A concepção de educação enquanto processo e função social não é definitiva até definirmos que tipo de sociedade temos em mente.22

22 Id. Ibid.

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Através da Antropologia Filosófica observamos a rejeição de Dewey ao dualismo e, por consequência, a qualquer conceito ou atitude assomática ou desincorporada. Rejeitando todo e qualquer dualismo, Dewey reavalia os conceitos “corpo” e “mente”. Em toda sua obra, Dewey encara o dualismo com o principal obstáculo ao conhecimento, em termos deweyanos, um obstáculo à experiência de conhecer. O dualismo é, em si, uma quebra da continuidade, um lapso de discurso com utilidade retórica e nada tem a ver com realidade. Desde os primórdios das civilizações, quando xamãs ou sacerdotes governavam as populações, há distinções entre coisas espirituais e coisas materiais. A partir disso, as pessoas se encaixavam em diferentes “classes” ou categorias: clérigos e camponeses, filósofos e cientistas, professores e engenheiros, ricos e pobres. Este dualismo faz parte da formação cultural humana como se fosse “natural”, com se a oposição antagônica fizesse parte da natureza e não apenas dos limites da linguagem. Para Dewey, o dualismo é apenas uma subordinação do real à linguagem, o equivalente à ignorância. Portanto, ele combate as diferenças entre Antonio Valter Kuntz

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“sagrado” e “profano”, “ideias” e “coisas”, “teoria” e “prática”, “intelecto” e “ação”, “corpo” e “mente”, “conhecer” e “fazer”. Descaracterizar os dualismos é tarefa permanente em todos os escritos de Dewey. Since the root of the traditional conception of philosophy is the separation that has been made between knowledge and action, between theory and practice, it is to the problem of this separation that we are to give attention. Our main attempt will be to show how the actual procedures of knowledge interpreted after the pattern formed by experimental inquiry, cancel the isolation of knowledge from overt action. Desde que a raiz da concepção tradicional de filosofia é a separação que tem sido feita entre conhecimento e ação, entre teoria e prática, é a este problema da separação que daremos atenção. Nossa principal tentativa será demonstrar que os reais processos de conhecimento interpretados pelo surgimento do padrão científico experimental eliminam o isolamento do conhecimento da ação manifesta.23

Sem a compreensão do monismo deweyano em sua essência, fica impossível compreender suas propostas pedagógicas e sociológicas. No caso escolar, por exemplo, Dewey rejeita o dualismo entre ensino vocacional e ensino construtivista, entendendo-se “vocação” como determinação genética ou “espiritual”, e “construtivismo” como contingente, a ser construído. Propriamente compreendido, a fusão entre vocação e 23 in John.The Quest for Certainty (1933), capítulo 2. Capricorn Books, 1960.

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construção é uma simples questão de uso da tecnologia produzida pela humanidade. Uma pessoa autônoma pode escolher o ensino vocacional, mas o faz para resolver problemas de como sobreviver da melhor forma que puder, de fato. Seja um currículo vocacional – dirigido – ou livre (liberal), o importante é sua relação com a resolução de problemas do mundo real. Não há dualismo. Lemos em “Experiência e Educação” que uma filosofia da educação precisa de palavras e símbolos mas, além disso, precisa de um plano de ação (pedagógica). E sem a noção correta da experiência enquanto fenômeno biológico-social, segundo Dewey, tudo não passará de jogos de palavras ou criação de dualismos. Diferente da rotina da educação tradicional, que pode até prescindir de uma filosofia que a sustente, a educação progressiva (continuada) não sobrevive com improvisos. É preciso fazer uma filosofia da educação baseada numa filosofia da experiência (de, por e para experiência). É mais difícil fazer escolhas (experiências) para a nova educação que para a tradicional, mas isso não significa não fazer nada que esta faria. A nova educação é simples, mas não é fácil. Quando o institucional e o complexo já estão estabelecidos é mais fácil Antonio Valter Kuntz

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seguir suas determinações e organização que experimentar novos métodos e organizar-se a partir deles. Educar é educarse. Para Dewey há dois princípios importantes para a formulação de uma filosofia da educação baseada na experiência: Em primeiro lugar deve ser considerada a acepção de que toda experiência é uma continuidade, não tem exatamente um começo e um fim, ou uma determinação. A experiência não é uma unidade, mas apenas o registro linguístico do instante, e tal qual o instante, não se separa da linha do tempo, o qual, deweynamente lembrando, não é propriamente uma linha. Este é Princípio de Continuidade ou o continuum experiencial: é a discriminação entre valores “inerentes” e valores “diferentes” de experiência. Trata-se propriamente do ato, da ação relativa a algo, ou seja, toda e qualquer experiência toma algo das experiências passadas e modifica de algum modo as experiências subsequentes. O crescimento biológico, cultural ou tornar-se adulto é um exemplo de continuidade, pois nenhum crescimento natural é direcionado (tem um ponto de chegada) que determina o mesmo crescimento contínuo. O objetivo do Antonio Valter Kuntz

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rio não é o de encher o oceano. Dewey aponta, ainda, que a deslealdade manifesta à experiência – e ao ato de educar – é o desconhecimento, por parte do educador, das próprias experiências; e também a desconsideração da experiência pessoal do educando. A qualidade da nova educação depende da qualidade dos pais e mestres em compreender a experiência pessoal e, por consequência, social. Toda experiência é socialmente produzida e cabe ao educador reconhecer as situações concretas de cada ambiente, urbano ou rural, auto-suficiente ou carente, sem as demarcações limitadas e dualistas de cada situação, o que se ignora pedagogicamente e pejorativamente na educação tradicional, seja por igualitarismos de alcova, seja por desigualdades aceitas. Sem preconceitos, enfim, mas de reconhecimento de particularidades. Em segundo lugar há o Princípio de Interação: em que as condições objetivas não devem estar subordinadas às condições internas dos indivíduos, mas subordinadas às suas interações e relações com os demais. Este é um ponto importante da desmitificação deweyana e sua proposta de nova educação. Enquanto a educação tradicional enfatizava as condições exAntonio Valter Kuntz

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ternas e a pretensa escola nova buscava as condições internas ou psicológicas, a nova educação (sic) investiga, regula e ordena as condições objetivas fundamentadas nas experiências compartilhadas (pais, médicos, amigos, mestres e educandos). Portanto, é um erro considerar deweyana a educação centrada nos interesses do aluno. Interatividade é a palavra chave. Não há pontos de partida que não a relação educando-educador. Trata-se muito mais de uma espécie de “pedagogia transacional”, se podemos ousar a usar tal terminologia, sem as limitações conceituais da análise transacional . 24

A título de informação, a análise transacional é um método psicológico criado por Eric Berne (1910-1970), médico, psiquiatra canadense. Nas últimas quatro décadas a teoria de Eric Berne desenvolveu-se incluindo importantes aplicações em psicoterapia, aconselhamento, educação, e desenvolvimento organizacional. I'm OK - You're OK é provavelmente a mais conhecida das propostas da análise transacional - estabelece a posição que reconhece o valor e a capacidade de cada pessoa. Analistas transacionais ensinam às pessoas que são basicamente OK 24 HISTORY OF ERIC BERNE, Founder of Transactional Analysis - The International Transac-tional Analysis Association ( http://www.itaa-net.org/ta/keyideas.htm).

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e, portanto, capazes de desenvolvimento de potencial em suas áreas de expressão. Em seu método, o psiquiatra ou o psicólogo deve relacionar-se com o cliente, em termos do que intui a respeito de seus sentimentos e experiências, em lugar de usar as noções de categoria do diagnóstico psiquiátrico ou psicanalítico, uma postura que a análise transacional teve em comum com psicanálise existencial de Ronald David Laing, esta fundamentada na corrente existencialista de Jean-Paul Sartre. No Brasil, algo semelhante é desenvolvido pela filosofia clínica. Continuando com Dewey: [...] a observação do que se passa em certas famílias e escolas revela que alguns pais e alguns professores procedem de acordo com essa ideia de subordinar as condições objetivas às condições internas (quando a criança quer. N.R). [...] As necessidades da criança, de alimento, de descanso e atividade, são certamente primárias e decisivas em certo respeito. A criança tem de ser alimentada, tem de ter condições adequadas para dormir, etc. Mas, isto não significa que deva ser alimentada a todo momento que estiver aborrecida ou indisposta. De modo a não se poder ter programa de horas regulares para alimentação, sono, etc. A mãe tem em conta as necessidades (e interesses, N.R.), mas não de modo a dispensar a própria responsabilidade em regular as condições em que as necessidades são atendidas. [...] Em vez das condições objetivas estarem subordinadas às imediatas condições internas da criança, são elas definidamente ordenadas de modo a que a espécie particular de interação (N.R.) com os estados imediatos internos se processe normalmente.25

25 DEWEY, John. Experiência e Educação. Trad. Anísio Teixeira. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976.

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Ora, os dois princípios, continuidade e interação não se separam um do outro. A unidade substancial do processo decorre do fator individual. Uma personalidade integrada existe quando as sucessivas experiências integram-se umas com as outras. A preocupação, responsabilidade imediata, do educador é com a situação em que a interação ocorre. Cabe a ele determinar o ambiente de acordo com as capacidades (de se interessar, aqui sim) dos educandos a fim de promover interação e continuidade. A escola tradicional prescreve certas matérias por seu valor em si, independente do educando, que deve seguir a prescrição ou estar em falta. A escola tradicional objetiva preparar para o futuro, mas com matérias estanques, desvinculadas da experiência do educando e não promove continuidade, sendo tais matérias esquecidas e mal ou pouco utilizadas em posteriores experiências pessoais. Trata-se de uma falácia pedagógica o aprendizado particular (específico) separado do geral. Mais importante que decorar fórmulas ou gramáticas é incentivar a atitude de continuar a aprender a ponto de alterar as línguas e os números do mundo, em beneficio da comunidade humana. O verdadeiro sentido de preparação no quadro educacional é a educação como crescimento ou conquista da maturidade, que Antonio Valter Kuntz

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é um processo contínuo e sempre presente – e não se resume à escola institucionalizada ou à sala de aula. A verdadeira ou real educação seria a atividade desenvolvida pela manutenção da convivência real ou virtual. Do que emergem novos temas referentes à educação propostos por Dewey, a de que ela seja mais voltada para ocupações e menos para vocações; ou seja, que não seja “preparação” para algo, mas seja um fim em si mesma, uma “ocupação”, uma convivência produtiva.

