Os 12 refugiados hóspedes de Francisco

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RELIGIÃO FRANCISCO

Os 12 refugiados HÓSPEDES DE FRANCISCO Moisés Sbardelotto *

Por que o papa decidiu “receber” essas pessoas em sua casa? O que estão fazendo no Vaticano desde então? E o que esse gesto diz para nós, no Brasil?

E

u era estrangeiro, e vocês me receberam em sua casa.” O papa Francisco já repetiu várias vezes que o capítulo 25 do Evangelho de Mateus traz os critérios fundamentais do “protocolo” com o qual seremos julgados pela misericórdia divina. É também nesse contexto que podemos entender o gesto sem precedentes realizado pelo pontífice no dia 16 de abril passado. Ao retornar da sua visita à Ilha de Lesbos, na Grécia, Francisco levou consigo ao Vaticano, no próprio avião papal, 12 refugiados da Síria. Mas por que o papa decidiu “receber” essas pessoas em sua junho de 2016 49

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casa? O que estão fazendo no Vaticano desde então? E o que esse gesto diz para nós, no Brasil? A Ilha de Lesbos está localizada no Mar Egeu. Por causa da sua posição geográfica, há anos, tornou-se um centro nevrálgico para os refugiados sírios que cruzam parte da Turquia para buscar um futuro de paz na Europa. No auge do afluxo de migrantes do Oriente Médio, em 2015, mais de 7 mil pessoas chegavam às praias de Lesbos diariamente. Em 2016, mais de 200 mil refugiados desembarcaram na Grécia. Como disse Francisco no seu discurso na ilha, “nunca devemos esquecer que, antes de serem números, os migrantes são pessoas, são rostos, nomes, casos”. Por isso, a visita papal, segundo o próprio pontífice, foi “marcada pela tristeza”, ao ir ao encontro da maior catástrofe humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. Os 12 refugiados levados por Francisco ao Vaticano pertencem a três famílias da Síria – metade delas crian50 revista família cristã

ças – em fuga da guerra. As famílias são compostas por Wafa, cabeleireira, casada com Osama, ambos na faixa dos 30 anos, pais de uma menina de oito anos e de um menino de seis anos; Ramy, 51, professor, casado com Suhila, 49, costureira, pais de dois meninos, de 16 e 18 anos, e de uma menina de cinco anos; Nour, engenheira bioquímica, casada com Hasan, também engenheiro bioquímico, ambos na faixa dos 30 anos, pais de um filho de dois anos. São todos muçulmanos, provenientes das cidades de Damasco e Deir Ezzor, completamente bombardeadas pelo Daesh, o chamado Estado Islâmico. Por causa dos ataques, perderam tudo o que tinham e viviam em um estado de grande vulnerabilidade. Depois de pagarem cerca de 6 mil dólares aos traficantes de pessoas, abandonaram a Síria e atravessaram a Turquia, ora fugindo do exército do ditador sírio Bashar al-Assad, ora dos militantes do Daesh. “Vimos nossos parentes e amigos morrerem debaixo dos destroços dos

bombardeios. Fugimos porque não víamos mais esperança na Síria. Correr o risco de morte a cada instante torna a existência insegura e frágil, destrói os sonhos, torna impossível imaginar um futuro. Fizemos isso principalmente pelo nosso filho”, contou Hasan à imprensa italiana. Depois da travessia do Mar Egeu, em um bote de borracha superlotado, chegaram à Ilha de Lesbos, três meses depois de saírem da Síria. Lá, passaram a viver em campos de acolhida a refugiados, como verdadeiros prisioneiros. Até a chegada do papa Francisco. Ao explicar o seu gesto aos jornalistas, no voo de retorno da Grécia ao Vaticano, o papa disse que a ideia de levar os refugiados veio de um colaborador: “Eu aceitei logo, porque vi que era o Espírito que falava”, comentou Francisco. A iniciativa de levar as três famílias para o Vaticano foi realizada mediante uma negociação entre a Secretaria de Estado da Santa Sé e as autoridades gregas e italianas. Todos os trâmites foram feitos regularmente:

Ao explicar o seu gesto aos jornalistas, no voo de retorno da Grécia ao Vaticano, o papa disse que a ideia de levar os refugiados veio de um colaborador: “Eu aceitei logo, porque vi que era o Espírito que falava” os governos da Cidade do Vaticano, da Itália e da Grécia inspecionaram tudo antes e concederam os respectivos vistos. Foi também por isso que o papa escolheu apenas famílias muçulmanas, pois as demais famílias cristãs que estavam na primeira lista não estavam com os documentos em dia. O fato de serem muçulmanos “não é um privilégio”, reiterou o pontífice: em 2015, o próprio Francisco já havia acolhido outras duas famílias cristãs sírias no Vaticano. “Todos os 12 são filhos de Deus. O ‘privilégio’ é ser filho de Deus.” No Vaticano, o acolhimento e a manutenção das três famílias estão sendo fornecidos pela Santa Sé com o apoio da Comunidade de Santo Egídio, uma organização internacional de leigos católicos, que trabalha no serviço aos mais pobres e às populações que sofrem por causa da guerra. Nesta primeira fase, os refugiados estão vivendo no histórico bairro do Trastevere, em Roma, onde fica a sede da Comunidade de Santo Egídio. Fazem aulas de Italiano

na Escola de Língua e Cultura Italianas, administrada pela comunidade, e também cursos profissionalizantes, para poderem se adaptar e se integrar mais facilmente à vida local. Também fizeram o seu pedido de asilo político junto à Itália. Caso o pedido seja negado, a ideia dos refugiados é de seguir viagem até a Alemanha ou a outros países do norte da Europa. Por isso, não sabem quanto tempo ficarão na Itália. “Somos hóspedes de Francisco. Ele nos salvou e nos deu a vida de novo”, disseram. Citando a madre Teresa de Calcutá, o papa afirmou que essa acolhida aos 12 refugiados é apenas “uma gota d’água no mar. Mas, depois dessa gota, o mar não será mais o mesmo. É um pequeno gesto. Mas daqueles pequenos gestos que todos devemos fazer, para estender a mão àqueles que precisam”. O desafio lançado pelo papa no seu discurso em Lesbos é de “manter abertos os corações e as portas”, pôr à disposição o pouco que se tem, partilhando-o com quem está privado de tudo.

E isso também diz respeito ao Brasil. O Censo 2010 mostrou que a acolhida de migrantes de outros países deu um salto de 86,7% entre os anos 2000 e 2010. Em termos de migração interna, 35,4% dos habitantes brasileiros não residiam mais no município onde nasceram, e 14,5% moravam em outro estado. Por isso, o gesto do papa não está descolado da realidade local brasileira: a nós também se dirige o “veemente apelo à responsabilidade e à solidariedade”, lançado por Francisco em Lesbos. Além disso, em nós o papa espera ver pulsando “o coração de uma humanidade que sabe reconhecer, antes de tudo, o irmão e a irmã, uma humanidade que quer construir pontes e evita a ilusão de levantar cercas para se sentir mais segura”. * Moisés Sbardelotto é leigo casado, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e pela Università La Sapienza, em Roma. É autor de E o Verbo se Fez Bit (Editora Santuário). junho de 2016 51

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