Os antolhos da crítica social: um estudo sobre o papel da abstração na teoria crítica de Karl Marx

June 1, 2017 | Autor: Hyury Pinheiro | Categoria: Karl Marx, Abstração, Teoría Crítica, Dialética
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

HYURY PINHEIRO

OS ANTOLHOS DA CRÍTICA SOCIAL: um estudo sobre o papel da abstração na teoria crítica de Karl Marx.

CAMPINAS 2016

Hyury Pinheiro

OS

AI{TOLHOS DA CRÍTICA SOCIAL:

UM ESTUDO SOBRE O PAPEL DA ABSTRAÇÃO NA

TEoRrÀ cRÍTICA on Knnr, MARX

Dissertação apresentada

ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da Universidade

Estadual

de Campinas como parte dos

requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Sociologia.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE

FINAL DA

A

VERSÃO

DISSERTAÇÂO DEFENDIDA

PELOALT]NO HYTIRY PIN}IEIRO, E ORIENTADA PELO PROF. DR. JESUS JCISE RANIERI.

CAMPINAS 2016

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 130720/2014-3

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Izabel Cristina Barbosa dos Santos - CRB 7078

P655a

Pinheiro, Hyury, 1987PinOs antolhos da crítica social : um estudo sobre o papel da abstração na teoria crítica de Karl Marx / Hyury Pinheiro. – Campinas, SP : [s.n.], 2016. PinOrientador: Jesus José Ranieri. PinDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Pin1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Abstração. 3. Capital. 4. Dialética. I. Ranieri, Jesus José,1965-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: The blinders of social critique : a study on the role of abstraction in the critical theory of Karl Marx Palavras-chave em inglês: Abstraction Capital Dialectic Área de concentração: Sociologia Titulação: Mestre em Sociologia Banca examinadora: Jesus José Ranieri [Orientador] Sávio Machado Cavalcante Mauro Castelo Branco de Moura Data de defesa: 28-03-2016 Programa de Pós-Graduação: Sociologia

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 28 de março de 2016, considerou o candidato Hyury Pinheiro aprovado.

Prof. Dr. Michel Nicolau Netto

Prof. Dr. Mauro Castelo Branco de Moura

Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante

Profa. Dra. Maria Orlanda Pinassi

Prof. Dr. Sílvio César Camargo

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

À minha família, que cresceu desde a minha primeira monografia.

Agradecimentos Agradeço aos meus pais pelo suporte material e espiritual. À Patrícia, por despertar amor nos momentos em que predominava a racionalidade, por demonstrar o valor do positivo frente à efemeridade do negativo e por provocar vários insights que compõem esse trabalho. À Helyda e ao Diego, pelas intermináveis discussões políticas e teológicas. À Hyara e ao Roni, pelos lanches de sexta-feira e conversas sobre direito. À Valentina, por me tirar da frente do computador e me fazer sair vez ou outra para o quintal. Agradeço ao Prof. Dr. Jesus José Ranieri, que não só é o meu orientador, como foi também quem me despertou o interesse por uma abordagem de Marx que levasse em conta o processo de formação do seu pensamento crítico. Ao Prof. Dr. Fernando Lourenço, cujo incentivo, orientação e apoio foram marcantes. Ao Prof. Dr. Sílvio César Camargo, cujas aulas sempre me provocaram a explorar outros olhares teóricos. Ao Prof. Dr. Paulo de Tarso da Silva Santos, que, junto aos professores Francisco Orlandini, Fábio Eduardo Iaderozza e José Renato Polli, criou ilhas de pensamento crítico na grade disciplinar da graduação em Ciências Econômicas que cursei no Centro Universitário Padre Anchieta. Agradeço ao grupo de estudos de O capital, por meio do qual vários pontos deste trabalho foram desenvolvidos. À Tábata e Murillo, por me fazerem achar normal discutir divergências teóricas nos corredores do Instituto; ao Neto, por sempre chamar a atenção para as implicações políticas da teoria; à Érika, agitadora de bares e entusiasta (no melhor sentido do termo!) de uma terra sem amos; ao Luiz Fernando, que sempre traz consigo uma erudição cultural subversiva do real; à Laura Alberti, pelas anotações da minha qualificação e pela companhia de cantina; à Laura Luedy, companheira de estudo de alemão e tentativas de tradução; ao Raphael Silveiras, por sempre me lembrar de duvidar da ciência; e ao Vitor Queiroz, pelos papos provocativos que ajudaram a encaminhar o tema desta dissertação. Agradeço ainda à profa. Norma Wucherpfennig, à profa. Anisha Vetter e ao CELUnicamp, que me deram acesso à língua alemã. Ao CNPq, sem o qual seria inviável o trabalho que aqui se apresenta. E, por fim, às trabalhadoras e trabalhadores que vendem sua força de trabalho na Unicamp e nas agências de fomento de pesquisa no Brasil, sem as quais e os quais não teríamos nenhuma estrutura para fazer avançar a compreensão e a crítica da tragédia que vivemos.

Escrevo de arrompante: o que eu vi me fez cegar; o que não vi é que me clareou. Mia Couto Quem adoeceu uma vez de hegelianismo [...], jamais volta a ser completamente curado. Friedrich Wilhelm Nietzsche

Resumo O estudo das nuances do papel da abstração na formação do pensamento crítico de Karl Marx (1818-1883) sugere um viés da complexidade do fazer teórico do autor. Percebe-se que, ao comparar partes significativas da sua produção de juventude e de maturidade, esse papel ganha novos contornos. Longe de significar ruptura, esses novos contornos demarcam uma complexificação daquele papel. Tal complexificação caracterizará a sua reflexão sobre o método de apreensão da realidade social, por meio da qual seu diagnóstico de modernidade se tornará cada vez mais concreto. A crítica da economia política, bem como a crítica dialética da dialética hegeliana, aparecem como desdobramentos da sua investigação social. Mediante essas duas críticas, as categorias político-econômicas serão não apenas negadas em sua virtualidade, mas também sistematicamente reconstruídas e atualizadas: a crítica incindirá em suas formas e conteúdos histórico-sociais, de modo a "sincronizá-las" em relação às determinações atuais do modo de produção capitalista. Essa reconstrução, que se apresenta sob a forma de sistema, tende a ser negada na medida em que as determinações do capital e do trabalho, concebidos em suas generalidades e reflexividades, tendem a se transformar. A partir da leitura aqui proposta, a teoria social marxiana aparece, portanto, como um método de reconstrução da realidade ocorrente na trilha do pensamento que é determinado em função do seu objeto, qual seja, no caso dos Grundrisse e O Capital (livros I e II), o capital em geral. Sendo o capital em geral a síntese de múltiplas determinações e sendo tais determinações historicamente determinadas, tal categoria é mutável e deve, assim, ser atualizada a cada novo desenvolvimento histórico e objetivo de suas determinações. Dessa forma, o capital em geral, enquanto abstração determinada e sintética, expressa o resultado de um esforço de recomposição crítica e ideal da totalidade a partir de elementos abstratos e parciais reflexivamente relacionáveis. É ainda, nesse sentido, um guia - tal qual os antolhos de um cavalo que o mantém no caminho a ser trilhado - ao exigir de nosso olhar teórico rigor e disciplina para reconstruir e expor a nova totalidade que se esconde por trás das representações categóricas vigentes. Vista desse ângulo, a teoria social de Marx nos desafia constantemente à análise do novo. Palavras-chave: Marx, Karl, 1818-1883; abstração; método; capital; dialética.

Abstract The study of the nuances of the role of abstraction in the formation of critical thinking of Karl Marx (1818-1883) suggests a bias on the complexity of the theoretical making from the autor. It can be seen that when comparing significant parts of his production of youth and maturity, this role gains new boundaries. Far from signifying a rupture, these new boundaries indicate a complexity of that role. Such complexity will characterize his reflection on the method of apreehending social reality, through which his diagnosis of modernity will become increasingly concrete. The critique of political economy, and the dialectical critique of Hegelian dialectics, appear as outcomes of his social research. Through these two critiques, the categories of political economy will not only be denied in its virtuality, but also systematically rebuilt and updated: the critique will focus on their social-historical forms and contents, in order to "synchronize them" over current determinations of the capitalist mode of production. This reconstruction, which presents itself in the form of system, tends to be denied in that the determinations of the capital and labor, which are designed in their generalities and reflexivities, tend to transform themselves. From the reading proposed here, the Marxian social theory appears, therefore, as a method of reconstruction of reality that occurs on the trial of thought that is determined according to its object, which is, in the case of the Grundrisse and The Capital (volumes I and II), the capital in general. Being the capital in general the synthesis of multiple determinations and being such determinations historically determined, such a category is mutable and must therefore be updated in every new historical and objective development of its determinations. Thus, the capital in general, as determined and synthetic abstraction, expresses the result of a effort of critical and ideal recomposition of the totality based on abstract and partial elements reflexively relatable. It is also in this sense a guide - just like the blinders of a horse that keeps it on the route to be followed - that requires of our theoretical look rigor and discipline to rebuilt and expose the new totality that hides itself behind the existing categorical representations. Seen from this angle, the social theory of Marx challenges us constantly to analyse the new. Keywords: Marx, Karl, 1818-1883; abstraction; method; capital; dialectic.

Sumário Introdução.................................................................................................................................12 1- A crítica marxiana de juventude à filosofia especulativa: sobre a questão das abstrações...18 1.1- Crítica à construção especulativa: a subjetivação do predicado........................................19 1.2- Crítica à construção "positivista", ou o resultado da especulação tornado imediato.........25 1.3- O problema da abstração no jovem Marx..........................................................................39 1.3.1- As etapas da crítica marxiana a Hegel segundo a leitura de Jindřich Zelený.................42 1.3.2- Algumas abordagens marxianas do problema da abstração entre 1841 e 1847..............51 1.3.2.1- Abstração enquanto "totalidade abstrata"....................................................................51 1.3.2.2- Abstração enquanto lógica que predestina o objeto.....................................................54 1.3.2.3- Abstração enquanto potencialmente desmistificante e efetivamente mistificante.......59 1.3.2.4- Abstração enquanto velamento das relações sociais de produção...............................69 1.4- Consideração parcial..........................................................................................................72 2- Da crítica contra as abstrações à crítica por meio da abstração: formas de assimilação da dialética hegeliana na década de 1850......................................................................................74 2.1- Dois momentos da crítica marxiana às abstrações político-econômicas: 1847 e 1851.....76 2.1.1- Crítica às abstrações político-econômicas através da consideração histórico-econômica das relações sociais de produção...............................................................................................77 2.1.2- Crítica às abstrações político-econômicas através de alguns elementos hegelianos: escritos de 1851.........................................................................................................................81 2.1.2.1- Marx a Engels, 03 de fevereiro de 1851......................................................................83 2.1.2.2- Os cadernos londrinos (1850/53): um fragmento do caderno VIII..............................91 2.1.2.3- Os cadernos londrinos (1850/53): um fragmento do caderno VII...............................95 2.2- Razões externas para uma leitura hegeliana dos textos anteriores: evidências de uma "cultura hegeliana" entre os interlocutores de Marx. (Um excurso).......................................106 2.3- A busca pela totalidade em uma multidão de contingências: os Grundrisse de 1857.....112 2.3.1- O caminho da reconstrução...........................................................................................115 2.3.2- O capital em geral como abstração crítica, ou os antolhos da crítica social.................130 2.4- Considerações parciais.....................................................................................................142 3- Crítica dialética da dialética hegeliana: uma implicação crítica do tratamento marxiano das abstrações................................................................................................................................145

3.1- A luva dialética de Hans Friedrich Fulda, ou o desvirar da dialética hegeliana como exercício crítico marxiano: o avesso do avesso......................................................................146 3.2- O procedimento marxiano de desvirar a dialética hegeliana segundo a leitura de Jorge Grespan...................................................................................................................................153 3.2.1- Identidade hegeliana versus diferença marxiana..........................................................153 3.2.2- Contradição hegeliana versus contradição marxiana....................................................157 3.3- Considerações parciais.....................................................................................................167 4- Antolhos que nos cegam, antolhos que nos guiam: algumas considerações finais............169 Bibliografia.............................................................................................................................173

12 Introdução O texto que será apresentado nas páginas a seguir foi resultado de alguns recuos com relação ao tema do projeto apresentado no processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Sociologia - IFCH/Unicamp de 2014. Esses recuos podem ser entendidos como avanços, na medida em que foram provocados por reflexões que nos levaram a perceber que a pesquisa, tal qual foi proposta no projeto, demandava esclarecimento de outras questões. A proposta inicial era estudar o lugar da categoria de igualdade social dentro da teoria do valor de Marx. Pretendíamos, com isso, aproximar o texto Sobre a questão judaica (1843) ao de O capital (1867) a fim de apontar possíveis conexões entre o papel do Estado burguês e o papel do capital enquanto relação social dominante do modo de produção moderno. Essas conexões se dariam em dois aspectos: 1- ambos funcionariam como niveladores sociais parciais, e 2- ambos expressariam e imporiam uma ordem normativa que conferiria à sociedade uma regularidade determinada. Com relação ao primeiro aspecto, enquanto o Estado nivelaria os indivíduos em seus momentos jurídicos, como cidadão ou sujeito de direito, o capital os nivelaria, mediante o valor, no momento da circulação de mercadorias, na relação de compra e venda por meio da qual eles aparecem como compradores e vendedores. A conexão entre Estado e capital implicaria na não separação desses aspectos, de modo que fossem complementares um ao outro. Com relação ao segundo aspecto, tanto o Estado como o capital seriam expressões sintéticas de determinações abstratas e simples das vidas jurídica e econômica, a partir da qual a consciência teórica poderia realizar generalizações de fenômenos, enunciando leis, construindo sistemas teóricos, etc. A teorização jurídica e econômica da sociedade seria matéria de uma imposição normativa ao social, produzindo assim uma regularidade artificial - o que seria lido por alguns filósofos e economistas modernos como leis naturais da sociedade. A partir disso, poderíamos problematizar, por exemplo, a capacidade dos agentes econômicos em realizar ações de longo prazo, como planos de investimento, por meio dos quais o processo de acumulação de capital ocorre mais rapidamente, transformando assim, nesse mesmo passo, as formas de manifestação do próprio capital. Seria, também, um esforço em explorar as potencialidades teóricas da teoria marxiana do valor, pelas quais pretendíamos construir, posteriormente, uma análise social do capitalismo contemporâneo. Como pretendíamos chegar ao Estado mediante o capital, pensamos que o primeiro

13 momento da pesquisa deveria ser entender o papel da circulação simples na explicação do modo capitalista de produção, já que é lá que as determinações do valor são efetivamente realizadas - o que suscitou, entre outras questões, a dúvida sobre os possíveis limites da teoria do valor na própria teoria marxiana crítica do capitalismo, a qual constituirá um dos problemas de nossa pesquisa no doutorado. Sabíamos, entretanto, mediante a leitura do livro I de O capital, que a circulação simples é apenas um momento - ainda que necessário - do processo de produção do capital e que, portanto, um estudo isolado desse momento seria algo parcial e incompleto. Isso nos levou a buscar compreender o que era "capital" para Marx, e por que ele se apresenta de tantas formas e pontos de vista distintos. Chegamos assim à necessidade de compreender o chamado capital em geral, uma categoria total e abstrata, sintética das múltiplas determinações essenciais do modo de produção capitalista. Daí surgiram três perguntas: a- por que seria necessária uma categoria tão abstrata para a investigação do concreto; b- como tal categoria poderia surgir da cabeça de um materialista como Marx; e c- como foi construída essa categoria. Essas três questões tinham em comum uma dúvida mais geral: qual é o papel da abstração no pensamento crítico de Marx? Tal seria nosso objeto de investigação, o qual, em função dessas questões, apresentaria três entradas: α- comparação entre o papel da abstração no pensamento do jovem e do velho Marx, a fim de compreender como a sua posição materialista foi capaz de, na maturidade, conceber uma categoria tão abstrata quanto o capital em geral enquanto algo real; β- reflexão sobre o papel da abstração no método que concebeu essa categoria; e γimplicações críticas dessa categoria, o que aponta para, além da importância do capital em geral na crítica marxiana, a importância do próprio papel da abstração nessa crítica. Portanto, esta dissertação passou do tema de seu projeto para um ante tema. O intuito é tentar responder qual o sentido de dizer que o capital é uma totalidade, já que, na ideia inicial de investigação, esse sentido era tanto pressuposto quanto mal compreendido por nós. Nossa esperança é que esse texto auxilie a leitora ou o leitor a compreender esse sentido, tanto quanto nos ajudou durante a sua elaboração, muito embora reconheçamos que ele esteja longe de ser um estudo completo e incontestável. Esperamos, antes, a sua contestação. Apresentados o objeto e sua história, vejamos os meios de investigação e sua estrutura. Procuramos aqui, na medida do possível, nos pautar nos textos de Marx, sejam eles textos publicados sob a forma de artigos de jornais, livros e trabalhos acadêmicos, sejam eles não publicados em vida do autor, como esboços, rascunhos e cartas. Utilizamos amplamente

14 as traduções disponíveis desses textos, mas sempre mediante um exercício de cotejamento, a fim de não tomar o sentido da tradução pelo sentido do escrito original. Recorremos a comentadores naqueles momentos em que julgamos não ter acúmulo de leitura o suficiente para tratar de algum aspecto determinado da obra de Marx. Por exemplo, no tópico sobre as etapas da crítica marxiana de juventude a Hegel, nos pautamos no estudo de Zelený ([1968] 1974) sobre o tema; a nossa compreensão sobre a natureza do capital em geral está ancorada nas leituras de Rosdolsky ([1968] 2001), Reichelt ([1970] 2013) e Moseley (1995); e, finalmente, toda a discussão sobre o método e o desvirar da dialética foi baseada nos trabalhos de Fulda (1975; 1978), Müller (1982), Flickinger (1986), Ranieri (1997/1998) e Grespan (2002). No primeiro capítulo buscamos trabalhar o papel da abstração no jovem Marx. Os textos-base foram fragmentos de Diferença da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro (1841), Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843), Manuscritos econômico-filosóficos (1844), A sagrada família (1845) e Miséria da filosofia (1847). A partir da análise desses textos chegamos a uma apreciação geral negativa das abstrações. Isto é, o processo de abstração aparece como objeto de crítica de Marx, na medida em que ele, de modo geral, leva ao velamento da diversidade interna do objeto concreto. No segundo capítulo buscamos apresentar um movimento pelo qual essa apreciação se complexifica. Além de objeto de crítica, a abstração passa a ser meio de articulação de categorias econômicas - por meio de categorias lógicas hegelianas - e meio de reconstrução de uma totalidade - processo de análise prévia do ascenso ao concreto. Os textos-base são cartas de Marx escritas na década de 1850, extratos dos chamados Cadernos londrinos (1850/53), artigos de jornais publicados nessa década e alguns extratos dos Grundrisse (1857/58). Por fim, no último capítulo antes das considerações finais, tratamos da implicação crítica desse modo de operar com as abstrações que levou Marx ao capital em geral: o desvirar da dialética hegeliana. Aqui os textos de Marx serão utilizados para dar substância às afirmações de Fulda (1975), Müller (1982) e Grespan (2002). Abordaremos, ainda, durante a dissertação, alguns textos de Hegel, na medida em que o argumento demande. A partir dessa estrutura, esperamos suscitar uma reflexão sobre o papel das abstrações nas pesquisas em ciências sociais e econômicas. Daí utilizarmos a figura dos antolhos no título desta dissertação. Antolhos são aquela viseira que se costuma colocar nos cavalos para que eles vejam tão somente o caminho que será trilhado. Assim eles apresentam um duplo

15 sentido em analogia ao uso das abstrações: aparecem tanto como um aparato que impede o olhar teórico de apreender o todo, impedindo assim a sua investigação; como um meio pelo qual, dada a impossibilidade da apreensão imediata do todo, esse olhar teórico se direciona metodicamente àquelas determinações apreensíveis, organiza-as e, assim, reproduz a totalidade no pensamento. Ou seja, no primeiro sentido tomamos o olhar limitado como o todo, e os antolhos nos cegam. No segundo sentido, tomamos o olhar limitado como olhar limitado, e buscamos, por meio de um método, alcançar a totalidade a partir dessa limitação: aqui os antolhos nos guiam. Por último, gostaríamos de estabelecer algumas convenções. A primeira é acerca da periodização do pensamento de Marx. Partimos daquela sugerida por Vaisman (2000: 18-19), segundo a qual a maturidade do autor, caracterizada como "segunda fase" do seu pensamento, é "inaugurada" pelos Grundrisse de 1857/1858 e precedida por uma fase de transição que corresponde ao período de 1850/1856. O período 1843/1848, cujo marco inicial é a Crítica da filosofia do direito de Hegel, é considerado a "primeira fase marxiana", na qual transparece a originalidade do seu pensamento e se percebe nele uma ruptura. Essa ruptura se dá em relação ao período "propriamente juvenil", que corresponde a 1841/1843. Vaisman (2000: 18) considera ainda que "os textos que vão de 1841 [...] até 1847 não formam uma unidade, não podendo nem mesmo serem considerados como bloco preparatório para a obra posterior; [...]". Adotamos essa periodização, portanto, com duas ressalvas: segundo demonstrará nossa dissertação, por mais que concordemos em não considerar a produção marxiana do período 1841/1847 um "bloco preparatório", uma "unidade", isso não significa imediatamente a ausência de toda e qualquer conexão desses textos entre si e deles com os de maturidade. Como nosso argumento se baseia em uma linha de conexões entre esses textos que não apresentam, entretanto, uma continuidade muito clara, consideraremos, para efeitos didáticos, esse período de 1841/1847 como período de "juventude". De igual modo, apesar de mantermos a consideração do período de 1850/56 como uma "transição", o percebemos aqui como pertencente ao período de maturidade, uma vez que a forma da crítica de Marx sofre, já nessa "transição", uma mudança sensível: a busca pela sistematização da crítica. Deixamos claro, contudo, que não desconsideramos a crítica da filosofia do direito de Hegel como um marco de ruptura no pensamento marxiano. Apenas destacamos que há, em um texto de 1841, uma possível conexão que possibilita, do ponto de vista da problematização

16 aqui desenvolvida, uma continuidade entre os dois períodos - 1841/1843 e 1843/1848. Da mesma forma, os períodos de 1850/56 e 1857 em diante também aparecem unidos sob um ponto de vista problemático desta dissertação, a saber, a diferença entre a forma da crítica a partir de 1850 e aquela vigente até 1847. Assim sendo, essas ressalvas buscam tornar a periodização apresentada mais didática do ponto de vista do objeto deste trabalho. A segunda diz respeito ao tratamento dispensado às citações. Sempre que se tratar de um escrito em língua estrangeira, apresentaremos no corpo do texto a nossa tradução para o português seguida de uma nota de rodapé, na qual constará o trecho original citado, a fim de que haja a possibilidade de contestação da nossa leitura. Quando citarmos traduções já publicadas, elas serão sempre cotejadas com o texto original. No caso de divergências, substituiremos a(s) palavra(s) ou trecho(s) traduzido(s) por nossa solução, a qual estará marcada pelo uso de colchetes - "[]". Essa(s) substituição(ões) será(ão) sucedida(s) pela(s) palavra(s) ou trecho(s) original(is) correspondente(s), e estará(ão) marcada(s) pelo uso de parênteses - "()". Teremos de ignorar, portanto, quando utilizadas, o uso de colchetes nas traduções, de modo que elas apareçam como texto corrido e que nossas intervenções estejam em evidência. Caso julgarmos que a solução dada pela tradutora ou tradutor não contemplou plenamente o sentido por nós interpretado de um termo ou de uma oração, mas, ainda assim, não conseguirmos encontrar uma solução que resolva essa assimetria, conservaremos a solução dada, a qual será sucedida pelo termo ou oração original marcado pelo uso dos parênteses. Como existem alguns casos de traduções que se utilizam desse recurso e pode ocorrer que a ideia da tradutora ou tradutor coincida com a nossa, marcaremos os momentos dessa coincidência através da nota de rodapé. Mas, a princípio, as ocorrências desse recurso nas traduções publicadas serão ignoradas por nós. Em terceiro e último lugar, devido à grande quantidade de notas de rodapé do trabalho, elaboramos um sistema de classificação para elas a fim de que a leitora ou o leitor possam decidir se vale a pena ou não lê-las. Isso porque há muitas notas que, por exemplo, contém apenas os trechos originais dos escritos utilizados, e pode ocorrer que a leitora ou leitor não domine o idioma em questão, de modo que não haja razão para que a nota seja lida. As notas serão classificadas como: notas de tradução (NT), que trazem o escrito original traduzido por nós no corpo do texto ou algum comentário sobre a tradução; 2- notas de imersão (NI), que apresenta um aprofundamento de determinado aspecto apresentado no corpo do texto, o qual

17 poderia comprometer a dinâmica da cadeia de argumentos; 3- notas de ramificação (NR), que apresentam assuntos conectados a determinado aspecto do corpo do texto mas que extrapolam o tema do trabalho (achamos importante manter esses insights, para fazer desse trabalho tanto um documento de memória investigativa quanto para apontar as possibilidades suscitadas pelo tema); notas de esclarecimento (NE), que trazem esclarecimentos gerais sobre o texto em si, sendo utilizados, por exemplo, para explicar formas de sistematização do argumento ou apontar conexões futuras de aspectos determinados. Tendo estabelecido essas considerações introdutórias, expomos, a seguir, a redação de nossa dissertação.

18 1- A crítica marxiana de juventude à filosofia especulativa: sobre a questão das abstrações. Neste primeiro capítulo analisaremos a crítica marxiana de juventude a alguns aspectos da filosofia especulativa hegeliana, a fim de que se problematize a questão da relação entre abstração e realidade. Em primeiro lugar, queremos chamar a atenção para pelo menos dois aspectos do pensamento hegeliano apontados por Marx, os quais nos parecem centrais para o presente exercício: o aspecto "positivista" e especulativo desse pensamento1. Para encampá-los, discutiremos dois excertos de textos marxianos extraídos de A sagrada família e a Miséria da filosofia, nos quais poderemos acompanhar sua crítica ao processo especulativo de engendramento do concreto2 a partir de categorias abstratas e ao assim chamado "método absoluto". Depois de um primeiro contato com essa crítica - que se dirige a autores que teorizam a partir da chave hegeliana - buscaremos fundamentá-la a partir do embate crítico de Marx em face do próprio Hegel. Apresentaremos, então, tal qual nos sugere Zelený ([1968] 1974), um breve panorama do itinerário teórico de Marx no período 1841/1847, a fim de 1 NI: Esses aspectos são mencionados em Marx ([1844] 2004: 122, 130). Müller (1982: 26) os toma e os coloca como meios para compreender os seus textos de maturidade: "Daí a importância de reler O Capital também numa perspectiva de continuidade da crítica do jovem Marx a Hegel, particularmente da crítica ao duplo aspecto mistificador do idealismo: ao aspecto 'positivista', enquanto o dado imediato, o existente, transfigurado pela especulação, é assumido acriticamente e ratificado em sua positividade pelo sistema, e ao aspecto especulativo, propriamente idealista, enquanto resolução harmonizante das contradições numa unidade essencial, que se torna para Marx aparente, ideológica." (MÜLLER, 1982: 26) (grifos nossos) 2 NI: É importante aqui definir o que entendemos por concreto. Segundo Marx ([1857/58] 2011: 54): "O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece (erscheint) no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição (Anschauung) e da representação (Vorstellung). Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto [na via do pensar] (im Weg des Denkens)" (grifos nossos). Essa citação foi cotejada com Marx ([1857/1858] 1983). Temos aqui um concreto mediato, ou seja, o resultado de um processo de síntese da diversidade presente no mundo efetivo e reproduzido enquanto unidade no pensar. Ele pode ainda ser entendido, enquanto unidade sintética no pensar, como o conteúdo da consciência que, ao assumir formas diversas e determinadas, como p. e. intuições, sentimentos, etc., se mantém o mesmo, de modo que, sob essas tais formas determinadas, esse conteúdo se constitua objeto da consciência (HEGEL, [1830] 1995a: 42). A "matéria-prima", por assim dizer, desse concreto mediato seria o concreto imediato, os dados sensíveis do objeto em si externo à consciência tomado de maneira imediata, através de cuja "decomposição naqueles elementos que são, ao mesmo tempo, abstratos e objetivantes [...] se recompõe no pensamento o concreto mediado, o resultado do processo" (RANIERI, 1997/1998: 156) (grifos nossos). Na nota 4 de seu artigo, Ranieri (1997/1998: 155) aponta que tanto em Hegel como em Marx "o concreto só se apresenta como uma unidade sintética", sendo ele "a própria resolução da suprassunção (Aufhebung)". Quanto a isso, afirma Hegel (1995a: 167): "Esse racional [...] embora seja algo pensado - também abstrato -, é ao mesmo tempo algo concreto, porque não é unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por isso a filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com simples abstrações ou pensamentos formais, mas somente com pensamentos concretos". Portanto, não há identidade necessária e imediata entre "concreto" e "matéria" enquanto dado sensível. O "concreto" conota, portanto, antes e de modo geral, a síntese de determinações diversas mediada pela consciência.

19 situarmos aquela crítica no processo mais geral da apreciação marxiana do pensamento de Hegel. Depois, aprofundaremos a discussão que realiza Marx nesse período acerca da relação entre abstração e realidade no pensamento de Hegel. Veremos que aqueles dois aspectos não decorrem exclusivamente de uma má apreensão da filosofia hegeliana por seus intérpretes, mas resultam, antes e sobretudo, das próprias resoluções especulativas que conformam essa filosofia. 1.1- Crítica à construção especulativa: a subjetivação do predicado. Uma primeira aproximação geral ao problema que queremos trazer nesse ponto pode ser ilustrada pelo fragmento sobre o amor em A sagrada família (MARX; ENGELS [1845] 2003: 31-34)3, onde Marx critica a caracterização dada por Edgar Bauer a esse sentimento. O amor é, para Bauer, um "deus cruel" que "[...] quer possuir o homem por inteiro e não se mostra satisfeito antes de ter sacrificado não apenas sua alma, mas também seu ser físico". Assim aquele que ama é separado do próprio amor que é amado, de modo que a atividade levada a efeito pelo sujeito apareça fora dele, sendo ela mesma um ente apartado, autônomo, capaz não só de ter uma existência independente do sujeito que a realizara, mas de se apresentar como uma ameaça à própria existência do sujeito. Colocado de outro jeito, o predicado se transforma no sujeito, de tal modo que todas as determinações da essência (Wesensbestimmungen) e exteriorizações da essência do humano (Wesensäußerungen des Menschen) podem se rearranjar em inessência (Unwesen) e alienações da essência (Wesensentäußerungen). A forma como Edgar trata o amor seria análoga à forma como a Crítica crítica4 trata a crítica: essa última "enquanto predicado e atividade do homem" é tornada "um sujeito à parte, que diz respeito apenas a si mesmo e é, por isso, Crítica crítica: um 'Molloch' cujo culto é o autossacrifício, o suicídio do homem, ou seja, da capacidade humana de pensar" (MARX; ENGELS, 2003: 31). O problema da subjetivação do predicado aparece de forma grave quando colocada do ponto de vista da especulação, dado que os resultados dessa prática terão consequências positivamente significativas para a Crítica crítica, no sentido de constituir o modo do fazer 3 NE: As citações foram cotejadas com o original alemão (MARX; ENGELS [1845] 1962: 3-223). 4 NI: "Crítica crítica" é a designação dada por Marx e Engels ao grupo de Bruno Bauer que se articulou em torno da Allgemeine Literatur Zeitung e ao tipo de crítica lá produzida. A Allgemeine Literatur Zeitung era mensal e foi editada por Bruno Bauer entre dezembro de 1843 e outubro de 1844 (MARX; ENGELS, 2003: 15).