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Monismo versus Dualismo O monismo é a chave de compreensão de todo o pensamento deweyano, consequentemente, a herança empirista ou naturalista confronta abertamente a herança cartesiana e dualista. O monismo é a doutrina filosófica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, quer do ponto de vista da sua substância (e o monismo poderá ser um materialismo ou um espiritualismo), quer do ponto de vista das leis (lógicas ou físicas) pelas quais o universo se ordena (e o monismo será lógico ou físico). Como exemplos, temos o monismo neutro de William James, segundo a qual a natureza é formada por substância única, que apresenta ora atributos psíquicos, ora atributos físicos; o monismo panteísta de Espinosa e os diversos modos de uma mesma substância, podemos ainda enquadrar, nesta o materialismo evolucionista de Darwin, Haeckel e Dennet, o logos de Heráclito, as teorias contemporâneas para desenvolvimento da inteligência artificial etc. A partir do monismo, podemos identificar que Dewey investe

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numa verdadeira “cruzada” contra o que ele considerava falso e artificial: o conceito de “homem moderno”, ou seja, o homem dualista, interno e externo, mente e corpo – ao mesmo tempo – um “sujeito” separado do mundo “externo”, composto de “objetos”. Para Dewey , tal bifurcação, no sentido de problema numa 26

estrada sem sinalização, desembocou numa epistemologia do tipo “teoria do conhecimento do espectador”, como se o homem estivesse em um auditório e a realidade em um palco. Como espectador, privilegia apenas os olhos e os ouvidos, como se estes não fizessem parte do corpo, tornando-se sentidos privilegiados, voltados à cognição. É dessa epistemologia que surgem tratados sobre educação que tomam como valores o distanciamento, a objetividade, a neutralidade e a passividade. Apenas o homem como espectador pode se elevar acima do dia-a-dia comum para se tornar um “ser” receptivo aos dados (imagens e sons). Caberia agora uma digressão a Pitágoras e sua definição de fi26 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998.

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lósofo, daquele que não faz parte dos jogos (olímpicos), mas os vê de posição privilegiada; apenas lembramos que ela compõe o arquétipo do homem, em termos modernos, esclarecido ou iluminista e destacamos este ponto para orientar o leitor para onde vamos, isto é, com Dewey e seu monismo, tomando cuidado com interpretações categóricas dualistas, pois não são suficientes e nem eficazes para compreensão do pensamento deweyano. Para entender Dewey propriamente devemos enfatizar como ele substitui o dualismo cartesiano que considera um protótipo assomático ou desincorporado, por um modelo pós-Da27

rwin, incorporado (e mesmo tal palavra “in” “corpo” tem lá seus problemas genealógicos). Do ponto de vista monista, não há uma bifurcação na condição humana. O ser humano é um ser concreto que vive uma vida concreta. Tal criatura não é puramente uma “pura mente” desafiada por verdades eternas. Tal criatura é o ser humano, preocupado em assegurar a si mesmo uma vida enquanto ser cultural e social. 27 Traduzido literalmente do inglês Asomatic Attitude, significando sem corpo (soma), ação desincorporada ou não corpórea.

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Metalinguisticamente , os elementos centrais da epistemolo28

gia deweyana podem ser resumidos em dois: Primeiro, a atitude assomática ou ação desincorporada é rejeitada. Internalidade e atividade externa são partes inseparáveis da condição humana. Na tradição dualista, o corpo é um aborrecimento que interfere com a pureza ou clareza das ideias. Na tradição pós-darwinista, a atividade externa é um composto com a atividade interna, lembrando que as palavras interna e externa aqui cumprem apenas um papel metalinguístico. Pois sem corpo não há “interno”, não há mente; e a tradição empirista já vem demonstrando há milênios o sucesso da experimentação factual, do manuseio da realidade concreta para obtenção de conhecimento possível. Portanto, a metáfora famosa do pensador sentado , isolado, voltado para 29

seus pensamentos, não serve para representar o “pensamento” ou o “filósofo” ao estilo considerado por Dewey. Segundo elemento, a comunidade é o foco. Associação e interação são características orgânicas da vida humana. Uma vez

28 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998. 29 Alusão à estátua O Pensador, de Rodin.

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que os indivíduos humanos estão ligados queiram ou não a outros indivíduos humanos, a busca da verdade só tem sentido em conjunto, jamais individualmente. O pensador solitário não é propriamente humano, ou seja, é um ser desprovido de humanidade, os verdadeiros pensadores são os agentes sociais, questionando, criando e articulando verdades entre as pessoas de sua comunidade – seriam os Sócrates sem a visão literária de Platão ou qualquer traço de uma alegoria solipsista. Tudo isso tem sido marginalizado na idade moderna, o que trouxe sérias complicações para a educação contemporânea. A mais grave é a forma como as palavras mente ou pensamento são usadas ou compreendidas, confundidas com o fantasma da máquina, ou olhos e ouvidos internos independentes do corpo. O que transforma a mente em “tábula rasa ou vazia, pronta a ser preenchida pelo conteúdo escolar” ou em algo espiritual, com propriedades ou atributos diversos da dimensão orgânica. Entretanto, se considerarmos o contexto deweyano, “mente” e “pensamento” são muito mais atividades que coisas, mais verbos que substantivos , pois “denotam os modos como lida30

30 Mind, em inglês, significa mente, disposição de espírito, perceber e importar-se;

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mos e expressamos as situações em que nos encontramos”.

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Dewey, enquanto pragmático, utiliza os termos segundo o senso comum e não os utiliza segundo os cânones tradicionais da filosofia dualista, pois o senso comum não reflete a separação mente e corpo. Quando alguém, sem o cuidado acadêmico, diz “eu penso” (I think/mind = eu acho/me importo), está se posicionando espacialmente, no mundo, de forma prática, intelectual e emocional. Uma criança “pensa” nos pais, os pais “pensam” sobre os filhos, um turista “pensa” em se acomodar melhor no ônibus, um cientista “pensa” como resolver um problema. Este uso múltiplo da palavra “pensar” indica muito mais atividades que condições internas de uma tábula rasa e nem permite a distinção entre mente e corpo. In short, to mind, denotes an activity that is intellectual, to note something; affectional, as caring and liking, and volitional, practical, acting in a purpose way. Em resumo, pensar denota uma atividade que é intelectual, voltada para algo, afetiva para cuidar e gostar, e volitiva, prática, atuando com propósito.32

A partir do núcleo familiar e, por extensão, comunitário, as tought, significa pensamento, pensado (p. passado de to think.). 31 DEWEY, Art as Experience in BOISVERT, 1998. 32 Idem.

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crianças, as pessoas, são tratadas como seres unificados e únicos. As pessoas são reconhecidas, são pensadas, por suas “ocupações”, o que elas fazem, e não por suas “vocações”, o que aspiram fazer. Lembrando que “ocupações” não significam uma forma simples de vocação, da espécie de treinar jovens a “ocupar” os empregos que esperam por eles. Aliás, Dewey se apresenta abertamente contra a priorização do que é conhecido como ensino técnico, resistindo ao tecnicismo, bem como outros ismos, lembrando que subordinar a educação a isso implicaria no agravamento da desigualdade social, pois, ao se utilizar um critério oligárquico-aristocrático – confundindo ocupações com vocações – só resultaria numa sociedade oligárquica-aristocrática, jamais numa sociedade democrática. Um sistema educacional que diferencia vocação estrita de vocação lata, apenas reflete o dualismo corpo e mente, dividindo – criando um abismo entre – a classe trabalhadora e a elite cultural, em tempo, como se tais divisões numa sociedade existissem de fato. O que não ocorre numa visão monista atenta ao princípio de continuidade e a consideração de não confundir discurso com realidade. Esta mesma realidade que Antonio Valter Kuntz

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exige eficiência, ou seja, que funcione, dê certo, em termos pragmáticos e deweyanos, para todos, democraticamente; jamais em termos mecanicistas ou tayloristas.