20 crítico do grupo de Bruno Bauer; e consequências negativamente significativas para a crítica marxiana de juventude à economia política, uma vez que o fazer teórico de Marx será, nesse momento, em ampla medida, marcado pela crítica à prática especulativa. Ele trata da forma da especulação filosófica e de suas implicações para o exercício da crítica no momento em que critica a crítica literária que Szeliga - pseudônimo de Franz Friedrich Szeliga von Zychlinski escreve no caderno de número 7 da Allgemeine Literatur Zeitung acerca do romance Mystères de Paris, de Eugène Sue. Vemos que ele se ocupará nesse ponto da construção especulativa de modo geral, de forma a transcender à argumentação de Szeliga, a qual pretende transformar o próprio Eugène Sue em um "Crítico crítico", na medida em que se interpreta o seu romance a partir das próprias categorias da Crítica crítica (MARX; ENGELS, 2003: 69). Não exploraremos essa argumentação na sua amplitude, pois não é nosso objetivo compreender as características de um "Crítico crítico", mas compreender a crítica marxiana à essa tal especulação filosófica. O argumento de Marx se inicia com uma identidade entre o "mistério da [apresentação] crítica (kritischen Darstellung5) dos 'Mystères de Paris'" e "o mistério da 5 NI: O tradutor parece confundir "representação" (Vorstellung) e "apresentação", "exposição" (Darstellung) quando, na verdade, elas apresentam diferenças conceituais profundas. Apesar de não haver uma definição de "representação" no texto em questão, e levando em consideração o ambiente cultural e filosófico do qual Marx, Engels e seus interlocutores participavam, é possível que a seguinte citação apresente uma pista a fim de determinarmos o sentido de "representação": "O conteúdo que preenche nossa consciência, seja de que espécie for, constitui a determinidade dos sentimentos, intuições, imagens, fins, deveres, etc., e dos pensamentos e conceitos. Sentimento, intuição, imagem etc. são nessa medida as formas de tal conteúdo, que permanece um só e o mesmo [...]. Em qualquer uma dessas formas ou na mistura de várias, o conteúdo é objeto da consciência. Mas, nessa objetividade, as determinidades dessas formas se juntam ao conteúdo, de modo que, segundo cada uma dessas formas, um objeto particular parece surgir, e - o que em si é o mesmo pode parecer um conteúdo diverso. Enquanto as determinidades do sentimento, da intuição, do desejo, da vontade etc., na medida em que delas se sabe, são chamadas em geral representações (Vorstellungen), pode-se dizer de modo geral que a filosofia põe, no lugar das representações, pensamentos, categorias e, mais precisamente, conceitos. As representações, em geral, podem ser vistas como metáforas dos pensamentos e conceitos. Mas, pelo fato de se terem representações, não se conhece ainda sua significação para o pensar, não se conhece ainda seus pensamentos e conceitos. Inversamente, são também duas coisas diversas, ter pensamentos e conceitos, e saber quais são as representações, intuições e sentimentos que lhe correspondem." (HEGEL, 1995a: 41-42) Confirmamos os termos alemães em Hegel ([1830] 2003a). Se para Hegel a representação "é o estágio intermédio entre a intuição (Anschauung), a apreensão sensorial de objetos externos individuais e o pensamento conceptual" (INWOOD, 1997: 287), a exposição (Darstellung) encontra-se em um estágio onde o pensamento já superou vários momentos rumo ao saber absoluto. Em Fulda (1978: 195-196) temos algumas indicações do que seria a exposição em Hegel e em Marx: se para ambos a exposição da matéria é a demonstração do desenvolvimento do conceito - e, portanto, o conceito é aqui pressuposto, isto é, já foi concebido -, há contudo entre eles diferenças quando se questiona sobre o que promoveria esse desenvolvimento, ou a partir do que se daria o seu movimento. Embora essas diferenças sejam interessantes - e elas serão exploradas em alguns momentos desta dissertação -, o importante por ora é ressaltar que a exposição indica a reprodução ideal do movimento de um objeto, sendo que esse movimento, para poder ser reproduzido em formato ideal (ideeles Gebilde), teve de ser submetido antes a um processo de conhecimento através do qual ele foi conceptualizado. Vale dizer que, em algum momento, esse processo de conhecimento terá de lidar com a questão sobre o que move o objeto, e essa

21 construção especulativa, da construção hegeliana" (MARX; ENGELS, 2003: 72). Esse mistério consiste basicamente na construção ideal de representações gerais a partir de elementos particulares efetivos, dentro das quais tais particularidades efetivas têm sua existência diluída; essa existência é alienada dos elementos efetivos para a representação, de modo que a representação se torne o ente a partir do qual as existências particulares ganham efetividade: assim a ideia engendra a efetividade. Esse argumento, bem como a sua crítica, ficarão mais claros ao acompanharmos o raciocínio de Marx nesse trecho. Para dar uma forma mais simples à ideia, ele trabalha com o exemplo das frutas (MARX; ENGELS, 2003: 72): quando parte-se das diversas frutas que se apresentam aos sentidos e se forma uma representação geral - "a fruta" - na qual essa diversidade pode ser diluída; quando imagina-se que essa representação abstrata induzida das frutas efetivas existe fora do sujeito que observa e é aquilo que há de verdadeiro na existência das frutas efetivas, "[acaba-se] esclarecendo - em termos especulativos - 'a fruta' como a 'substância' da pera, da maçã, da amêndoa, etc.". O essencial dessas frutas apreendidas pelos sentidos está para além de suas propriedades naturais, está no "ser abstraído delas [pelo sujeito] e a elas atribuído, o ser da representação [do sujeito], ou seja, 'a fruta'". Pera, maçã, amêndoa, etc. são assim meros modos de existência da "fruta", de forma que elas passam a valer apenas como frutas aparentes, tendo sua verdade encerrada na sua substância, na "fruta". Se o "entendimento (Verstand) finito, baseado nos sentidos" é capaz de distinguir as frutas na sua diversidade, a razão especulativa (spekulative Vernunft) acusa essa diversidade sensível como "algo não essencial e indiferente", como algo aparente, de modo que pela via do entendimento não seja possível alcançar uma "riqueza especial de determinações" que dê concretude à verdade por trás da aparência, ou da diversidade. Não basta também à especulação fazer da diversidade das frutas efetivas uma única "fruta" abstrata. É preciso que, através da tentativa de "retornar da 'fruta', da substância, para os diferentes tipos de frutas reais e profanas", chegue-se à aparência de um conteúdo efetivo (Schein eines wirklichen Inhaltes) (MARX; ENGELS, 2003: 73). Mas se é fácil engendrar, constituir (zu erzeugen) a representação abstrata "fruta" a partir das frutas efetivamente existentes, é muito mais difícil engendrar, constituir tais frutas a partir de uma representação abstrata. Marx chega a dizer que é "impossível, inclusive, chegar ao contrário da abstração ao se partir de uma abstração, quando não desisto dessa abstração". O filósofo especulativo resposta poderá ser tanto idealista quanto materialista. Pensamos que, com esses elementos apresentados, podemos estabelecer, ainda que de forma preliminar, uma separação entre representação e exposição.

22 desiste, assim, da abstração, mas desiste dela de "modo especulativo, místico, ou seja, mantém a aparência de não desistir dela". Mantendo-se o princípio, ainda que de forma aparente, de que a maçã, a pera, a amêndoa, etc. são tão somente sua substância, "a fruta", pergunta-se sobre a razão da aparente variedade acusada pelo entendimento do filósofo, a qual contradiz a sua intuição especulativa da unidade ao retornar da substância para seus elementos "profanos", ou seja, ao tentar processar a diluição da essência das frutas na experiência sensível. A negação dessa unidade seria uma realidade, se para o filósofo especulativo "a fruta" fosse um ente "morto, indiferenciado, inerte"; tal ente é para ele, antes, algo vivente e que se diferencia em si mesmo, algo movente: por isso a unidade não é negada. "As diferentes frutas profanas", explica Marx (MARX; ENGELS, 2003: 73), "são outras tantas manifestações de vida (Lebensäußerungen) da 'fruta una', cristalizações plasmadas 'pela própria fruta'". Ou seja, a substância, "a fruta", não é aqui simplesmente um construto intelectual que organiza a experiência sensível a partir de categorias prévias a essa própria experiência, uma mera abstração a priori, mas é um ente que engendra aqueles elementos efetivos que se apresentam à percepção a partir de sua própria existência, de tal forma que "a fruta" se dá (gibt sich) na maçã uma existência (Dasein) maçãnica, "na pera uma existência pêrica" (MARX; ENGELS, 2003: 73), etc. A variedade não é senão expressão das distintas fases do processo de vida da "fruta". Seria portanto um desperdício de energia intelectual tentar compreender as diversas frutas sem ter em vista a natureza dessa diversidade, qual seja pertencer a um processo mais geral, esse sim detentor de uma verdade que torna racional esse caos de espécies e subespécies de frutas. Aqui vale a citação: "A fruta" já não é mais, portanto, uma unidade carente de conteúdo, indiferenciada, mas sim uma unidade na condição de "totalidade" das frutas, que acabam formando uma "série organicamente estruturada". Em cada fase dessa série "a fruta" adquire uma existência mais desenvolvida e mais declarada, até que, ao fim, na condição de "síntese" (Zusammenfassung) de todas as frutas é, ao mesmo tempo, a unidade viva que contém, dissolvida em si, cada uma das frutas, ao mesmo tempo em que é capaz de engendrar a cada uma delas [...]. (MARX; ENGELS, 2003: 73-74)

Esse engendrar a existência do efetivo e esse expressar de modo misterioso tal existência é o que interessa à filosofia especulativa. Seria possível perguntar se Marx não incorre nessa especulação em sua obra O capital, notadamente naqueles trechos da seção I do livro I onde o valor parece ocupar o lugar da "fruta" como substância que engendra suas

23 próprias formas enquanto momentos distintos do seu processo de vida. Parece-nos, contudo, que quando Marx afirma o trabalho como a substância do valor, ainda nesta seção I, ele se livra dessa "acusação", de modo que essa especulação ganhe um novo sentido. Mas esse assunto está reservado para adiante. Agora nos interessa a crítica que o jovem Marx faz à filosofia especulativa e que aparece de maneira explícita na seguinte consideração: se as diversas frutas que encontramos aparecem, no mundo especulativo, como "momentos vitais 'da fruta'", de um ente intelectivo abstrato, elas mesmas são também entes intelectivos abstratos. As frutas efetivas são tornadas encarnações "'da fruta', do sujeito absoluto", criações intelectuais. O resultado do retorno da representação geral, da abstração, ao material a partir do qual se a tinha concebido, redunda, assim, na transformação de elementos determinados segundo propriedades naturais em elementos determinados de modo sobrenatural: aqui as frutas se tornaram "puras abstrações", determinadas a partir de uma "conexão mística" entre si e definidas em função de sua característica especulativa, "através da qual ela [a fruta particular] assume um lugar determinado no processo vital 'da fruta absoluta'", de modo que "a fruta" se realize em cada unidade "frutífera" efetiva (MARX; ENGELS, 2003: 74). Há, assim, por parte do filósofo especulativo, um processo criativo, na medida em que ele cria essas frutas a partir do seu intelecto abstrato. Esse seu intelecto aparece para ele, entretanto, como um sujeito absoluto exterior, independente dele, "a fruta". Vale dizer que esse ato de criação se dá não só com "a fruta", posto que seja só um exemplo, mas com toda existência que ele tente expressar pela via especulativa. Tal ato ocorre através da substituição das propriedades naturais dos elementos efetivos - propriedades essas "conhecidas universalmente e apresentadas à intuição [efetiva]" - pelas propriedades especulativas, ou melhor, através da "[atribuição dos] nomes das coisas [efetivas] àquilo que apenas o intelecto abstrato pode criar, ou seja, às fórmulas abstratas do intelecto (...)" (MARX; ENGELS, 2003: 75). A atividade própria das propriedades naturais das frutas efetivas é como que usurpada por essas fórmulas abstratas do intelecto, a partir do que essa atividade aparece como "autoatividade do sujeito absoluto, 'da fruta'". Afirma ainda Marx (MARX; ENGELS, 2003: 75): "A essa operação dá-se o nome, na terminologia especulativa, de conceber a substância na condição de sujeito, como processo interior, como pessoa absoluta, concepção que forma o caráter essencial do método hegeliano". É para esse aspecto do trato especulativo, do qual Szeliga lança mão ao substancializar a categoria mistério, que Marx chama atenção, a saber, a conversão do

24 "mistério" em sujeito independente, conversão essa que caracterizaria, segundo Marx (MARX; ENGELS, 2003: 75), a sua "altura verdadeiramente especulativa", a "altura hegeliana". Apesar da crítica marxiana se ocupar aqui com a crítica szeligiana, Marx chama atenção a um aspecto do modus operandi hegeliano que nos é particularmente interessante, do ponto de vista dos objetivos desta dissertação: [...] Hegel sabe [expor] (darzustellen) o processo pelo qual o filósofo passa de um objeto a outro através da intuição [sensível] (sinnlichen Anschauung) e da representação, com maestria sofística, como se fosse o processo do mesmo [ente] intelectivo imaginado (des imaginierten Verstandeswesens), do sujeito absoluto. Mas depois disso Hegel costuma oferecer, dentro da exposição especulativa, uma exposição real, através da qual é possível captar a própria coisa. E esse desenvolvimento real dentro do desenvolvimento especulativo induz o leitor, equivocadamente, a tomar o desenvolvimento especulativo como se fosse real e o desenvolvimento real como se fosse o especulativo. (MARX; ENGELS, 2003: 75)

A filosofia hegeliana, além de construir esse sujeito absoluto e por tratar de um conteúdo efetivo na sua especulação, acaba por criar um efeito ilusório, através do qual a realidade, a efetividade aparece como especulação, e a especulação como realidade, como efetividade. O que chama a atenção aqui, contudo, é que Marx percebe a presença dessa realidade, desse conteúdo efetivo, no pensamento especulativo hegeliano 6. Isso não ocorre, contudo, com a exposição de Szeliga. Não se trata, portanto, de classificar Hegel como um ilusionista teórico e lançá-lo ao ostracismo como se não tivesse nada a oferecer à teoria social. Se trata, antes, como nosso autor realizará mais tarde, de desvirar (umstülpen)7 a dialética que fora mistificada por Hegel, "a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico" (MARX, [1873] 2013a: 91). 6 NI: Tratarão desse aspecto da obra hegeliana, bem como da crítica de Marx à sua forma especulativa e estranhada, Schmied-Kowarzik (1981) e Arthur (2000) entre outros. 7 NI: O verbo umstülpen é traduzido nas obras de Marx correntemente como "inverter", tradução essa considerada insuficiente por Müller (1982), pois, com isso, parece que se trata simplesmente de "uma operação mágica trivial, como se bastasse pôr, novamente, a dialética hegeliana de pé, restabelecendo os direitos do realismo da consciência natural face ao idealismo de especulação, para que a pérola saísse sozinha da ostra. Não basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulação já inverteu [...]. É preciso. além de invertê-la, virá-la do avesso, [...] mostrando que as contradições presentes nos fenômenos não são a aparência de uma unidade essencial, mas a essência verdadeira de uma 'objetividade alienada' (e não da 'objetividade enquanto tal'), e que sua resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o lado aparente, mistificador, de uma realidade contraditória. Virando ao avesso a realidade invertida, alienada pelo capital [...], a contradição, que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, na pérola racional desta realidade, e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradições, revela-se como seu exterior aparente, o seu envoltório não só místico, mas mistificador" (grifos nossos). Isso será tratado no terceiro capítulo, mas achamos importante já deixar marcada essa compreensão sobre o verbo umstülpen.

25 De qualquer forma, nosso objetivo com esse trecho foi apontar a crítica que o jovem Marx endereçara à filosofia especulativa, notadamente àquela que se apresenta à altura hegeliana, ou seja, àquela onde a representação geral, a abstração, enquanto sujeito independente, "se encarna nas situações de pessoas reais, e cujas manifestações de vida são condessas, marquesas, grisetes, porteiros, notários, charlatães e intrigas amorosas, bailes, portas de madeira, etc." (MARX; ENGELS, 2003: 75). 1.2- Crítica à construção "positivista", ou o resultado da especulação tornado imediato. Dado esse problema relativo ao fazer filosófico idealista que diz respeito à autonomização de um predicado subjetivado através de um processo especulativo que, como apontou Marx, acaba por tornar os entes naturalmente determinados em algo determinado de forma "sobrenatural", podemos observar o prolongamento dessa problemática à questão das categorias econômicas na sua crítica ao Système des contradictions économiques ou Philosophie de la Misère, de Pierre-Joseph Proudhon. O livro Miséria da filosofia8, onde se dá essa crítica, foi escrito no inverno europeu de 1846-1847, "quando Marx", segundo Engels ([1884] 2009: 195, [1884] 1977: 558), "[chegou] (gekommen war) definitivamente [a]os princípios fundamentais de suas novas concepções (Anschauungsweise)

históricas e

econômicas9". Desse apontamento geral deriva a importância da obra, tanto para o exercício de compreensão do pensamento crítico de Marx, como para a afirmação da continuidade e da validade da problemática apontada anteriormente que, como veremos, exercerá um papel fundamental não só na sua crítica a Proudhon, mas também no desenvolvimento da sua crítica à economia política. Vale dizer que tal significância persiste, apesar de possíveis polêmicas que possam ser suscitadas em torno dessa obra de Marx 10. Nosso interesse se detém, de modo 8 NE: Dados os objetivos desta dissertação, não nos interessa avaliar se a resposta de Marx a Proudhon é realmente justa. Entretanto, existem algumas notas de rodapé interessantíssimas na edição brasileira (MARX, [1847] 2009) por nós aqui utilizada, onde são apresentadas anotações feitas por Proudhon no seu exemplar de Miséria da filosofia que nos instiga a retornar ao Filosofia da miséria a fim de fazer essa avaliação, já que em diversos momentos ele acusa Marx de escrever calúnias e mentiras a seu respeito, bem como nega alguns momentos da interpretação marxiana. 9 NI: Marx ([1859] 1985: 131) é da mesma opinião em sua maturidade: "Os pontos decisivos de nossa opinião [de Marx e Engels] foram indicados cientificamente pela primeira vez, ainda que apenas de uma forma polêmica, em meu escrito Miséria da filosofia [...] publicado em 1847 e dirigido contra Proudhon". 10 NR: Como sabemos, a edição alemã foi lançada em 1885 (a primeira edição foi francesa e lançada em 1847), seguidas de edições em 1892 e 1895, cuja tradução foi assinada por Eduard Bernstein e Karl Kautsky e, de alguma forma, apreciada por Engels (visto que ele escreve os prefácios dessas edições). Portanto, a primeira edição alemã apareceu dois anos após a morte de Marx, de modo que ele não pôde dar o aval da tradução, como foi feito com a edição francesa do livro I de O Capital. Dado o contexto do processo de formação da Segunda Internacional, e sendo traduzido por quem foi, levanta-se não só um problema para a compreensão

26 geral, no §1. O método do capítulo 2- A metafísica da economia política, onde Marx fará 7 observações críticas acerca do método utilizado por Proudhon para construir seu "sistema de contradições"; e, de modo particular, nos ateremos aos elementos que essa crítica suscitará do ponto de vista do problema da relação entre abstração e realidade no contexto de um fazer teórico fortemente influenciado pela filosofia especulativa. Já na primeira observação é possível perceber a identidade temática entre o trecho de A sagrada família tratado anteriormente e aquilo que será aqui criticado. Mas se antes o foco estava na construção especulativa de representações gerais a partir de uma intuição que se origina no sensível, as quais adquiriam autonomia ou autoatividade no processo especulativo, aqui o foco se colocará no próprio movimento do resultado desse processo, o qual será discutido através de uma apresentação do movimento da dialética hegeliana enquanto "método absoluto". Ou seja, o resultado do processo especulativo que se movimenta em função da sua própria legalidade lógica - lógica essa expressiva da substância desse resultado - aparece como dado imediato ao intelecto, sem uma problematização da sua gênese que remeta esse intelecto para fora do próprio resultado em si - isto é, para o seu processo de desenvolvimento que culmina na forma desse resultado - e a ele retorne para explicitar suas mediações, suas conexões internas. Daí o seu teor "positivista": explica um dado imediato sem o submeter ao questionamento crítico da sua forma de ser, mas tão somente a partir da sua posição em um determinado sistema teórico prévio e exterior a esse dado. A questão que se coloca aqui é: como esses resultados, ou categorias econômicas, expressam, a partir do seu movimento dialético, a existência das relações sociais efetivas? Segundo Marx, na tentativa teórica da obra a partir das edições alemãs, mas uma possibilidade investigativa do ponto de vista de uma história das ideias. O que nos interessa nesta dissertação, pois, em primeira instância, é o problema teórico. E esse se dá, ao nosso ver, por exemplo, quando existem duas palavras para "relação" na edição alemã (Verhältnis e Beziehung) enquanto no francês, apenas uma (rapport); e dois adjetivos para "relação" na edição alemã (sozial e gesellschaftlich), quando na edição francesa só há um adjetivo (sociaux). Ou ainda quando, como apontado em nota à página 130 da edição alemã publicada na Marx-Engels Werke (MARX, [1885] 1977), a expressão productivité materielle utilizada por Marx em 1847 é traduzida nas edições alemãs de 1885, 1892 e 1895 por Produktionsweise, ou "modo de produção". As causas, ou a causa, dessas diferenciações ou opções feitas por Bernstein e Kautsky podem, ou pode, apresentar uma polêmica que, intuímos, tenha relação com uma leitura que um grupo específico da Segunda Internacional tenha feito da obra de Marx a partir de uma compreensão teórica prévia da realidade social. Além dessa polêmica, Menezes (1966: 30) nos apresenta outra: Edgar Bauer, Max Stirner e Moses Hess, na condição de refugiados alemães na França da década de 1840, teriam antecipado a crítica que Marx endereçara a Proudhon, por considerarem ele "o mais genuíno representante do socialismo francês". E afirma: "[...] escrevendo seu libelo, Marx, sempre tão cioso na citação das fontes de suas análises, silenciou as críticas coetâneas, assumindo, aos olhos embasbacados de marxistas alheios às fontes ideológicas, o papel de semideus, esmagando sozinho todas as erronias do autodidata [Proudhon]." (grifo nosso). Acrescentamos que Marx não só "silenciou as críticas coetâneas", como também as criticou. Veja-se, por exemplo, em A sagrada família (MARX; ENGELS, 2003: 34-67), na qual se critica a crítica de Edgar Bauer a Proudhon, acusando o jovem hegeliano de "construir" um Proudhon a ser criticado através de sua "tradução caracterizadora".

27 de aplicar a dialética à economia política a fim de responder à essa questão, Proudhon "conseguiu reduzi-la às mais mesquinhas proporções" (MARX, 2009: 124-125)11. Mas, antes de entrar nessa questão, é preciso deixar claro que a intenção de Proudhon, segundo Marx, não é fazer "uma história segundo a ordem temporal, mas segundo a sucessão de ideias" (MARX, 2009: 120). Isso porque a manifestação das categorias econômicas não estaria subordinada à sua temporalidade, ou seja, elas se manifestariam em diversas temporalidades sem respeitar uma sucessão histórico-genética. As teorias econômicas teriam, antes, "a sua sucessão lógica e a sua série no entendimento" (MARX, 2009: 120) (grifos do original francês), ordem essa que Proudhon teria se orgulhado de ter descoberto. Para ele, as categorias econômicas já estão formadas: elas foram utilizadas pelos economistas para exprimir as relações de produção burguesa e aparecem, nesse exercício, "como categorias fixas, imutáveis, eternas" (MARX, 2009: 120) (grifo nosso). Importaria a Proudhon "nos explicar o ato de formação, a geração dessas categorias, princípios, leis, ideias, pensamentos" (MARX, 2009: 120) (grifo nosso), ou seja, dessas categorias imutáveis e eternas. A crítica de Marx vai no sentido de apontar que a imutabilidade dessas categorias deriva do fato delas estarem conectadas às relações burguesas de produção, sendo que tais relações apareceriam para Proudhon como dadas e não como algo historicamente construído. Nem os economistas, nem Proudhon teriam questionado, portanto, o processo histórico de produção dessas relações. Diante disso ajuíza Marx (2009: 121): [...] a partir do momento em que não se persegue o movimento histórico das relações de produção, de que as categorias são apenas a expressão teórica, a partir do momento em que se quer ver nessas categorias somente ideias, pensamentos espontâneos, independentes das relações reais, a partir de então se é forçado a considerar o movimento da razão pura como a origem desses pensamentos. (grifos nossos)

Ao ser "forçado a considerar o movimento da razão pura como origem desses pensamentos12", a origem das categorias econômicas é colocada dentro dos parâmetros da especulação filosófica, do movimento da razão pura. Como se daria, então, essa origem, ou 11 NE: A citações desse texto foram cotejadas com o original francês (MARX, [1847] 1972) e com a edição alemã (MARX, 1977: 63-182). 12 NI: Proudhon parece concordar com esse diagnóstico de Marx. Na nota 117 (MARX, 2009: 121) lemos o seguinte: "No seu exemplar [de Miséria da filosofia], Proudhon anotou: 'Certamente que se é forçado, porque, na sociedade, tudo é, não importa o que se diga, contemporâneo; como, na natureza, todos os átomos são eternos'. Rubel [editor das Oeuvres/Économie de Marx] considera essa 'observação bem obscura', e aventa a hipótese de que ela tenha qualquer relação com as reflexões epistemológicas que, sobre o atomismo, estão no 'prólogo' da obra de Proudhon".

28 seja, como esse tal movimento procederia, segundo Proudhon, para engendrar pensamentos, ou categorias econômicas? Ao responder essa pergunta, Marx aponta o papel desempenhado pelo pensamento de Hegel na economia política de Proudhon. Ele esclarece: por ser essa razão pura uma abstração, um sujeito que prescinde de outros elementos através dos quais se dê a sua existência, sendo tal existência, assim, um resultado da sua própria autoatividade, é preciso pensar que ela não tem fora de si "nem terreno sobre o qual possa pôr-se, nem objeto ao qual possa opôr-se, [nem sujeito com o qual possa compor-se13]" (grifos nossos), de modo que põe, opõe e compõe a si mesma, o que equivale à "fórmula sacramental: afirmação, negação e negação da negação14" (MARX, 2009: 121) de si e por si. Confere-se, pois, à razão pura, por assim dizer, uma agência para consigo mesma por meio da qual ela se autoengendra. Não há portanto um agente material, um indivíduo que age ou ao qual reage: "Em lugar do indivíduo comum, com a sua maneira comum de falar e pensar, o que temos é essa maneira comum inteiramente pura, sem o indivíduo" (MARX, 2009: 121-122). Quando se trata da abstração de algo, ou seja, quando se trata de um processo pelo qual se abandona (laisser tomber) aqueles traços individuais, materiais e constitutivos que definem as distinções de um ente com relação a outro, lidamos com algo que, no limite e ao fim de tal processo, conserva de si tão somente categorias lógicas expressivas de alguma dimensão de sua existência concreta. Essas categorias lógicas podem ser entendidas, especulativamente, como portadoras da substância dos objetos ou como sujeitos abstratos. Essa substância corresponde àquele elemento essencial que dá realidade e identidade às formas diversificadas que se apresentam na efetividade. Tal exercício de abstração é realizado pelos metafísicos como se fosse um exercício de análise. A consequência desse tipo de exercício é que daí decorre a possibilidade de "que tudo o que existe [...] possa ser reduzido, à força de abstração, a uma categoria lógica; que, desse modo, todo o mundo real possa submergir no mundo das abstrações, no mundo das categorias lógicas [...]" (MARX, 2009: 122). Portanto, a consequência é justamente a possibilidade da especulação converter a diversidade concreta do "mundo real" em uma rede de conexões "místicas" ou lógicas derivada da autoatividade de uma entidade metafísica. Como as coisas existentes não aparecem ao observador como uma coleção de elementos inertes e ordenados - ou um rol de substâncias revestidas de categorias lógicas -, 13 NT: Tradução nossa de: "[...], ni sujet avec lequel elle puisse composer, [...]" (MARX, 1972: 115). Não há essa frase em Marx (2009). 14 NE: A tríade afirmação, negação, negação da negação é também formulada como posição, oposição, composição e como tese, antítese, síntese (MARX, 2009: 121).

29 mas antes "tudo o que existe, [...] existe e vive graças a um movimento qualquer" (MARX, 2009: 122), então é possível também abstrair os traços distintivos dos movimentos específicos, tornando-se assim possível chegar "à fórmula puramente lógica do movimento" (MARX, 2009: 123). Assim como a substância de todas as coisas se encerraria nas categorias lógicas, "imagina-se encontrar na fórmula lógica do movimento o método absoluto, que tanto explica todas as coisas como implica, ainda, o movimento delas" (MARX, 2009: 123). Reduzindo os objetos e seus movimentos respectivamente às categorias lógicas e seu método, a metafísica aplicada se apropriaria da efetividade. Apontada essa conexão entre movimento e método15 através do qual a metafísica apreende e reproduz o efetivo, retorna-se ao problema colocado acima acerca do procedimento da razão pura para o engendramento das categorias econômicas. O método absoluto é apontado por Marx como abstração do movimento, ou seja, como "a fórmula puramente lógica do movimento ou movimento da razão pura" (grifo nosso) que, como vimos acima, consiste em, por si mesmo, "afirmar-se, negar-se, negar sua negação" (MARX, 2009: 123). A realização desses momentos, à qual estaria submetido o curso da existência da categoria, se daria, pois, pela própria razão no seu movimento. Quanto à explicação sobre como se dá a afirmação, posição ou tese dessa razão, Marx não aponta ainda qualquer elemento posto por Proudhon, o que indica que esse primeiro momento é dado, concentrandose assim nos desdobramentos que se dão a partir dessa afirmação, posição ou tese, os quais são constitutivos desse processo de apresentação de novos pensamentos ou categorias ao real. Esse processo se dá como segue: após a razão se pôr enquanto tese - e ressaltamos que esse momento ainda não é problematizado -, essa tese, que é um pensamento, algo oposto a si mesmo, desdobra-se, tornando-se dois pensamentos contraditórios, os quais, estando em luta um com o outro, são encerrados na antítese, constituindo o movimento dialético. Nessa luta, nessa interação entre contrários, nessa interação contraditória entre sim e não, há um ponto onde o movimento cessa. Esse ponto, onde os contrários entram em equilíbrio, é alcançado após o sim tornar-se não, o não tornar-se sim, o sim tornar-se ao mesmo tempo sim e não e o não tornar-se ao mesmo tempo não e sim. Nesse momento, os dois pensamentos se fundem em um novo, qual seja a síntese. A síntese se submete ao mesmo processo: põe-se como tese, desdobra-se em dois pensamentos contraditórios, os quais se fundem dialeticamente em nova 15 NE: Veremos adiante que essa conexão - aqui criticada por expressar a autoatividade da razão pura e sua primazia diante do efetivo - é retomada por Marx para pensar a exposição crítica das categorias econômicas em sua maturidade.

30 síntese. Do conjunto de repetições desse processo temos um novo grupo de pensamentos que, ao se submeter, enquanto grupo unitário, ao mesmo movimento dialético a que se submetem as categorias simples, se opõe a um outro grupo unitário de pensamentos a ele contraditório. Dessa relação temos uma nova síntese desses grupos contraditórios, que se apresenta como um grupo de pensamentos diverso dos dois anteriores. Nesse processo, portanto, o movimento dialético das categorias simples engendra os grupos, o movimento dialético destes engendra as séries, e o movimento dialético destas engendra o sistema (MARX, 2009: 124). Se esse processo, ou esse método, é aplicado à economia política, ter-se-á a lógica e a metafísica da economia política, ou, em outros termos, as categorias econômicas que todos conhecem traduzidas numa linguagem pouco conhecida, o que lhes dá a aparência (qui leur donne l'air d'être) de recém-desabrochadas de uma cabeça da razão pura - porque essas categorias parecem (semblant) engendrar-se umas às outras, encadear-se e entrelaçar-se umas às outras graças ao exclusivo trabalho do movimento dialético.16 (MARX, 2009: 124) (grifo nosso)

Segundo Marx, o que Proudhon faz, contudo, é não "passar dos dois primeiros degraus da tese e da antítese simples", de modo que, conforme foi afirmado, reduz a dialética hegeliana "às mais mesquinhas proporções" (MARX, 2009: 124). A intenção de Proudhon em fazer uma história que expresse a "sucessão das ideias no entendimento" está ancorada na concepção de Hegel, segundo a qual tudo o que acontece ou aconteceu é o que acontece no raciocínio, não havendo, assim, outra possibilidade de lidar com as categorias dadas senão as reconstruindo "de forma sistemática e [as] ordenando segundo o método absoluto" (MARX, 2009: 125). Segundo a nota 122 (MARX, 2009: 125), próximo a esse trecho Proudhon teria anotado o seguinte em seu exemplar de Miséria da filosofia: "Foi o que pretendi fazer, e creio que já é alguma coisa. A sua primeira observação 16 NI: Posteriormente Marx censura outro teórico que tenta aplicar o assim chamado método dialético hegeliano à economia política. Em carta a Engels de 01 de fevereiro de 1858 onde é comentado o livro sobre Heráclito, o obscuro, escrito por Ferdinand Lassalle, "o claro" (MARX, 1978b: 274), Marx escreve: "[...] o rapaz [Lassalle] pretende apresentar hegelianamente a economia política em seu segundo grande opus. Ele tomará conhecimento, para seu próprio revés, que uma coisa é trazer uma ciência, através da sua crítica, ao ponto onde ela pode ser exposta dialeticamente, e outra completamente diferente é aplicar um sistema abstrato e pronto da lógica a suspeitas que são precisamente de tal sistema." (MARX, 1978b: 275) (grifos nossos) Retomaremos essa questão mais adiante, a fim de apurar esse processo de "trazer uma ciência, através de sua crítica, ao ponto onde ela pode ser exposta dialeticamente". Tradução nossa de: "[...] der Kerl vorhat, die politische Ökonomie hegelsch vorzutragen in seinem 2ten großen opus [nota 255: Ferdinand Lassalle, 'Herr Bastiat-Schulze von Delitzsch, der ökonomische Julian, oder: Capital und Arbeit', Berlin 1864. 275 404 515 520 567]. Er wird zu seinem Schaden kennenlernen, daß es ein ganz andres Ding ist, durch Kritik eine Wissenschaft erst auf den Punkt bringen, um sie dialektisch darstellen zu können, oder ein abstraktes, fertiges System der Logik auf Ahnungen eben eines solches System anzuwenden."