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Tradição versus tradução Além da equivocada compreensão generalizada da obra deweyana provocada pelo desconhecimento do monismo e suas consequencias epistemológicas, diversos erros de tradução do inglês para o português também comprometeram a assimilação correta da obra de John Dewey no Brasil. The aim of efficiency (like any educational aim) must be included within the process of experience. When it is measured by tangible external products, and not by the achieving of a distinctively valuable experience, it becomes materialistic. O objetivo da eficiência (como qualquer objetivo da Educação) deve estar incluído no processo de experiência. Quando ele é medido por resultados externos e tangíveis, e não pelo valor da própria experiência, torna-se materialistico (mero dado, não fato. N. do T.).33

Perceba, o sentido de “materialístico” – e não materialista, como na tradução de Teixeira, que faz pensar numa relação com o materialismo – neste texto implica uma adjetivação geral das doutrinas de cunho teleológico e sua dualidade intrín33 DEWEY, John. Democracy and Education (1916) [online] Disponível na Internet via http://selfknowledge.com/ dmedu10.htm. Arquivo capturado em 19 de junho de 2001. chapter 9.

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seca, tipo espiritual-material ou ideias-coisas; outro detalhe, o termo “eficiência” em Dewey é referente aos meios e não aos fins, são meios eficazes que permitem resultados melhores – lembre-se do continuum experiencial – e não metas ou objetivos ideais que condicionam os meios, pois se desprovidos de eficiência em si, não garantem os fins. Translated into specific aims, social efficiency indicates the importance of industrial competency. Persons cannot live without means of subsistence; the ways in which these means are employed and consumed have a profound influence upon all the relationships of persons to one another. If an individual is not able to earn his own living and that of the children dependent upon him, he is a drag or parasite upon the activities of others. He misses for himself one of the most educative experiences of life. If he is not trained in the right use of the products of industry, there is grave danger that he may deprave himself and injure others in his possession of wealth. No scheme of education can afford to neglect such basic considerations. Yet in the name of higher and more spiritual ideals, the arrangements for higher education have often not only neglected them, but looked at them with scorn as beneath the level of educative concern. With the change from an oligarchical to a democratic society, it is natural that the significance of an education which should have as a result ability to make one's way economically in the world, and to manage economic resources usefully instead of for mere display and luxury, should receive emphasis. There is, however, grave danger that in insisting upon this end, existing economic conditions and standards will be accepted as final. A democratic criterion requires us to develop capacity to the point of competency to choose and make its own career. This principle is violated when the attempt is made to fit individuals in advance for definite industrial callings, selected not on the basis of trained original capacities, but on that of the wealth or social status of parents. Antonio Valter Kuntz

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As a matter of fact, industry at the present time undergoes rapid and abrupt changes through the evolution of new inventions. New industries spring up, and old ones are revolutionized. Consequently an attempt to train for too specific a mode of efficiency defeats its own purpose. When the occupation changes its methods, such individuals are left behind with even less ability to readjust themselves than if they had a less definite training. But, most of all, the present industrial constitution of society is, like every society which has ever existed, full of inequities. It is the aim of progressive education to take part in correcting unfair privilege and unfair deprivation, not to perpetuate them. Wherever social control means subordination of individual activities to class authority, there is danger that industrial education will be dominated by acceptance of the status quo. Differences of economic opportunity then dictate what the future callings of individuals are to be. We have an unconscious revival of the defects of the Platonic scheme (ante, p. 89) without its enlightened method of selection.34

Abaixo, como ilustração de uma das pretensões desta dissertação em demonstrar a necessidade do estofo epistemológico para o correto entendimento de Dewey, reproduzo a tradução de Anísio Teixeira deste trecho de Democracia e Educação, 35

colocando em negrito as palavras (e sentidos) adicionadas pelo tradutor que não constam no original, portanto refletem sua (in) compreensão, deslize interpretativo ou complemento ideológico, provavelmente sem má fé, mas que infelizmente 34 Idem 35 DEWEY, John. Democracia e Educação / Introdução à Filosofia da Educação. (Atualidades Pedagógicas, vol. 21). Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 4a. Edição. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1979.

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deturpam o discurso original que trata dos objetivos da educação, e não outros: Traduzida em objetivos específicos, o objetivo geral da eficiência social revela a importância da capacidade industrial ou econômica. Ninguém pode viver sem meios de subsistência; o modo por que estes meios são empregados e consumidos têm profunda influência sobre todas as relações recíprocas entre pessoas. Se um indivíduo não for capaz de ganhar sua própria subsistência e a dos filhos que dele dependem, será um fardo para os outros, um parasita da atividade dos demais. Falta-lhe uma das mais educativas experiências da. Se não está exercitado a fazer bom uso dos produtos da indústria, há o grande perigo de que se possa perverter e prejudicar, com a sua posse de riquezas, os outros homens. Nenhum plano de educação pode esquecer estas considerações básicas. Entretanto, em nome de ideais superiores e espirituais, as disposições para a educação superior com frequência não só as negligenciam, como também as encaram com desprezo, por julgá-las abaixo do nível das preocupações educativas. Com a mudança de uma sociedade oligárquica para outra democrática, é natural que seja dado realce à significação de uma educação cujo resultado será a capacidade para se prosperar economicamente e utilizarem-se eficazmente os recursos econômicos, em vez de empregá-los em mera ostentação e luxo. Existe, contudo, o grave perigo de que, insistindo-se neste fim, se considerem como definitivas as condições e craveiras econômicas existentes. Um critério democrático exige que desenvolvamos nossas capacidades até nos tornarmos competentes para escolher e seguir nossa própria carreira. Viola-se este princípio quando previamente se tentam adaptar os indivíduos a determinadas profissões industriais, não escolhidas com as aptidões inatas exercitadas, e sim de acordo com a fortuna ou categoria social dos pais. O fato é que a indústria atualmente sofre rápidas e abruptas mudanças devido ao aparecimento de novas invenções. Surgem indústrias novas e as velhas sofrem uma revolução. Por consequência, as tentativas de se

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exercitarem os indivíduos para modos muito especializados de eficiência vêem malogrado seu propósito. Quando a ocupação muda seus métodos, esses indivíduos ficam em atraso e com menos aptidão ainda para readaptar-se do que se tivessem tido educação menos especializada. Todavia, mais do que tudo, a presente organização industrial da sociedade é, com toda sociedade que haja existido, cheia de iniquidades. É objetivo da educação progressista contribuir para abolir privilégios indevidos e as injustas privações e, não, para perpetuá-las. Onde que a direção social importe na subordinação das atividades individuais às classes detentoras da autoridade, existe o risco de ser a educação industrial dominada pela conformidade com o status quo. As diferenças de oportunidades determinam compulsoriamente, nesse caso, as futuras profissões dos indivíduos. Temos um inconsciente ressurgir dos defeitos do plano de Platão, sem seu inteligente método de seleção.

Teixeira, ao usar o termo “inteligente” no lugar de “iluminado” (termo pejorativo) e não mencionar a referência, permite uma interpretação confusa do texto deweyano, o leitor pode notar que no texto original, Dewey se referencia ao que ele próprio escreveu de Platão, no capítulo sete de Democracia e Educação, ou seja, uma crítica respeitosa mas plena de ironia e humor americanos: Although his educational philosophy was revolutionary, it was none the less in bondage to static ideals. He thought that change or alteration was evidence of lawless flux; that true reality was unchangeable. Embora sua (de Platão) filosofia educacional fosse revolucionária, era nada menos que escrava de estáticos ideais. Ele

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achava que a mudança ou alteração eram evidência de ausência de leis (um fluxo sem controle, referência a Heráclito) e que a verdadeira realidade era imutável.

Filigranas? Talvez para o leitor desinteressado em ler Dewey através de Dewey, não para o pesquisador mais preocupado com epistemologia que confirmar ideologias. No caso do termo “progressista” retorno ao sentido original de progressive education, que é melhor traduzido como “educação continuada” e nada tem a ver com qualquer positivismo de algibeira. Nas traduções ninguém (Person) e capacidade industrial (industrial competence) o essencial é identificar que a transformação da linguagem coloquial de Dewey para uma versão erudita prejudica o espírito humanista do texto. No caso, Dewey fala de pessoas, não de ninguém, e a capacidade industrial tem a ver com a competência pessoal de criar e produzir coisas ( industry = skill ), a eficiência social depende de pessoas, não de um esquema ou aparelho social ou estatal. That’s Dewey! Praticamente, até onde o tempo e a oportunidade me permitiram verificar, além das de Teixeira que as fez apaixonadamente, provavelmente, todas as traduções e interpretações lidas Antonio Valter Kuntz

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por mim, em língua portuguesa, da obra deweyana têm deslizes; ou de hermenêutica epistemológica ou de deturpação ideológica, sem contar os azares da conversão de um inglês coloquial e neologista para um português culto. Até mesmo o professor Marcus V. Cunha , um dos mais atuais e lúcidos comentadores de Dewey em língua portuguesa, ao escrever John Dewey: Uma Filosofia para Educadores em Sala de Aula, comete, com este título e pela proposta da obra, uma deturpação do pensamento deweyano ao subordiná-lo a salas de aula e apresentá-lo como “teoria” aplicável na “prática”. É a tradição dualista interferindo na compreensão de Dewey.