31 não observa nada". Como veremos mais adiante, tal reconstrução e ordenamento das categorias econômicas é a empresa que Marx realiza - de forma diversa à qual realiza Proudhon, vale dizer - a partir dos Grundrisse segundo seu método de investigação e de exposição. Vale sublinhar que essa reconstrução marxiana é diferente da pretendida por Proudhon, posto que pressupõe uma crítica às categorias econômicas, a qual busca apreender a sua historicidade, ou seja, esclarecer a sua conexão com relações sociais determinadas e transitórias e, portanto, afirmar a mutabilidade dessas categorias em função dessa conexão 17. Esse posicionamento de Marx, que é possível perceber de forma mais clara nas próximas observações, é recorrente nos seus escritos de maturidade e é fundamental para a compreender a questão da relação entre método de investigação e método de exposição na sua crítica à economia política. Sigamos, portanto, pelas observações seguintes, a fim de tornar mais concreta a afirmação da historicidade das categorias econômicas em Marx, a qual é crítica de um teorizar que se ancora em abstrações vazias e imediatas. Logo no início da segunda observação, Marx afirma que "as categorias econômicas 17 NI: Essa ideia de historicidade fica um tanto vaga quando não definimos o que se compreende aqui por história. Em A ideologia alemã, de 1845/1846, encontramos alguns trechos que fornecem elementos que, longe de esgotar a questão sobre a história em Marx e Engels, a qual é ampla e foge às limitações do presente trabalho, podem auxiliar em uma definição preliminar. Os pressupostos efetivos da história, "de que só se pode abstrair na imaginação (Einbildung)" e dos quais Marx e Engels partem, "são os indivíduos [efetivos] (wirklichen), sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação" (MARX; ENGELS, 2007: 86-87). Esses indivíduos, por meio da sua organização corporal, interagem com a natureza exterior e, assim, produzem seus meios de vida; criam, dessa forma, sua vida material, transformando, a partir dessa criação, os fundamentos naturais sobre os quais agem. O modo pelo qual produzem os meios de vida, ou o modo de produção, é "uma forma (Art) determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles" (MARX; ENGELS, 2007: 87). Percebe-se, então, uma estreita relação entre o que e como se produz e o que esses indivíduos são. Afirma-se em outro trecho: "Essa concepção de história consiste [...] em desenvolver o processo real (wirklichen) de produção a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de intercâmbio (Verkehrsform) conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas de consciência religião, filosofia, moral etc. etc. - e em [perseguir] (verfolgen) o seu processo de nascimento a partir [deles] (ihren Entstehungsprozeß aus ihnen), o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos)" (MARX; ENGELS, 2007: 42) (grifo nosso). Aqui já se colocam outros elementos que se desdobram daqueles pressupostos efetivos, como a forma de intercâmbio conectada ao modo de produção ou, dito de outro modo, a sociedade civil, a partir da qual não só seria possível explicar as "criações teóricas e formas de consciência" - das quais a própria sociedade civil teria nascido -, como se tornaria possível a apresentação (Darstellung) da coisa em sua totalidade, ou seja, levaria a coisa "ao ponto onde ela pode ser exposta dialeticamente". Em suma, é uma concepção de história que se prende ao "solo da história real" na medida em que tem necessidade "não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que todas as formas e produtos da consciência não podem ser dissolvidos por obra da crítica espiritual [...], mas apenas pela demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas enganações idealistas [...]" (MARX; ENGELS, 2007: 43). As citações dessa nota foram cotejadas com Marx e Engels ([1845/1846] 1978).

32 são expressões teóricas, abstrações das relações sociais de produção" (MARX, 2009: 125). Aqui queremos ressaltar, de início, dois aspectos: primeiro, a apreensão das categorias como expressão, abstração de algo concreto, de relações sociais; e segundo, o fato do qualitativo econômico dessas categorias implicar no fato das relações sociais por elas exprimidas serem determinadas pela produção. Podemos inferir disso que, para Marx, haveria uma especificidade daquilo que é econômico, qual seja a produção da vida material ou a atividade realizada pelos indivíduos em sociedade a fim de atender demandas colocadas pelas suas próprias necessidades, atividade essa que pressupõe uma cultura (Bildung) ao mesmo tempo que a desenvolve. Essa especificidade se mostra, assim, universalizante na medida em que não podemos conceber um indivíduo que não tenha necessidades, e nem uma sociedade onde não haja indivíduos organizados em torno delas. Nesse sentido, assim como os seres humanos produzem os meios de vida para saciar suas necessidades vitais a partir de relações determinadas de produção, nas quais são postos, essas relações sociais determinadas são também produzidas pelos homens [...] [, as quais] estão intimamente ligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens transformam o seu modo de produção, e [ao transformar o modo de produção, a maneira de ganhar a sua vida] 18, eles transformam todas as suas relações sociais. (MARX, 2009: 125) (grifos nossos)

Se o estabelecimento das relações sociais realizado pelos seres humanos se dá, segundo Marx (MARX, 2009: 126), de modo condicionado pela sua produtividade material, a produção das categorias, bem como a de princípios, ideias, etc. se dá, pelos mesmos seres humanos, segundo suas relações sociais. Fica assim estabelecida a historicidade e transitoriedade das categorias econômicas, pois a ação do ser social - ou a ação recíproca dos 18 NT: Na edição brasileira lemos: "[...] ao transformá-lo [o modo de produção], alterando a maneira de ganhar a sua vida, eles transformam todas as suas relações sociais". Disso podemos entender que ao transformar o modo de produção, altera-se a maneira de ganhar a vida, como se fossem dois processos distintos onde um reage ao outro. Já na edição francesa lemos: "[...] en changeant le mode de production, la manière de gagner leur vie, ils changent tous leurs rapports sociaux" (MARX, 1972: 119). Aqui o entendimento é diferente: o modo de produção é definido como "a maneira de ganhar a sua vida", sendo portanto "modo de produção"e "maneira de ganhar a sua vida" um só processo. Essa interpretação é confirmada pela tradução alemã, onde se lê: "[...] mit der Veränderung der Produktionsweise, der Art, ihren Lebensunterhalt zu gewinnen, verändern sie alle ihre gesellschaftlichen Verhältnisse" (MARX, 1977: 130). Explicamos: Weise (modo) e Art (maneira, uma sorte de algo) são palavras femininas, de modo que seu artigo definido declinado no caso genitivo, assim como ocorre na citação, seja der e não die (caso nominativo). O caso de declinação genitivo é utilizado aqui pois indica uma conexão possessiva entre os substantivos. Quando lemos "Veränderung der Produktionsweise, der Art", entendemos "mudança do modo de produção, da maneira". Aqui o substantivo "mudança" se refere ao "modo de produção" e à "maneira" segundo a qual os homens ganham sua vida, sendo portanto o modo de produção definido como essa maneira humana, social de ganhar a vida.

33 indivíduos organizados em função das suas necessidades -, que tem o poder de estabelecer as relações sociais, está imerso em "um movimento contínuo de crescimento das forças produtivas" (MARX, 2009: 126), o que redunda em um movimento de destruição e invenção contínua das relações sociais e de formação constante de novas ideias. Tudo está em movimento, nascendo, morrendo e renascendo sob outra forma e combinado com outros elementos. Se o que há de imutável nesse mundo que se desmancha no ar é a abstração, e se o movimento está em todas as coisas existentes, então "de imutável, só existe a abstração do movimento", a "mors immortalis19" (MARX, 2009: 126). Colocada a negação da imutabilidade das categorias econômicas através da conexão vital entre elas e as relações sociais de produção, cuja existência é marcada pela sua efemeridade, Marx parte, na terceira observação, para a consideração das relações econômicas no seu todo onde é apontado o problema da sucessão dessas relações. Há, para Proudhon, uma conexão entre todas as relações econômicas - consideradas por ele como "fases sociais" - "que se engendram umas às outras, que resultam umas das outras assim como a antítese resulta da tese, e que realizam, na sua sucessão lógica, a razão impessoal da humanidade" (MARX, 2009: 126) (grifo nosso). Ressaltamos: as relações econômicas são aqui fenômenos particulares que, através da sucessão lógica dessas particularidades, ou seja, através do todo logicamente ordenado dessas particularidades, demonstraria a realização de uma razão impessoal. Se é na realização da razão, ou na sucessão lógica das relações econômicas, onde reside a inteligibilidade de uma relação econômica particular, então, para que se explique essa 19 NR: Segundo nota 124 (MARX, 2009: 126), mors immortalis é um termo latino retirado de um verso de Lucrécio escrito em De rerum natura, o qual diz "mortalem vitam mors immortalis ademit", que quer dizer "a morte imortal ceifou a vida mortal". A abstração é aqui, portanto, comparada a uma morte imortal, ou seja, a transformação de um ente que existe em movimento - a vida mortal - em um ente sem movimento cuja existência se petrifica, se eterniza em uma fórmula lógica - a morte imortal - tal qual um busto esculpido de uma personalidade qualquer que acaba de morrer. O que é eternizado sob a forma de abstração substitui, assim, o que é contingente sob a forma de vida. É como Paulo escreve em 2 Coríntios, capítulo 3, versículo 6: "[...] a letra mata, mas o espírito vivifica". Nesse momento, ele faz uma comparação entre a Velha e a Nova Aliança, ressaltando a centralidade da lei como principal distinção entre elas: se antes havia um "ministério de morte, gravado com letras em pedras" (2 Cor. 3: 7) - alusão aos dez mandamentos escritos por Deus em tábuas de pedra, sobre os quais se fundamentou a lei mosaica -, há agora um "ministério do Espírito" (2 Cor. 3: 8) segundo o qual "o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade" (2 Cor. 3: 17). Tão logo a liberdade se codifica e é tornada lei, morre assim o movimento, a liberdade, o Espírito. Em carta a Annenkov de 28 de dezembro de 1846, Marx (2009: 253) escreve: "A abstração, a categoria considerada como tal - ou seja, separada dos homens e da sua ação material - é, naturalmente, imortal, inalterável, impassível; não é mais que um ser da razão pura, o que significa dizer, simplesmente, que a abstração, considerada como tal é abstrata - admirável tautologia!". Isso denuncia o vazio explicativo causado por uma conexão entre abstração ou categoria e relação social que confere às primeiras uma existência independente e as qualifica como "causa primária".

34 relação, se faz necessário que se retome todas as relações econômicas de uma dada sociedade, as quais devem ser engendradas pelo movimento dialético. Proudhon se veria obrigado, assim, a explicar categorias econômicas através de outras que ainda não existem na sua sucessão lógica. Por exemplo, para Proudhon explicar o valor, que "é a base de todas as evoluções econômicas, não podia prescindir da divisão do trabalho, da concorrência etc." (MARX, 2009: 126), ou seja, para afirmar a primeira relação na sucessão lógica, ele tem que recorrer a relações posteriores, ainda inexistentes naquele momento lógico. Marx (2009: 127), que entende a sociedade como um locus onde "todas as relações coexistem simultaneamente, sustentando-se umas às outras", questiona, assim, a capacidade dessa "fórmula lógica do movimento, da sucessão, do tempo" explicar, por si só, esse todo social20. O tratamento desse problema da sucessão lógica das relações econômicas irá redundar, por meio da aplicação proudhoniana da lógica dialética hegeliana à economia política, em modificações a essa mesma dialética. A contradição presente em cada categoria econômica seria entendida por ele como a unidade do seu lado bom e mau, o que significa que as categorias econômicas apresentariam, a um só tempo, vantagens e inconvenientes segundo seu conteúdo (MARX, 2009: 127). A definição do conteúdo de ambos os polos enquanto "bom" ou "mau" acabaria ficando, segundo Marx (MARX, 2009: 129), a cargo do julgamento do próprio Proudhon que, ao ignorar a razão impessoal por ele mesmo evocada, a partir da qual as categorias se põem e se opõem a si mesmas pela sua própria natureza contraditória, "se move, se debate e se agita entre os dois lados da categoria". A assim chamada razão impessoal adquiriria, portanto, uma pessoalidade proudhoniana. O movimento dialético passaria a ser, para ele, "a distinção dogmática entre o bom e o mau" (MARX, 2009: 128), entre a vantagem e o inconveniente de uma dada categoria econômica. Propor-se-ia, assim, o problema de eliminar o "lado mau" de cada categoria, conservando o seu "lado bom"21. Contudo,

ao

propor

a

eliminação

do

"lado

mau",

Proudhon

proporia,

consequentemente, o encerramento do mesmo movimento dialético no qual reivindica se ancorar, uma vez que esse movimento é constituído pela "coexistência de dois lados contraditórios, sua luta e sua fusão numa categoria nova" (MARX, 2009: 129). Assim, a posição de novas categorias para Proudhon se daria, segundo Marx, não através de um 20 NR: Parece-nos que esse problema da sucessão das categorias é enfrentado e resolvido, segundo o juízo de Marx, a partir do método de exposição realizado no livro I de O Capital. 21 NI: Podemos ver na nota 128 (MARX, 2009: 129) que, em uma de suas anotações, Proudhon nega essa intenção de suprimir o "lado mau" apontada por Marx, classificando essa interpretação de "calúnia" e "mentira".

35 movimento dialético hegeliano - tal qual apresentado anteriormente -, mas através do exercício de tomar uma categoria qualquer e lhe atribuir, "arbitrariamente, a qualidade de veicular a correção dos inconvenientes da categoria que é necessário depurar" (MARX, 2009: 129). Constrói-se, então, uma série ordenada composta por categorias econômicas na qual uma serve de antídoto à outra, cuja ordem é estabelecida em função da relação entre a categoria a ser depurada e aquela que irá "corrigir" seus inconvenientes, sendo que esta última não está isenta de ter um "lado mau", o qual será "remediado" por uma outra categoria que possui qualidade para tal, e assim por diante. Posta a redução do processo do movimento dialético à simples oposição entre "bom" e "mau", à busca pela eliminação dos inconvenientes das categorias através da sua "remediação" com outras categorias, isto é, posta a movimentação das categorias econômicas como resultante de uma manipulação determinada por uma, por assim dizer, "racionalidade instrumental", temos que "as categorias perdem sua espontaneidade: a ideia 'já não funciona', já não tem vida em si mesma. [...] A dialética não é mais o movimento da razão absoluta. Não há mais dialética; há, no máximo, a moral pura" (MARX, 2009: 130). As ideias não seriam, então, mais do que meios para atingir a ciência, a qual é assim acessível, diferentemente da verdade em si que independe do exercício intelectual, tal qual nos afirma o próprio Proudhon (MARX, 2009: 129-130). Vale ressaltar que essa contradição no método de Proudhon - a saber, buscar apresentar uma história segundo a sucessão das ideias amparado em uma concepção teórica que afirma o engendramento do mundo (econômico) efetivo pela razão pura, ao mesmo tempo que não se respeita o movimento interno das categorias econômicas, constituindo ele mesmo a série de categorias a partir de parâmetros estabelecidos fora da lógica desse movimento, ou seja, a partir de objetivos políticos guiados pela "moral pura" - tal qual Marx a apresenta, se dá em grande medida por conta do problema prático que ele se coloca, qual seja, "livrar" as categorias econômicas de seus inconvenientes: "Tudo se passava, então, para ele, no éter puro da razão. Tudo deveria derivar desse éter graças à dialética. Agora, quando se trata de colocar em prática essa dialética, a razão o abandona" (MARX, 2009: 130). Destarte, tal contradição presente no método do livro de Proudhon é uma contradição do seu próprio pensamento, do seu próprio fazer crítico, e não do objeto que ele busca apreender. Apesar desse aspecto contraditório apontado por Marx, a contradição não é solucionada, de modo que para Proudhon tudo ainda se passaria no "éter puro da razão". As

36 relações econômicas ainda são consideradas através de "leis imutáveis", eternas, existentes de forma "adormecida" no "seio da razão impessoal da humanidade". A história possível é, aqui, aquela que demonstra a manifestação dessas "leis imutáveis", desses "princípios eternos", isto é, desde sempre existentes. Isso implica na consideração de que, se tudo existe desde sempre, então se nega que "qualquer coisa possa produzir-se" (MARX, 2009: 132). Assim, se nada se produz, então nada de novo pode acontecer, de modo que não haja história - posto que o que ocorre são manifestações da "razão impessoal da humanidade" - e não haja sucessão de ideias, mas sucessão de suas manifestações - posto que tudo já existe e apenas "espera" pelo momento de se manifestar. Para lidar com esse impasse, Proudhon teria "inventado" uma "razão nova", que não se identifica nem com a razão pura, nem com aquela presente em homens históricos concretos: tal é "a razão da sociedade-pessoa, do sujeito humanidade, que, através da pena do sr. Proudhon, surge às vezes como 'gênio social', 'razão geral' e, por último, como 'razão humana'" (MARX, 2009: 133). Essa razão proudhoniana funcionaria da seguinte forma: a verdade completa e eterna existe somente na razão pura, isto é, não há como produzi-la; resta à razão humana desvelála. Ocorre que esse exercício da razão humana revelou, até a época de Proudhon, apenas verdades incompletas e dessa incompletude provém as suas contradições. Nesse sentido, as relações econômicas até então existentes não passam de realizações dessas verdades incompletas e, por isso mesmo, contraditórias, ou seja, possuem um "lado bom" e um "lado mau". O objetivo último desse exercício da razão humana seria atingir a fórmula sintética que existe na razão pura, a fim de eliminar a antinomia das relações econômicas. A busca desse objetivo se daria a partir da postulação de um fato hipotético e, portanto, antinômico - já que a hipótese, enquanto proposição verossímil passível de verificação e falseamento, não será uma verdade absoluta, mas sim, por definição, incompleta e refutável. Essa antinomia seria resolvida a partir de uma segunda antinomia, e essa segunda a partir de uma terceira, e assim por diante, tal qual o movimento dialético exposto acima. Esse processo protagonizado pela razão humana seria responsável pelo desdobramento das categorias econômicas e ele se daria até o esgotamento das contradições. Com esse esgotamento, a razão humana atingiria a fórmula sintética capaz de resolver todas as contradições e, então, ela regressaria a todas suas posições passadas - do ponto de vista lógico - e resolveria todos os problemas suscitados pelas verdades incompletas por ela apreendidas (MARX, 2009: 133-134). Retoma-se aqui aquela questão colocada acima sobre como se dá a afirmação, posição

37 ou tese da razão a partir da qual se desdobram os outros momentos do movimento: não se trata da razão pura, mas da razão humana que, na busca pelo desvelamento da verdade, pela chamada fórmula sintética, propõe hipóteses que, por sua parcialidade, acaba por ser refutada, sendo necessária uma nova proposição de hipótese. Ou seja, a afirmação, posição ou tese da razão aparece aqui como a hipótese proposta pela razão humana em busca da fórmula sintética. Percebemos, nesse momento, que Marx direciona sua crítica à teleologia presente nesse método, na medida em que a formulação de uma hipótese sempre guarda em si uma finalidade. Essa finalidade é, de acordo com o problema que Proudhon se propõe a resolver, eliminar os inconvenientes das categorias econômicas. A classificação do que é inconveniente em dada categoria econômica respeita os "desígnios" da razão humana que, segundo a crítica de Marx (MARX, 2009: 133), é a "razão individual do sr. Proudhon, com seus lados bom e mau, seus antídotos e seus problemas". Saber o que é o bom ou a vantagem, é via para descobrir o que é o mau, o inconveniente, e "para ele, o bom, o bem supremo, o verdadeiro fim prático, é a igualdade22" (MARX, 2009: 134), de modo que o mau, o inconveniente seja, assim, a desigualdade. Ao propor hipóteses sob a forma de categorias econômicas com o fim de atingir a igualdade - e, então, essas hipóteses redundarem em uma desigualdade, a qual tentar-se-á sanar através de nova hipótese que vise a igualdade, etc. -, a razão humana impessoal apresenta uma moralidade que denuncia sua pessoalidade, já que essa "intenção primitiva", "tendência mística" ou "objetivo providencial"- que é a igualdade -, intrínseca à essa razão, poderia se constituir em torno de qualquer outro princípio 23. Ao perseguir esse princípio ideal arbitrário, a razão humana - ou a razão de Proudhon - gira no "círculo das contradições econômicas" e isso explicaria a "marcha da história" (MARX, 2009: 135). Sublinhamos que as tentativas de estabelecimento da igualdade pela razão humana explicaria, ainda, como se dá a afirmação, tese ou posição de uma relação econômica, na medida em que uma relação econômica posta aparece como uma dessas tentativas, ou hipóteses da razão humana, e a relação econômica oposta, como um de seus "antídotos" para os inconvenientes causados pela primeira (MARX, 2009: 134). Em outras palavras, a busca pela igualdade seria o princípio22 NI: Tomando por base a seguinte observação de Engels (2009: 201), ter a igualdade por finalidade denunciaria a qualidade burguesa do pensamento de Proudhon: "A justiça e a igualdade de direitos são os fundamentos sobre os quais o burguês dos séculos XVIII e XIX desejara construir o seu edifício social, [por cima das ruínas d]as (über den Trümmern der) injustiças, desigualdades e privilégios feudais" (grifo nosso). 23 NI: Essa razão se constitui em torno do princípio da igualdade, segundo Marx (2009: 135), "porque a igualdade é o ideal do sr. Proudhon. Ele imagina que a divisão do trabalho, o crédito, a fábrica, todas as relações econômicas foram inventadas apenas em proveito da igualdade e, no entanto, sempre acabaram se voltando contra ela".

38 motor do "movimento dialético proudhoniano". A teleologia da história, cujo telos seja determinado através de um princípio ideal eternamente presente nas formações sociais, é aqui condenada por Marx (MARX, 2009: 136): É indiscutível que a tendência à igualdade pertence ao nosso século. Dizer, todavia, que todos os séculos anteriores - com necessidades, meios de produção etc., totalmente diferentes - operaram (travaillaient) providencialmente para a realização da igualdade, é, antes de tudo, substituir [os] (les) meios e homens do nosso século [pelos homens e pelos meios] (aux hommes et aux moyens) de séculos anteriores e [não reconhecer] (méconnaître) o movimento histórico através do qual as gerações sucessivas transformam os resultados adquiridos [das gerações] (des générations) que as precederam. (Grifos nossos)

Fica aqui evidente, ainda, que tal condenação se baseia na historicidade das relações sociais de produção. Essa tensão entre a evanescência do mundo efetivo e a ideia fixa proposta pela teoria proudhoniana estaria por trás das contradições percebidas por Proudhon, isto é, por trás das vantagens e inconvenientes encerrados em uma unidade categórica a partir dos quais ele desenvolve seu sistema de contradições (MARX, 2009: 135). Em outras palavras, as contradições estariam no pensamento do teórico, e não nas relações econômicas por ele analisadas. Assim, Proudhon é criticado, do ponto de vista do método, por aceitar e incorporar teoricamente 1 - "a necessidade de relações eternas" proposta pelos economistas, que, sendo intelectuais da classe burguesa em uma época economicamente dominada por ela, expõem o "lado bom" das categorias econômicas, e 2 - "a ilusão [dos socialistas, teóricos da classe proletária e denunciantes do 'lado mau' das categorias] de ver na miséria apenas a miséria"; o que o teria levado a um duplo erro prático-metodológico, α - ao "dispensar-se de entrar em pormenores puramente econômicos" por conta da aparente suficiência da sua filosofia para lidar com o objeto e ficando impedido, assim, de perceber a historicidade das relações econômicas, e β - por carecer "da coragem e lucidez necessárias para se elevar, ainda que especulativamente, acima do horizonte burguês" (MARX, 2009: 141-142) (grifos nossos). Podemos perceber aqui que, para Marx, o problema não está na especulação metafísica em si, sendo ela até necessária para perceber, através da identificação das tendências do vir-aser do objeto, que o ser de algo não se limita ao seu momento particular captado pela intuição imediata do observador. O problema está - ressaltamos isso - em pensar um engendramento do concreto pelo resultado abstrato da especulação, como por exemplo no caso de uma proposição de hipóteses pela assim chamada "razão humana", que vise atingir a igualdade

39 entre os seres humanos, como fator produtivo e explicativo da história concreta. Ao mesmo tempo, Marx defende uma imersão em "pormenores puramente econômicos", ou seja, uma imersão na lógica sistêmica expressiva das relações sociais de produção construída pelos economistas, qual seja a economia política. Essa imersão pode ser entendida como crítica na medida em que concebe as categorias econômicas como expressões teóricas de relações sociais evanescentes24. Através de tal imersão crítica se combateria a "má metafísica proudhoniana" 25, pois, como escreveu Marx a Pawel Wassiljewitsch Annenkow - um crítico russo liberal - em 28 de dezembro de 1846 (MARX, 2009: 243-244), "o sr. Proudhon não nos oferece uma crítica falsa da economia política porque a sua filosofia seja ridícula; oferece-nos uma filosofia ridícula porque não compreendeu o estado social contemporâneo em sua engrenagem [...]" (grifos nossos). 1.3- O problema da abstração no jovem Marx. Através da exposição dos dois fragmentos acima, podemos estabelecer uma unidade temática que os une, qual seja o tema da relação entre abstração e realidade. A partir dessa temática, Marx critica o processo especulativo de apreensão do mundo fenomênico, na medida em que o resultado desse processo de reduzir a realidade a proposições lógicas redunda em um a priori ideal - tanto em termos gnosiológicos como ontológicos determinante do que foi apreendido. Ou seja, aquilo que a filosofia especulativa busca explicar através do pensamento é tornado produto do próprio pensamento, uma vez que a existência da coisa observada acaba por ser derivada de determinações lógicas de uma entidade ideal, de uma ideia. Essa entidade ideal existe em si e para si na consciência - e enquanto consciência, vale dizer - e sua existência está submetida ao seu próprio movimento dialético interno, como já foi exposto acima - o por-se, opor-se e compor-se da entidade. Esse 24 NI: Essa "imersão crítica" produzirá, na maturidade do autor, uma "exposição crítica", de que trataremos mais adiante. Apoiamo-nos aqui na nota 8 do artigo de Müller (1982: 19): "A exposição é essencialmente crítica porque ela só reconstitui a totalidade sistemática das determinações do capital, através da tematização da sua estrutura e do seu movimento contraditórios, a partir da pretensão de dominação total do capital sobre o trabalho e do seu malogro sistêmico (crise), visto que o capital depende do trabalho, formalmente, enquanto trabalho assalariado, e materialmente, enquanto o trabalho objetivado, morto, constitui o único conteúdo social do capital". 25 NI: "O passo metodológico decisivo em Marx, fundamentável na experiência da má metafísica de Proudhon, encobre-se, para mim, na forma negativa desta expressão. Falando da má metafísica proudhoniana, Marx parecia ter acreditado na possibilidade de um uso produtivo da forma metafísica da reconstrução da economia política, ou seja, não renunciava inteiramente à ideia de experimentar um método de argumentação que ligasse a apresentação de um conteúdo material com a forma argumentativa de uma teoria hermética. Esta a visão que iria ligá-lo de novo à filosofia hegeliana [...]". (FLICKINGER, 1986: 94)

40 movimento interno é índice de sua autonomia, já que ela não depende de outras entidades para a efetivação da sua existência; antes, é ela que engendra a existência das coisas, as quais são existentes enquanto manifestações dos momentos particulares da sua vida. A consequência dessa forma de apreender o real se manifesta, de modo geral, na mistificação da realidade - no caso de Szeliga, por exemplo, ao transformar Sue, a partir das suas categorias idealistas, em um Crítico crítico, sem que ele o tenha sido -, o que significa, segundo a crítica marxiana a Proudhon, a anulação da historicidade das categorias - expressões teóricas da realidade - ou a disjunção dessas expressões das relações concretas que elas devem exprimir, de modo a submeter a história a uma teleologia inscrita em uma entidade ideal, identificando as transformações concretas das sociedades humanas ao longo do tempo com o desdobramento autônomo da ideia - como é o caso de Proudhon e o processo da realização gradual da igualdade enquanto resultado da investigação da razão pura levada a cabo pela razão humana. Em outras palavras, critica-se a unilateralidade de um pensamento que tenta expor o todo a partir da abstração da sua concretude, fazendo de uma particularidade o todo abstrato, um ente autônomo determinante dos seus próprios momentos. Apontamos, agora, para o fato de que a abordagem da filosofia hegeliana por Marx se dá, nesses fragmentos, como uma contingência imposta pelo fato de seus oponentes se utilizarem dessa corrente filosófica. Não se enfrenta aqui, de fato, o pensamento de Hegel, mas o modo pelo qual suas ideias foram utilizadas por Szeliga - bem como pelo grupo de Bruno Bauer - e por Proudhon. Isso é notável nos trechos onde Marx diferencia esses autores com relação a Hegel, afirmando, por exemplo, que "[...] Hegel costuma oferecer, dentro da exposição especulativa, uma exposição real, através da qual é possível captar a própria coisa. [...] [Enquanto Szeliga] não desenvolve, em parte nenhuma, um conteúdo real, de modo que nele a construção especulativa aparece [...] sem nenhum tapume de duplo sentido [...]" (MARX; ENGELS, 2003: 75-76)

Ou ainda que Proudhon não teria conseguido "[...] passar dos dois primeiros degraus da tese e da antítese simples" do método de Hegel, assim como o teria "[...] [reduzido] às mais mesquinhas proporções" (MARX, 2009: 124-125). O próprio Hegel ([1807] 1995c) teria criticado um pensar abstrato produtor de representações que, isolando uma particularidade de um objeto que é total, toma essa particularidade como se fosse a sua totalidade, desprezando, assim, a riqueza que a concretude

41 do objeto proporciona à sua própria definição. Tal é o caso, por exemplo, um homem que, tendo cometido homicídio, passa a ter, diante da sociedade, a totalidade de si, de sua existência humana, suprassumida na particularidade "assassino", de modo que essa particularidade define o todo de sua existência; ou, ao contrário, a cruz, cuja totalidade, do ponto de vista cristão, anula a parcialidade da sua definição enquanto "instrumento de dor", sendo ela resultante da conciliação entre a dor e a redenção, no que se torna um objeto festejado e inspirador de esperança. Ao abandonar suas abstrações à especulação, tanto Proudhon quanto Szeliga, cada um ao seu modo, teriam incorrido nessa prática, tomando acrítica e unilateralmente a totalidade do objeto, a qual passa a determinar de modo idealístico as suas particularidades. Assim, seria possível observar em Hegel uma dimensão, até certo ponto, crítica desse fazer teórico. Contudo, não foi a má compreensão da filosofia hegeliana que mais chamou a atenção crítica de Marx para esses dois autores, como vimos; foi, antes, o potencial mistificador dessa filosofia sendo realizado. Dada essa tensão entre o crítico e o acrítico da filosofia hegeliana, vejamos, então, como aparecem aqueles aspectos "positivista" e especulativo, mistificadores do real, a partir de um enfrentamento direto de Marx com as ideias de Hegel. Desse enfrentamento será possível notar - ainda que sob algumas indicações críticas, tal como a que foi apontada acima - em que medida o posicionamento crítico de Hegel é crítico para Marx. Esse confronto se dá em alguns momentos da sua obra, mas, do ponto de vista de uma abordagem direta da filosofia hegeliana em geral, se dá notadamente nos Manuscritos econômicos-filosóficos de 184426 que, como toda produção do jovem Marx (1841/1847) com relação à sua maturidade, não está livre de objeções e polêmicas. Portanto discutiremos, antes, brevemente uma polêmica que está latente em nossa leitura - qual seja, as nuances ou mesmo transformações por que passa a relação teórica entre Marx e Hegel nesse período, as quais seriam expressas nas concepções críticas do primeiro, tanto em relação à sociedade burguesa como em relação à maneira de a apreender criticamente. Nesse sentido, a forma como Marx trata teoricamente as abstrações em si ou o procedimento abstrativo tem papel significativo na compreensão da sua crítica. A ideia aqui não é adentrar minuciosamente a relação entre Hegel e jovem Marx, que em si já constituiria material suficiente para um trabalho a parte, mas expor um panorama 26 NE: Entendemos que esse embate direto com as ideias de Hegel por Marx também se dê significativamente na Crítica da filosofia do direito de Hegel. Marcamos aqui, contudo, os Manuscritos como momento desse enfrentamento imediato pelo fato de que, nesse texto, a filosofia hegeliana aparece como objeto primário a ser problematizado e criticado, diferente do primeiro texto, no qual essa abordagem crítica é mediada pela questão da relação entre sociedade civil e Estado no âmbito da sua filosofia do direito.

42 breve desse momento do pensamento marxiano, a fim de eliminar possíveis impressões de que as conexões que estamos estabelecendo entre diferentes momentos do seu itinerário intelectual se deem em terreno livre de qualquer acidente, bem como oferecer um quadro mais geral no qual se inserem essas conexões. Após esse panorama - exposto aqui segundo as formulações de Zelený (1974) -, apontaremos de maneira não exaustiva trechos dos escritos de Marx onde a problemática da relação entre abstração e realidade estão presentes, dando especial atenção ao momento onde a filosofia hegeliana em geral é criticada de maneira mais detida. Esses trechos perpassam momentos distintos do desenvolvimento intelectual de Marx, ainda que os tenhamos reduzido didaticamente a um só momento, de modo que intentamos sugerir uma certa unidade temática a partir desta particularidade, a saber, o problema da abstração. 1.3.1- As etapas da crítica marxiana a Hegel segundo a leitura de Jindřich Zelený. Em seu O Logické Strukture Marxova Kapitátu27 de 1962, Zelený (1974: 277-294) apresenta a crítica marxiana a Hegel a partir de um esquema de 4 etapas, o qual é entendido pelo autor como uma maneira profícua de delinear as transformações pelas quais passa o pensamento marxiano em seu período de formação. O momento da argumentação onde é apresentada essa divisão é precedido por um tratamento analítico mais denso do período que vai de 1844 a 1847, concentrando-se em A ideologia alemã, onde ele percebe um novo momento intelectual de Marx. Mas, diferentemente de Althusser, que teria visto aí um "antihumanismo", ele entende que há uma nova forma de humanismo, um humanismo radicalizado (ZELENÝ, 1974: 292). Sem nos deter na sua crítica a Althusser, vejamos rapidamente essas etapas e algumas de suas características, as quais são levantadas como principais pelo autor. Elas servirão de pano de fundo a partir do qual aprofundaremos posteriormente a relação entre abstração e realidade na crítica de Marx a Hegel. A primeira etapa da apreciação crítica de Marx com relação a Hegel observada por Zelený (ZELENÝ, 1974: 277) é em sua tese de doutorado sobre a Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, de 1841. São expostos dois pontos que evidenciariam essa crítica: 1 - a absolutização da consciência-de-si humana por Marx 28, 27 NE: Seguimos aqui a versão castelhana aprovada por Zelený, a qual foi traduzida a partir da edição alemã (ZELENÝ, 1974). 28 NI: O seguinte trecho, onde Marx (1975: 90-91) discute as evidências da existência de Deus, é indicativo da centralidade e autossuficiência do humano: "As evidências para a existência de Deus são nada mais que

43 indicando já um protagonismo do sujeito que age e cria sua própria vida face à totalidade, bem como uma primeira aproximação a Bruno Bauer; e 2 - o abandono da concepção hegeliana do "princípio da especulação", a identidade sujeito-objeto. Marx sustentaria, ainda, um "caráter concreto do historicismo", o qual seria realizado entretanto de modo idealista, preponderantemente no terreno da história da filosofia e da relação da filosofia com o mundo. A segunda etapa seria marcada pela Crítica à filosofia do direito de Hegel, de 1843, onde é feito um comentário crítico aos Princípios da filosofia do direito de Hegel, de 1821. Destacamos nessa etapa: 1- a aceitação por Marx, pelo menos em princípio, do método feuerbachiano para a crítica da filosofia especulativa hegeliana, segundo o qual seria necessário fazer do predicado o sujeito, assim como fazer do sujeito o objeto e princípio, ou seja, inverter (umkehren) a filosofia especulativa para colocar a verdade em descoberto 29 (ZELENÝ, 1974: 279). 2- Critica-se a inversão realizada por Hegel através da qual as formas de mediação real, constitutivas do processo da vida humana social, são representadas como tautologias vazias - por exemplo, a evidência ontológica significou nada além de: 'o que eu represento efetivamente (na realidade) a mim é, para mim, uma representação efetiva'; isso tem efeito sobre mim e, nesse sentido, todos os deuses, tanto os pagãos quanto os cristãos, possuíram existência real. [...] Ou as evidências para a existência de Deus são nada mais que evidências para a existência da consciência-de-si essencial e humana, explicações lógicas mesmas. Por exemplo, a evidência ontológica. Qual ser é imediato enquanto é pensado? A consciência-de-si". Tradução nossa de: "Die Beweise für das Dasein Gottes sind entweder nichts als hohle Tautologien - z. B. der ontologische Beweis hiesse nichts als: 'was ich mir wirklich (realiter) vorstelle, ist eine wirkliche Vorstellung für mich', das wirkt auf mich und in diesem Sinn haben alle Götter, sowohl die heidnischen als christlichen eine reelle Existenz besessen. [...] Oder die Beweise für das Dasein Gottes sind nichts als Beweise für das Dasein des wesentlichen menschlichen Selbstbewußtseins, logische Explikationen desselben. Z. B. der ontologischen Beweis. Welches Sein ist unmittelbar, indem es gedacht wird? Das Selbstbewußtsein." 29 NI: Assim, Marx teria aceitado a ideia de inverter a filosofia hegeliana, tal como proposto nas Vorläufige Thesen zur Reform der Philosophie (Teses provisórias para a reforma da filosofia) escritas por Feuerbach em 1842. A tese em questão é a seguinte: "O método da crítica reformatória da filosofia especulativa não se distingue sobremodo daquele já aplicado à filosofia da religião. Nós podemos apenas fazer do predicado o sujeito, assim como do sujeito o objeto e princípio - portanto apenas inverter a filosofia especulativa; assim temos a verdade desinvolucrada, pura e limpa" (FEUERBACH, [1842] 1959: 224). Utilizamos o neologismo "desinvolucrada" para "unverhüllte" para indicar que esse mesmo termo é utilizado no Posfácio da segunda edição de O Capital, no qual Marx (2013a: 91; [1873] 1953a: 18) se refere ao "invólucro místico" (die mystische Hülle) da dialética tratada por Hegel. Mas se podemos constatar uma aproximação entre Feuerbach e o Marx maduro através dessa referência, temos que levar em conta a sua diferença com relação ao método: enquanto o primeiro propunha inverter (umkehren) a filosofia especulativa, o segundo propunha, na sua maturidade, desvirá-la (umstülpen) - voltaremos a essa questão no próximo capítulo, mas, para uma definição preliminar dessa questão, ver a nota 7 desta dissertação. Estabelecer as diferenças entre inverter e desvirar a dialética e, assim, identificar em qual momento da sua formação Marx adota um ou outro, é um exercício interessantíssimo, o qual foge, contudo, ao nosso escopo atual. Mas deixamos registrada nossa intuição de que, pelo menos desde A sagrada família, Marx já vislumbrava a ideia de desvirar a dialética enquanto método crítico ao hegeliano, uma vez que lá foi reconhecido que Hegel apresenta o desenvolvimento real dentro do especulativo (MARX; ENGELS, 2003: 75). A citação de Feuerbach foi traduzida por nós a partir de: "Die Methode der reformatorischen Kritik der spekulativen Philosophie überhaupt unterscheidet sich nicht von der bereits in der Religionsphilosophie angewandten. Wir dürfen nur immer das Prädicat zum Subject, und so als Subject zum Object und Princip machen - also die spekulative Philosophie nur umkehren, so haben wir die unverhüllte, die pure, blanke Wahrheit".

44 aparências da automediação da ideia, de modo que a realidade daquelas formas só pode ser apreendida na ideia. Dito de outro modo, critica-se aqui o "misticismo lógico panteísta" de Hegel (ZELENÝ, 1974: 280). 3- Deriva-se desse misticismo lógico o fato de Hegel conceber o Estado burguês monárquico-constitucional como "a realidade da ideia" ou da "razão absoluta". E, por fim, 4- do ponto de vista do método da explicação e da derivação científicas, Marx se depara com um formalismo em Hegel, já que "a conexão necessária de todos os objetos" estaria "predestinada" na sua lógica30. Na terceira etapa temos a crítica marxiana no momento dos Manuscritos econômicofilosóficos, de 1844. Um ponto central aqui para nós é a interpretação marxiana da negação da negação hegeliana, ponto onde Marx teria se separado de Feuerbach 31 (ZELENÝ, 1974: 30 NI: No âmbito desse ponto há uma citação de Marx que é particularmente interessante para esta dissertação, na medida em que explicita a sua posição crítica com relação ao modus operandi do pensamento hegeliano, ao mesmo tempo que dá pistas para pensar a autonomia das abstrações como elemento fundamental para a crítica da filosofia especulativa. Ao argumentar sobre como Hegel trataria teoricamente a "constituição política", Marx ([1843] 2010a: 36; MARX, [1843] 1982a: 15) expõe o seguinte: "[Hegel] transformou em um produto, em um predicado da ideia, o que é seu sujeito; ele não desenvolve seu pensamento a partir do objeto, mas desenvolve o objeto segundo um pensamento concebido [consigo] e [concebido consigo] na esfera abstrata da lógica (nach einem mit sich fertig und in der abstrakten Sphäre der Logik mit sich fertig gewordnen Denken). Não se trata de desenvolver a ideia determinada da constituição política, mas de dar à constituição política uma relação (Verhältniß) com a ideia abstrata, de dispô-la como um membro da sua biografia (da ideia): uma clara mistificação". 31 NR: Não pretendemos entrar na polêmica sobre se houve ou não uma fase feuerbachiana no pensamento de Marx. Mas nos parece que a apreensão de Marx do pensamento de Feuerbach, apesar de ser extremamente significativo para a sua crítica a Hegel (Cf. nota 29) e à economia política, não significa uma adesão irrestrita do primeiro com relação ao segundo, de modo a considerarmos haver um ponto de separação entre ambos. Podemos ressaltar uma diferença importante de Marx com relação a Feuerbach nessa época, tendo em vista os desdobramentos do seu pensamento e sua aproximação com o comunismo, isto é, adotando como parâmetro o lugar da política na suas preocupações teóricas e práticas. Vemos tal diferença em uma carta sua a Arnold Ruge de 13 de março de 1843: "Os aforismos de Feuerbach não são corretos para mim somente no ponto em que ele se refere muito à natureza e bem pouco à política. Contudo, essa é a única aliança através da qual a filosofia atual pode vir a ser uma verdade. Assim acontecerá provavelmente como no século XVI, quando uma outra linha de entusiastas do Estado correspondeu aos entusiastas da natureza" (MARX, 1963a: 417). A preocupação de Marx em fazer uma leitura política da filosofia feuerbachiana pode ser percebida também no seguinte parágrafo de uma carta sua ao próprio Feuerbach de 11 de agosto de 1844: "O senhor deu nesses escritos [Grundsätze der Philosophie der Zukunft, de 1843, e Das Wesen des Glaubens im Sinne Luther's. Ein Beitrag zum 'Wesen des Christenthums', de 1844] - não sei se intencionalmente - um fundamento filosófico ao socialismo, e os comunistas também entenderam de pronto esses trabalhos desse modo. A unidade dos humanos com os humanos, a qual está fundada sobre a diferença real dos humanos, o conceito de gênero do humano puxado para baixo, do céu da abstração para a terra efetiva: o que é esse conceito senão o conceito de sociedade!" (MARX, 1963b: 425). Além de deixar claro que havia incerteza por parte de Marx com relação à intenção política das obras de Feuerbach - o que denota antes uma apropriação das ideias que uma relação de "discipulado" -, esse parágrafo é interessante para notar que a ideia de " gênero do humano" é entendida como a "unidade dos humanos com os humanos, a qual está fundada sobre a diferença real dos humanos", isto é, como a sociedade. Diante disso, não nos parece que haja uma ruptura entre essa concepção de sociedade e aquela apresentada em A ideologia alemã e A miséria da filosofia, muito embora o lugar dos processos materiais na vida social nessas obras seja mais sensível e definido. As citações foram traduções nossas, respectivamente de: "Feuerbachs Aphorismen sind mir nur in dem Punkt nicht recht, daß er zu sehr auf die Natur und zu wenig auf die Politik hinweist. Das ist aber das einzige Bündnis, wodurch die jetzige Philosophie eine Warheit werden kann. Doch wird's wohl gehn wie im 16ten Jahrh., wo den Naturenthusiasten eine andere Reihe von Staatsenthusiasten entsprach."; "Sie haben - ich weiß nicht, ob

45 190): grosso modo, enquanto este a entendeu como um movimento mental que permitiu Hegel afirmar a teologia filosófica enquanto momento do saber absoluto através da negação da religião - ou através da sua reafirmação enquanto teologia filosófica, enquanto momento do saber absoluto -, aquele a entendeu como devir e historicidade, como expressão abstrata do movimento de uma história que não pressupõe o homem real enquanto sujeito, uma história enquanto "ato de gênese". Esse movimento da história teria, em Hegel, nesse momento da crítica marxiana, um caráter abstrato, acrítico, tornando-se crítico tão somente no contexto de uma teoria comunista fortemente influenciada pela crítica de Feuerbach à alienação religiosa. Essa crítica é estendida à crítica da alienação econômica nas figuras do trabalho assalariado e da propriedade privada, através das quais ganha novos contornos e problematizações 32. O comunismo "marxiano-feuerbachiano" - como Zelený o classifica nesse momento - seria a reapropriação, ou a reconciliação, da natureza humana pelo/com o ser humano, que fora alienada segundo as determinações da propriedade privada. Nesse sentido, Marx teria apreciado positivamente dois pontos da Fenomenologia do espírito de Hegel: 1 - o homem verdadeiro é concebido como resultado de seu próprio trabalho - aqui entendido como atividade humana produtora de todos os meios de vida - ; e 2 - a autoprodução do homem é absichtlich - in diesen Schriften dem Sozialismus eine philosophische Grundlage gegeben, und die Kommunisten haben diese Arbeiten auch sogleich in dieser Weise verstanden. Die Einheit der Menschen mit den Menschen, die auf dem realen Unterschied der Menschen begründet ist, der Begriff der Menschengattung aus dem Himmel der Abstraktion auf die wirkliche Erde herabgezogen, was ist er anders als der Begiff der Gesellschaft!". 32 NI: Nas Teses provisórias para a reforma da filosofia de Feuerbach existem elementos que nos subsidiam o entendimento do papel dessa crítica à crítica marxiana da alienação econômica, notadamente nos momentos onde se dá o movimento feuerbachiano de trazer a filosofia especulativa "para a terra", como em: "O infinito da religião e [da] filosofia é e nunca foi algo outro que qualquer coisa de finito, de determinado, mas mistificado, isto é, um finito, um determinado, com o postulado de ser nada de finito, nada de determinado. A filosofia especulativa fez-se culpada do mesmo erro da teologia: fazer das determinações da efetividade ou finitude, apenas através da negação da determinidade - na qual elas são o que são, determinações - predicados do infinito" (FEUERBACH, 1959: 231). Podemos perceber esse movimento em Marx quando ele critica o pensamento econômico por supôr aquilo que se deveria explicar: "A economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada. [...] Não nos desloquemos, como faz o economista nacional quando quer esclarecer algo, a um estado primitivo imaginário. [...] [Ele] supõe na forma do fato, do acontecimento, aquilo que deve deduzir, notadamente a relação necessária entre duas coisas (Dingen), por exemplo entre divisão do trabalho e troca (Austausch). Assim o teólogo explica a origem do mal pelo pecado original, isto é, supõe como um fato dado e acabado, na forma da história, o que deve explicar" (MARX, [1844] 2004: 79-80; MARX, [1844] 1982b: 363-364). Portanto, a economia nacional faz-se culpada do mesmo erro da filosofia especulativa e da teologia, o qual fora apontado por Feuerbach: fazer da sua finitude um predicado da infinitude, na medida em que a ideia abstrata, carente de determinações, de concreção, é suposta e explicativa das suas próprias determinações finitas. A citação de Feuerbach foi traduzida por nós a partir de: "Das Unendliche der Religion und Philosophie ist und war nie etwas anderes als irgendein Endliches, irgendein Bestimmtes, aber mystifiziert, d.h. ein Endliches, ein Bestimmtes, mit dem Postulat, nichts Endliches, nichts Bestimmtes zu sein. Die spekulative Philosophie hat sich desselben Fehlers schuldig gemacht als die Theologie, - die Bestimmungen der Wirklichkeit oder Endlichkeit nur durch die Negation der Bestimmtheit, in welcher sie sind, was sie sind, zu Bestimmungen, Prädikaten des Unendlichen gemacht".

46 entendida como o processo de alienação e da sua superação (ZELENÝ, 1974: 190-191). Essa obra hegeliana chega a ser vista pelo Marx de 1844 "como uma teoria mistificada do 'comunismo'" (ZELENÝ, 1974: 194). É importante também destacar nessa terceira etapa que a acepção de Marx da negação da negação hegeliana, para além do devir e historicidade - os quais trazem consigo a potencialidade de pensar um homem histórico produtor de si -, apresenta o gérmen do positivismo e idealismo acríticos. Citamos: Hegel abstrai da história real esta estrutura de movimento desconhecida para a ciência da natureza moderna e para a ontologia e a lógica vinculadas a ela, e a transpõe a um plano supratemporal de determinações lógicas "eternas"; assim a proclama estrutura do modo "absoluto" do ser, modo de ser do absoluto. Deste modo Hegel chega, segundo Marx, a suas determinações lógicas de "universalidade concreta", "contradição", "autodistinção", "negação da negação", "identidade concreta", etc. Assim se expressa de forma mistificada uma ideia proto-filosófica revolucionária sobre a ontologia europeia tradicional, ideia segundo a qual o único que existe é o processo histórico, ou o histórico é o plano originário do ser. (ZELENÝ, 1974: 194195)33 (Grifos nossos)

A tensão entre essa mistificação e a potencial desmistificação da história será explorada de modo mais detido mais adiante. Contudo, deixamos em evidência que a abstração realizada por Hegel, ao transpor a "história real" em um "plano supratemporal de determinações lógicas 'eternas'", submete essa história a uma lógica que, por mais que apareça como mero plano de inteligibilidade do objeto, existe fora dele e possui legalidade própria. A possibilidade dessa lógica, dessas abstrações, serem tomadas no lugar do próprio ser (histórico) do objeto é, desse modo, real. Já a quarta etapa é marcada pelas posições expressas em A ideologia alemã, de 1845/1846, e Miséria da filosofia, de 1847, onde, segundo Zelený (1974: 292), uma "nova forma de humanismo" é criada, uma forma radicalizada em comparação com a anterior. Apesar do desenvolvimento intelectual relativamente complicado de Marx nesse momento isto é, um desenvolvimento que se dá a partir da interlocução com diversos autores, polêmicas 33 NT: Tradução nossa de: "Hegel abstrae de la historia real esta estructura de movimiento desconocida para la ciencia de la naturaleza moderna y para la ontología y la lógica vinculadas a ella, y la transpone a un plano supratemporal de determinaciones lógicas 'eternas'; así la proclama estructura del modo 'absoluto' del ser, modo de ser de lo Absoluto. De este modo llega Hegel, según Marx, a sus determinaciones lógicas de 'universalidad concreta', 'contradicción', 'autodistinción', 'negación de la negación', 'identidad concreta', etc. Así se expresa de forma mistificada una idea protofilosófica revolucionaria respecto de la ontología europea tradicional, idea según la qual lo único que existe es el proceso histórico, o lo histórico es el plano originario del ser".

47 e conjunturas políticas, sem contar as complexas implicações filosóficas dessa interlocução -, sua relação com Hegel se mantém "no essencial e em princípio". Esse momento constitui ainda a base sobre a qual se desenvolvem as considerações marxianas críticas da economia política da década de 1850 em diante, tais como podemos constatar nos Grundrisse e em O Capital (ZELENÝ, 1974: 282). Entretanto, também nesse momento algumas posições intelectuais do Marx de 1844 teriam sido abandonadas em função da concretização da sua teoria da alienação. Zelený (1974: 207) aponta as seguintes: 1- os elementos escatológicos e "ideológicos"34 advindos de Feuerbach, notadamente a concepção de "homem específico" enquanto "objetivo final da história"; 2- a ideia marxiana de comunismo se afasta da ideia de "solução do enigma da história" ou da noção feuerbachiana de que o homem é "a meta final da história"; 3- a concepção de que o dinheiro, o trabalho assalariado, etc. são alienações do ser humano; 4- a Fenomenologia de Hegel enquanto forma teórica mistificada do comunismo, bem como seu juízo de que Hegel teria entendido "a essência do trabalho" e a "autoprodução do homem pelo trabalho"; 5- Marx entende agora a "autoprodução da espécie" como "mistério especulativo idealista". O "abandono" desses pontos por Marx nesse momento - ou mesmo em outro - e a sua significação com relação à sua trajetória intelectual é questionável 35. Não nos ateremos, entretanto, a essas questões, uma vez que nosso objeto não é o desenvolvimento do pensamento de Marx, muito embora nele resida e, em consequência, sofra os impactos dos seus movimentos. Nossa objetivo é, antes, especificamente nesse momento de nossa argumentação, perceber como aparece a relação entre abstração e realidade nesses momentos 34 NI: O sentido de "ideológico" é entendido aqui por Zelený (1974: 207), tal como é indicado na nota 60 do seu texto, segundo trecho localizado em Marx e Engels (2007: 77-78; 1978: 539). Nesse trecho, ao questionarem a razão dos ideólogos (juristas, políticos, moralistas, religiosos) colocarem tudo sobre a cabeça (alles auf den Kopf stellen), Marx e Engels apontam como resposta a autonomização [do negócio] (des Geschäfts) por meio da divisão do trabalho. Citamos: "[...] cada um toma o seu próprio ofício [pela verdade] (für das Wahre). (...) As relações, na jurisprudência, na política, convertem-se - em conceitos na consciência; por não estarem acima dessas relações, também os conceitos [mesmos são, na cabeça deles, conceitos fixos] (sind auch die Begriffe derselben in ihrem Kopf fixe Begriffe); o juiz, por exemplo, aplica o código, e por isso a legislação vale, para ele, como verdadeiro motor ativo. Respeito [pela mercadoria deles] (vor ihrer Ware), pois seu negócio tem a ver com o geral (mit Allgemeinem)" (MARX; ENGELS, 2007: 77-78). 35 NI: Assim como sugere Zelený (1974: 284-293) ao apresentar a falta de consenso com relação a esse tema a partir da citação de alguns trabalhos a ele relacionados. São eles Karl Löwith (Von Hegel zu Nietzsche. Der revolutionäre Bruch im Denken des neunzehnten Jahrhunderts), Jean-Yves Calvez (La pensée de Karl Marx), Heinrich Popitz (Der entfremdete Mensch. Zeitkritik und Geschichtsphilosophie des jungen Marx), György Lukács (Der junge Hegel und die Probleme der kapitalistischen Gesellschaft e Zur philosophischen Entwicklung des jungen Marx [1840-1844]), Auguste Cornu (Karl Marx und Friedrich Engels - Leben und Werk), Jean Hyppolite (Études sur Marx et Hegel), Henri Lefebvre (Le materialisme dialectique) e, por fim, Louis Althusser (Pour Marx e Lire le Capital). Há aqui uma pluralidade de posicionamentos que demonstra a complexidade desse tema, bem como a impossibilidade de lidar com ele de maneira satisfatória quando tratado em segundo plano, tal qual fazemos nesta dissertação.

48 teóricos de Marx. Mas antes de apresentarmos esses pontos de maneira sistemática, apresentemos a conclusão de Zelený acerca das etapas do itinerário marxiano de juventude. Tendo exposto essas etapas, Zelený (1974: 282-283) recupera dois trechos onde Marx se "autoavalia", do ponto de vista de seu itinerário intelectual. O primeiro está em A ideologia alemã e faz referência ao seu desenvolvimento teórico anterior: No momento em que Feuerbach expôs (aufzeigte) o mundo religioso como a ilusão do mundo terreno [ocorrente] (vorkommende), o qual nele mesmo [em Feuerbach] ainda aparece apenas como fraseologia (Phrase), resultou evidente, até mesmo para a teoria alemã, a pergunta que ele não respondeu: como é que os homens "botam na cabeça" essas ilusões? Tal pergunta abriu, até para os teóricos alemães, o caminho para uma visão (Anschauung) materialista de mundo, não isenta de pressupostos, mas empiricamente atenta aos reais pressupostos materiais como tais e que, por isso, é a primeira visão de mundo realmente crítica. Esse percurso já estava indicado nos Deutsch-Französische Jahrbücher: na Crítica à filosofia do direito Introdução e em Sobre a questão judaica. [Porque naquele tempo isso aconteceu ainda em uma fraseologia filosófica] (Da dies damals noch in philosophischer Phraseologie geschah), as expressões filosóficas que tradicionalmente costumam escapar nessas ocasiões, tais como "essência humana", "gênero" etc., proporcionaram aos teóricos alemães o tão desejado pretexto para entender mal o desenvolvimento real e para acreditar que apenas se tratava, então, de mais uma nova versão de seus velhos e desbotados casacões teóricos - [...]". (MARX;ENGELS, 2007: 230-231; 1978: 217-218)

O segundo trecho está no prefácio de Para a crítica da economia política, no contexto de um esboço do percurso de Marx no estudo da economia política: "[...] na primavera de 1845 [...] decidimos [Marx e Engels] elaborar em comum nossa opinião contra o que há de ideológico na filosofia alemã; tratava-se, de fato, de acertar as contas com a nossa antiga consciência (Gewissen) filosófica. O propósito tomou corpo na forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O manuscrito [A ideologia alemã] [...] já havia chegado há muito tempo à editora em Westfália quando fomos informados de que a impressão fora impedida por circunstâncias adversas. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto quanto já havíamos atingido o fim principal: a [autocompreensão] (Selbstverständigung). [...] Os pontos decisivos de nossa opinião foram indicados cientificamente pela primeira vez, ainda que apenas de uma forma polêmica, em meu escrito Miséria da filosofia publicado em 1847 e dirigido contra Proudhon. Depois, numa dissertação escrita em alemão sobre o "trabalho assalariado" [...]. (MARX, 1985: 130-131; [1859] 1961: 10)

O primeiro trecho se localiza em um contexto onde Marx reage à crítica que Stirner

49 lhe dirige, segundo a qual o conceito de "homem" utilizado nos Deutsch-Französische Jahrbücher seria idêntico ao de Feuerbach. Por conta dessa identidade, o pensamento de Marx estaria enquadrado na crítica stirneriana à "antropologia feuerbachiana como filosofia inconsequente do homem real", sendo considerado, assim, limitado pela filosofia "teológica" (ZELENÝ, 1974: 283). Apesar dessa crítica, Zelený (1974: 283) entende que Marx, embora tenha partido da antropologia de Feuerbach e se referido à ela nas Teses sobre Feuerbach, teria superado esse pensamento nos mesmos Deutsch-Französischer Jahrbücher, contendo aí os gérmens do desenvolvimento posterior que culminaria naqueles posicionamentos expressos em A ideologia alemã. Compreende-se aqui, portanto, um elemento de continuidade entre essa obra e os escritos pré-184536. Por outro lado, o segundo trecho aponta para uma descontinuidade entre esses dois momentos, seja quando expressa que A ideologia alemã representa um "acerto de contas" de Marx e Engels para com a antiga consciência (Gewiss) filosófica da qual compartilhavam, seja quando marca a Miséria da filosofia como o primeiro escrito onde são indicados cientificamente os "pontos decisivos" da opinião de ambos. Para além disso, Zelený (1974: 284) argumenta que nesse momento (1845/1847) é possível observar uma "radical alteração da estimação da antropologia de Feuerbach" e uma "mudança análoga de orientação para com Hess e Proudhon". A conclusão de Zelený (1974: 284) é de que, sem negar os estágios de desenvolvimento e transição da trajetória do pensamento marxiano, "[...] até A ideologia alemã não apareceu claridade definitiva nem se consumou o abandono do ponto de vista filosófico 'ideológico'"37. Não nos parece, contudo, que Marx tenha abandonado de fato o ponto de vista filosófico em sua produção teórica, na medida em que sua relação com Hegel e o seu esforço por desmistificar sua dialética foram marcantes no 36 NI: Percebemos ainda que, além desse elemento de continuidade destacado, a própria afirmação de Marx - de que o caminho aberto pelo questionamento não respondido por Feuerbach ("como é que os homens 'botam na cabeça' essas ilusões?"), o qual levaria a uma "visão materialista de mundo", já estaria indicado nos DeutschFranzösische Jahrbücher - já é índice de uma continuidade entre o momento d'A ideologia alemã e o dos escritos a ela anteriores. Sobre esse trecho é possível ainda pensar em uma descontinuidade, na medida em que ele expressa uma adesão ao materialismo e um rechaço à "fraseologia filosófica". Esse posicionamento encontra uma confirmação no desenrolar do próprio texto, quando se afirma que "é preciso 'deixar a filosofia de lado' [...], é preciso desembarcar dela e dedicar-se como um homem comum ao estudo da realidade [...]" (MARX; ENGELS, 2007: 231). Não concordamos, contudo, com esse posicionamento por entender que, mesmo sob aquela "fraseologia filosófica", Marx já estava tratando de assuntos materiais e reais, tal como Hegel, guardadas suas devidas diferenças, "[...] costuma oferecer, dentro da exposição especulativa, uma exposição real, através da qual é possível captar a própria coisa" (MARX; ENGELS, 2003: 75). Outros argumentos em favor de nossa não concordância serão apresentados nos próximos capítulos desta dissertação, nos quais a presença da filosofia hegeliana se mostra marcante no pensamento de Marx, ainda que despida daquela "fraseologia filosófica" dos anos 1843 e 1844 e criticada mediante o avanço da investigação econômica e social de nosso autor, dando à dialética um outro sentido, um sentido material. 37 NT: Tradução nossa de: "[...] hasta La ideología alemana no apareció claridad definitiva ni se consumó el abandono del punto de vista filosófico 'ideológico'."

50 pós-1850; e a afirmação de que seu ponto de vista era ideológico até A ideologia alemã também nos parece problemática38. Mas nosso objeto não é, de fato, a polêmica entre as teses de continuidade e descontinuidade na obra de Marx. Contudo, se fez necessária uma exposição de alguns elementos dessa discussão tanto para reafirmar quanto para enriquecer nossa problematização. Pensamos, assim, que, no meio do turbilhão de rupturas e continuidades do pensamento de Marx, o problema da relação entre a abstração e a realidade seja constante, embora a forma segundo a qual é tratado varie em função do objeto apreendido. Contido nesse problema, temos o desenvolvimento da noção de historicidade, o qual pode ser entendido como um desdobramento do apontamento crítico da negação da negação hegeliana presente nos Manuscritos de 1844: lembremos que, segundo tal perspectiva, a noção hegeliana de história 38 NI: Baseamos esse juízo em duas cartas de Marx. Uma para Ludwig Kugelmann, de 06 de março de 1868, onde escreve: "Ele [Dühring] sabe muito bem que meu método de desenvolvimento não é o hegeliano, pois eu sou materialista, e Hegel, idealista. A dialética de Hegel é a forma fundamental de toda dialética, mas somente após a esfola da sua forma mística, e isso distingue precisamente meu método" (MARX, 1974c: 538). A outra consta apenas de um trecho retirado de um artigo publicado no Volksstaat por Joseph Dietzgen ("Sozialdemokratische Philosophie", em 09 de janeiro de 1876). Esse trecho seria, segundo nota 617 do tomo 32 da Marx-Engels Werke, citação de uma carta de Marx para Dietzgen de 09 de maio de 1868, onde lemos o seguinte: "[...] quando eu estiver me desvencilhado do fardo econômico, escreverei uma 'dialética'. As leis corretas da dialética já estão contidas em Hegel; contudo em forma mística. Trata-se de esfolar essa forma. [...]" (MARX, 1974d: 547). Notamos nessas cartas que, ainda em 1868, no auge da elaboração de sua crítica à economia política, Marx não havia abandonado sua preocupação filosófica e crítica com relação à dialética hegeliana. E, por fim, levando em consideração a nota 34, pensamos ser problemática a caracterização ideológica do pensamento de Marx pré-1845. Se o princípio da ideologia está, justamente, em tomar um momento como o todo "autossuficiente", de modo a pensar que as representações produzidas pelas relações sociais são, ao contrário, suas produtoras - ou existências "autossuficientes" -, então Marx já criticava o posicionamento ideológico nesse período. Veja-se a seguinte citação da Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843: "O conteúdo do Estado se encontra fora dessas constituições (Verfassungen). [...] A constituição se desenvolveu como a razão universal contraposta às outras esferas, como algo além delas. A tarefa histórica consistiu, assim, em sua reivindicação, mas as esferas particulares não têm a consciência de que seu ser privado (privates Wesen) coincide com o ser transcendente (jenseitigen Wesen) da constituição ou do Estado político e de que a existência transcendente (jenseitiges Dasein) do Estado não é outra coisa senão a afirmação de s[eu] própri[o] [estranhamento] (Entfremdung). A constituição política [era até então] (war bisher) a esfera religiosa, a religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em contraposição à existência terrena (irdischen Dasein) de sua realidade (Wirklichkeit). [...] Entende-se que a constituição [política] (politische Verfassung) como tal só é desenvolvida onde as esferas privadas (Privatsphären) atingiram uma existência independente. Onde o comércio e a propriedade fundiária ainda não são livres nem independentes, também não o é a constituição política" (MARX, 2010a: 51-52; 1982a: 32-33). Ou seja, mesmo aqui a política, na figura do Estado político, é criticada como produto da "existência terrena" da efetividade, a qual é entendida, por sua vez, como a existência das esferas privadas, como comércio e propriedade fundiária. Ainda que essas esferas privadas não tenham sido problematizadas a partir da economia política, a conexão entre as representações políticas e a efetividade da vida social está posta, no que observamos um caráter anti-ideológico. Compare-se essa citação à questão posta na nota 63 desta dissertação, para perceber a continuidade entre essa posição e a de 1847. As citações das cartas foram traduções nossas de, respectivamente: "Er weiß sehr wohl, daß meine Entwicklungsmethode nicht die Hegelsche ist, da ich Materialist, Hegel Idealist. Hegels Dialektik ist die Grundform aller Dialektik, aber nur nach Abstreifung ihrer mystischen Form, und dies gerade unterscheidet meine Methode."; "[...] Wenn ich die ökonomische Last abgeschüttelt, werde ich eine 'Dialektik' schreiben. Die rechten Gesetze der Dialektik sind schon im Hegel enthalten; allerdings in mystischer Form. Es gilt diese Form abstreifen. [...]"