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Ocupação versus vocação Retomemos, então, o que Dewey entende por ocupação versus vocação. Sendo a primeira, sinônimo de educação e a segunda, de treinamento. Por isso, a escola tradicional, organizada para vocações, de forma piramidal, segundo uma assomatic attitude, tem sérias limitações: sua prática cria um ambiente artificial baseado numa falsa visão de natureza humana (e da sociedade), enquanto espectadora; a mente é tratada como sendo um recipiente e o corpo, uma máquina, pronta para ser azeitada e adaptada para funções específicas; além de ir de encontro (contra) à construção de uma sociedade democrática, e contribuindo para a divisão de classes com geração de elites “intelectuais” não produtivas. Para além de tudo isso, Dewey apresenta uma concepção alternativa de natureza humana: a de uma unidade psicossomática, um ser com impulsos naturais e interesses cuja formação deve ser consistente com sua atividade e natureza questionadora. Quando entra no sistema tradicional de ensino, a criança, a pessoa deixa sua “mente”, vida real, no sentido deweya-

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no, fora da sala de aula. Boisvert cita Dewey em Experiência e Natureza: “Se ela (a pessoa, a criança) tivesse uma mente puramente abstrata, separável do contexto fisiológico, poderia trazê-la para a escola, mas sua mente é concreta, fisiológica, biológica, interessada em coisas concretas e, a menos que estas coisas estejam na escola, ela não leva sua mente com ela”. E não esqueçamos, “mente” para Dewey significa “corpo e mente”, sua atitude, seu “ser”, seu interesse, seu conatus, a la Espinosa. A mente sente vontade de ir ao banheiro, a mente sente-se confortável ou com fome, a mente dirige o olhar. Talvez, não fosse o peso dualista e tradicional do termo alma, poderíamos utilizá-la como tradução mais consistente do termo mind. Pois alma, etimologicamente, significa “o que respira”, ou o que está vivo e não uma parte do que estaria vivo.

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O modo de ser da escola que efetivamente contribua para a formação dos indivíduos seria aquela “centrada em ocupações”, em atividades, não sendo confundida com preparação para o trabalho. A criança deve ir para a escola mais para fazer alguma coisa do que aprender sobre coisas. A ocupação deve ser um empreendimento que direciona para o cumprimento 36 ZINDLER, Frank R. Espírito, Alma e Mente in The Probing Mind, 1985. Disponível na internet em http://www.str.com.br/Scientia/mente.htm. Acesso em 28 de julho 2004.

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de objetivos da própria ocupação. Cozinhar, construir, jardinar, costurar são exemplos de ocupações apresentadas por Dewey. Uma ocupação reproduz um paralelismo com as atividades de uma vida em sociedade, mantém um equilíbrio entre a prática e a teoria pela continuidade da experiência. Boisvert cita Dewey em Experiência e Natureza: ”A ocupação assim concebida, portanto, deve ser distinta do trabalho que educa para o trabalho”.

O que Dewey deseja é criar um contexto no qual o que se aprende faça parte das experiências do aluno, a partir de tais experiências o aluno estará apto a reconhecer a importância do planejamento, da pesquisa, dos estudos e assim absorvêlos como parte de si mesmo. Lições abstratas, memorizações, listas de datas e nomes são feitas para mentes “vazias”, não são a melhor solução pedagógica para pessoas que precisam de formação integral. Qualquer sistema de ensino deve ser construído sobre a curiosidade natural e interesses dos indivíduos – professores e alunos – reconhecendo que o aluno é um participante ativo, não é um espectador passivo; e o professor é alguém com mais experiências vividas, e não o dono ou transmissor de verdades Antonio Valter Kuntz

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absolutas. Escolas onde as ocupações ocupam lugar central das atividades diárias fazem isso. Uma ocupação, como jardinagem, não implica em treinar futuros jardineiros, implica em despertar o interesse pela botânica, pela biologia, pela geografia, pela agricultura, pela nutrição, pela estética etc. Implica em alimentar e instrumentalizar as aptidões naturais de cada um para aproveitamento futuro. A partir das ocupações o educador pode perceber os interesses naturais dos alunos e investir na condução da curiosidade para assuntos intelectuais sem desconectá-los da realidade vivida.

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O Contexto Social da Educação A partir de um relatório de Dewey para o presidente da Universidade de Chicago, Boisvert nos transcreve a explicação deweyana do ensino a partir de ocupações na Escola Elementar Experimental, revelando-o como uma série de círculos concêntricos. O primeiro círculo envolveria investigar os interesses dos alunos de maneira a selecionar os assuntos e métodos que otimizariam a curiosidade natural. Interesses dos alunos presentes, reais, evitando classificações psicológicas a granel ou ao estilo piagetiano. O segundo círculo seria o da organização da didática em si e sua aplicação. Tratase de planejar o que fazer junto com os alunos para colocá-los em ação. O terceiro círculo seria o início da especialização, ou da associação da teoria com a prática e vice-versa.

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Intervindo durante as ações (ocupações) com explicações ad hoc. O quarto círculo corresponderia ao estágio de indicação e uso de livros, abstrações, leituras, cálculos. O desafio seria manter a continuidade entre a curiosidade “inicial” e o livro “final”, o que revela que a ilustração com círculos não implica em uma leitura espacial-cronológica dos mesmos. Os estágios estariam interligados e seriam intercambiáveis, como se fossem fatias de uma esfera. Percebemos que embora Dewey apresente um sistema, ele não funciona de modo mecanicista, tornando imprescindível a presença criativa de um professor com talentos e conhecimentos acima da média da escola tradicional. Tanto uma criança como um adulto só vão fazer algo se este algo lhes propicia integração em uma determinada composição grupal, o professor prepara o ambiente para a interação do grupo a partir do grupo. E a partir dos resultados da interação propicia a abertura para novos conhecimentos e novas experiências. Se as ideias de Dewey fossem realmente praticadas e não apenas comentadas de forma superficial, as salas, diga-se, os Antonio Valter Kuntz

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espaços ou ambientes de aula seriam centros de ação, onde estudantes se engajariam em atividades e experiências, mentais e físicas. Obviamente, salas lotadas, disciplinas estanques e cronogramas tayloristas não condizem com a nova educação proposta por Dewey. Atualmente e desde muito tempo, uma sala de aula ainda é um espaço físico restritivo e, por extensão, limitador de potencialidade, portanto, “hostil à existência de experiências reais, valorizando a passividade e a reprodução” . 37

Para incorporar uma nova educação, filas de carteiras deveriam ser eliminadas, paredes derrubadas e os arquitetos de edifícios escolares não poderiam esquecer das bibliotecas, das oficinas, das cozinhas, dos jardins e dos laboratórios enquanto espaços pedagógicos e interdisciplinares por excelência. Permitir e acompanhar os alunos na “ocupação” de espaços e na sua adaptação aos próprios interesses e objetivos seria uma das lições mais importantes da nova educação. Se educação é ocupação, sua finalidade não extrapola a fina37 DEWEY, John. Democracia e Educação / Introdução à Filosofia da Educação. (Atualidades Pedagógicas, vol. 21). Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 4a. Edição. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1979.

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lidade da própria ocupação: proporcionar o máximo de experiências e uma constante reorganização e reconstrução das mesmas. A finalidade da educação não está fora do processo educacional, nenhuma verdadeira educação é instrumental. Dewey rejeita a ideia de educação como uma escada de acesso a novos patamares, posto que os conjuntos de experiências não se somam em quantidades determinadas, mas se mesclam em um todo de entendimento qualitativo. Toda experiência é uma atividade presencial . Infância, juventude e maturidade 38

se determinam a um mesmo nível educacional, primeiro porque o que é realmente aprendido em cada estágio de experiência se constitui no valor da experiência; segundo, é regra geral da vida atribuir valor, dar significado, somente àquilo que enriqueça a própria percepção de viver, e isso independe de idade ou “quantidade” de experiência vivida . 39

Infancy, youth, adult life, – all stand on the same educative level in the sense that what is really learned at any and every stage of experience constitutes the value of that experience, and in the sense that it is the chief business of life at every point to make living thus contribute to an enrichment of its own perceptible meaning.

38 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998, p.105. 39 DEWEY, John. Democracia e Educação / Introdução à Filosofia da Educação. (Atualidades Pedagógicas, vol. 21). Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 4a. Edição. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1979, p. 83.

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A Infância, a adolescência, a idade adulta – tudo está no mesmo nível educativo, no sentido de que aquilo (que) realmente foi aprendido em todos e em cada um dos estágios da experiência constitui o valor dessa experiência, e também no sentido de que a principal razão da vida é, sob todos os pontos de vista, fazer que o ato de viver contribua com o enriquecimento de sua própria significação perceptível. .

Para Dewey, a definição técnica de educação é que ela é uma “reconstrução ou reorganização da experiência, que esclarece ou aumenta o sentido desta e também nossa aptidão para dirigirmos o curso das experiências subsequentes”.

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Portanto, ao compreendermos a nomenclatura deweyana, temos o termo experiência não como uma espécie de reserva para uso determinado ou produto do ato de viver, mas como o próprio ato de viver. “Ligada à história, mas não relativa a ela, a educação é produtora do movimento histórico”, – como já observado anteriormente –, e sua manifestação histórica é subentendida como modo de vida social. A consequência, lógica e necessária, neste caminho de investigação e conceitualização, nos revela o lugar da democracia 40 Idem.

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para a educação, ou seja, a importância da liberdade social para a valorização da experiência humana continuada. A opção democrática não é apenas uma escolha preferencial, mas uma condição sine qua non do desenvolvimento humano “progressivo” ou “continuado”. Ao descaracterizar o dualismo e reconstruir o conceito de experiência, Dewey conclui que o modo de vida democrático não está subordinado à história ou à geografia, mas atrelado a todo “experimentar” que potencialize o desenvolvimento pessoal e comunitário. A democracia, para Dewey, não é só uma questão de opção política, mas uma questão de circunstância ou escolha moral. A partir de Dewey, Boisvert nos apresenta que 41

o nível de democratização está ligado a três características:

1. Uma sociedade democrática é aquela que encoraja a individualidade e se opõe ao individualismo. A partir do contexto da biologia, Dewey aceita a concepção “celular” de sociedade, composta não de indivíduos independentes, mas de indivíduos relacionados. Em vez de átomos, células vivas. Esta concep41 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998, p. 106.

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ção celular de sociedade leva Dewey a distinguir o individualismo (ideal Lockeano) da individualidade que ele entende como uma maneira pessoal de contribuição social. A individualidade educa, o individualismo não compartilha conhecimento. A individualidade é democrática, o individualismo é autoritário. A individualidade é socialmente benéfica, o individualismo é anti-social.

2. Sociedades democráticas são geradoras de diversos ideais, e os mais destacados são a liberdade e a igualdade. Para Dewey, a liberdade não é apenas ausência de constrangimento. Concretamente, liberdade é a capacidade de realizar, transformar ideias em práticas. Igualdade, para ele, é o contrário de identidade (semelhança), ou seja, é o reconhecimento da unicidade e da insubstitutibilidade de cada ser humano. Liberdade e igualdade não são direitos naturais, são realizações empíricas, vivências. As capacidades que definem a extensão da liberdade são apenas possibilidades derivadas da associação humana. Os seres humanos expandem suas habilidades, a assim expandem sua liberdade, aprendendo e trabalhando com os outros seres humanos. O caráter insubstituível Antonio Valter Kuntz

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da igualdade democrática é mínimo sem o desenvolvimento das habilidades que só podem vir a ser em um meio social.

3. Um modo de vida democrático é tão diversificado que faz a sociedade possuir fronteiras complacentes ou nenhuma fronteira. As sociedades se tornam mais democráticas quanto mais interesses semelhantes são compartilhados entre diferentes grupos sociais. Sociedades com rígidas demarcações e estratificações não são democráticas, mesmo possuindo institutos legais como eleições e leis válidas para “todos”. Estas continuam a ser apenas aristocracias. As democracias podem ser julgadas pelo modo que os diferentes estratos sociais interagem entre si. Quanto mais a interatividade é fluida e livre, mais a sociedade é democrática. Onde houverem polarizações, rígidas distinções e poucos interesses compartilhados, o ideal da democracia está longe de ser alcançado. Em Democracia e Educação Dewey escreve: “It signifies a society in which every person shall be occupied in something which makes the lives of the others better worth living, and which accordingly makes the ties which bind persons together more perceptible – which breaks down the barriers of distance between them”.

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Uma democracia – significa uma sociedade em que cada pessoa se ocupará de algo que torna a vida alheia melhor e, assim, tornará os laços entre todos mais perceptíveis, quebrando as barreiras de distâncias entre as pessoas.

Embora Dewey fale de um “ideal de democracia”, seu discurso instiga à atividade democrática e não a um modelo democrático final. A única democracia possível é o agir democrático, qualquer outro agir, mesmo com motivação ou objetivo “democráticos”, não são democráticos pois não levam à democracia alguma, além de servir apenas para tornar vitoriosos pontos de vista aristocráticos. Impor “uma” democracia com a guerra ou a destruição dos opositores seria o extremo avesso “da” democracia, por exemplo. Mas defender a democracia contra a imposição de não-democratas teria o conflito como alternativa. A reconstrução dos conceitos levada a efeito por Dewey exige um cuidado maior do leitor para não interpretá-lo de acordo com o senso comum ou segundo ideologias de plantão. Termos como “democracia” e “educação” são usados por Dewey como categorias diferenciadas mas interdependentes, não há verdadeira educação sem verdadeira democracia e nem ver-

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dadeira democracia sem verdadeira educação. E “verdadeira” para Dewey, ou seja, para o pragmatismo não é sinônimo de “perfeita” ou “perfeição”. A verdade é sempre circunstancial e medida pela sua eficiência em resolver problemas práticos, mesmo que tragam outros. O barco à vela e o submarino atômico, o planador e o ônibus espacial, a aldeia e a metrópole são verdades circunstanciais derivadas da democracia de ações e de ideias em livre movimento e não de objetivos limitados a visões restritas, ideológicas ou históricas. Logo, a verdadeira liberdade não depende de permissão.

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O contexto político Para Dewey, considerar educação como preparação é reduzi-la a um treinamento, um adestramento, e seria a principal falha dos métodos pedagógicos vigentes. Ao mesmo tempo, ele não a idealiza: “The demands of an industrialized and technological society cannot be ignored.” As necessidades de uma sociedade tecnológica e industrializada não podem ser ignoradas.42

Mas como já citado, determinar quais seriam tais necessidades sem antes determinar qual a sociedade em que se vive, especificamente, implica em subordinação a demandas não estritamente sociais, nem democráticas. E por falar em democracia, lembrando nosso caminho de compreensão através da Filosofia Política, observamos que o sentido de democracia de Dewey é distinto do senso comum e muito menos se trata de um conceito de democracia formal:

42 DEWEY, John. The Need for Orientation, in John Dewey, Philosophy of Education New York: Littleman Adams, 1958, p. 89

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A democracy is more than a form of government; it is primarily a mode of associated living, of conjoint communicated experience. The extension in space of the number of individuals who participate in an interest so that each has to refer his own action to that of others, and to consider the action of others to give point and direction to his own, is equivalent to the breaking down of those barriers of class, race, and national territory which kept men from perceiving the full import of their activity. Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é primariamente um modo de viver em associação com experiências compartilhadas. Ocorre onde houver um grupo de pessoas que compartilham interesses de modo que cada ação individual corresponda a dos demais, e que cada um considere as ações alheias para direcionar as próprias, e implica em derrubar barreiras de classe, raça e fronteiras que mantenham as pessoas ignorantes de tal atividade (democrática).43

Como vemos, o conceito de democracia em Dewey implica em um sistema educacional estritamente vinculado a um sistema social, voltado para o incentivo de certos hábitos (civis enquanto democráticos) e não incentivo a outros hábitos (não democráticos). Não se trata, em Dewey, de um sistema educacional apenas para formar opinião ou esclarecer ou alienar futuros eleitores. Não se trata de direcionamento ou treinamento. O foco é a educação moral das pessoas que compartilham um mesmo sistema social, no caso, uma democracia. 43 DEWEY, John. Democracy and Education (1916) [online] Disponível na Internet via ttp://selfknowledge.com/ dmedu10.htm. Arquivo capturado em 19 de junho de 2001.

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There cannot be two sets of ethical principles, one for life in the school, and the other for life outside of school. As conduct is one, so also the principles of conduct are one . Não pode haver dois tipos de princípios éticos, um para a vida escolar e outro para a vida fora da escola. Se a conduta é única, assim também os princípios de conduta são únicos.44

44 De Moral Principles in Education in DEWEY, John. The Essential Dewey. Volume I – Pragmatism, Education, Democracy. Editado por Larry A. Hickman e Thomas M. Alexander. Estados Unidos da América: Indiana University Press, 1998

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A Educação Democrática Ao acompanhamos o raciocínio deweyano concluímos que a educação não deve ser filantrópica, aristocrática, e nem meio para tornar a sociedade livre ou democrática, idealista. Ao ser filantrópica, mantêm-se as distâncias sociais, ao ser idealista, serve à manipulação política ou religiosa na promessa de um futuro impossível. Por esta razão, somente a partir de um novo conceito de democracia, construímos um novo conceito de educação:

1. Um sistema educacional em uma sociedade democrática não deve ser apenas aberto a todos mas também se esforçar para reamente educar a todos. Mais que números, qualidade. Na prática, isso significa atender as diferentes situações com soluções específicas e não com soluções gerais. Qualquer suposição de igualdade natural dever ser rejeitada. Aceitar as diferenças é a verdadeira igualdade. Sem isso, teremos apenas um sistema de fortalecimento dos privilégios existentes e uma consequente partilha de restos aos “excluídos”.

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2. O sistema educacional deve auxiliar o desenvolvimento da liberdade e do poder para a sobrevivência pessoal, incentivar à individualidade, na medida em que a escola deve ser uma comunidade com interesses compartilhados.

3. A educação democrática deve abrir os horizontes dos estudantes, não para profissões, mas para a contribuição social através das habilidades pessoais que não são restritas a um “trabalho” ou “emprego”. História, literatura, ciência, pintura e música são os pré-requisitos para a integração social com a ênfase de que não há diferença entre os que trabalham com as mãos daqueles que trabalham com as mentes, pois não há mentes sem mãos e nem mãos sem mentes.

4. Cabe à educação democrática incentivar o hábito de se tomar decisões com os demais e favoráveis a todos. A democracia não é uma ideologia dominante e não deve se furtar a usar os instrumentos necessários, desde que democráticos (na acepção deweyana, atenção à leitura), para se tornar hegemônica.