51 não apresenta um sujeito objetivo atuante e se ancora na consideração abstrata da sua atividade. A seguir veremos, através dessas "etapas" do pensamento de Marx, alguns trechos onde é possível perceber a constância dessa problemática, dando especial atenção à critica da filosofia hegeliana em geral. 1.3.2- Algumas abordagens marxianas do problema da abstração entre 1841 e 1847. Para apontar esses momentos, seguiremos, para fins didáticos, as etapas propostas por Zelený (1974). Cada etapa será marcada por uma obra específica: 1 - Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro (1841); 2 - Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843); 3 - Manuscritos econômico-filosóficos (1844); e 4 - Miséria da filosofia (1847), sendo que esse último será apresentado como uma conclusão e resultado desse percurso. 1.3.2.1- Abstração enquanto "totalidade abstrata". O primeiro momento onde percebemos uma referência de Marx à problemas que orbitam a questão da abstração pode ser expresso em um trecho das notas explanatórias à sua tese doutoral, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, de 1841. Aqui temos, do ponto de vista subjetivo, a interação entre o mundo fenomênico e a consciência reduzida a uma totalidade abstrata. Citamos: É uma lei psicológica, a de que o espírito teórico tornado livre em si se torne energia prática, enquanto vontade que emerge do reino das sombras de Amenthes, e se volte contra a efetividade mundana, a qual é existente (vorhandene) sem o espírito. [...] No que a filosofia como vontade se lança contra o mundo fenomênico, o sistema [filosófico]39 é reduzido a uma totalidade abstrata, isto é, ele se torna 39 NI: Segundo Inwood (1997: 64-67), a noção hegeliana de sistema está associada com a de ciência, a qual denota um corpo organizado e coeso de conhecimento concebido através da atividade metódica de sua aquisição. O próprio critério de cientificidade se ancora na sistematização de um dado conhecimento, uma vez que sistema (do grego systema, ou "um todo articulado composto de numerosas partes") é entendido como a unidade de múltiplos conhecimentos determinada de maneira ordenada pelo conceito. Para Hegel, sem essa sistematicidade a filosofia não pode ser científica. Há duas razões para isso. 1- "O objeto da filosofia, a ideia ou o absoluto, forma ele próprio um sistema [...] (INWOOD, 1997: 65)", pois "[...] o verdadeiro, enquanto concreto, só é desdobrando-se em si mesmo, e recolhendo-se e mantendo-se junto na unidade - isto é, como totalidade [...]" (HEGEL, 1995a: 55). Isto quer dizer que o papel da ciência é expressar o verdadeiro, ou, o que é o mesmo, apresentar o objeto na sua concretude a partir das conexões das suas múltiplas dimensões. Isso implica tanto na limitação dessa expressão ao em si e para si do objeto, como no imperativo de expressá-lo enquanto totalidade. Assim, o sistema viabiliza a apresentação da verdade do objeto. 2- O sistema científico garante a impessoalidade no trato com o objeto, na medida em que evita um

52 um lado do mundo, contra o qual um outro se coloca. Sua relação com o mundo é uma relação de reflexão. Animado com a pulsão de se efetivar, entra em tensão contra o outro. [Diante da] autossuficiência interior o aprimoramento é quebrado. O que era luz interna, torna-se flama voraz que se volta para fora. Assim se dá a consequência de que o vir-a-ser-filosófico do mundo é ao mesmo tempo um vir-a-ser-mundano da filosofia, de que sua efetivação é ao mesmo tempo sua perda, de que o que ela combate desde fora é sua própria insuficiência interior, [...]. O que a confronta e o que ela combate é sempre o mesmo, o que ela é, apenas com fatores invertidos 40. (MARX, 1975: 67-68)

Ao afirmar que a "filosofia como vontade se lança contra o mundo fenomênico" e que nesse ínterim "o sistema [filosófico] é reduzido a uma totalidade abstrata", coloca-se o problema da separação entre sujeito e objeto. O primeiro, enquanto subjetividade abstrata, enquanto sistema autossuficiente, estabelece sua relação com o segundo através da reflexão (Reflexionsverhältniß). Essa relação entre o sujeito e o objeto mediada pela reflexão que deveria estabelecer entre eles um enriquecimento mútuo, na medida em que nela e a partir dela ambos se transformassem, torna-se uma relação tensa, visto que a pulsão da efetivação de um sujeito abstrato e autossuficiente se dá diante de um objeto não necessariamente concatenado com seu movimento interno. Por não haver essa concatenação, o sujeito posto em relação com o objeto, na sua efetiva insuficiência interior, faz de si o outro e interage combativamente consigo mesmo, buscando soluções para problemas externos, mundanos, no interior de si. A autossuficiência subjetiva que aparece sob a forma de uma totalidade abstrata conhecimento ancorado na contingência de um conteúdo dado subjetivamente. Segundo Hegel (1995a: 55), "um conteúdo só tem sua justificação como momento do todo; mas, fora dele, tem uma hipótese não fundada e uma certeza subjetiva" (grifo nosso). Fica claro aqui o desprezo às especulações pautadas em critérios subjetivos que visam atingir a verdade de algo. Com isso, sistema e ciência eliminariam os fatores pessoais e contingenciais do conhecimento, no que a ideia de Fichte de que a escolha por determinada filosofia está relacionada à subjetividade do filósofo é rejeitada (INWOOD, 1997: 65). Vale apontar, ainda, que esse desprezo pela ideia de uma idiossincrasia pessoal que opta por um dentre vários sistemas filosóficos é enraizado, também, na posição hegeliana de que "[...] é princípio da verdadeira filosofia conter em si todos os outros princípios particulares" (HEGEL, 1995a: 55) (grifo nosso). O sistema seria, portanto, o meio pelo qual a verdade objetiva de algo se apresenta, despida de prováveis traços subjetivos que tendem a lidar com o objeto de modo parcial, negando assim a sua totalidade. 40 NT: Tradução nossa de: "Es ist ein psychologisches Gesetz, daß der in sich frei gewordene theoretische Geist zur praktischen Energie wird, als Wille aus dem Schattenreich des Amenthes heraustretend, sich gegen die weltliche, ohne ihn vorhandene Wirklichkeit kehrt. [...] Indem die Philosophie als Wille sich gegen die erscheinende Welt herauskehrt: ist das System zu einer abstracten Totalität herabgesetzt, d.h., es ist zu einer Seite der Welt geworden, der eine andere gegenübersteht. Sein Verhältniß zur Welt ist ein Reflexionsverhältniß. Begeistet mit dem Trieb, sich zu verwirklichen, tritt es in Spannung gegen Anderes. Die innere Selbstgenügsamkeit und Abrundung ist gebrochen. Was innerliches Licht war, wird zur verzehrenden Flamme, die sich nach außen wendet. So ergibt sich die Consequenz, daß das Philosophisch-werden der Welt zugleich ein Weltlich-werden der Philosophie, daß ihre Verwirklichung zugleich ihr Verlust, daß, was sie nach außen bekämpft, ihr eigener innerer Mangel ist, [...]. Was ihr entgegentritt und was sie bekämpft, ist immer Dasselbe, was sie ist, nur mit umgekehrten Factoren."

53 - o sistema - inviabiliza, dessa forma, o aprimoramento do ser que se relaciona. Marx teria aqui se posicionado criticamente com relação a esse sistema que, pela própria exigência da concretude do mundo fenomênico, torna-se "totalidade abstrata". Se considerarmos o exposto na nota 39, tal posicionamento se configura crítico na medida em que transparece na opinião de Marx o motivo fichteano, a saber, aquele segundo o qual "[...] o conteúdo teórico da filosofia depende da personalidade do filósofo 41", sendo a liberdade e audácia de espírito o pressuposto da investigação filosófica (ZELENÝ, 1974: 279). Através dessa postura teórica, Marx vai de encontro com um juízo que, pautado na ideia de que a filosofia verdadeira é aquela que contém em si todos os princípios particulares, nega importância às particularidades; opõe-se, assim, ao absoluto de uma filosofia absoluta. Segundo Marx (1975: 13-14), apesar de Hegel ter determinado o todo do ciclo dos sistemas epicúreo, estoico e cético de modo correto no geral, o "grande e audacioso plano" de sua história da filosofia lhe causou pelo menos dois impactos significativos: 1- impediu-o de "adentrar o singular" (in das Einzelne einzugehen); e 2- aquilo que ele chamou de especulativo o inibiu de conhecer o alto significado desses sistemas para a filosofia grega. Em outras palavras, a busca pelo absoluto teria privado Hegel de perceber que "esses sistemas [particulares] são a chave para a verdadeira história da filosofia grega42" (MARX, 1975: 14). É particularmente interessante, nesse sentido, que, na apresentação do objeto de seu trabalho, Marx (1975: 23) afirme que se os sistemas anteriores são significativos para o caráter da filosofia grega do ponto de vista do conteúdo, os pós-aristotélicos (particularmente o ciclo das escolas epicúrea, estoica e cética) os são do ponto de vista da forma subjetiva; acusando, logo em seguida que, a despeito da sua importância, "só mesmo a forma subjetiva, o portador espiritual dos sistemas filosóficos, foi até aqui quase totalmente esquecida pairando sobre suas determinações metafísicas43" (MARX, 1975: 23). A sua preocupação com relação à 41 NT: Tradução nossa de: "(...) el contenido teórico de la filosofía depende de la personalidad del filósofo." 42 NI: Tradução nossa de: "Diese Systeme sind der Schlüssel zur wahren Geschichte der griechischen Philosophie". Levando em conta o apontamento de Zelený (1974: 277-278), segundo o qual um dos pontos onde Marx teria se afastado da filosofia hegeliana refere-se a uma certa absolutização da consciência-de-si (Selbstbewußtsein) humana, podemos perceber, através do rascunho de um novo prefácio para sua tese, a importância do estudo desses sistemas particulares nesse afastamento: "Já é chegado o tempo no qual se entenderá os sistemas dos epicúreos, dos estoicos e dos céticos. Essas são as filosofias da consciência-de-si. Essas linhas vão, ao menos, tornar claro o quão pouco essa tarefa [foi] até agora resolvida" (MARX, 1975: 92). Ou seja, a problematização da consciência-de-si está conectada, aqui, com sua preocupação com o significado dessas particularidades da história da filosofia grega. Tradução nossa de: "Es ist erst jetzt die Zeit gekommen, in der man die Systeme der Epikureer, Stoiker und Skeptiker verstehn wird. Es sind die Philosophien des Selbstbewußtseins. Diese Zeilen werden wenigstens klar machen, wie wenig diese Aufgabe bis jetzt gelöst ist". 43 NT: Tradução nossa de: "Allein eben die subjective Form, der geistige Träger der philosophischen Systeme, ist bisher fast gänzlich über ihren metaphysischen Bestimmungen vergessen worden."

54 forma subjetiva que "paira sobre suas determinações metafísicas" reflete seu posicionamento contra o "engessamento" do sistema, ou a sua redução a uma "totalidade abstrata" e autossuficiente. 1.3.2.2- Abstração enquanto lógica que predestina o objeto. Se no primeiro momento a questão da abstração está marcada pela falta de liberdade imposta à relação de reflexão entre sujeito e objeto, no segundo momento, expresso na Crítica da filosofia do direito de Hegel de 1843, podemos percebê-la como algo que perpassa significativamente a crítica marxiana ao modo hegeliano de compreender o Estado, na medida em que aparece como mistificação da realidade. Ou seja, observa-se a importância da abstração no pensamento de Hegel quando se nota, tal como Marx (2010a: 36) aponta, que a sua explicação da constituição política se dá ao relacioná-la com a ideia abstrata, ao compreendê-la como momento dessa ideia, o que seria, na verdade, uma explicação mistificadora. A razão dessa mistificação está no fato de que "[Hegel] não desenvolve seu pensamento a partir do objeto, mas desenvolve o objeto segundo um pensamento concebido [consigo] e [concebido consigo] na esfera abstrata da lógica44" (MARX, 2010a: 36) (grifo nosso). Através desse modus operandi chega a estabelecer que os diferentes poderes são "determinados pela natureza do conceito", isto é, determinados a partir de fora, de modo que sua existência esteja "predestinada" e codificada nos "registros sagrados da Santa Casa (da Lógica)" (MARX, 2010a: 36). É interessante essa comparação entre a Lógica e a Santa Casa, prisão da Inquisição Espanhola em Madrid: o ser do objeto é submetido a uma normatização transcendental cuja não observância é sancionada com a sua correção, fazendo-o sofrer enquanto sua forma efetiva é dilapidada segundo os critérios da norma lógica; essa correção pode levar tanto à adequação quanto à eliminação do ser efetivo. A explicação é, por fim, mística, uma vez que fundamenta a existência do real, do efetivo a partir de elementos abstratos autônomos existentes fora do objeto, cuja existência engendra o real, o efetivo. Como afirma Marx (2010a: 36): "A alma dos objetos [...] está pronta, predestinada antes de seu corpo, que não é propriamente mais que a aparência. O 'conceito' é o filho na 'ideia', em Deus-pai; é o [princípio ativo], determinante e diferenciador. 'Ideia' e 'conceito' são, aqui, abstrações autônomas". 44 NE: Na nota 30 apontamos as alterações realizadas na presente citação. Neste ponto, as citações de Marx (2010a) serão cotejadas com Marx (1982a).

55 No seu comentário ao §270 dos Princípios da filosofia do direito de Hegel, Marx (2010a: 36-39) realiza um exame das categorias lógicas ali presentes que suscita elementos interessantes do ponto de vista da concreção da questão acerca do problema da abstração em Hegel, a qual foi sumariamente colocada no parágrafo anterior. Exporemos esse exame, tal qual o recortamos, em três etapas: uma, onde Marx analisa o §270, abstraindo - no sentido de "isolar" - dele suas proposições essenciais e apresentando as conexões entre elas, visando a compreensão da exposição de Hegel; outra, onde se problematiza essa exposição, identificando o princípio ativo do Estado dentro dessa concepção; e, por fim, critica o movimento de fazer da filosofia do direito um mero parêntese da lógica. Primeira etapa. Discute-se nesse parágrafo, sinteticamente, a finalidade do Estado (Staatszweck), sua efetividade abstrata (abstrakte Wirklichkeit) ou substancialidade e sua necessidade (Nothwendigkeit), as distinções do conceito (Begriffs-Unterschiede), a atividade (Wirksamkeit) e o espírito (Geist). Essas categorias se relacionam como segue (MARX, 2010a: 37). A finalidade do Estado é, inicialmente, sua efetividade abstrata, qual seja, o interesse universal enquanto tal e enquanto existência (Bestehn) - no sentido de uma existência que se conserva, que persiste - dos interesses particulares nesse interesse universal. Não há efetividade no Estado sem essa finalidade - ela é "o objeto essencial de sua vontade [do Estado], mas, ao mesmo tempo, apenas uma determinação completamente universal desse objeto" (MARX, 2010a: 37). Enquanto ser, tal finalidade "é o elemento de existência para o Estado" (MARX, 2010a: 37). Em outras palavras, um Estado que não deseja atender o interesse universal conservando nele os interesses particulares não é um Estado, uma vez que anula sua finalidade, sua efetividade abstrata ou sua substancialidade. Enquanto essa efetividade abstrata se divide em atividades racionalmente distintas - as quais, pela determinação racional da distinção (distinções do conceito), são determinações estáveis - ela é necessidade do Estado. Isto é, na medida em que essas atividades distintas aparecem como poderes distintos do Estado e que a pura finalidade do Estado e a pura existência (Bestehn) do todo se realizam através dessas atividades, podemos dizer que a efetividade abstrata do Estado é necessidade - não fosse essa efetividade por trás dos poderes distintos do Estado, esses poderes perderiam a razão de existir. Uma vez que a necessidade do Estado aparece mediante essas atividades racionalmente distintas, ele deve ser considerado a partir dos seus poderes distintos, muito embora sua primeira determinação seja abstrata - sua finalidade pautada no interesse

56 universal e, nele, a conservação dos interesses particulares. Essa abstração não desaparece nos poderes distintos do Estado, antes "[...] a substância [ou o efetivo abstrato] aparece dividida em [efetividades] ou atividades autônomas, porém essencialmente determinadas" (MARX, 2010a: 37). Daí dizer que "a relação de substancialidade é relação de necessidade" (MARX, 2010a: 37) (grifo nosso). Marx (1982a: 16) chega a afirmar que poderá usar essas abstrações em qualquer efetividade45. E continua: "Na medida em que, primeiro, eu trato o Estado sob o esquema da [efetividade] 'abstrata', tenho que tratá-lo, em seguida, sob o esquema da '[efetividade] concreta', da 'necessidade', da distinção realizada (erfüllten)" (MARX, 2010a: 37). Temos, assim, uma identidade entre o ser abstrato do Estado - sua finalidade - e o seu ser concreto - seus poderes. Entretanto, logo em seguida no parágrafo, Hegel afirma que essa substancialidade é, enquanto efetividade abstrata, o "espírito que, por haver passado pela forma da cultura, sabese e quer a si mesmo" (MARX, 2010a: 37). Ou seja, o espírito autônomo, que se sabe e se quer, produto histórico da cultura (Bildung), entidade autoconsciente, é a substância do Estado, sujeito e fundamento pelo qual se dá a autonomia estatal. Assim, o conteúdo desse espírito e sua finalidade universal é "o interesse universal e a conservação dos interesses particulares nele" (MARX, 2010a: 37), o que constitui a substância essente (die seiende Substanz) do Estado, de modo que se configure, nesses termos, uma natureza estatal do espírito. A realização desse conteúdo abstrato se dá "apenas como uma atividade distinta, como a existência (Dasein) de diferentes poderes, como uma potência articulada" (MARX, 2010a: 38). Por fim, a explicação do concreto, dos poderes estatais, encontra-se nas suas determinações mais abstratas, na finalidade do Estado enquanto efetividade abstrata, no espírito enquanto constituinte da substância estatal. Segunda etapa. A análise de Marx que expusemos na primeira etapa do exame, onde ele se apega à exposição de Hegel com o fim de a esclarecer, por si já aponta elementos que nos permitem perceber o papel que a abstração exerce no processo hegeliano de mistificação da realidade. Acompanhemos, contudo, as observações de Marx à respeito dessa exposição, pois através delas a crítica se aprofunda. Exporemos essas observações em 4 pontos. 1- As categorias lógicas abstratas são transformadas em sujeitos: apesar da "efetividade abstrata" ou "substancialidade" ser "necessidade" (ou a distinção substancial) do 45 NT: Tradução nossa de: "Diese Abstraktionen werde ich auf jede Wirklichkeit anwenden können". Lembramos que se trata aqui de uma análise do §270 do texto de Hegel e, portanto, a finalidade é a compreensão dos seus enunciados, de modo que essa afirmação não pode ser lida como uma tomada de posicionamento teórico por parte de Marx.

57 Estado, é essa mesma "efetividade abstrata" ou "substancialidade" que se divide nas distinções do conceito da sua atividade (Wirksamkeit), isto é, é ela que se movimenta nas distinções do conceito desse complexo estatal que é tornado efetivo. Através da "substancialidade" as distinções do conceito são "determinações estáveis e [efetivas], poderes" (MARX, 2010a: 38). Dessa forma e na medida em que por ela essas distinções do conceito ganham concretude na forma dos diferentes poderes, a "substancialidade" deixa de ser uma determinação abstrata do Estado ou seu predicado, para ser sujeito. No que afirma Hegel, "tal substancialidade é, porém, precisamente, o espírito que, por haver passado pela forma da cultura, sabe-se e quer a si mesmo" (MARX, 2010a: 38). 2- O espírito autônomo passa, assim, a ser predicado da "substancialidade", uma categoria lógica abstrata. Diz-se que a "substancialidade" é espírito, e não o contrário, de modo que essa "substancialidade" ganha vida. 3- Esse espírito, "o verdadeiro ponto de partida", o elemento racional que dá consistência tanto à existência da finalidade do Estado quanto à de seus poderes, "aparece apenas como último predicado da substancialidade, já anteriormente determinada como fim universal e como diferentes poderes do Estado" (MARX, 2010a: 38). Tal ocorre porque se partiu da "substância" enquanto sujeito, enquanto essência efetiva, dissolvendo o sujeito efetivo - o espírito - na categoria, o qual aparece assim como "o último predicado do predicado abstrato" (MARX, 2010a: 38). Isso significa que o fim universal e os diferentes poderes do Estado são desdobrados não do espírito efetivo, mas de uma categoria lógica abstrata - a "substancialidade" - que, efetivamente, seria um predicado abstrato, a expressão lógica de um ser46. A mistificação da finalidade do Estado e dos seus poderes decorre, assim, do fato de que eles "aparecem apresentados enquanto 'modos de existência' da 'substância' e separados de sua existência efetiva, do 'espírito que se sabe e se quer, do espírito cultivado'" 47 (MARX, 1982a: 18). 4- Assim, aquilo que efetivamente determina o Estado, seu conteúdo concreto, aparece 46 NI: Parece que aqui está pressuposta uma identidade entre a expressão lógica do ser e o próprio ser, de modo que a autonomia do ser parece pertencer à sua expressão. Daí que a expressão lógica do ser apareça e valha como o ser da expressão lógica, desdobrando da categoria concebida idealmente os elementos concretos e efetivos. O próprio desenvolvimento histórico daria conta de demonstrar a efemeridade da categoria com relação ao espírito. Mas pelo fato de estar pressuposta a identidade entre eles, a própria categoria se transforma em função do movimento do espírito, fazendo parecer que a categoria possui autonomia, que se movimenta por si. A lógica é, assim, descoberta e, por emular o movimento do espírito, substitui a sua análise. A realidade hegeliana parece ser, assim e de fato, expressão da lógica e não do espírito. 47 NT: Tradução nossa de: "[...] sie als 'Daseinsweisen' der 'Substanz' dargestellt und getrennt ihrem wirklichen Dasein, dem 'sich wissenden und wollenden Geist, dem gebildeten Geist' erscheinen."

58 apenas como a forma de algo que é, de fato, uma forma abstrata, e que é tida como conteúdo concreto. Em outras palavras, o determinante aparece como determinado, e o determinado, como determinante. Isso se dá, como foi colocado acima, por conta de um procedimento metodológico que consiste em partir de uma lógica prévia ao objeto e tornada universal a partir de sucessivos movimentos de abstração. Veremos mais adiante como, através desses movimentos, Hegel teria partido da consideração do espírito para a consideração do espírito através da lógica. Terceira etapa. Tendo chegado à constatação de que se processa uma mistificação da realidade do Estado na medida em que o sujeito (o espírito) por trás dele se dissolve nas categorias lógicas, fazendo com que a sua existência apareça como engendrada por essas categorias, Marx lança um olhar sobre o próprio fazer teórico de Hegel nessa obra. Ele afirma: "A essência das determinações do Estado não consiste em que possam ser consideradas como determinações do Estado, mas sim como determinações lógico-metafísicas em sua forma (Gestalt) mais abstrata" (MARX, 2010a: 38) (grifo nosso). Denuncia-se, assim, que a finalidade da filosofia do direito hegeliana não é a demonstração do direito e do Estado, mas sim a demonstração, através desses últimos, da lógica. Se em algum momento a lógica apareceu como mediação onto-gnosiológica para se achegar a um objeto, do ponto de vista do conhecimento, agora ela aparece como o objeto que é demonstrado mediante a investigação do real. Tal é aqui o trabalho filosófico: a volatização das determinações concretas no pensamento abstrato. O sentido filosófico das determinações concretas do Estado - as quais são tomadas exteriormente enquanto "coisas secundárias" - "é [portanto] que o Estado tem nelas o sentido lógico" (MARX, 2010a: 39) (grifo nosso). Ou seja, "o interesse universal e, nele, a conservação dos interesses particulares como [finalidade] do Estado" é algo externo, cujo sentido filosófico é expresso na "[efetividade] abstrata ou substancialidade"; tal sentido nada mais é que aquele encontrado pelo Estado nas suas determinações concretas enquanto sentido lógico para si. Esse sentido filosófico, isto é, a significação das determinações concretas para o Estado sob a forma de categorias lógicas abstratas, é objeto da lógica, o qual aparece de modo primário no tratamento hegeliano da filosofia do direito 48. Desse modo, o tratamento 48 NI: A centralidade da lógica nessa explicação mistificadora do Estado é tratada por Marx (2010a: 31; 1982: 9-10) quando da análise do §262: "A [efetividade] empírica é, portanto, tomada tal como ela é; ela é, também, enunciada como racional; porém, ela não é racional devido à sua própria razão, mas sim porque o fato empírico, em sua existência [Existenz] empírica, possui um outro significado diferente dele mesmo. O fato, [do qual se parte] (von der ausgegangen wird), não é apreendido como tal, mas como resultado místico. O [efetivo] torna-se fenômeno; porém, a ideia não tem outro conteúdo a não ser esse fenômeno. Também não

59 dos diversos poderes estatais não é realizado senão enquanto tratamento das distinções do conceito, quais sejam aqui distinções da atividade estatal, quais sejam, por fim, determinações estáveis, poderes do Estado: dessa maneira se dá o âmbito da filosofia do direito, no sentido de que ela é "apenas um parêntese da lógica" (MARX, 2010a: 39). Enfim, é de dentro da lógica - sistemática e abstrata - que a filosofia do direito surge e se assenta enquanto sua demonstração. Aí reside a crítica: esse orbitar em torno da lógica faz da filosofia hegeliana do direito uma construção teórica mistificadora da explicação do Estado. 1.3.2.3- Abstração enquanto potencialmente desmistificante e efetivamente mistificante. No terceiro momento temos os Manuscritos econômico-filosóficos de 184449. Aqui lemos um texto onde Marx enfrenta a Hegel a partir da sua filosofia em geral, sem a mediação das questões ditas fenomênicas e que se detém, em alguma medida, no problema da autonomização da abstração, onde o espírito acaba dando lugar à lógica. Se anteriormente tratamos da mistificação do efetivo, na medida em que ele se torna matéria de confirmação das relações lógico-abstratas, veremos agora como se dá essa absolutização da lógica frente ao efetivo e de que modo é possível que essa forma especulativa abrigue em si o real (MARX; ENGELS, 2003: 75). Ao lançar um olhar para a estrutura da Fenomenologia do espírito (1807) e da Enciclopédia das ciências filosóficas (1830) de Hegel, é possível perceber que há em ambas um caminho que culmina com o saber absoluto, ou seja, o espírito filosófico que é capaz de apreender a si próprio. Marx (2004: 120) nota que a Enciclopédia no seu todo50 - que apresenta uma estrutura fundamentada na lógica, diferentemente da Fenomenologia, que se inicia com a problematização da relação entre a consciência e o mundo sensível - é a autoobjetivação desse espírito filosófico, sua "essência propagada", o qual é "[...] espírito pensante a partir do interior de seu estranhamento-de-si, isto é, espírito estranhado do mundo, espírito que se concebe (sich erfassende) abstratamente" (MARX, 2004: 120) (grifo nosso). Tal espírito se torna absoluto na medida em que é um pensamento que retorna ao seu lugar de origem após ter passado pelos seus diversos momentos. Esses momentos foram negados e possui a ideia outra finalidade a não ser a finalidade lógica: '[ser espírito efetivo infinito para si]' (für sich unendlicher wirklicher Geist zu sein)" (grifos nossos). 49 NE: As citações de Marx (2004) serão cotejadas com Marx (1982b). 50 NE: Ela é composta de três partes, respectivamente, A ciência da lógica, A filosofia da natureza e A filosofia do espírito.

60 suprassumidos por ele e, na sua atualidade absoluta, contém em si todos eles 51. É, dessa forma, "[...] espírito absoluto, isto é, espírito abstrato, até que encerre (erhält) sua existência (Dasein) consciente, e a existência que lhe corresponde. Pois sua existência efetiva é a abstração" (MARX, 2004: 121). Lidamos aqui, portanto, com uma entidade metafísica autoconsciente que existe abstratamente, através da qual se processam as transformações do mundo, sendo que sua expressão se dá mediante a lógica52. Podemos perceber a origem dessa concepção mística - a qual já foi apontada na análise marxiana da filosofia do direito de Hegel - na Fenomenologia do espírito. Apesar de haver elementos críticos nessa obra, "[...] já está latente enquanto gérmen, enquanto potência, como um mistério, o positivismo acrítico e do mesmo modo o idealismo acrítico das obras hegelianas posteriores" (MARX, 2004: 122) (grifos nossos). O problema é que quando Hegel apreende alguns elementos, tais como riqueza, poder do Estado, etc. enquanto "[...] essência estranhada da essência humana, isso acontece somente na sua forma de pensamento" (MARX, 2004: 121) (grifo nosso). Todo o processo histórico analisado por ele nessa obra tem como protagonista o pensamento, já que o objeto estranhado é concebido como confirmação na consciência de um ato formal, abstrato, fazendo do estranhamento um "estranhamento do pensar abstrato-filosófico". Isso ocorre porque Hegel, ao apreender "[...] - no interior da abstração - o trabalho como o ato de produção de si do homem, o comportar-se (das 51 NI: "Um papel peculiar desempenha, por isso, o supra-sumir (das Aufheben), onde a negação e a conservação, a afirmação (Bejahung), estão ligadas" (MARX, 2004: 130). Apesar dessa afirmação de Marx se referir a outro momento do texto, em que ele discute a negação da negação hegeliana, parece-nos oportuno deixar claro, desde já, que a suprassunção (die Aufhebung) se refere a uma negação que conserva o algo negado, de maneira que o que foi negado apareça, junto com aquilo que nega, como momento do todo. Percebemos essa acepção na definição de Inwood (1997: 302-303) da Aufhebung hegeliana: "O substantivo Aufhebung significa igualmente (1) 'elevação'; (2) 'abolição, anulação'; e (3) 'preservação'. [...] Em suas descrições explícitas de aufheben, Hegel refere-se unicamente aos sentidos (2) e (3) [...]. Ambos os sentidos, argumenta ele, estão implícitos em (3), porquanto preservar algo envolve removê-lo da imediatidade e de sua exposição a influências externas. [...] Hegel associa aufheben a muitas outras palavras: assim quando algo é suprassumido, é ideal (ideel), mediatizado (ou 'refletido'), em contraste com o imediato, e um momento de um todo que também contém seu oposto. Aufhebung é semelhante à negação determinada que tem um resultado positivo". Por fim, no adendo ao §96 da Enciclopédia de Hegel (1995a: 194-195), fica claro que entende-se por aufheben "[...] primeiro a mesma coisa que hinwegräumen (ab-rogar), negieren (negar), e por conseguinte dizemos, por exemplo, que uma lei, um dispositivo são aufgehoben (ab-rogados). Mas além disso significa também o mesmo que aufbewahren (conservar), e nesse sentido dizemos que uma coisa está wohl aufgehoben (bem conservada). Essa ambiguidade no uso da língua [...] não se pode considerar como contingente, nem se pode absolutamente fazer à linguagem a censura de dar azo à confusão, mas tem-se de reconhecer aí o espírito especulativo de nossa língua [alemã], que vai além do simples ou-ou do entendimento". Destarte, suprassumir apresenta a unidade entre negação e afirmação (conservação), ao mesmo tempo que aponta uma elevação ou mediação de algo. Pode-se dizer, assim, que algo suprassumido contém determinações, mediações, é mais "rico" que algo que se apresenta como simples afirmação. 52 NI: O juízo que Marx faz da lógica hegeliana pode ser apreendido na seguinte citação: "A lógica - o dinheiro do espírito, o valor do pensamento [...] - sua essência tornada totalmente indiferente contra toda determinidade efetiva e, portanto, essência não-efetiva - é o pensar exteriorizado que, por essa razão, faz abstração da natureza e do ser humano efetivo; o pensar abstrato." (MARX, 2004: 120)

61 Verhalten) para consigo como essência estranha e a sua atividade (Betätigen), enquanto uma essência estranha, como a consciência genérica e vida genérica vindo-a-ser" (MARX, 2004: 132), compreende que a "efetividade estranhada da objetivação humana", uma vez suprassumidos o estranhamento e a objetividade, aparece como espírito, "[...] pois apenas o espírito é a verdadeira essência do homem, e a verdadeira forma do espírito é o espírito pensante, o espírito lógico, especulativo" (MARX, 2004: 122). Por serem entes do pensamento, as relações que se dão no âmbito dessa efetividade estranhada, bem como a possibilidade de sua superação, se passam no plano da consciência. Assim, "[...] as diferentes figuras do estranhamento que surgem são, por conseguinte, apenas diferentes figuras da consciência ou da consciência-de-si" (MARX, 2004: 123). O fato da crítica hegeliana entender ser necessário mediar a efetividade com o espírito em função da suprassunção do estranhamento, e de conceber consequentemente a objetividade na sua forma abstrata, "sem conteúdo e inefetiva", isto é, como "negação" (MARX, 2004: 133), a leva a perceber a forma do movimento da história e identificar na dialética, na negatividade, o seu princípio-motor53. É na crítica marxiana ao capítulo sobre o saber absoluto da Fenomenologia que se evidencia como se processa essa forma especulativa na qual o abstrato ganha agência enquanto sujeito. Precisamos ter claro que, para Hegel, "[...] o objeto (Gegenstand) da consciência nada mais é do que a consciência-de-si, ou que o objeto é somente consciênciade-si objetivada [...]" (MARX, 2004: 124), ou seja, tudo o que é externo ao homem e com o que ele se relaciona de maneira ativa - ou seja, do ponto de vista da sua autoatividade - é mediado pela consciência, de modo que o homem apareça como consciência-de-si e que aquilo que se apresenta à consciência é para ela enquanto figura da consciência, enquanto pensamento54. Vale ressaltar a ideia de que aquilo que se apresenta à consciência é, ao mesmo tempo, consciência-de-si objetivada: isso significa que a consciência-de-si, na sua exteriorização, põe a coisidade, isto é, põe aquilo que "[...] para [o homem = consciência-desi] é objeto, e objeto é verdadeiramente para ele apenas o que lhe é objeto essencial, o que é, 53 NI: "[...] para Hegel, aquele movimento de autoproduzir, de auto-objetivar-se como auto-exteriorização e auto-estranhamento é a absoluta e, por isso, a última externação da vida humana chegada à sua essência, tendo a si mesma por objetivo e estando em si mesma satisfeita. Este movimento em sua forma abstrata como dialética vale assim como a vida verdadeiramente humana, e porque é, contudo, uma abstração, um estranhamento da vida humana, ela é considerada como processo divino, mas como processo divino do homem - um processo que sua própria essência, diferente dele, abstrata, pura, absoluta, sofre." (MARX, 2004: 132-133) 54 NI: "O modo como a consciência é, e como algo é para ela, é o saber. O saber é seu único ato. Por isso, algo vem-a-ser (wird) para ela na medida em que ela sabe este algo. Saber é seu único comportamento objetivo." (MARX, 2004: 129)

62 consequentemente, sua essência objetiva" (MARX, 2004: 126), isto é, uma abstração55. É, desse modo, uma relação de via dupla e reflexiva, já que aquilo que é percebido pela consciência foi por ela mesma posto. Na medida em que ocorre essa mediação e a consciência-de-si (que, em Hegel, se refere ao homem) se torna objetivada, ela se separa de sua essência humana, afastando-se de sua comunhão original56: a relação entre homem e si mesmo não corresponde, assim, à sua essência, à consciência-de-si; torna-se uma relação estranhada. Essa essência tornada objetiva pode ser reapropriada pelo homem (ou consciência-de-si) através da suprassunção do estranhamento e da objetividade, passando o homem, a partir daí, a valer como uma "essência não-objetiva, espiritualista"57 (MARX, 2004: 125). Dessa forma, o tratamento abstrato do homem é contrapartida desse movimento de reapropriação da sua essência. É possível entender, com isso, que quando Hegel afirma o espírito como "verdadeira essência do homem" e, então, a lógica como verdadeira forma do espírito, afirma, nesses termos, o desvencilhamento das amarras que limitam o homem através da objetividade enquanto liberdade, enquanto reconciliação da essência humana consigo 55 NI: Ao ser reduzido à consciência-de-si, o homem (ou a essência humana) é tornando abstrato (o si) (MARX, 2004: 125), e isso trás a consequência do resultado da exteriorização da essência humana, ou do homem, aparecer como "[...] coisa (Ding) abstrata, uma coisa da abstração e nenhuma coisa efetiva" (MARX, 2004: 126), isto é, como coisidade. "Além disso, é claro que a coisidade de maneira alguma é, portanto, algo autônomo, essencial diante da consciência-de-si, mas sim uma simples criatura, um algo posto (Gesetzes) por ela, e o algo que é posto, ao invés de confirmar-se a si mesmo, é apenas uma confirmação do ato de pôr, que por um instante fixa sua energia como o produto e, para fazer de conta (zum Schein) - mas só por um momento -, lhe concede o papel de um ser autônomo, efetivo" (MARX, 2004: 126). Na nota seguinte percebemos que, ao trabalhar com a ideia de que o homem é, ao mesmo tempo, ser natural e social, Marx escapa da abstração do homem enquanto consciência-de-si e da autonomia aparente da coisidade. 56 NI: Se em Hegel essa separação parece acontecer de modo inevitável dada a mediação da consciência na relação entre sujeito e objeto, em Marx essa inevitabilidade está nas condições materiais - históricas - em que essa relação mediada pela consciência se processa. A possibilidade da autoprodução do homem - que se dá a partir do "[...] comportamento efetivo, ativo do homem para consigo mesmo na condição de ser genérico, [...] na condição de ser humano [...]" - existe "[...] porque ele efetivamente expõe (herausschafft) todas as forças genéricas - o que é possível apenas mediante a ação conjunta dos homens, somente enquanto resultado da história -, comportando-se diante delas como frente a objetos, o que, por sua vez, só em princípio é possível na forma do estranhamento" (MARX, 2004: 123). Em outras palavras, o estranhamento, essa separação do homem com relação à sua essência, é resultado necessário da atividade da sua autoprodução, a qual se dá, segundo Marx (MARX, 2004: 79-90), sob as determinações da propriedade privada. É interessante notar também que, já nesse momento, Marx opera com uma noção de essência humana, de ser genérico cujo conteúdo apresenta uma expressão material. Na citação anterior percebemos isso, do ponto de vista do ser genérico, quando se vincula a possibilidade de efetividade desse ser (Wesen) à ação conjunta dos homens e quando essa efetividade se dá enquanto história. Já o caráter material da essência humana é possível ser apreendido a partir da relação entre homem e natureza: "A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem social; pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência (Dasein) sua para o outro e do outro para ele; [...]. É primeiro aqui que a sua existência natural se lhe tornou a sua existência humana e a natureza se tornou para ele o homem. Portanto, a sociedade (Gesellschaft) é a unidade essencial completada (vollendete) do homem com a natureza [...]" (MARX, 2004: 106-107). O conteúdo material dessas abstrações se mostra, portanto, como conteúdo social. 57 NI: "Toda reapropriação da essência objetiva estranhada aparece, então, como uma incorporação na consciência-de-si; o homem apoderado de sua essência é apenas a consciência-de-si apoderada da essência objetiva". (MARX, 2004: 125)

63 mesma. A lógica pura expressa, dessa forma, o espírito livre em si e para si, despido da determinação do objeto. Portanto, para Hegel "[...] não é o caráter determinado do objeto, mas sim seu caráter objetivo que constitui, para a consciência-de-si, o escandaloso (das Anstössige) e o estranhamento" (MARX, 2004: 129). Se, conforme apontamos, o objeto é existente somente enquanto mediado pela consciência, de modo que ele em si é uma nulidade - "[...] um negativo que supra-sume a si mesmo [...]" ou "[...] o ser-não-distinto do objeto com relação à [consciência-de-si] [...]" (MARX, 2004: 129) - e confirma sua não-objetividade, sua abstração, sendo que essa nulidade se mostra como o objetivo (gegenständlich) na medida em que a consciência a sabe como auto-exteriorização; então a consciência-de-si, uma vez que suprassumiu e recuperou dentro de si a exteriorização e objetividade nesse movimento de reapropriação da sua essência tornada objetiva, está assim "[...] junto de si em seu ser-outro enquanto tal" (MARX, 2004: 129). Em outras palavras, o que é de fato objetivo para a consciência - cujo único comportamento objetivo é o saber - se encontra no saber do objeto, já que ele é sua auto-exteriorização: a objetividade do objeto está, dessa forma, na objetividade da consciência. Esse processo pelo qual Hegel concebe a relação entre a consciência e o seu objeto apresenta "[...] todas as ilusões da especulação", afirma Marx (MARX, 2004: 129). Ao admitir, como faz Hegel, que o resultado do processo de exteriorização da consciência se apresenta enquanto um movimento da consciência que se exteriorizou no objeto e, mediante sua suprassunção e recuperação, está "junto de si em seu ser-outro enquanto tal"58, submetemo-nos a algumas implicações especulativas. Deixando de lado a abstração hegeliana da consciência-de-si e considerando-a consciência-de-si do homem, a primeira implicação apontada por Marx (MARX, 2004: 129) é "[...] que a consciência - o saber enquanto saber -, o pensar enquanto pensar finge ser imediatamente o outro de si mesmo, finge ser sensibilidade, efetividade, vida, o pensar que se sobrepuja no pensar (Feuerbach)" (grifos nossos). Na medida em que admitimos a consciência nos termos hegelianos, concebemos o seu ser-outro como resultado da objetividade enquanto coisidade 58 NI: Isto é, mediante tal processo, a consciência se reconcilia consigo mesma no reconhecimento do objeto enquanto resultado da sua própria exteriorização, ou seja, reconhece no objeto o seu ser-outro enquanto tal que, sob tal forma, está junto de si. Em outras palavras, ao reencontrar-se consigo mesma, a consciência que se exteriorizou se depara consigo mesma na forma do objeto. A possibilidade do reencontro está, pois, no reconhecimento desse objeto como seu ser-outro, como uma exteriorização sua. Nesse sentido, ela retorna para junto de si de modo objetivo, resultando, dessa reconciliação, a objetivação da consciência. Assim, os desdobramentos desse movimento aparecem nas formas objetivas que o espírito toma no próprio desdobrar da cultura.

64 posta pela consciência-de-si, de modo que ela o reconheça a partir das mediações do próprio objeto e, assim, por meio dele se reconcilie consigo mesma. Mas isso não ocorre quando pensamos a consciência em termos humanos, ou materiais, dada sua unidade com a natureza do ponto de vista social. Nesses termos percebemos as determinações da propriedade privada e, portanto, a mediação de uma objetividade estranhada, de um obstáculo social que impede o reconhecimento da consciência-de-si no seu ser-outro, o que implica na ideia de que tal reconhecimento só seja possível a partir da suprassunção desse estranhamento objetivo, o que nos leva à necessidade da suprassunção da propriedade privada. Portanto, pensar que a consciência-de-si, a partir da mera suprassunção e recuperação da exteriorização e objetividade dentro de si, já está junto de si em seu ser-outro enquanto tal é uma ilusão, posto que abstrai as condições materiais - relação homem-natureza do ponto de vista subjetivo e objetivo - nas quais se dá o movimento da consciência-de-si. A segunda implicação consiste no seguinte: dada a "existência espiritual universal" do mundo humano resultante do próprio movimento da consciência-de-si, e o reconhecimento posterior desse mundo como sua auto-exteriorização, temos que, por meio desse reconhecimento, tal mundo é confirmado, "[...] nesta figura exteriorizada e o toma como seu verdadeiro modo de existência [...]" (MARX, 2004: 130) (grifo nosso). Dessa maneira, por meio do mero reconhecimento do mundo dado em termos universais enquanto autoexteriorização da consciência-de-si, afirma-se a existência espiritual do mundo, conferindo à ela estatuto de verdade. Nisso se assenta o criticismo aparente de Hegel: critica-se o mundo tal como ele se mostra ao afirmar que sua essência está na consciência-de-si para, no momento posterior, reafirmá-lo, em toda sua aparência, como modo de existência verdadeiro, adequado à sua essência. Em função disso, citamos Marx (MARX, 2004: 130): A razão está, pois, junto de si na não-razão (Unvernunft) enquanto nãorazão. O homem que reconheceu levar no direito, na política etc., uma vida exteriorizada, leva nesta vida exteriorizada, enquanto tal, sua verdadeira vida humana. A auto-asserção, autoconfirmação em contradição consigo mesma, tanto com o saber como com a essência (Wesen) do objeto é, portanto, o verdadeiro saber e a verdadeira vida.

O que se sabe como consciência-de-si - o homem reduzido à abstração - não se sabe como consciência-de-si exteriorizada - a coisidade posta mediante a exteriorização da consciência-de-si, ou sua essência objetiva exteriorizada. O que se mostra para nós como

65 externalidade (Äusserlichkeit)59 - religião, direito, etc. - é tão somente o lugar onde se confirma a consciência-de-si exteriorizada, uma negação da "consciência-de-si pertencente à sua essência". Essa última se confirma, ao contrário, na suprassunção do lugar da confirmação da consciência-de-si exteriorizada, isto é, na suprassunção da religião, do direito, etc. Assim há, segundo Marx, uma diferença entre a consciência-de-si e sua exteriorização, na qual uma se põe junto da outra em contradição ("a razão está junto de si na não-razão"), do ponto de vista do que se sabe e do que se é, de modo que seja no âmbito dessa mesma contradição que se dê a verdadeira vida humana60. Isso significa que, se em Hegel essa contradição se resolve no resultado da suprassunção da externalidade onde se confirma a consciência-de-si exteriorizada, isto é, no espírito absoluto, Marx rejeita essa solução idealista e concebe a contradição como a verdade mesma. Posto isso, apesar da negação da negação hegeliana ser, por um lado, uma expressão do movimento da história, ainda que a seja de maneira "abstrata, lógica, especulativa" - "[...] a história ainda não efetiva do homem enquanto um sujeito pressuposto, mas em primeiro lugar ato de produção, história da geração do homem" (MARX, 2004: 118-119) -, por outro [...] a negação da negação não é a confirmação da verdadeira essência, precisamente mediante a negação da essência aparente, mas a confirmação da essência aparente ou da essência estranhada de si em sua negação ou a negação dessa essência aparente enquanto essência objetiva, habitando fora do homem e independentemente dele, e sua transformação no sujeito. (MARX, 2004: 130) (grifos nossos)

Em outras palavras, a negação da negação hegeliana é um avanço, do ponto de vista da apreensão da história humana, na medida em que problematiza seus diversos momentos a 59 NI: "É completamente plausível que um ser vivo, natural, provido e dotado de forças essenciais objetivas, isto é materiais, tenha objetos efetivo-naturais de seu ser, na mesma medida que sua auto-exteriorização (Selbstentäusserung) seja o assentamento (Setzung) de um mundo efetivo, mas sob a forma de externalidade (Äusserlichkeit), um mundo prepotente (übermächtigen) e objetivo, não pertencente ao seu ser ." (MARX, 2004: 126) 60 NI: Ressaltamos a ideia de que a verdadeira vida humana - "verdadeira" no sentido de "prática", não no de idêntica à sua essência - se dê no âmbito dessa contradição, pois nos parece que as representações que são aí produzidas tem efeito prático sobre o cotidiano social. As determinações da propriedade privada, o comportamento dos deuses, as leis econômicas são elementos produzidos pela relação estranhada que o ser humano mantém consigo mesmo, os quais produzem efeitos sobre seus criadores através de processos que são tornados inteligíveis mediante sua teorização. Com isso, a crítica parte desses processos estranhados tornados inteligíveis, ou da sua forma teórica, levantando seus pressupostos para que sejam negados. Ou seja, desde esse momento do seu pensamento, Marx dá indicações de que a sua crítica não parte de um dever-ser, mesmo operando com uma ideia de essência humana - muito embora tenhamos já apontado que não se trata de uma essência mística e a-histórica - e mesmo tendo em vista um momento posterior de reconciliação do homem para consigo mesmo. Seu ponto de partida será sempre a negação dos pressupostos oferecidos pela realidade que se apresenta de modo imediato e aparente.

66 partir das conexões que eles apresentam entre si, dando a eles uma unidade, uma marcha, um ritmo; ao mesmo tempo, contudo, é um avanço mistificador, já que percebe as conexões desses momentos a partir da ideia de que suas estruturas objetivas constitutivas são expressões da consciência-de-si junto de si em seu ser-outro enquanto tal. Isto é, percebe-se a transformação histórica das instituições, das formas da expressão artística e religiosa do mundo etc. enquanto diversificação das formas que o espírito assume a partir da identidade entre a consciência-de-si e sua exteriorização - a partir da transformação da essência aparente em sujeito -, de tal forma que aquilo que engendra essas transformações não é a essência humana, tal qual percebida por Marx nesse momento de seu pensamento (MARX, 2004: 106107), mas a essência humana hegeliana, em que "[...] apenas o espírito é a verdadeira essência do homem, e a verdadeira forma do espírito é o espírito pensante, o espírito lógico, especulativo" (MARX, 2004: 122). Percebemos assim, do ponto de vista da reapropriação da essência objetiva do homem, o assujeitamento da consciência-de-si exteriorizada, a negação da "essência aparente enquanto uma essência objetiva, habitando fora do homem e independente dele": aqui, a consciência-de-si é tomada como idêntica à sua exteriorização e, consequentemente, o mundo objetivo é reconhecido enquanto mundo subjetivo. A abstração da vida material - o sujeito e o objeto tornados idênticos um com relação ao outro - aparece em Hegel como solução do estranhamento, o que implica em admitir uma agência das abstrações, a ponto de considerar as personagens históricas como suas encarnações. É o espírito que age através dos homens, e não o contrário61. Vejamos, por fim, os "momentos positivos da dialética hegeliana" - isto é, aqueles onde se apreende, mesmo que sob forma abstrata, "o trabalho como o ato de produção de si do homem" - percebidos por Marx (MARX, 2004: 132). Para isso, retomemos rapidamente dois pontos (MARX, 2004: 133): 1 - ao considerar o objeto estranhado de maneira abstrata, enquanto consciência-de-si exteriorizada ou coisidade, ou seja, ao negar o objeto em seu conteúdo e efetividade, ele é 61NR: Hegel escreve a Niethammer em carta datada de 13 de outubro de 1806, momento em que Napoleão e seu exército ocupam Jena: "[...] eu vi o imperador - essa alma do mundo - cavalgar pela cidade para fazer o reconhecimento; - é, de fato, uma sensação maravilhosa ver um tal indivíduo que, concentrado aqui sobre um ponto, sentado sobre um cavalo, se alastra sobre o mundo e o domina" (HEGEL, 1969: 120) (grifo nosso). Isto é, Napoleão é visto como uma corporificação desse pulso transcendental que movimenta a história da vida humana, uma realização do espírito que, sob essa forma, se propaga pelo mundo assentando a liberdade e o progresso. Tradução nossa de: "[...] den Kaiser - diese Weltseele - sah ich durch die Stadt zum Rekognoszieren hinausreiten; - es ist in der Tat eine wunderbare Empfindung, ein solches Individuum zu sehen, das hier auf einem Punkt konzentriert, auf einem Pferde sitzend, über die Welt übergreift und sie beherrscht."

67 apresentado enquanto mera forma; 2 - ao suprassumir a exteriorização, o pôr da consciência-de-si, suprassume-se a "abstração sem conteúdo", de tal forma que o que foi negado no conteúdo seja novamente negado na forma - a negação da negação. Disso desdobram-se dois pontos (MARX, 2004: 133): α - "a atividade plena de conteúdo [...] torna-se, por isso, na sua abstração vazia, a negatividade absoluta, uma abstração que novamente é fixada como tal, e é pensada enquanto atividade autônoma, simplesmente atividade"; β - se tal negatividade não é senão a forma abstrata do ato efetivo-vivo, o seu conteúdo é também formal, posto que "produzido pela abstração de todo conteúdo". Nesse sentido, na medida em que chegamos à negatividade absoluta, chegamos às formas de abstração universais abstratas, formas de pensamento que, uma vez carentes de conteúdo, são capazes de lidar com todo conteúdo determinado. Essas formas universais fixas e autônomas com relação ao espírito e a natureza "[...] são um resultado do estranhamento universal da essência humana" (MARX, 2004: 133), as quais foram apresentadas por Hegel como "[...] momentos do processo de abstração" (MARX, 2004: 133-134). Tais momentos são encadeados mediante o suprassumir dessas formas, que se elevam umas sobre as outras a níveis cada vez mais abstratos. O exemplo dado é o movimento feito por Hegel na sua Lógica: "[...] o ser supra-sumido é essência, a essência supra-sumida, conceito, o conceito suprasumido... ideia absoluta" (MARX, 2004: 134). Mas o movimento de suprassunção não se esgota ao atingir a ideia absoluta e ela, então, suprassume-se a si mesma. Ocorre que ela, na condição de abstração, ao se apreender enquanto abstração, "sabe-se como nada", de modo que tenha de "renunciar à abstração" e se achegar, desse modo, junto de seu contrário, qual seja, a natureza (MARX, 2004: 134). Assim, Hegel mesmo prova que "toda lógica é, portanto, a prova de que o pensar abstrato por si nada é, de que a ideia absoluta por si nada é, de que somente a natureza é algo" (MARX, 2004: 134). Ou seja, o próprio pensamento abstrato e lógico levado ao limite renuncia a si mesmo e passa à intuição, isto é, renuncia à

68 universalidade e indeterminidade do seu estar-junto-de-si em favor de seu ser-outro particular e determinado. Assim, o pensamento daquele que permanece distante de sua essência natural e humana corresponde a uma forma estranhada, apartada dessa essência, cuja expressão se dá nas formas lógicas fixas e autônomas, ou nos "espíritos fixos habitando fora da natureza e do homem" (MARX, 2004: 135). Contudo, não basta seguir a passagem do abstrair ao intuir para escapar ao pensamento estranhado: mesmo a natureza, "[...] tomada abstratamente, para si, fixada na separação do homem, é nada para o homem" (MARX, 2004: 135). Ela não passa, nesse caso, de uma repetição das abstrações lógicas sob uma forma sensível, tal qual o direito e o Estado não passam de uma repetição das mesmas abstrações lógicas sob uma forma espiritual-política. Isso quer dizer que Hegel oferece os elementos para se apreender criticamente a sociedade moderna estranhada; mas, uma vez que esses elementos mesmos são estranhados, não consegue conceber soluções efetivas para o estranhamento, posto que entende que a sua resolução reside justamente em uma forma estranhada, qual seja o seu idealismo objetivo. Aqui vale uma citação de Marx (MARX, 2004: 135): Hegel encerrou conjuntamente em sua lógica todos estes espíritos fixos, cada um deles apreendido primeiramente como negação, isto é, como exteriorização do pensar humano, depois como negação da negação, isto é, como supra-sunção desta exteriorização, como efetiva externação do pensar humano; mas - enquanto ele próprio ainda está embaraçado no seu estranhamento - esta negação da negação é, em parte, o restabelecer dos espíritos fixos no seu estranhamento; em parte, o paralisar no último ato, o referir-se a si mesma na exteriorização, como a verdadeira existência desses espíritos fixos [...], e em parte, na medida em que esta abstração se apreende a si mesma e sente acerca de si própria um tédio infinito, em Hegel a renúncia do pensar abstrato que se movimenta apenas no pensar, sem olhos, sem dentes, sem ouvidos, sem nada, aparece como decisão de reconhecer a natureza como essência e transferir-se à intuição.

Ao se mover no âmbito do estranhamento, o reconhecimento da natureza enquanto o ser-outro da ideia aloca a primeira em oposição à segunda, já que, nessa relação, a ideia é o verdadeiro posto que "o pensar abstrato é essência" -, enquanto a natureza, a externalidade é, na sua diferença com a abstração, deficiência (MARX, 2004: 136-137). Ela deve, portanto, suprassumir-se e o resultado dessa suprassunção é, finalmente, o espírito. Essa discussão mais pormenorizada da crítica à filosofia hegeliana em geral foi necessária, em primeiro lugar, para apontar o fato de que Marx, embora critique de maneira

69 incisiva autores que se utilizam de Hegel e mesmo o próprio, na medida em que ele aplica sua filosofia em problemas concretos, identifica tanto potencialidades teóricas desmistificadoras quanto mistificadoras do real. Se a mistificação aparece como uma significação do concreto a partir de uma razão autoconsciente, a desmistificação aparece no momento em que se tributa ao próprio homem, ainda que este apareça sob a forma abstrata da consciência-de-si e nada possa fazer de efetivo enquanto tal, a razão de sua autoprodução através do trabalho. Superada a forma abstrata sob a qual aparece o homem na filosofia hegeliana, a sua dialética aponta para uma concepção materialista de mundo, na medida em que o homem, enquanto unidade de humano e natureza no ser social, aparece como produtor de si mesmo. Em segundo lugar, para perceber o lugar do problema da abstração nesse texto, qual seja: ao mesmo tempo que, em Hegel, os processos de abstração se fazem necessários para atingir a essência de um humano imerso no auto-estranhamento a partir da suprassunção do estranhamento e da objetividade da consciência-de-si, esses processos acabam por confirmar suas formas estranhadas, de modo que a busca pela superação do estranhamento redunda na substituição das abstrações fixas pelo "ato da abstração girando em si" (MARX, 2004: 135), pelo espírito em movimento ou auto-movimento da negatividade ou dialética. Redunda, em outras palavras, em uma abstração liberta de sua fixidez por meio da liberdade proporcionada pelo movimento dialético através da lógica. E, por fim, em terceiro lugar, para mostrar que, do ponto de vista do problema da abstração, percebemos uma conexão entre 1844 e 1845/47, a qual será interessante para pensar a natureza do conceito de capital apresentado em sua obra máxima, tanto em sua necessidade teórica como em sua efetividade prática. Para concluir esse assunto, retomaremos de maneira rápida a Miséria da filosofia, fechando dessa forma, a discussão sobre as abstrações nas obras de juventude de Marx. 1.3.2.4- Abstração enquanto velamento das relações sociais de produção. Conforme expomos no ponto 1.1.2, Miséria da filosofia é uma obra de 1847 na qual Marx critica Proudhon por conceber as categorias econômicas enquanto "abstrações fixas", pertencentes a um domínio etéreo e que se expressam na realidade na medida em que nela se realizam. Nessa crítica percebemos dois elementos centrais para esta dissertação: 1- é possível começar a perceber aqui as linhas gerais da discussão sobre o método da economia política -

70 posto que assentada sobre os "princípios fundamentais de suas novas concepções (Anschauungsweise) históricas e econômicas", como ajuíza Engels (2009: 195, 1977: 558) em retrospectiva -, a qual é tomada mais tarde e de maneira mais profunda nos Grundrisse de 1857 e realizada, do ponto de vista de uma exposição metódica articuladora do conteúdo pesquisado, em O Capital. E 2- de que maneira aquelas discussões críticas sobre α- o "engessamento" sistemático do pensamento enquanto "totalidade abstrata"; β- um posicionamento teórico que concebe a determinação lógico-abstrata como fundamento do real, do efetivo; e γ- a aparência crítica de uma crítica que, enquanto negadora da superficialidade fenomênica do mundo sensível, passa a pressupor um sistema lógico-abstrato como sua essência; aparecem em uma crítica ao modo de se conceber as categorias econômicas, nesse caso, o modo específico de Proudhon. Para salientar essa conexão, recuperemos uma citação da obra e alguns trechos de sua já citada carta a Annenkow. Marx (2009: 125) afirma na segunda observação sobre o método da economia política: As categorias econômicas são expressões teóricas, abstrações das relações sociais da produção. O sr. Proudhon, qual um filósofo autêntico, tomando as coisas ao inverso, vê nas relações reais as encarnações desses princípios, dessas categorias que, como nos diz ainda o filósofo sr. Proudhon, estariam adormecidas no seio da "razão impessoal da humanidade". (grifos nossos)

Diante dessa citação, é interessante lembrar o "sentido filosófico" das determinações concretas do Estado na análise hegeliana da filosofia do direito, o qual é apontado por Marx como a sua justificação lógico-abstrata: também aqui se critica o procedimento teórico segundo o qual o elemento lógico-abstrato, ou a categoria, é tomado como aquilo que faz do efetivo sua expressão, como elemento ontológico de uma realidade evanescente que trás consigo a essência de um fenômeno. Isso não significa, contudo, que Marx se apegue ao mundo sensível e despreze a teoria, configurando-se assim um empirista, tal como Zelený (1974: 290) acusa Lefebvre de ter acreditado 62. Ao contrário, as abstrações tem papel 62 NR: Segundo Zelený (1974: 290): "Nossas análises e nossas conclusões se encontram em contradição com a hipótese que enuncia Lefebvre em seu Le matérialisme dialectique, segundo a qual o Marx de A ideologia alemã e de A miséria da filosofia é um empírico sem dialética". Realmente, Lefebvre (1957: 62) afirma que: "As primeiras exposições econômicas de Marx (e notadamente A miséria da filosofia) se apresentam como empíricas. A teoria das contradições sociais implicadas no Manifesto de 1848 é inspirado pelo humanismo e pela alienação no sentido materialista do termo, mais que pela lógica hegeliana [...]. Portanto, nessa época o materialismo dialético não existia ainda! Um de seus elementos essenciais, a dialética, é expressamente rejeitada". Contudo, pouco mais adiante lemos: "Marx e Engels eliminaram o método formal. O movimento deste conteúdo [histórico, social, econômico, humano e prático] implica certa dialética [...]. Mas esta dialética não está aderida a uma estrutura do devir exprimível conceitualmente. Está concebida como dada

71 fundamental no pensamento marxiano na medida em que são "abstrações das relações sociais de produção". Lemos na sua carta a Annenkow : O que o sr. Proudhon não soube ver é que os homens produzem também, conforme suas faculdades produtivas, as relações sociais nas quais produzem a seda e o tecido. E, ainda, não soube ver que os homens [...] criam também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais. Portanto, essas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que expressam. São produtos históricos e transitórios. (MARX, 2009: 253)

Se as abstrações são necessárias e válidas para expressar as relações sociais criadas pelos homens segundo suas faculdades produtivas, então é igualmente necessário e válido que se reconheça o caráter histórico e transitório dessas abstrações: uma vez que elas são produto das relações sociais de produção, e essas relações são produto das formas históricas pelas quais os homens em sociedade produzem sua vida material e espiritual, tais abstrações perdem a matéria de sua expressão tão logo essas formas se alterem. Ou seja, elas são verdadeiras somente enquanto subsistem as relações reais expressas por elas (MARX, 2009: praticamente e constatada empiricamente" (LEFEBVRE, 1957: 63) (grifos nossos). O "empiricismo marxiano" se daria, portanto, enquanto uma consideração estrita do conteúdo. Entretanto, Flickinger (1986: 95) entende a introdução do segundo capítulo de A miséria da filosofia como "[...] um duplo reconhecimento de Marx quanto aos resultados de sua crítica a Proudhon. Por um lado, não achava possível renunciar [...] à forma construtivo-hermética da análise a partir das próprias premissas da economia política; por outro, este resultado quanto ao método de análise só valeria sob a condição de revelar sua correspondência com as determinações categoriais dessa economia mesma. Em última instância, essa exigência só poderia ser cumprida se o método metafísico da apresentação organizasse o material concreto da economia política, reproduzindo a concretização de seus próprios pressupostos ideológicos". Lembremos que, de fato, em A miséria da filosofia a especulação não é negada por Marx. Ele chega mesmo a acusar Proudhon de estar abaixo dos socialistas por carecer "[...] da coragem e lucidez necessárias para se elevar, ainda que especulativamente, acima do horizonte burguês" (MARX, 2009: 142) (grifo nosso). Diante disso, o que podemos afirmar é que a reflexão de Marx acerca de um "método formal", seja ela negativa ou positiva, se torna rara entre 1847 e 1857 e aparece novamente de maneira explícita nos Grundrisse e em O Capital - a reflexão de Flickinger (1986) mesmo passa da abordagem de A miséria da filosofia para aquelas duas obras marxianas de maturidade. Entretanto, essa ausência não significa imediatamente que Marx tenha rejeitado a dialética ou se tornado um empiricista. Não excluímos, assim, a possibilidade de encontrar uma reflexão ou outra a esse respeito diluída nos excertos e anotações, ou mesmo nas cartas, redigidas por Marx nesse período. Essa busca, apesar de interessante, foge ao escopo de nossa dissertação. As citações foram traduzidas dos seguintes trechos, respectivamente: "Nuestros análisis y nuestras conclusiones se encuentran en contradicción con la hipótesis que enuncia Lefebvre en su Materialismo dialéctico, según la cual el Marx de La ideología alemana y de la Miseria de la filosofía es un empírico sin dialéctica" (ZELENÝ, 1974: 290); "Les premiers exposés économiques de Marx (et notament Misère de la philosophie) se donnent pour empiriques. La théorie des contradictions sociales impliquée dans le Manifeste de 1848 est inspirée de l'humanisme et de l'aliénation au sens materialiste du terme plus que de la logique hégélienne [...] A cette époque donc le matérialisme dialéctique n'exist pas encore! Un de ses elements essentiels, la dialectique, est expréssement réjeté. [...] Marx et Engels ont eliminé la méthode formelle. Le mouvement de ce contenu implique une certaine dialectique [...]. Mais cette dialectique n'est pas rattachée à une structure du devenir exprimable conceptuellement. Elle est conçue comme donnée pratiquement est constatée empiriquement." (LEFEBVRE, 1957: 62-63)

72 250). As formas do pensamento expressivas do real, do efetivo, não podem ser concebidas em si enquanto abstração, enquanto elemento "imortal, inalterável, impassível" (MARX, 2009: 253), sob pena de se tornarem uma abstração vazia; antes, se pretendem expressar a vida humana em sociedade63, devem poder acompanhar as transformações inerentes ao processo histórico sob o qual essa vida se apresenta. Essa ideia de que a vida humana está em constante alteração é tributária de uma concepção e uma realidade moderna de sociedade, a qual exige categorias ou abstrações móveis a fim de que se acompanhe o objeto no seu movimento, na sua transformação. Daí o caráter conservador de Proudhon: "[...] [ele] não afirma, diretamente, que a vida burguesa seja para ele uma verdade eterna; di-lo indiretamente, ao divinizar as categorias que expressam as relações burguesas sob a forma de ideias" (MARX, 2009: 253). 1.4- Consideração parcial. Percebemos que Marx expressa, nos seus escritos de juventude, um turbilhão de tendências filosóficas, políticas e econômicas, as quais, de modo mais ou menos marcante, positiva ou negativamente, contribuíram para a formação do seu pensamento. A manutenção, transformação ou simplesmente a recusa de algumas dessas tendências por nosso autor são temas de polêmicas que orbitam em torno dos sentidos possíveis da sua crítica mais concreta da sociedade capitalista, O capital. Observamos, dentre as linhas de possível continuidade, as quais nunca são desprovidas de nuances e que perpassam sua produção entre 1841 e 1847, aquela que tematiza o problema da relação entre abstração e realidade. Identificamos nela pelo menos quatro nuances desse problema: a abstração enquanto 1- "engessamento" 63 NI: Há um trecho desta mesma carta em que Marx esquematiza as conexões que interligam as faculdades produtivas dos homens, as relações sociais produzidas nesse limite e as categorizações dessas relações: "O que é a sociedade, qualquer que seja sua forma? O produto da ação recíproca dos homens. Os homens podem escolher, livremente, esta ou aquela forma social? Nada disso. A um determinado estágio de desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens corresponde determinada forma de comércio e de consumo. A determinadas fases de desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo correspondem determinadas formas de constituição social, determinada organização da família, das ordens ou das classes; numa palavra, uma determinada sociedade civil. A uma determinada sociedade civil corresponde um determinado estado político, que não é mais que a expressão oficial da sociedade civil" (MARX, 2009: 244-245). Isto é, na categoria "sociedade civil" estão suprassumidas determinadas formas de constituição social - organização da família, ordens ou classes - que correspondem a determinadas fases do desenvolvimento econômico (ou da produção e reprodução da vida material) - formas de produção, comércio e consumo. Tais fases do desenvolvimento econômico correspondem às faculdades produtivas (adquiridas de uma atividade anterior) dos homens que agem reciprocamente sob determinada forma social, fechando, assim, um círculo de determinações. A partir do momento em que se desvincula esses elementos dos processos históricos efetivos, eles se tornam meras abstrações, espíritos fixos, representações anacrônicas, já que, tão logo os submetamos a um processo de comprovação com relação a esses processos efetivos, tais abstrações serão negadas.