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A prática democrática se caracteriza pelo compartilhar das decisões úteis para todos através das ações de todos, o que significa levar as minorias em conta, principalmente se estas estejam contra as decisões. Não se trata de uma maioria contra minorias, pois há maiorias e minorias. Significa também não simplificar as soluções ao definir numericamente as diferenças entre “maiorias” e “minorias” – pois em diversos casos as chamadas “minorias” são francas “maiorias”, fato que não lhes determina e nem lhes acrescenta “poder” ou “razão”. Pragmaticamente, se há divergências, o problema foi mal apresentado aos interessados em resolvê-lo, ou há interessados em não resolvê-lo, por interesses outros que não os democráticos. Se falta didática, falta democracia. Here again we have to be on guard against understanding the aim too narrowly. An over-definite interpretation would at certain periods have excluded scientific discoveries, in spite of the fact that in the last analysis security of social progress depends upon them. For scientific men would have been thought to be mere theoretical dreamers, totally lacking in social efficiency. It must be borne in mind that ultimately social efficiency means neither more nor less than capacity to hare in a give and take of experience. It covers all that makes one's own experience more worth while to others, and all that enables one to participate more richly in the worthwhile experiences of others. Ability to produce and to enjoy art, capacity for recreation, the significant utilization of leisure, are more important elements in it than elements conventionally associated oftentimes with citizenship.

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Novamente, devemos nos salvaguardar contra a compreensão muito estreita (da eficácia social) como objetivo. Uma interpretação limitada iria, em certos momentos, excluir as descobertas científicas a despeito do fato que, em última análise, a segurança do progresso social depende delas. Pois cientistas seriam considerados apenas teóricos sonhadores, isentos totalmente de eficiência social. Devemos ter em mente que eficiência social significa nada mais do que a capacidade de tornar a experiência pessoal válida para os outros, e tudo o que viabiliza a alguém participar da valiosa experiência alheia. As habilidades de criar e admirar a arte, de recreação, de usar o lazer de forma útil, são elementos mais importantes do que alguns outros convencionalmente associados à cidadania.45

Por um lado, confiar a educação à natureza ou ao acaso, seria negar a natureza da educação; por outro lado, a educação como instrumento da formação pública de cidadãos, através do Estado ou de elites, gera um modelo de adestramento para inserção social e não o desenvolvimento pessoal , além de re46

afirmar mecanismos de exclusão, com se fosse possível pensar uma sociedade “democrática” com integrados e não-integrados.

45 DEWEY, John. Democracy and Education (1916) [online] Disponível na Internet via http://selfknowledge.com/ dmedu10.htm. Arquivo capturado em 19 de junho de 2001. 46 DEWEY, John. Democracia e Educação / Introdução à Filosofia da Educação. (Atualidades Pedagógicas, vol. 21). Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 4a. Edição. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1979, p.100.

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Qual a função do Estado, qual a função das elites na construção do ideal democrático referendado por Dewey? A educação não existe no vácuo. Cada tipo de sociedade tem as características que servem de guias a ela mesma. Não existe neutralidade em educação . Mesmo com o propósito de ser 47

neutra, no sentido de valorizar a imparcialidade ética, toda educação existe sob o manto de um código moral, entenda-se como um modo de comportamento comumente aceito, compartilhado. The citizen should be molded to suit the form of government under which he lives. For each government has a peculiar character wich originally formed and wich continues to preserve it. The character of democracy creates democracy, and the character of olygarchy creates olygarchy; and always the better the character, the better the government. (Aristotle, Politics, 1337a11-17)48 Todo cidadão deve ser moldado para se encaixar na forma de governo sob o qual ele vive. Pois cada governo tem um modelo específico que originalmente o formou e o preserva. O modelo da democracia cria democracia, o modelo da oligarquia cria oligarquia; e quanto melhor o modelo, melhor o governo.

O modelo de reforma da educação sugerida por Dewey obede47 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998., p. 110. 48 Idem.

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ce à lógica aristotélica. Melhor que aprender “ideias morais”, sobre modelos de comportamento, do “dever ser”, é aprender “ideias sobre a moralidade”, sobre a convivência. Pois o caráter é moldado pela experiência compartilhada, sobre os que outros fazem e não sobre o que pensam, pois não há separação entre corpo e mente, fazer e pensar.

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Dentro de uma sociedade democrática o propósito moral é possibilitar a boa convivência e não simplesmente permitir que cada um faça o que bem entenda. O principal requisito para que uma escola funcione de modo a formatar comportamentos esperados para o ideal democrático, ou seja, a boa convivência entre diferentes, é de que ela precisa realmente ser uma comunidade democrática inseparável da sociedade em que está presente e, portanto, jamais distinguindo “deveres escolares” de “deveres sociais”. Obviamente, se a sociedade não for democrática, a escola também não o será.

49 DEWEY, John.The Quest for Certainty (1933), Capricorn Books, 1960. Antonio Valter Kuntz

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A “sala de aula”

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deweyana se constrói sobre duas bases,

um ponto de vista (monista-empirista) sobre a natureza humana e um entendimento (político-ideológico) da democracia. A educação tem um fim, mas um fim em si mesmo, não é um produto pronto, e independe da idade, pois é permanente, contínua. A educação como preparação apenas encoraja hábitos oligárquicos de competitividade e superação, encoraja o individualismo e afoga a individualidade. A ênfase na competividade individual é reforçada se na sala de aula não há incentivo ao desenvolvimento da curiosidade natural. Simplesmente responder o esperado nos cânones transmitidos é uma atividade ausente de sentido – não pragmática – e nada contribui ao desenvolvimento do conhecimento compartilhado, ao contrário, adestra servos e servidores. Trabalhar em projetos conjuntos, ao contrário, pode desenvolver o senso de contribuição, o senso de que os demais não são obstáculos ou servos, mas colaboradores, cujo objetivo se desenrola no e para o trabalho conjunto, e não no temor de notas baixas ou para impressionar o professor. O mundo de50 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998., P.112-115.

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mocrático, a ser desenvolvido ou em desenvolvimento, além da escola é um mundo compartilhado que premia aqueles que trabalham por ele. A escola não é um refúgio, mas um modo de desenvolver a abrangência do mundo democrático. Não é uma indústria de mão-de-obra. A escola deveria ser um microcosmo que refletisse o macrocosmo e que, sob controle compartilhado, encorajaria os hábitos certos, socialmente úteis, e otimizaria as chances do desenvolvimento democrático pleno. School facilities must be secured of such amplitude and efficiency as will in fact and not simply in name discount the effects of economic inequalities, and secure to all the wards of the nation equality of equipment for their future careers. Accomplishment of this end demands not only adequate administrative provision of school facilities, and such supplementation of family resources as will enable youth to take advantage of them, but also such modification of traditional ideals of culture, traditional subjects of study and traditional methods of teaching and discipline as will retain all the youth under educational influences until they are equipped to be masters of their own economic and social careers. The ideal may seem remote of execution, but the democratic ideal of education is a farcical yet tragic delusion except as the ideal more and more dominates our public system of education. Os edifícios (estabelecimentos)51 escolares devem ser assegurados com tal amplitude e eficiência de fato, não apenas no papel, para descontar os efeitos das desigualdades econômicas, e assegurar a todos, recursos e instrumentos, nacionalmente e igualitariamente, para as suas carreiras futuras. 51 Infelizmente, traduzido como “facilidades escolares” por Anísio Teixeira, o que subverte e corrompe completamente a compreensão efetiva do texto original.

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Chegar a isso não apenas exige adequada provisão administrativa dos edifícios escolares, mas também suplementação dos recursos familiares para que os jovens possam aproveitar a escola, bem como modificar os ideais tradicionais de cultura, disciplinas tradicionais de estudo, e tradicionais métodos de ensino e disciplina, e ainda manter os jovens estudando até estarem preparados para ser donos da própria vida. Este ideal pode parecer de remota execução, mas o ideal democrático de educação será falso se não, uma trágica ilusão, a menos que mais e mais tenha predominância em nosso sistema de educação pública.52

Dewey considerou três típicas histórias da educação, a da pedagogia platônica, que se determina pelo modelo social de castas e supressão do indivíduo, a da pedagogia da essência que promovia a natureza ou divindade como padrão pedagógico e a do indivíduo social, unidade do Estado. Contemporaneamente, Dewey apresenta desconfiança de que o Estado possa tomar para si o papel de zelador da educação democrática. Resultado dos movimentos históricos do século XIX, das ideologias desenvolvidas no século XVIII, o racionalismo, o individualismo e o positivismo, o Estado atual formalizou uma “democracia” dividida em partidos, que restringe os benefícios sociais aos que pertencem a uma mesma unidade política, agremiação, estado, província ou país, e restabeleceu o ideal 52 DEWEY, John. Democracy and Education (1916) [online] Disponível na Internet via http://selfknowledge.com/ dmedu10. htm. Arquivo capturado em 19 de junho de 2001, chapter 7, item 5.

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da subordinação do indivíduo às instituições. Se levarmos em conta o conceito deweyano de democracia, nenhum Estado contemporâneo é uma democracia, de fato, logo, a nenhum interessa uma escola democrática, concretamente. Daí o modelo hierárquico e formador de mão-de-obra da escola, reflexo de uma sociedade oligárquica. Chegamos à compreensão que o modelo deweyano de educação é, em si, um modelo de sociedade. Para que a sua escola exista é necessária uma sociedade que a suporte, não através de instituições ou autarquias, mas através do comportamento moral compartilhado, socialmente distribuído. O Estado, no caso, seria executor e salvaguarda deste modelo. A encruzilhada deweyana é que, negar sua escola democrática, sua possibilidade, seria negar a sociedade democrática. Seria negar a natureza social humana e nos conformar com o modelo hobbesiano. Entretanto, negar o caráter social da natureza humana seria negar sua natureza biológica, negar os fatos em nome de uma ideia. Seria negar a própria natureza humana e seu poder de transformação social. Seria negar a experiência que fornece o conhecimento de que alguns comportamentos são úteis e outros não. Antonio Valter Kuntz

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Enfim, a democracia não é um ideal e nem uma utopia, ou Dewey seria um idealista-utópico, longe disso, a democracia efetiva é uma escolha baseada na experiência e no interesse do convívio social humano. Uma escolha factual. Uma escolha moral. Eis o maior entrave à compreensão da pedagogia deweyana. Não há fins, nem regras definitivas, não há neutralidade científica, apenas obrigação moral de educar um outro ser humano. A constatação de que a educação é ato, movimento, experimento de sustentação do tipo de sociedade que temos. Não se educa para transformar a sociedade, no futuro, e nem a sociedade se transforma por causa da educação, do passado. Educa-se para que haja sociedade, no presente. A escolha da educação presente define a sociedade presente, e vice-versa. A democracia não é resultado da escolha, mas a própria escolha. A experiência em si, individualmente experimentada, socialmente distribuída. I believe that all education proceeds by the participation of the individual in the social consciousness of the race. This process begins unconsciously almost at birth, and is continually shaping the individual's powers, saturating his consciousness, forming his habits, training his ideas, and arousing his feelings and emotions. Through this unconscious education the individual gradually comes to share in the intellectual and moral resources which humanity has Antonio Valter Kuntz

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succeeded in getting together. He becomes an inheritor of the funded capital of civilization. The most formal and technical education in the world cannot safely depart from this general process. It can only organize it; or differentiate it in some particular direction . Eu acredito que toda educação surge da participação do indivíduo através de sua consciência social da espécie humana. Este processo começa não intencionalmente, à época do nascimento e, continuadamente, dá forma aos poderes do indivíduo, moldando seus hábitos, exercitando suas ideias, preenchendo sua mente, desenvolvendo seus sentimentos e emoções. Através desta educação não-intencional, o indivíduo gradualmente passa a compartilhar dos valores morais e intelectuais que a humanidade tem produzido em conjunto. Ele se torna um herdeiro dos principais fundamentos da civilização. A educação mais formal e mais técnica do mundo não pode ser separada seguramente deste processo geral. Ela pode apenas organizar ou discriminar (a educação) em algum sentido particular. 53

53 DEWEY, John. My Pedagogic Creed in School Journal, vol. 54 (January 1897), pp. 77-80 [online] Disponível na Internet via www.pragmatism.org/genealo-gy/dewey/ My_pedagogic_creed.htm. Arquivo capturado em 22 de fevereiro de 2001.

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O Legado De John Dewey

Sem romantismo, invenções, malversações e incompreensões, a pedagogia deweyana, analisada historiograficamente, a partir de textos em suas versões originais, nos deixou uma reflexão complexa sobre a construção da sociedade humana via educação. Não segundo um modelo natural ou divino, mas segundo um modelo humano, resultado da experiência humana. O modelo democrático, no sentido da sua experiência efetiva e não de seu ideal. Baseada nas experiências democráticas de liberdade e de diversidade em convívio, a escola não tem objetivos heterônomos, mas métodos e modelos de atividade, de maneira a distribuir o incentivo a determinados comportamentos sem a finalidade de determinar comportamentos. Resumindo , toda educação deveria acentuar o valor imediato 54

da experiência, não apenas como meio de alcançar um fim. 54 BOISVERT, Raymond D. John Dewey, Rethinking our time. New York: State University New York Press, 1998.

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Isso significa o corolário do reconhecimento de que a experiência de cada indivíduo tem seu valor inerente e não pode ser descartado. Educação é dar sentido ao presente, educação não é preparação. Educar é desenvolver os interesses dos estudantes, o que permite liberá-los para múltiplas formas de relacionamento e escolhas e lhes incentiva a individualidade, e suas próprias maneiras de contribuir para o bem estar social. Enfim, educação é um modo de habituar os estudantes à vida em comunidade. Pois a vida não acontece em tubos de ensaio, decisões individuais trazem consequências para si mesmo e para os outros. Educar e educar-se moralmente significa levar em conta os desejos e contextos alheios. Uma vez compreendido o conceito de democracia e a noção antropológica-filosófica de Dewey, chegamos à educação enquanto processo experimental, levando em conta a experiência do professor em compreender a experiência anterior e auxiliar a experiência presente do educando ; de tal modo que 55

o professor não é um transmissor de conhecimento pronto e acabado, mas um líder, não por burocracia escolar, mas por sua atuação humana no grupo, o que descarta uma monolíti55 DEWEY, John. Experiência e Educação. Trad. Anísio Teixeira. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976, p.75.

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ca e rígida grade curricular válida para todas as escolas , pois tal rigidez implicaria em dissociar educação de experiência individual. Dewey é um arauto da diversidade e não da conformação e, mais do que defender um método, defende a prática educativa mutável, auto-sustentável e autodesenvolvida. Por isso reitera que mais do que discutir métodos tradicionais e progressivos, educar é praticar a convivência humana através de experiências controladas . Cabe ao Estado garantir o acesso à educação, mas não determiná-la ou condicioná-la, da mesma forma que cabe ao Estado garantir o acesso a hospitais, mas não determinar o que seja saúde, em absoluto. Por extensão metafórica, não cabe ao médico determinar o que seja saúde, apenas constatá-la e mantê-la – ou auxiliar na sua recuperação ou aquisição. Tal qual não cabe ao professor determinar o que seja cultura, em absoluto, apenas constatá-la e mantê-la – ou auxiliar na sua recuperação ou aquisição. Realmente, Dewey não é uma leitura simples nem rápida, pois além do uso particular de termos e categorias, invoca uma inversão hermenêutica, uma reconstrução da teoria do conhecimento. O que não basta para justificar sua incompreensão a Antonio Valter Kuntz

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ponto de ser difamado, ou melhor, categorizado, por cânones alheios à sua dimensão histórica. Nesta obra, exploramos a oportunidade de ler Dewey diretamente e ousamos crer que este texto servirá como elemento de divulgação e apelo, bem como de reconhecimento, da obra deweyana em sua originalidade primária. Uma obra ainda a ser lida e retraduzida. Convidamos ao leitor que passe a ler Dewey não mais por olhos de tradutores e intérpretes usando óculos ideológicos ou canônicos, mas pelos próprios olhos. Ler Dewey assim não é apenas conhecer a história, é fazer história. Além do campo pedagógico ou teoria de educação, John Dewey se mantém como um dos mais importantes filósofos da atualidade, podendo ser enquadrado em estudos de pragmatismo clássico, hegelianismo americano e, principalmente, teoria do conhecimento e ética, desafiando a tensão entre teoria e prática, e outras formas de dualismo. Sua proposta é de revolução, mas não de eliminação do passado, reconstrução, evolução são as palavras chaves. Seu pensamento interpreta que a emancipação dos indivíduos e a diversidade cultuAntonio Valter Kuntz

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ral, lado a lado das liberdades de expressão e de produção de bens, beneficiam a humanidade como um todo e não são patrimônio de uma parcela, ou de uma classe . 56

Inicialmente idealista, divulgador de Hegel ao público norteamericano no final do século XIX, ainda percebemos sua influência metafísica, tal como a percebemos em Karl Marx, e é compreensível a leitura marxista, não marxiana, de alguns intérpretes de Dewey. Like Marx, Dewey was never just an academician. He wished to influence the events and practices of his times, and he was happiest when he saw his ideas translated into action57. Como Marx, Dewey não foi apenas um acadêmico. Ele quis influenciar as práticas e acontecimentos do próprio tempo, e ficou feliz quando viu suas ideias transformadas em ação.

Enquanto Marx instigou ao socialismo científico: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” (Teses sobre Feuerbach, 1845); Dewey instigou ao pragmatismo “científico” e, tal qual 56 DECKER, Kevin S. The Public Philosopher. (1999) Disponível na Internet via: http://www.geocities. com/Athens/Parthenon/1643/index.html. Acesso em 10/08/2004. 57 BROOKS, William. Was Dewey a Marxist? (1997) Disponível na Internet via: http:// www.stlawrenceinstitute.org/ vol13brk. html. Acesso em 10/08/2004.

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Marx, reverenciou a práxis como superação do dualismo “teoria e prática”, mas diferente de Marx, tal qual Sartre, sustentou a tese da liberdade individual como construtora social. Mas foi como pensador da educação que Dewey entrou realmente para a história, seus livros Democracy and Education, How We Think, Experience and Education entre outros, desenvolvem sua teoria do conhecimento – de que a base da vida é a experiência – no campo do processo educativo. São obras que criticam tanto a educação tradicional, com sua estrutura temática-disciplinar, como a chamada educação nova e suas improvisações, e reafirmam o caráter vitalício da educação como um todo, não se resumindo à escola ou preparação, mas um processo contínuo de aprimoramento do convívio social e da produção de bens compartilhados. Embora normalmente incluído como integrante do Movimento da Escola Nova ou Escolanovismo, traduzido parcialmente para reforço de ideias pedagógicas, basta ler Dewey em sua integridade conceitual para notar que sua intenção extrapola o campo “escolar” propriamente dito. Classificá-lo ao lado de outros autores nitidamente focados em pedagogia ou escolanovistas, é uma redução simplista, um equívoco, que o historiador da educação, ou qualquer outro acadêmico contempoAntonio Valter Kuntz

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râneo, não mais deveria cometer. É a pós-modernidade, ou à sua guarda, que reencontra o pensamento deweyano, como reencontra o pensamento de Nietzsche ou de Vico, todos críticos da modernidade tradicional ou iluminista. Mas o pensamento mesmo de Dewey não é pós-modernista, pois é um sistema, coerente em si mesmo na sua crítica avessa a dualismos e relativismos a partir da experiência útil ou educativa, pragmática. E se não podemos focalizá-lo na linha do tempo como pensador moderno ou pós-modernista, só nos resta considerá-lo um clássico. Cujo motor conceitual nos legou uma tarefa de reconstrução efetiva, concreta, da educação, da filosofia, da vida. Uma tarefa contínua, uma educação continuada para si mesmo, e para os demais.