73 sistemático do pensamento em uma "totalidade abstrata"; enquanto 2- fundamento lógicoabstrato do real, do efetivo; enquanto 3- meio de resolução da realidade estranhada que acaba por reafirmar esse estranhamento sob a ideia de espírito; e enquanto 4- velamento da concretude histórica das relações sociais de produção. Entendemos que as três primeiras nuances estão contidas na última enquanto formas negativas, isto é, enquanto momentos críticos que levaram à uma posição determinada com relação à forma de ser das categorias econômicas na economia política burguesa e, dessa forma, nela se dissolveram. Isso não significa, contudo, que esses momentos sejam analiticamente identificáveis na crítica apresentada em Miséria da filosofia, mas que constituem, antes, um caminho teórico-crítico desbravado e trilhado por Marx, o qual permitiu a ele desenvolver uma crítica à obra de Proudhon tal qual foi feita. Temos, portanto, no geral, uma crítica negativa à relação hegeliana entre abstração e realidade no jovem Marx, segundo a qual a abstração aparece como meio de velamento e ressignificação do real a partir de uma percepção estranhada. Veremos a seguir que a negatividade dessa crítica adquire nuances no exercício marxiano de imersão crítica na economia política. Categorias lógicas hegelianas serão admitidas como meio de articulação categórica e as próprias categorias econômicas serão criticamente trabalhadas a fim de empreender uma reconstrução crítica do sistema político-econômico. Se, de início, parece se tratar de uma ruptura, perceberemos que, na verdade, trata-se de uma complexificação no trato de Marx para com as abstrações, a qual ganha vulto no próprio processo de investigação desenvolvido por nosso autor. Essa complexificação tanto constituirá a reflexão sobre o método da economia política, uma vez que toma a negatividade da abstração como meio analítico de negação da representação "pré-científica", quanto dará condições, por meio das consequências dessa reflexão metódica, à crítica dialética madura de Marx contra a dialética hegeliana.

74 2- Da crítica contra as abstrações à crítica por meio da abstração: formas de assimilação da dialética hegeliana na década de 1850. Assim como apontamos anteriormente (FLICKINGER, 1986: 94; MARX; ENGELS, 2003: 75-76; MARX, 2009: 124-125), as críticas marxianas de juventude às abstrações oriundas das obras de Hegel, bem como às formas pelas quais elas foram apreendidas e operacionalizadas pelos jovens hegelianos e Proudhon, aqui representante do socialismo utópico, não tiveram por resultado a renúncia absoluta daquela filosofia. Antes, é possível notar em diversos momentos dos escritos de Marx na sua maturidade, mesmo na década de 1850, seja em artigos de jornais, seja em suas correspondências, a presença de um vocabulário que evidencia o insistente compartilhamento de uma cultura filosófica de matriz hegeliana. Mas, mais significativo que isso para esta dissertação, é perceber, do ponto de vista teórico, como tal filosofia aparece no exercício marxiano de dissolução das abstrações oferecidas pela economia política vigente em sua época. Entendemos que o resultado mais expressivo e finalizado desse exercício, do ponto de vista da totalização do argumento, é sua obra máxima, O capital, publicado em 1867, em cujo posfácio à segunda edição de 1873 afirma: A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor (dargestellt hat), de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la (sie umstülpen), a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. (MARX [1873] 2013a: 91) (Grifos nossos)

Ou seja, Marx sai do exercício de crítica da economia política convencido de que a dialética é um método válido de apreensão do real, desde que esse método seja desmistificado. E temos razões para pensar que essa desmistificação, ou esse processo de desvirar a dialética hegeliana, não ocorre a partir de uma reflexão estritamente filosófica que a toma por objeto, mas a partir da própria análise crítica da "anatomia" da sociedade burguesa. Vejamos novamente a avaliação de Marx sobre uma obra de Lassalle comunicada a Engels em carta de 01 de fevereiro de 1858: [...] o rapaz [Lassalle] pretende apresentar hegelianamente a economia política em seu segundo grande opus. Ele tomará conhecimento, para seu próprio revés, que uma coisa é trazer a ciência, através da sua crítica, ao ponto onde ela pode ser exposta dialeticamente, e outra completamente

75 diferente é aplicar um sistema abstrato e pronto da lógica a suspeitas que são precisamente de tal sistema. (MARX, 1978b: 275) (Grifos nossos)

Põe-se aqui a diferença entre a dialética hegeliana enquanto expressão de um idealismo e positivismo acríticos, enquanto um sistema abstrato que oferece previamente as diretrizes organizacionais para um conjunto categorial carente de sentido; e a dialética hegeliana vista a partir do seu cerne racional, enquanto resultado de um processo analítico crítico de categorias que, no seu conjunto, enfeixam e são determinadas, ao mesmo tempo, por um objeto total e racional, sendo essa totalidade mesma a substância de uma forma dialética de apresentação. O objetivo deste capítulo é apresentar elementos que demonstrem 1- esse processo de levar a ciência político-econômica, "através da sua crítica, ao ponto onde ela pode ser exposta dialeticamente"; o 2- o reflexo de tal processo na própria concepção marxiana de método, a qual entendemos como um momento positivo posterior ao exercício negativo de dissolução das abstrações político-econômicas, na medida em que constitui um exercício de síntese, de reconstrução crítica dessas abstrações ou categorias econômicas; e 3- as implicações críticas dessa concepção de método. Para isso, apresentaremos, primeiramente, uma reflexão que visa comparar a forma da crítica, ou a forma do exercício de dissolução das abstrações políticoeconômicas, presente no último momento da produção da juventude de Marx por nós indicado (em A miséria da filosofia, de 1847), com a forma presente no início da década de 1850, de modo a estabelecer, entre elas, uma diferença. Concretamente, nesse primeiro momento buscaremos apontar ocorrências operacionais de elementos lógicos hegelianos nas considerações críticas de Marx acerca da economia política que datam do início da década de 1850, considerando tais ocorrências como uma especificidade com relação à forma crítica de 1847. A ideia é apontar um processo de admissão da lógica hegeliana no fazer crítico marxiano, o qual atinge momentos marcantes como nos Grundrisse e no anexo sobre a formavalor da primeira edição de O capital. Em seguida apresentaremos alguns elementos externos a esse exercício crítico, a fim de contextualizá-lo em um espaço intelectual e cultural marcadamente hegeliano. Esperamos com isso justificar a interpretação de que as categorias alocadas por Marx nos escritos do início da década de 1850, como fenômeno, essência, suprassunção, qualidade e quantidade, apresentam mais uma conotação hegeliana do que referência a algum outro pensamento ou teoria da época. Não desconsideramos, todavia, as influências de outros autores no pensamento de Marx, tais como Spinoza e Leibniz, como nos demonstra Schrader (2007: 176-

76 177). Mas o pensamento hegeliano parece fornecer a Marx uma estrutura teórica articuladora muito interessante, o que faz desse referente o nosso principal. Por fim, discutiremos o momento positivo da crítica, qual seja, o método pelo qual se dá a reconstrução das categorias ou abstrações desconstruídas por Marx, bem como as implicações críticas desse método. A discussão sobre o método e a reconstrução categórica se ancora na Introdução aos Grundrisse e em algumas de suas passagens, a qual constituirá o terceiro e último momento deste capítulo. 2.1- Dois momentos da crítica marxiana às abstrações político-econômicas: 1847 e 1851. Trataremos nesse ponto de 4 textos de Marx a fim de apontar uma novidade no desenvolvimento da sua crítica à economia política: a presença operacional de elementos da lógica hegeliana. O primeiro texto será um recorte do segundo capítulo de A miséria da filosofia, de 1847, no qual veremos uma crítica às abstrações proudhonianas a partir da consideração histórico-econômica das relações sociais de produção. Ele representará o primeiro momento já discutido no primeiro capítulo. O segundo momento será tratado, inicialmente, a partir de uma carta de Marx a Engels de 1851, na qual nosso autor aborda um problema teórico da economia política relativo à teoria da moeda, de uma perspectiva segundo a qual se opõem fenômeno e essência. Os outros dois textos desse momento são excertos oriundos dos chamados Londoner Hefte (Cadernos londrinos) - cadernos de estudos preenchidos por Marx em 1850/53 - intitulados de, respectivamente, 1- Unterschied von Werth (natürlichem Preiß) und Reichtum (Diferença do valor [preço natural] e riqueza), extraído do caderno VIII e trabalhado entre abril e meados de maio de 1851, no qual se discute a suprassunção do processo de aumento de valor no aumento da quantidade de produtos, apontada como base da crise de superprodução; e Reflection (Reflexão), extraído do caderno VII de março de 1851, que é uma tentativa de totalização das reflexões em torno da economia política, na qual é aprofundada a análise smithiana da relação entre dealers e consumers através da consideração do impacto do sistema monetário na forma da diferenciação das classes sociais. Contraporemos, assim, dois momentos: enquanto nos escritos de 1851 serão evidenciados alguns elementos hegelianos operacionais desse exercício crítico, em 1847 essa operacionalidade ficará a cargo da análise histórico-econômica.

77 2.1.1- Crítica às abstrações político-econômicas através da consideração históricoeconômica das relações sociais de produção. Em A miséria da filosofia, de 1847, após Marx ter discutido a questão do método na obra de Proudhon, serão discutidas algumas categorias econômicas nos §§ II, III, IV e V do segundo capítulo que, na leitura marxiana do socialista francês, aparecem como "abstratas" e "eternas". O exercício de nosso autor aqui é demonstrar que o sentido de tais categorias se assentam nas relações sociais de produção presentes na realidade histórica, de modo que, ao prescindir dessa base real, tornam-se meros construtos ideais vazios sustentados tão somente pela subjetividade do teórico. Por intentarmos expor a forma da crítica, iremos nos concentrar apenas no § II (A divisão do trabalho e as máquinas), generalizando esse modus operandi para os demais parágrafos. Segundo Marx (2009: 143-144), a concepção proudhoniana de divisão do trabalho dispensaria "[...] estudar as numerosas influências que conferem à divisão do trabalho, em cada época, um caráter determinado" (grifos nossos), importando tão somente compreender bem a ideia de divisão. Marx pensa o contrário. A consideração dessas influências seria muito mais rica, nesse sentido, do que um possível princípio geral contido na ideia. Pensar a complexidade de longos processos históricos de divisão do trabalho, como no caso da Alemanha, onde a divisão entre cidade e campo durou em torno de três séculos; as modificações sociais que ocorreram juntamente a esses processos e que expressam particularidades em cada caso; a relação entre a forma e a extensão do comércio e a forma da divisão do trabalho em cada época, tendo em vista, principalmente, as transformações comerciais decorrentes dos processos de colonização, notadamente após o século XVII; enfim, pensar a partir desses elementos histórico-econômicos já apontaria para a insuficiência do tratamento proudhoniano da categoria divisão do trabalho, qual seja, a sua posição como causa primeira com relação a outros fenômenos, posicionados por sua vez como efeitos. A natureza de tal insuficiência refletiria na própria crítica de Proudhon à divisão do trabalho. Entendida como causa primeira dos seus próprios "inconvenientes", dela seriam derivadas "as castas, o regime hierárquico e os privilégios", bem como a própria diminuição dos salários, a qual é, aqui, uma consequência da "depravação da alma" dos trabalhadores (causada diretamente pela divisão do trabalho), sendo que tal diminuição seria "requerida pela consciência universal". A natureza dessa insuficiência refletiria, também, na sua consideração

78 acerca das máquinas, as quais são consideradas também um efeito da divisão do trabalho (MARX, 2009: 147-148). Para Marx (2009: 149), admitir e realizar esse movimento significaria "chocar-se contra a história", pois, como os instrumentos de trabalho constituem os elementos em torno do qual o trabalho se organiza e se divide, não seria possível fazer essa dedução. Tão pouco faria sentido essa dedução se considerarmos, com Marx, que "as máquinas não constituem uma categoria econômica", mas fazem parte da fábrica moderna enquanto força produtiva, aquela sim "uma relação social de produção, uma categoria econômica". Se é em torno das máquinas - instrumentos de trabalho - que o trabalho "moderno" se organiza, e essas pertencem à fábrica moderna, ou à indústria moderna, então é só nesse momento - e "sob o regime da concorrência" - que existe a divisão do trabalho tal qual Proudhon a concebe (MARX, 2009: 150). Assim, Marx (2009: 152-161) explicará a divisão do trabalho a partir do nascimento da fábrica, opondo-se veementemente à ideia de que ela teria surgido a partir do gênio humano. A forma como ele inicia o raciocínio é, por si mesma, interessante, na medida em que pode ser compreendida como uma pista para a elucidação do seu método: Convém observar, agora, o que é a fábrica, na qual as ocupações estão separadas, onde a tarefa de cada trabalhador se reduz a uma operação muito simples, e onde a autoridade, o capital, reúne e dirige os trabalhos. Como nasceu essa fábrica? Para responder a essa pergunta, teríamos que examinar como a indústria manufatureira propriamente dita se desenvolveu. Quero referir-me a essa indústria que ainda não é a moderna [...] mas que também não é mais a indústria dos artesãos da Idade Média, nem a indústria doméstica. Não entraremos em pormenores: exporemos alguns pontos sumários, para mostrar que não é possível fazer a história com fórmulas. (MARX, 2009: 152) (grifos nossos)

Ou seja, pergunta-se por um objeto efetivo e atual - uma relação social de produção - que, na sua efetividade e atualidade, congrega em si aqueles fenômenos observados, dando a eles um sentido e unidade racional e material necessários, os quais "normatizam" sua descrição ao estabelecer à consciência observante parâmetros interditivos que respeitam a conexão interna e objetiva dos fenômenos. Como esse objeto é resultado de um desenvolvimento histórico produzido através da existência das relações sociais, ele deve ser problematizado a partir de sua gênese. Nessa busca genética, que é também histórica, surgirão outras formas diversas que compõe, enquanto conteúdo, o objeto analisado, sendo que tais formas estabelecem, em sua conexão com a efetiva e atual, uma unidade racional. Nesse sentido, "não é possível fazer

79 a história com fórmulas", mas com uma pesquisa que busque expor a unidade histórica do conteúdo diverso daquele objeto. Vejamos, então, esses pontos sumários acerca do desenvolvimento da indústria manufatureira que Marx propõe. 1- O início da exploração do continente americano e a significativa quantidade de metais preciosos que fluíam da América para a Europa, tanto facilitou a acumulação de capitais - "uma condição das mais indispensáveis à formação da indústria manufatureira" quanto fez aumentar os meios de troca no "velho mundo". Ao aumento dos meios de troca está vinculada a queda dos níveis salariais e da renda da terra, assim como o aumento dos lucros industriais, de modo que propicie, assim, uma mudança na posição social das classes: enquanto se observa a decadência da classe dos trabalhadores e da dos proprietários de terra (povo e senhores feudais), observa-se também a ascensão dos capitalistas (burguesia). Simultâneos a esses elementos temos ainda o aumento da circulação de mercadorias em função do acesso às chamadas Índias Orientais, do desenvolvimento do comércio marinho e do regime colonial. 2- Em consequência do declínio dos senhores feudais, houve licenciamento dos seus séquitos, o que fez com que aqueles trabalhadores a eles subordinados se tornassem "vagabundos". Afirma-se, aqui, uma onda quase universal de vagabundagem (vagabondage presque universel) nos séculos XV e XVI, a qual precedeu a oficina manufatureira e viabilizou o contingente para uma organização do trabalho intensiva em mãos, ou em capital variável, como Marx chamará na década de 1860. Somaram-se a esse contingente os camponeses que migravam às cidades, expulsos do campo devido à "transformação das terras de cultivo em pastagens". Isto é, a reunião de trabalhadores sob um mesmo teto manufatureiro se deu sob condições de conflito social, o que nega a hipótese proudhoniana (tal como lemos de Marx) de que tal tenha ocorrido mediante "pactos amistosos entre iguais"64. 3- Portanto, a divisão do trabalho, tal como concebida na fábrica moderna do século XIX, é resultado da concentração de trabalhadores e instrumentos de trabalho em um mesmo espaço e da reprodução da divisão do trabalho existente no regime gremial no interior das oficinas. A produção manufatureira consistia, basicamente, na produção em maior escala e redução dos custos operacionais, não necessariamente em um processo produtivo fragmentado 64 NI: Marx (2013b: 790) mais tarde em O capital: "[...] foi o grande senhor feudal que, na mais tenaz oposição à Coroa e ao Parlamento, criou um proletariado incomparavelmente maior tanto ao expulsar brutalmente os camponeses das terras onde viviam e sobre as quais possuíam os mesmos títulos jurídicos feudais que ele quanto ao usurpa-lhes as terras comunais."

80 e distribuído pelos trabalhadores. Haviam manufaturas entre os séculos XVI e XVII que não conheciam a divisão do trabalho. No entanto, elas reuniam em uma mesma oficina um contingente produtivo a partir do qual se tornou possível o desenvolvimento da divisão do trabalho existente nos grêmios. Ao desenvolver-se a divisão do trabalho, cada fragmento do processo produtivo tende a se tornar mais simples, de modo que se tornam mais simples também as ferramentas utilizadas nesses momentos. O acúmulo dessas ferramentas simples, interconectadas e ordenadas em função de uma finalidade, acionadas por um motor único, seja por meio das mãos, por forças naturais ou por motor automático, origina a máquina em fins do século XVIII, sendo ela mesma a expressão do desenvolvimento da divisão do trabalho65. 4- Há ainda a inseparabilidade entre a concentração dos instrumentos de produção e a divisão do trabalho. Demonstra-se isso a partir da comparação entre Inglaterra e França. Enquanto se constata na primeira a concentração de terras e instrumentos de trabalho agrícolas e, por conseguinte, uma divisão do trabalho no campo e a aplicação de máquinas no processo de trabalho; no campo francês predomina o sistema de parceria e os instrumentos de trabalhos não estão concentrados, não havendo aí máquinas e nem divisão do trabalho. 5- O próprio emprego das máquinas resulta do encontro de dois processos. O primeiro diz respeito ao aumento da demanda na Inglaterra em função do desenvolvimento do seu mercado. Como a produção baseada no trabalho manual não apresentava uma produtividade capaz de manter a oferta em paridade com a demanda, há uma pressão nos preços, incentivando os produtores ao investimento em máquinas. Tais investimentos eram possíveis tanto por conta da expansão colonial e comercial (aumento do acúmulo de capitais e de meios de troca), quanto por conta do segundo processo a que fizemos referência, a saber, o desenvolvimento da ciência mecânica que, segundo Marx (2009: 156), já estava constituída no século XVIII. A introdução do uso de máquinas na produção significou, entre outras coisas, o aumento da exploração do trabalho infantil e a abolição de leis que estabeleciam a educação para a classe trabalhadora devido à simplificação do processo de trabalho, e um meio pelo qual o capitalista poderia diminuir a quantidade de trabalhadores na sua fábrica, diminuindo seu custo de produção e aumentando o exército industrial de reserva, o que redundou em uma pressão negativa sobre o nível salarial. 65 NI: É interessante a citação que Marx (2009: 154) faz para sustentar essa crítica: "Quando, pela divisão do trabalho, cada operação particular [foi] (a été) reduzida ao emprego de um instrumento simples, a reunião de todos esses instrumentos, [postos em ação] (mis en action) por um só motor, constitui uma máquina". Segundo nota 164 na mesma página da tradução por nós utilizada, a citação foi retirada da página 230 da Traité sur l'économie des machines et des manufactures de Babbage, editada em Paris no ano de 1833.

81 Por fim, através desses elementos histórico-econômicos, Marx buscou criticar as abstrações proudhonianas "divisão do trabalho" e "máquina". Uma característica marcante é que Marx, na sua argumentação, não recorre a um sistema lógico como faz declaradamente Proudhon, mas se utiliza de estudos que se ancoram, sobretudo, na consideração de fenômenos atuais, aqui, no caso, do processo de produção sob a insígnia da mecanização e da divisão do trabalho. Esse modus operandi se dará nos próximos parágrafos, onde serão discutidas outras abstrações à luz de outras análises. Mas cremos que, para nossos objetivos, a consideração do §II já se faz suficiente. 2.1.2- Crítica às abstrações político-econômicas através de alguns elementos hegelianos: escritos de 1851. Ao considerarmos a intensa atividade de estudos e pesquisa de Marx na década de 1850, principalmente antes de 1857, fica difícil encontrar algum espaço de tempo dentro do qual pudéssemos inferir que houve alguma dedicação de nosso autor a temas estritamente filosóficos. Reforça ainda essa impressão o fato presente de não encontrarmos estudos seus sobre a dialética hegeliana nesse período. Aqui, a atividade intelectual de Marx é marcada, principalmente, pela retomada dos seus estudos sistemáticos de economia, os quais ele negligenciou desde 1844 em favor de outras atividades, e pela produção jornalística, com a qual tentava manter sua situação financeira dentro de padrões aceitáveis (MCLELLAN, [1973] 1990: 299-309). Tal negligência não redundou, todavia, em abandono dos seus estudos econômicos, mas antes em relegação deles a um segundo plano. Musto (2011: 60-61) elaborou uma tabela na qual são relacionados cronologicamente os cadernos de anotação, manuscritos e artigos de Marx no período de 1843/58, nos quais se leem análises de teoria e conjuntura econômica. Nela percebemos, através da quantidade de trabalhos escritos e de material consultado ou estudado na década de 1850 66, a dedicação com 66 NI: No ano de 1850, Marx produziu artigos para a Neue Rheinische Zeitung: politisch-ökonomische Revue; em 1850/53 escreveu 24 cadernos de notas (os chamados "Cadernos de Londres"), nos quais tratara da história e teoria das crises, dinheiro, clássicos da economia política, condição da classe trabalhadora e tecnologia; em 1851 compilou os trechos mais importantes sobre circulação e dinheiro dos Cadernos de Londres; resumiu em um caderno, em 1855, as principais teorias sobre dinheiro, crédito e crises; em 1857/58, além da redação dos Grundrisse, uma primeira exposição geral do conteúdo pesquisado, escreveu também 3 cadernos com relatórios sobre a crise financeira de 1857; e durante todo esse período (1851/62) publicou 487 artigos para o New York Tribune, dos quais 70 eram sobre economia política (MUSTO, 2011: 61). É preciso dizer que, com relação aos artigos escritos para o New York Tribune, Engels auxiliou Marx, seja escrevendo 125 artigos em seu nome e 12 em parceria com ele, seja traduzindo para o inglês aqueles escritos em alemão pelo seu companheiro (MCLELLAN, 1990: 305-306; PADOVER, 1978: 287). Com essa carga de escrita,

82 que nosso autor se lançou às questões econômicas (teóricas e empíricas) e políticas, o que demonstra sua concentração em assuntos mais "terrenos", reafirmando a forma da crítica observada por nós no ponto anterior e afastando qualquer suspeita imediata da existência de uma reflexão estritamente filosófica elaborada nesse período que faça jus à sua herança hegeliana. Entretanto, segundo Jahn e Nietzold (1978: 158), esse momento do trabalho de Marx não se reduz unicamente a um esforço empírico de pesquisa: Não pertenceu à fase de investigação, contudo, apenas a apropriação de material na sua singularidade, ou seja uma fase de empiria, de indução, de recepção da história do problema, mas também uma fase de elaboração teórica do problema, de abstração do contingencial, do secundário, do particular e singular, de recenseamento do universal, da essência dos fenômenos no conceito.67 (Grifo nosso)

Isso indica que mesmo na compilação do material de pesquisa, Marx já estava trabalhando na apreensão da totalidade do sistema econômico capitalista, de modo que seu trabalho até julho de 1857 seja considerado "uma primeira elaboração do material agregado" 68 (MARX, 1976: 10*). Tal "elaboração do material agregado" está relacionada à intenção de nosso autor em tratar a economia política de maneira total, tal como a realidade econômica se mostrava. Vemos uma confirmação dessa afirmação em uma citação do próprio Marx (1986: 362) extraída de um de seus cadernos de estudo: "R[icardo] abstrai daquilo que ele considera como acidental. Outra coisa é expor o processo efetivo, no qual ambos - [1] aquilo que ele chama de movimento acidental, mas que é perene e efetivo, e [2] sua lei, a relação média - aparecem igual e essencialmente"69. Transparece, portanto, durante a investigação, uma preocupação entende-se que Marx tenha lido muitos materiais. Só em janeiro de 1851, Marx estudou livros sobre metais preciosos, dinheiro e crédito; em fevereiro, os escritos econômicos de David Hume e John Locke e outros livros sobre dinheiro; em março, David Ricardo, Adam Smith e sobre moeda corrente; em abril, mais sobre David Ricardo e sobre dinheiro; em maio foi a vez de Henry Carey, Thomas Malthus e princípios de economia; em junho se ateve à questão do valor e riqueza, em julho, sistema fabril e renda agrícola; em agosto, estudou o mundo romano (população, colonização e economia); e no outono se dedicou à atividade bancária, agronomia e tecnologia. Foram, enfim, cerca de 80 autores estudados com a finalidade de concluir sua obra sobre economia (MCLELLAN, 1990: 302). 67 NT: Tradução nossa de: "Zur Forschungsphase gehörte jedoch nicht nur die Aneignung des Materials im einzelnen, das heißt eine Phase der Empirie, der Induktion und der Rezeption der Geschichte des Problems, sondern auch eine Phase der theoretischen Bearbeitung des Problems, der Abstraktion vom Zufälligen, Zweitrangigen, Besonderen nd Einzelnen und der Erfassung des Allgemeinen, des Wesens der Erscheinungen im Begriff". 68 NT: Tradução nossa de: "Das war eine erste Bearbeitung des gesammelten Materials." 69 NT: Tradução nossa de: "R. abstrahirt von dem was er als accidentell betrachtet. Ein andres ist es den

83 com a exposição de um processo efetivo que encerre em uma totalidade o que é contingente e o que é "relação média", algo que extrapola, evidentemente, uma "apropriação de material na sua singularidade". Alguns elementos da filosofia hegeliana parecem ter ajudado nesse exercício, uma vez que os encontramos de maneira operante - isto é, com funções determinadas no seu processo de análise - em algumas reflexões econômicas de Marx de 1851. Suspeitamos também que essa presença filosófica esteja relacionada - enquanto resultado - àquele movimento referido a Engels em carta de 01 de fevereiro de 1858, segundo o qual a ciência deve ser levada, "através da sua crítica, ao ponto onde ela pode ser exposta dialeticamente". Nossa hipótese, nesse caso, é que os escritos que apresentaremos a seguir expressam um momento no qual Marx, durante a "apropriação de material na sua singularidade", realiza um esforço de síntese das abstrações político-econômicas dotadas de conteúdo crítico, o qual o leva a apreensão materialista de algumas categorias lógicas hegelianas. Essa hipótese está pautada na afirmação de Grespan (2002: 28) de que "[...] o empreendimento da crítica à economia política fez com que ele [Marx] resgatasse o aspecto positivo, o 'racional' daquele método [dialético], pois então percebe como contraditório o seu próprio objeto - o capitalismo". Esse "resgate" será tratado mais adiante. Por ora nos deteremos nesse "empreendimento". Essa síntese é crítica na medida em que se constitui enquanto primeiro passo para uma reconstrução das categorias econômicas burguesas através do processo de investigação genética dessas abstrações. Ou seja, no momento da síntese não se trataria mais das categorias econômicas tomadas imediatamente da economia política burguesa, mas de categorias mediadas por uma crítica que as avaliou tanto do ponto de vista da sua inserção nas relações sociais de produção (conteúdo), como do ponto de vista da sua relação teórica e histórica com o sistema do qual ela é oriunda, o qual demarca uma posição determinada no desenvolvimento histórico mais geral das ciências econômicas (forma). 2.1.2.1- Marx a Engels, 03 de fevereiro de 1851. Nesse ponto apresentaremos uma carta que Marx escreve a Engels em 03 de fevereiro de 1851, na qual é feita uma síntese acerca dos resultados alcançados por nosso autor na wirklichen Prozeß darzustellen, worin beide, das was er accidentelle Bewegung nennt, was aber das beständige und wirkliche ist, und sein Gesetz, das Durchschnittsverhältniß, beide gleich wesentlich erscheinen".

84 investigação da teoria da moeda circulante (currency)70. Ele começa afirmando que o seu estudo dessa teoria, da qual se pretende apresentar apenas uma ilustração, poderia ser caracterizado por hegelianos como o estudo do "ser-outro", do "alheio", do "sagrado" 71, ou seja, o estudo da forma aparente à intuição e resultante da autoatividade do ser tornado efetivo, ou, simplesmente, estudo do fenômeno72. Vejamos em que sentido é este um estudo da forma, do fenômeno. O ponto de partida de Marx (1963c: 173) é o ponto de vista de Samuel Jones Loyd Overstone - banqueiro inglês, economista e líder da "Currency principles school" - e outros, o qual é também compartilhado por David Ricardo. Essa teoria poderia ser exposta sucintamente como segue. Supõe-se a existência de uma moeda circulante puramente metálica. Em face do aumento da sua quantidade, os preços das mercadorias subiriam e, portanto, a exportação delas decresceria; a importação aumentaria, superando as exportações e impactando negativamente a balança comercial. Essa pressão sobre as importações se daria sob um aumento na taxa de câmbio (o qual se dá em função da queda do preço da moeda), tornando a relação comercial com o mercado externo ainda menos vantajosa. A solução seria exportar moeda, fazendo com que a circulação monetária se retraia, derrubando, assim, os preços das mercadorias. Consequência disso seria a queda das importações, o aumento das exportações, a entrada de dinheiro no mercado e o retorno ao antigo equilíbrio. O contrário também é verdadeiro. 70 NR: Nossa entrada nessa questão está limitada a nosso objeto, a saber a forma da crítica marxiana no período em questão. Para uma entrada diversa da nossa, que localize essa discussão feita por Marx no debate econômico-monetário da época, ver Mollo (1994). 71 NT: Tradução nossa e modificada de: "Jetzt lege ich Dir nur eine Illustration zur Currencytheorie vor, deren Studium bei mir von Hegelianern als Studium des 'Andersseins', des 'Fremdes', kurz des 'Heiligen' charakterisiert werden dürfte." (MARX, 1963c: 173) 72 NI: "Aliás, a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, [...] que na verdade é efetivo, mas só na medida em que é o movimento do pôr-se-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro (Sich-anders-werdens). [...] Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si mesmo no seu serOutro (Anderssein), é que [é] o verdadeiro; [...]. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, [...]. De certo, a vida de Deus é, em si, tranquila igualdade e unidade consigo mesma; não lida seriamente com o ser-Outro (Anderssein) e [o estranhamento] (Entfremdung) [...]. Mas esse em-si divino é a universalidade abstrata, que não leva em conta sua natureza de ser-para-si e, portanto [e sobretudo], o [auto-movimento] da forma. Uma vez que foi enunciada a igualdade da forma com a essência, por isso mesmo é um engano acreditar que o conhecimento pode se contentar com [...] a essência, e dispensar a forma [...]. Justamente por ser a forma tão essencial à essência quanto essa é essencial a si mesma, não se pode apreender e exprimir a essência como essência apenas, isto é, como substância imediata [...]. Deve exprimir-se igualmente como forma e em toda riqueza da forma desenvolvida, pois só assim a essência é captada e expressa como algo efetivo." (HEGEL, [1807] 2011: 35) (sublinhado nosso). Vemos, nessa citação, que a efetividade da substância viva, do ser, se dá mediante a sua autoposição, ou o seu "tornar-se outro", e que, portanto, o seroutro aparece como resultado do movimento efetivo do ser. Vale esclarecer que entendemos esse ser-outro como fenômeno, assim como o percebemos enquanto forma do ser, a qual é tão essencial ao ser quanto a sua própria essência. Essa citação foi cotejado com o original alemão (HEGEL, 2006).