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Não falta quem afirme vivermos em uma época de confusão filosófica, sem diretrizes unificadas, perdidos entre múltiplos caminhos. No entanto, como diz Dewey, as brigas dos filósofos são brigas de família. Todos se encontram na premissa comum, em que se firmam, de uma "realidade" superior à precariedade e contingência do universo. Divorciados, assim, do carácter essencialmente contingente e temporal dêsse mesmo universo, os filósofos, por isso mesmo e em última análise, se perdem nos particularismos dos seus respectivos temperamentos. TEIXEIRA, Anísio. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.23, n.57, jan./mar. 1955. p.3-27 in http:/ / www. prossiga.br/ anisioteixeira/artigos/bases.html.

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Considerações Finais

Não foi a intenção escrever um ensaio; o tom ensaísta e liberal, no sentido literário e não outro, ordena-se muito pelo próprio estilo pessoal do autor e pelo objetivo de não apenas realizar um trabalho compilatório ou de reprodução selecionada, mas sim de contextualizar uma nova proposição hermenêutica à interpretação tradicional da obra deweyana no âmbito da história da educação brasileira. Apresentado comumente a nós, nos bancos escolares, como um dos ideólogos mestres do escolanovismo, referência do liberalismo na educação, ou mesmo da educação americana, Dewey parecia ser o arauto de uma pedagogia nova. Não foi sem surpresa que, ao ler os textos de Dewey no original, deparei-me com um autor diferenciado, muito mais filósofo que educador, muito mais sociólogo que pedagogo. Sua incursão no âmbito da educação é resultante de uma concepção de natureza humana e de realidade que não compartilha dos cânones cartesianos.

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Compreender este pensamento era a condição primeira para compreender a real contribuição deweyana, e sua influência nos demais, estes sim, pedagogos efetivos. Assim, as categorias históricas tradicionais, que normalmente partem do Dewey educador para tentar entender o Dewey pensador, não se apresentavam de forma eficaz, posto que congeladas num ponto de vista historicista ou de causa e efeito, do tipo “isso é assim por causa disso”. Percebi a necessidade de separar o tempo “lógico” do tempo “cronológico” para delinear o tema ao seu objetivo. E as portas se abriram à elucidação de uma pesquisa de cunho hermenêutico. As bases da pesquisa, indicadas por Boisvert, tratavam justamente de analisar Dewey sob os pontos de vista da Filosofia Antropológica e da Filosofia Política. O primeiro ponto de vista libertava a análise do jugo historicista; o segundo ponto de vista consumava uma nova concepção de história, a da experiência contínua e não a da catalogação de fatos. O importante a destacar, portanto, é que a visão antropológica desenvolvida por Dewey gera determinações inovadoras no âmbito da compreensão política, da ação política mais precisamente. O ponto de vista monista e articulador, contra Antonio Valter Kuntz

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os dualismos, recupera a dimensão do pensamento social independente do conceito de “Pólis” ligado compulsoriamente ao conceito de “Estado”. Ignora a dicotomia entre indivíduo e sociedade. A política real e efetiva seria a convivência social, e não outra, organizada entre indivíduos, pares, mas não iguais; cujo resultado seria a democracia, a realizada e não a idealizada. A escola surge no pensamento deweyano como instrumento de socialização cujo objetivo é o desenvolvimento da convivência prática. A educação, e seu sinônimo, a filosofia, tratam das formas dessa convivência e dos modos de sua produção, vários e efêmeros, auto-sustentáveis enquanto democráticos. Filho da tradição espinozista-hegeliana por um lado, e irmão da tradição pragmática americana, Dewey conviveu com as ideias reformadoras ou revolucionárias de seu século, tanto na Europa como na América e, talvez, mais do que muitos, compreendeu que a transformação social não se confunde com a sua intenção. Ou ela ocorre agora, ou não ocorrerá no futuro. No capítulo VII de Democracy and Education lemos, após uma pequena digressão sobre a história da educação, a contextualização definitiva de Dewey sobre as próprias ideias:

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Two results should stand out from this brief historical survey. The first is that such terms as the individual and the social conceptions of education are quite meaningless taken at large, or apart from their context. Plato had the ideal of an education which should equate individual realization and social coherency and stability. His situation forced his ideal into the notion of a society organized in stratified classes, losing the individual in the class. The eighteenth century educational philosophy was highly individualistic in form, but this form was inspired by a noble and generous social ideal: that of a society organized to include humanity, and providing for the indefinite perfectibility of mankind. The idealistic philosophy of Germany in the early nineteenth century endeavored again to equate the ideals of a free and complete development of cultured personality with social discipline and political subordination. It made the national state an intermediary between the realization of private personality on one side and of humanity on the other. Consequently, it is equally possible to state its animating principle with equal truth either in the classic terms of "harmonious development of all the powers of personality" or in the more recent terminology of "social efficiency." All this reinforces the statement which opens this chapter: The conception of education as a social process and function has no definite meaning until we define the kind of society we have in mind. Duas resultantes devem surgir a partir desta breve pesquisa histórica: a primeira é que termos como indivíduo e concepções sociais nada significam se tomados ao acaso, ou separados de seus contextos. Platão tinha um ideal de educação que deveria igualar realização individual com estabilidade e coerência sociais. Esta situação forçava ao seu ideal uma noção de sociedade estratificada em classes, submetendo o indivíduo à classe. A filosofia da educação do século dezoito era altamente individualista em forma, mas essa forma era inspirada por uma nobre e generosa ideia social: a de que uma sociedade organizada humanisticamente providenciaria o indefinido aperfeiçoamento da humanidade. A filosofia idealista alemã, no início do século dezenove, pretendeu outra vez conciliar

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os ideais de um livre completo desenvolvimento da personalidade cultivada, com uma disciplina social e a subordinação política. Ela fazia do Estado Nacional um intermediário entre a expressão da personalidade individual, de um lado, e da humanidade, do outro. Por consequência, seria igualmente possível enunciar-se seu princípio inspirador com a expressão clássica, “desenvolvimento harmônico de todas as aptidões do indivíduo” ou com a terminologia mais recente de “eficiência social”. Tudo isso robustece a afirmação que inicia este capítulo: a concepção de educação como um processo e uma função social não tem significação definida enquanto não definirmos a espécie de sociedade que temos em mente.

Oportunamente, lembramos que “em mente” para Dewey não possui implicação apenas ideológica ou intencional, mas a vivida. Continuando, a segunda resultante apresentada por Dewey é justamente a confusão entre a concepção de educação em e para uma sociedade democrática, gerando o conflito entre um objetivo nacionalista e outro mais geral, misturando real com ideal. Confundindo a educação humana com cultura social e restringindo a primeira à segunda. Daí a impossibilidade de um Estado Nacional cuidar da educação sem desconfigurá-la enquanto tal. Definitivamente, Dewey foi um dos pioneiros do discurso contemporâneo do que hoje entendemos por globalização.

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Por estes e outros esclarecimentos, a releitura de Dewey é mais presente que pretérita. Enfim, nestas últimas considerações, declaro estar satisfeito em ter atingido os objetivos principais a que me propus, o de ter compreendido Dewey em sua lógica primária; e ter realizado esta compreensão em nível de divulgação acadêmica, literária, acrescentando não apenas mais um volume à biblioteca, mas contribuindo com uma perspectiva de revitalização do pensamento deweyano em língua portuguesa, independente de sua relativização historicista, e engrandecendo sua dimensão histórica.

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“Why Dewey, now?” First, Dewey’s ideas are relevant to contemporary criticisms leveled at public education. Second, his ideas are feasible as well as effective in promoting teacher development, and, third, they are feasible and effective in promoting student learning. FISHMAN, Stephen and McCarthy, Lucille. (1998). John Dewey and the Challenge of Classroom Practice. N.Y., N.Y.: Teachers College Press Por que Dewey, agora? Primeiro, as ideias de Dewey são relevantes à crítica contemporânea em nível de educação pública. Segundo, suas ideias são factíveis tanto quanto efetivas para promover o desenvolvimento do professor e. terceiro, elas são factíveis e efetivas para promover o aprendizado do estudante.

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Antonio Valter Kuntz é filósofo, redator publicitário, MTb 3640/86, designer gráfico, escritor de ocasião, roteirista audiovisual, professor graduado e licenciado em Filosofia e Mestre em Educação pela Universidade Federal em Uberlândia. Já atuou como Instrutor de Redação e Comunicação Empresarial na Fiemg, e também Professor Universitário na área de Filosofia na Universidade Federal de Uberlândia – UFU, e na área de Comunicação nas faculdades Esamc, Politécnica e Unitri em Minas Gerais, e também na Unesa e Udesc em Santa Catarina. Currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/6768518817007185 Blog http://kntz.com.br

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