85 Como o movimento dessa circulação metálica deve ser emulado pelo de papel-moeda, substituindo assim uma "lei natural" (natürliches Gesetz) por uma "regulação artificial" (künstliche Regulation), um agente econômico, nesse caso o Bank of England, deve aumentar a emissão de papéis no caso de influxo de metais preciosos - através da compra de seguros governamentais, letras do tesouro, etc. - e diminuí-la no caso de diminuição da quantidade de metais - através da diminuição de operação de descontos ou venda daqueles papéis estatais. Percebe-se aqui que, para Marx (1963c: 174), a "regulação artificial" tem relativa validade, uma vez que propõe, "sob pena de intensificar desnecessariamente a crise comercial que está a caminho"73, aumentar as operações de desconto no contexto de queda da quantidade dos metais preciosos, "e deixar-lhes seguir seu passo usual quando ela cresce" 74, de modo a manter a liquidez da economia via crédito. Marx (1963c: 174) afirma, então, algo que é aquilo que ele quer explicar nessa carta, algo que "vai aos fundamentos elementares da coisa"75: Também sob uma circulação puramente metálica, a quantidade da mesma, sua extensão e contração, nada tem a ver com o refluxo e influxo dos metais preciosos, com a balança comercial favorável ou desfavorável, com a taxa de câmbio favorável ou desfavorável, exceto nos casos extremos que praticamente nunca ocorrem, mas que teoricamente são definíveis. Tooke concebeu a mesma asserção, mas não encontrei nenhuma evidência no seu "History of prices" para 1843/47.76

Diante da afirmação de que, no geral, a quantidade de moeda - mesmo que puramente metálica - seja uma variável independente de outras variáveis que envolvem quantidade de metais preciosos, situação da balança comercial e da taxa de câmbio, Marx chega em duas apreciações: 1- que toda a teoria da circulação teria sido negada no seu fundamento, já que põe a tônica da sua explicação no comportamento da moeda; e 2- que, muito embora condicionado pelo sistema de crédito, o curso das crises só teria relação com a moeda na medida em que "intervenções malucas" (verrückte Einmischungen) da força do Estado (Staatsgewalt) na regulação monetária podem agravar a crise existente, assim como ocorreu 73 74 75 76

NT: Tradução nossa de: "Unter Strafe, die Handelskrise, die im Anzug ist, unnötig zu intensieren." NT: Tradução nossa de: "[...] und sie ihren gewöhnlichen Gang gehn lassen, wenn es zunimmt." NT: Tradução nossa de: "[...] geht auf die Elementargrundlagen der Sache." NT: Tradução nossa de: "Auch unter einer rein metallischen currency hat das Quantum derselben, ihre Extension und Kontraktion nichts zu tun mit dem Aus- und Einfluß der edlen Metalle, mit der günstigen oder ungünstigen Handelsbilanz, mit dem günstigen oder ungünstigen Wechselkurs, außer in äußersten Fällen, die praktisch nie eintreten, aber theoretisch bestimmbar sind. Tooke stellt dieselbe Behauptung vor; ich habe aber keinen Beweis gefunden in seiner 'History of prices' für 1843-1847. "

86 em 1847. Ou seja, a quantidade de moeda (currency) não seria aquele elemento determinante que foi apresentado na primeira formulação, tal qual sugere o ponto de vista de Overstone, mas algo determinado por outros elementos. Transpondo a questão em outros termos, a moeda seria a forma fenomênica de uma essência, a qual deve ser exposta no movimento da sua autoposição. Avancemos na carta, a fim de avaliar essa transposição terminológica. Nas linhas seguintes, Marx argumentará por meio da análise de casos não só sobre a posição determinada da moeda, mas também em que medida ela pode sofrer as ações desse elemento econômico determinante, o qual ainda não foi citado. Primeiramente são apresentados os pressupostos: a moeda puramente metálica é dominante na Inglaterra, o que não significa a anulação do sistema de crédito. O Bank of England se transformaria então, ao mesmo tempo, em um banco de depósitos e de empréstimos, sendo seus empréstimos constituídos em ouro circulante (MARX, 1963c: 174). A seguinte observação é muito interessante, do ponto de vista do método: caso se quisesse negar essa pressuposição, o que aparece como depósito deste banco apareceria como acúmulo proveniente de pessoas privadas; o que aparece como empréstimo daquela instituição, apareceria como empréstimos a partir daquelas pessoas. Isso significa que as categorias a serem tratadas apareceriam sob outras determinações que a que se pretende trabalhar aqui. Nas palavras de Marx (1963c: 175): "Portanto, o que é dito aqui sobre os depósitos do Bank of England é apenas Uma abreviação para não fragmentar o processo, mas para apresentá-lo condensado sob Um foco". Dessa maneira se isola a possibilidade de uma ação indeterminada e independente com relação ao processo analisado, de modo que o processo ganhe centralidade e protagonismo na explicação, o que parece auxiliar na investigação dos seus nexos internos mais elementares. Há que se notar, ainda, o artigo indefinido singular (uma/um) que antecede "abreviação" e "foco" posto em evidência. Perguntamo-nos se se pretende com isso marcar a indefinição deles, sugerindo a possibilidade de outras abreviações e focos, o que invalidaria a necessidade de uma determinada abreviação e foco. Dados os pressupostos, vamos a análise dos casos. Trata-se, no primeiro caso, do influxo de metais preciosos. Nesse momento, o mercado externo é abstraído. Então, com a entrada desses metais na economia, aumenta-se a quantidade de capital desocupado, aumentando, também, o nível dos depósitos. Para que o banco utilize esses depósitos como crédito, a taxa de juros é diminuída. Com o crédito mais barato, expandem-se os negócios e, assim, a circulação. Ou seja, é diante dessa expansão da atividade econômica e para sua

87 condução que se faria necessário o aumento da quantidade de moeda. Do contrário, esse aumento tornaria supérflua a moeda, o que diminuiria o seu preço (pressão inflacionária), fazendo com que esse dinheiro retornasse ao banco como depósito. Portanto, se há influxo de metais preciosos e isso não se reflete na expansão dos negócios, há aumento de capital desocupado, não de circulação de moeda. Marx (1963c: 175) conclui que "a moeda não funciona aqui, portanto, como causa. Seu aumento [é], finalmente, consequência do grande capital posto em ação, não o contrário"77. Com isso, abstraindo o mercado externo, é possível vislumbrar uma inversão da tese inicialmente apresentada pelo ponto de vista de Overstone, inversão na qual a moeda aparece como fenômeno do "grande capital posto em ação". No segundo caso, o modelo ganha concretude ao pressupor a exportação de metais preciosos. "Aqui a coisa começa de verdade" 78, escreve Marx (1963c: 175). Há um período de pressão monetária: taxa de câmbio desfavorável; má colheita ou encarecimento da matériaprima da indústria, o que faz necessário o aumento constante da importação de mercadorias, pressionando negativamente a balança comercial e estimulando, consequentemente, a evasão de ouro. As contas do Bank of England estão, no começo desse período, como segue: Capital(c)......................................14.500.000 ₤ Papéis do Estado(p)..................... 10.000.000 ₤ Resto(r)...........................................3.500.000 ₤Letras de câmbio(l)...................... 12.000.000 ₤ Depósitos(d).................................12.000.000 ₤ Ouro em espécie ou moedas(m).... 8.000.000 ₤ Total 30.000.000 ₤Total 30.000.000 ₤ Percebe-se que o banco é devedor (diferença negativa entre depósitos [d] e reserva de ouro [m]) e que ainda não atingiu seu "ponto necessário" visto que, segundo seu princípio, as suas obrigações (rubrica d) devem corresponder a um terço da sua quantidade de metais preciosos, seja em barra ou em moeda, quantificado em ₤ (m = d / 3). Ou seja, para atingir essa proporção, ele deve diminuir sua reserva de ouro em comparação aos depósitos na proporção 1:3. Para isso, diminui sua taxa de juros, a fim de aumentar as operações de desconto79 em até 4 milhões, aumentando assim sua base de ganho, ao mesmo tempo que 77 NT: Tradução nossa de: "Die currency wirkt hier also nicht als Ursache. Ihre Vermehrung schließlich Folge des größeren in Aktion gesetzten Kapitals, nicht umgekehrt." 78 NT: Tradução nossa de: "Hier fängt eigentlich die Sache an". 79 NI: As operações de desconto ocorrem através da compra de papéis (notas promissórias, letras de câmbio e duplicatas) antes do seu vencimento por um preço abaixo do seu valor nominal (deságio), de modo que proporcione ao seu comprador, na data de seu vencimento, um ganho correspondente à diferença entre o preço negociado e o preço do papel. Na prática, esse tipo de operação constitui uma operação de crédito, uma fonte de ganho bancário, o que significa que a taxa de juros determina a dimensão do deságio na compra de papéis (aumento dos juros redunda em maior deságio, maior ganho para o banco comprador, menos dinheiro para o vendedor, menos moeda circulante, e vice-versa). Vale apontar que a retração das operações de

88 equilibra suas contas. A tabela fica, portanto80: Capital(c)......................................14.500.000 ₤ Papéis do Estado(p)..................... 10.000.000 ₤ Resto(r)........................................ 3.500.000 ₤Letras de câmbio(l)...................... 16.000.000 ₤ Depósitos(d)................................ 12.000.000 ₤ Ouro em espécie ou moedas(m)... 4.000.000 ₤ Total 30.000.000 ₤Total 30.000.000 ₤ Com a transferência de 4 milhões ₤ para a rubrica l, libera-se esse valor em ouro para os mercadores (Kaufleute), os quais irão exportá-lo, dado o contexto de déficit na balança comercial (intensificação das atividades de importação, aumento do endividamento externo). O ponto aqui é que, independente do destino que esse ouro irá tomar, a quantidade atual de moeda em circulação (currency) permanece, apesar da diminuição da quantidade de ouro em reserva bancária. Nas palavras de Marx (1963c: 176): "Isso demonstra, finalmente, que um dreno significativo de ouro - aqui de 4 milhões ₤ esterlinas - pode ocorrer sem que ele afete no mínimo tanto a moeda quanto o negócio do país em geral"81 (grifo nosso). Ainda no segundo caso, assume-se que o quadro anterior se estenda no tempo - além da retração de 4 milhões ₤ no ouro, temos escassez de grãos, alta dos preços das matériasprimas, etc. O banco, que já atingiu a relação devida entre depósitos e reservas, passa a temer por sua segurança financeira e aumenta a taxa de juros, limitando suas operações de desconto. Temos, assim, uma pressão no comércio. Essa pressão incide negativamente sobre os depósitos (saques), diminuindo proporcionalmente sua quantidade de ouro em reserva: se os depósitos diminuem de 12 milhões ₤ para 9 milhões ₤, a diferença de 3 milhões ₤ sairá da reserva de ouro do banco, restando aí somente 1 milhão ₤. Essa redução da reserva metálica se mostra perigosa, uma vez que a relação entre ela e os depósitos passará de 1:3 - tida como ideal - para 1:9, ou seja, ao invés de corresponder a um terço dos depósitos, a reserva corresponderá a praticamente um décimo deles. Sendo assim, o banco liquida 2 milhões ₤ a partir das suas operações de desconto, repassando-os para suas reservas. A atual situação aparece assim:

desconto é também um encolhimento da sua base de rendimentos, a qual é composta por várias outras formas de operação creditícia. 80 NE: Deixaremos em destaque os valores alterados com relação à tabela anterior para facilitar o acompanhamento do argumento. 81 NT: Tradução nossa de: "Es zeigt sich endlich, daß ein bedeutender drain von bullion, hier von 4 Millionen ₤ Sterling, stattfinden kann, der nicht im geringsten weder die currency noch das Geschäft des Landes im allgemeinen affiziert".

89 Capital(c)..................................... 14.500.000 ₤ Papéis do Estado(p)..................... 10.000.000 ₤ Resto(r)........................................ 3.500.000 ₤Letras de câmbio(l)...................... 14.000.000 ₤ Depósitos(d)................................ 9.000.000 ₤ Ouro em espécie ou moedas(m)... 3.000.000 ₤ Total 27.000.000 ₤Total 27.000.000 ₤ Uma vez que uma parte dos depósitos e da reserva de ouro sacados preenchem o vácuo criado na circulação interna pela contração da acomodação bancária (alta da taxa de juros, limitação das operações de desconto), e outra parte segue para o exterior, a moeda corrente ainda não se mostra afetada. Ou seja, apesar dos rearranjos bancários, a circulação se manteve fluída. Mas se pensarmos que a importação de grãos se mantenha, diminuindo dessa forma os depósitos a 4,5 milhões ₤, e dado que suas reservas deverão se manter em 1,5 milhões ₤, então os 3 milhões ₤ restantes - 1,5 já foi arcado com as reservas - para fazer frente aos saques dos depósitos advirá da rubrica l. A conta fica da seguinte forma: Capital(c)..................................... 14.500.000 ₤ Papéis do Estado(p)..................... 10.000.000 ₤ Resto(r)........................................ 3.500.000 ₤Letras de câmbio(l)...................... 11.000.000 ₤ Depósitos(d)................................ 4.500.000 ₤ Ouro em espécie ou moedas(m)... 1.500.000 ₤ Total 22.500.000 ₤Total 22.500.000 ₤ Nesse momento, ao longo do processo de manutenção da circulação monetária, as operações de desconto (l) foram reduzidas em 5 milhões ₤. O objetivo fora alcançado até então. Mas aparece, junto desse cenário, a escassez de capital, a carestia da matéria-prima, queda da demanda e, portanto, diminuição dos negócios, da circulação e da moeda circulante necessária. A parte supérflua da moeda é enviada ao exterior na forma de ouro em espécie, como meio de pagamento das importações. Nesse cenário a moeda é finalmente afetada, no qual ela "[...] só diminuiria para além de sua quantidade necessária, se a reserva de ouro diminuir para além da [sua] relação imprescindível para com os depósitos" 82 (MARX, 1963c: 177). Portanto, a economia demanda um nível de circulação que é mantido pelo sistema bancário através de seus mecanismos contábeis e de crédito. Enquanto a relação entre obrigações e ativos se manter em uma proporção aceitável (3:1), será possível manter o nível da quantidade de moedas. Quando essa relação não se mostrar mais possível, a circulação tenderá a se estagnar, congelando o funcionamento econômico. Mas é interessante notar que a 82 NT: Tradução nossa de: "[...] sie würde erst über ihre notwendige Quantität hinaus vermindert, wenn die bullion reserve vermindert über das notwendigste Verhältnis zu den deposits hinaus".

90 própria impossibilidade de manutenção daquela proporção está conectada a uma conjuntura econômica de recessão - balança comercial deficitária, inflação das matérias-primas, queda na demanda, etc. Vemos, assim, que a quantidade de moeda em circulação, longe de ser aquela variável determinante de outras, é antes um resultado da atividade econômica capitalista - ou a alocação do "grande capital" nos negócios - mediada pelo sistema bancário (creditício e monetário), o qual funciona sob a dinâmica dos negócios realizados na economia real. Nesse sentido, a moeda circulante aparece como um fenômeno 83, uma forma da essência, o ser-outro da relação entre esse chamado "grande capital" e o negócio (Geschäft), no que, parafraseando Hegel, só a reflexão dessa relação em si mesma na moeda nos apresenta o verdadeiro da economia capitalista84. Ou, em outras palavras, percebemos a economia de fato quando percebemos o movimento da moeda como um resultado da atividade econômica real (atividade produtiva e comercial)85. 83 NI: O seguinte trecho da introdução escrita à MEGA IV/8 confirma nossa leitura da moeda como fenômeno: "Mais tarde [com relação a 1850/53], Marx caracterizou a posição epistemológica da teoria burguesa do dinheiro com o conceito de 'fetichismo da mercadoria'. A relação social e histórica, a qual aparece [ou surge como fenômeno] na superfície da sociedade na figura factual do dinheiro, foi identificada com a forma factual mesma do fenômeno. Para a economia burguesa, a análise qualitativa das conexões sociais não era determinante, mas sim a análise quantitativo-funcional das conexões entre coisas, entre mercadorias e dinheiro" (MARX, 1986: 21*). Por identificar a substância objetiva das ciências sociais, as relações sociais e históricas, com a forma fenomênica que constitui a forma econômica da sociedade burguesa considerada em si, o pensamento burguês não ultrapassaria os limites da superfície social. Apreendendo somente aquilo que atravessa sua retina, exime-se de uma análise que questione a razão do fenômeno, satisfazendo-se meramente, nesse caso, com uma teoria quantitativa da moeda. O trecho citado foi traduzido por nós de: "Die erkenntnistheoretische Position der bürgerlichen Geldtheorie kennzeichnete Marx später mit dem Begriff 'Warenfetischismus'. Das historische gesellschaftliche Verhältnis, das an der Oberfläche der Gesellschaft in der sachlichen Gestalt des Geldes in Erscheinung tritt, wurde mit der sachlichen Erscheinungsform selbst identifiziert. Bestimmend für die bürgerliche Ökonomie war nicht die qualitative Analyse gesellschaftlicher Beziehungen, sondern die quantitativ-funktionale Analyse der Beziehungen zwischen Dingen, zwischen Waren und Geld." 84 Ref. nota 72. 85 NR: Mais tarde, em março de 1851, Marx (1986: 230) escreverá no sétimo "caderno londrino", mais especificamente no fragmento Reflection, do qual trataremos mais adiante, o seguinte: "A conversibilidade das notas em ouro é, aqui, finalmente, necessária, porque a conversibilidade das mercadorias em dinheiro é necessária, isto é, porque as mercadorias tem um valor de troca que tem, necessariamente, uma existência particular, a qual é distinta das mercadorias, isto é, porque ocorre sobretudo o sistema de troca privada. A depreciação do dinheiro e a depreciação das mercadorias estão de fato em proporção inversa. Mas as notas podem simplesmente depreciar em relação ao ouro, porque as mercadorias podem depreciar em relação às notas. [...] A questão principal permanece sempre, portanto, a inconversibilidade das mercadorias, do capital mesmo". Vemos aqui que o movimento inicial ocorre do lado das mercadorias, do capital, do qual depende o movimento da esfera monetária, relativo tanto à conversibilidade das notas em ouro quanto à depreciação das notas em relação ao ouro. Em suma, há um movimento (da mercadoria, do capital) que, a princípio, é autosuficiente, posto que conectado a um sistema mais amplo (o sistema de troca privada, responsável pela existência do valor de troca, o qual torna necessária a conversibilidade da mercadoria em dinheiro), e outro que é dependente, cuja existência se dá a partir da existência daquele que é auto-suficiente. Conhecer a lógica desse movimento primeiro seria, assim, condição do conhecimento do segundo. Mas vale ressaltar que isso não significa que o segundo movimento perde em importância com relação ao primeiro, uma vez que o que

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2.1.2.2- Os cadernos londrinos (1850/53): um fragmento do caderno VIII. Discutiremos, aqui, um pequeno fragmento dos assim chamados Cadernos londrinos. Nesse fragmento intitulado Unterschied von Werth (natürlichem Preiß) und Reichtum (Diferença entre valor [preço natural] e riqueza), Marx (1986: 363-366) faz um breve fichamento crítico do capítulo XX (Valor e riqueza - suas qualidades específicas) da obra On the principles of political economy and taxation de David Ricardo (1982 [1817]: 189-195). Apesar da brevidade do fragmento, são evocadas muitas questões cujo tratamento estenderia por demais este ponto, sem que evidenciássemos aquilo que de fato nos interessa aqui. Buscaremos, então, nos deter nisso. Nesse capítulo de sua obra, de modo geral, Ricardo (1982: 192) critica a "infelicidade" de Say ao tratar das categorias valor e riqueza, uma vez que "ele [Say] considera que esses dois termos são sinônimos e que um homem é rico na proporção em que aumenta o valor de suas posses e na medida em que pode dispor de mercadorias em abundância" (grifo nosso). Seu argumento se desenvolve no sentido de demonstrar que o valor está relacionado com a facilidade ou dificuldade da produção das mercadorias, enquanto a riqueza é definida pela possibilidade do seu desfruto em abundância. Se essas definições são aceitas, e considerando a aplicação de máquinas na produção, aumento da habilidade manual, aprofundamento da divisão do trabalho, etc., é concebível que 1- quanto mais "fácil" seja produzir algo - por meio da substituição do trabalho manual pelo mecânico, por exemplo -, menor será a quantidade de trabalho empregado e, portanto, menor será o valor, e que 2- quanto maior seja a quantidade dessa produção por unidade de tempo - aumento da produtividade -, maior será o ritmo de crescimento da riqueza. Em suma: no contexto de uma produção mecanizada, aumenta-se a nos é dado à percepção é justamente esse movimento, o qual aparece como forma daquele movimento primeiro. Isso testifica a atenção dispensada por Marx às questões monetárias de sua época nos seus cadernos de estudo e que ele, talvez, tenha dado ouvidos a algumas afirmações de Hegel na sua Fenomenologia, em especial àquela em que asserta: "Justamente por ser a forma tão essencial à essência quanto essa é essencial a si mesma, não se pode apreender e exprimir a essência como essência apenas, isto é, como substância imediata [...]. Deve exprimir-se igualmente como forma e em toda riqueza da forma desenvolvida, pois só assim a essência é captada e expressa como algo efetivo." (HEGEL, 2011: 35). A citação de Marx foi traduzida por nós de: "Die convertibity der notes in Gold ist hier schließlich nöthig, weil die convertibility der Waaren in Geld nöthig ist, d. h. weil die Waaren einen Tauschwerth haben, der nothwendig eine besondre Existenz hat, die von den Waaren unterschieden ist, d. h. weil überhaupt das System des Privataustauschs stattfindet. Die Depreciation des Geldes und die Depreciation der Waaren stehn faktisch sogar in umgekehrtem Verhältniß. Aber die Noten können blos gegen Gold depreciiren, weil die Waaren gegen Noten depreciiren können. [...] Die Hauptfrage bleibt also immer die inconvertibility der Waaren, des Kapitals selbst."

92 riqueza ao mesmo tempo em que se diminui o valor das mercadorias produzidas, o que contradiz o argumento de Say, segundo o qual "'o valor dos rendimentos aumenta', diz ele, 'se lhe permitirem obter, não importa como, uma maior quantidade de produtos'" (RICARDO, 1982: 192) (grifo nosso), pois, é possível que essa obtenção aumentada de riqueza seja efeito da queda do preço das mercadorias, de modo que, mesmo diante da inalteração do valor dos rendimentos, ocorra um processo de enriquecimento. Há, então, uma confusão entre valor de uso (riqueza) e valor de troca (valor)86 por parte de Say, a qual Ricardo, fundamentado em Adam Smith, busca solucionar, demonstrando que a intervenção da maquinaria ou de agentes naturais (como o sol, vento, rio, etc.) na produção não é paga e que, portanto, seus serviços são agregados ao valor de uso do produto, o que diminui o trabalho humano direto, reduzindo também o seu valor de troca: o resultado dessa distinção é a demonstração de que, muito embora o valor diminua, a sociedade ganha em riqueza, em abundância de valores de uso (RICARDO, 1982: 195). É nessa questão que Marx (1986: 364) intervém em seu fragmento. Ele afirma que a "mera distinção do conceito" (blosen Begriffsunterscheidung)87 entre valor e riqueza não suspende (hebt nicht auf) a 86 NI: Para justificar a relação entre os pares valor/riqueza e valor de troca/valor de uso em Ricardo, citamos o seguinte trecho: "Se duas sacas [de trigo] valem agora o mesmo que antes valia uma, ele [o fabricante de tecido] evidentemente obtém o mesmo valor e nada mais - embora obtenha o dobro da quantidade de riqueza, o dobro da quantidade de utilidade -, o dobro daquilo que Adam Smith denomina valor de uso, mas não o dobro da quantidade de valor, e portanto, Say não pode ter razão ao considerar o valor, a riqueza e a utilidade como sinônimos." (RICARDO, 1982: 192-193) (Grifos nossos) 87 NI: Nós encontramos esse termo na discussão sobre a Crítica da filosofia do direito de Hegel que realizamos no primeiro capítulo desta dissertação. Naquele momento, a distinção do conceito apareceu como um elemento teórico responsável pela concreção racional do conceito abstrato de Estado, elemento esse que, no entanto, resulta do próprio conceito. Ou seja, ao se realizarem distinções internas ao conceito, esse deixa de ser abstrato na medida em que adquire, nesse processo, determinações estáveis, determinações que, por surgirem da unidade abstrata do conceito, expressam aquela unidade, sem apresentar, portanto, contradições internas. Vejamos o que diz Hegel no início do §272 da sua Filosofia do direito: "A constituição é racional na medida em que o Estado distingue e determina em si a sua atividade segundo a natureza do conceito, e tanto [é] assim [1-] que cada um desses poderes é, através disso, em si mesmo a totalidade, [2-] que ela contém e tem ativo em si os outros momentos, e [3-] que eles [os momentos], por expressarem a distinção do conceito, permanecem simplesmente em sua idealidade e constituem apenas um todo individual" (HEGEL, [1821] 1911: 219) (grifos nossos). Em 1843, Marx (2010a: 40) criticara nesse parágrafo o fato de Hegel deduzir a atividade do Estado não a partir de sua natureza específica, mas a partir do seu conceito, cuja legalidade - por pertencer à lógica - era anterior ao próprio conceito de Estado. Agora, em 1851, vemos Marx criticar Ricardo por realizar uma "mera distinção do conceito", uma mera separação dos momentos que expressam aquela distinção, os quais por expressarem-na permanecem "em sua idealidade". A sua tarefa crítica será aqui, como veremos, ir além da distinção do conceito por meio da exposição da unidade contraditória interna desses momentos, na qual um vem-a-ser o outro necessariamente, a qual se estabelece mediante a suprassunção (Aufhebung) dos seus momentos. E como Marx é um materialista, essa suprassunção não será pressuposta, mas percebida enquanto movimento da realidade através das suas análises teóricas e empíricas da "anatomia da sociedade civil". Essa última afirmação será problematizada mais adiante quando tratarmos do desvirar marxiano da dialética. A citação de Hegel é tradução nossa do seguinte trecho: "Die Verfassung ist vernünftig, insofern der Staat seiner Wirksamkeit nach der Natur des Begriffs in sich unterscheidet und bestimmt, und zwar so, daß jede dieser Gewalten selbst in sich die Totalität dadurch ist, daß sie die anderen Momente in sich wirksam hat und erhält, und daß sie, weil sie den Unterschied des Begriffs ausdrücken,

93 dificuldade, visto que "a riqueza burguesa e a finalidade de toda produção burguesa é o valor de troca, não o usufruto"88 (MARX, 1986: 364). Ou seja, aquele indivíduo que reverte seu dinheiro na produção de mercadorias não visa gozar dos benefícios imediatos advindos da utilidade dos seus produtos, mas sim do dinheiro a mais que eles irão gerar após sua venda. E para que se aumente o valor de troca é imperativo que se produza mais mercadorias, o que por sua vez é alcançável através do aumento das forças produtivas. "Mas", escreve Marx (1986: 364), "na mesma proporção em que a força produtiva de uma dada quantidade de trabalho é aumentada - de uma dada soma de capital e trabalho diminui o valor de troca dos produtos e a produção dobrada tem o mesmo valor que [tinha] antes a metade"89. Aqui é posta, basicamente, a mesma contradição que, percebida por Ricardo, redunda em uma sociedade mais rica em valores de uso, muito embora decline, de modo geral, no nível de valor de troca. Marx acrescenta a isso que, é pelo fato da depreciação do valor de troca não ocorrer de modo uniforme pelos setores da produção que o estímulo da produção burguesa não desvanece, pois se fosse uniforme, o valor jamais seria alterado, não havendo, assim, estímulo ao empreendimento capitalista. Também por esse motivo temos conflitos econômicos no âmbito da concorrência - uma busca por aqueles setores onde o valor de troca sofreu variações negativas menores - e, em função disso, o chamado "progresso burguês". A razão dessa "luta por sobrevivência" está na seguinte contradição: o valor de troca decresce por conta da própria ação que visa seu aumento. A maneira como Marx expressa essa contradição não esconde a presença do mestre do idealismo objetivo em sua forma de pensar: O aumento efetivo da força produtiva e das mercadorias ocorre a despeito dela [da mais-produção de valores, finalidade da produção burguesa] e a contradição desse aumento dos valores, o qual suprassume a si mesmo no seu próprio movimento em um aumento de produtos, fundamenta todas as crises etc. Uma contradição na qual a indústria burguesa se vê às voltas continuamente.90 (MARX, 1986: 364) (Grifo nosso)

Percebemos, então, que a insuficiência da "distinção do conceito" de Ricardo está schlechthin in seiner Idealität bleiben und nur ein individuelles Ganzes ausmachen". 88 NT: Tradução nossa de: "Der bürgerliche Reichtum und der Zweck bei aller bürgerlichen Production ist der Tauschwerth, nicht der Genuß". 89 NT: Tradução nossa de: "Aber in demselben Verhältniß als die Productivkraft einer gegebnen Arbeitsquantität vermehrt wird - einer gegebenen Summe von Kapital und Arbeit - fällt der Tauschwerth der Producte und die verdoppelte Production hat denselben Werth wie früher die Hälfte". 90 NT: Tradução nossa de: "Die wirkliche Vermehrung der Productivkraft und der Waaren geschieht malgré elle und der Widerspruch zwischen dieser Vermehrung der Werthe, die sich selbst aufhebt in ihrer eignen Bewegung in eine Vermehrung von Producten, liegt allen Krisen u.s.w. zu Grunde. Ein Widerspruch worin sich die bürgerliche Industrie beständig herumdreht."

94 justamente na não percepção de uma contradição interna à relação entre valor e riqueza, uma contradição que expressa uma relação necessária entre essas categorias, na qual elas são suprassumidas, e que aparece de modo extremo e unitário na realidade sob a forma resultante e real - da crise de superprodução91. Marx e Ricardo nos mostram, assim, contradições com os mesmos fatores, mas com resultados diferentes. Por que, então, a "distinção do conceito" de Ricardo seria insuficiente? Vemos duas razões para isso: a primeira é que, em Ricardo, as categorias distintas permanecem em sua distinção, "em sua idealidade", mantendo suas determinações de modo paralelo e unilateral, enquanto em Marx essas categorias são postas em relação necessária uma com a outra, na qual uma devém a outra9293; e segundo, essa relação é necessária na medida em que é expressa em um fenômeno socialmente universal, a crise de superprodução, enquanto a relação entre valor e riqueza estabelecida por Ricardo é expressa em um fenômeno socialmente parcial, a saber, a abundância em valores de uso. Inferimos, portanto, que a categoria hegeliana de suprassunção (Aufhebung), mais que só aparecer, operacionaliza a crítica de Marx a Ricardo. Isso significa que através desse recurso da filosofia hegeliana, Marx demonstra que distinguir as categorias é algo válido e necessário desde que aquele nexo interno que faz delas algo uno seja exposto - uno no sentido de que, nessa relação contraditória, uma vem-a-ser a outra, uma está junto de si mediada pelo seu ser-outro. E para isso é preciso perceber que essas categorias, nas suas diferenças 91 NR: Nesse sentido, é interessante observar a passagem do ser ao ser-aí na doutrina do ser da lógica hegeliana: "O ser no vir-a-ser, enquanto um com o nada, e assim o nada, enquanto um com o ser, são apenas evanescentes: o vir-a-ser, por sua contradição dentro de si mesmo, colapsa na unidade em que os dois são suprassumidos; seu resultado é, pois, o ser-aí" (HEGEL, 1995a: 185). 92 NI: É possível pensar que Ricardo não realiza esse movimento de perceber essas categorias distintas em uma unidade conceitual como faz Marx por não tomar o lógico-real de Hegel no seu todo, contentando-se apenas com o momento do entendimento, pois "o pensar enquanto entendimento fica na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação a outra determinidade; um tal Abstrato limitado vale para o pensar enquanto entendimento como se fosse para si subsistente e essente" (HEGEL, 1995a: 159). Ou seja, um momento determinado de determinada relação aparece para o entendimento como algo suficiente do ponto de vista da explicação de um conceito, como se a própria explicação residisse na diferenciação entre as determinidades. E mais adiante, aponta que, a partir do entendimento, a percepção da contradição, ou das determinações opostas, fica prejudicada na medida em que "[...] o abstrair do entendimento é o fixar-se à força em uma só determinidade, é um esforço de obscurecer e de afastar a consciência da outra determinidade [...]" (HEGEL, 1995a: 185). Perde-se, portanto, a riqueza da contradição interna à unidade do objeto em favor da sua distinção analítica. 93 NI: A seguinte citação esclarece algo sobre esse lógico-real hegeliano, sobre o qual não nos deteremos por ora, e a insuficiência do momento do entendimento ou abstrato: "O [lógico] (Logische) tem, segundo a forma, três lados: a) o lado abstrato ou do entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o especulativo ou positivamente racional. Esses três lados não constituem três partes da Lógica, mas são momentos de todo e qualquer lógico-real, isto é, de todo conceito ou de todo verdadeiro em geral. Eles podem ser postos conjuntamente sob o primeiro momento - o do entendimento - e por isso ser mantidos separados uns dos outros; mas, desse modo, não são considerados em sua verdade." (HEGEL, 1995a: 159)

95 específicas, formam, enquanto momentos de algo, uma unidade processual e contraditória, negativa, a qual se apresenta como um resultado efetivo e positivo, como ser-aí (Dasein), como algo qualitativamente posto (HEGEL, 1995a: 185-186). Mas se tomamos esses momentos sob o ponto de vista do entendimento, como escreve Hegel, e os mantemos separados em si, então não os consideraremos em sua verdade, mas em sua forma abstrata e vazia. Nesse sentido, é interessante a fala de Mephistofeles a um aluno, localizada entre os versos 1936 e 1939 de Faust: "Quem quer conhecer e descrever algo vivo, / procura primeiro arrancar o espírito, / assim tem em mãos as partes [do tal], / [mas] falta infelizmente o vínculo espiritual"94 (GOETHE, [1808] 2012: 68). Ou seja, para conhecer algo vivo, tira-se-lhe a vida a fim de ter as suas partes sob análise. Mas nesse processo não conhecemos mais o algo vivo e perdemos o que há de essencial nele: a relação viva entre essas partes. Além disso nos parece que a utilização da suprassunção extrapola a dimensão de um recurso teórico a priori. Levando em conta a grande quantidade e diversidade de estudos sobre o funcionamento da economia capitalista realizados por Marx nesse período 95, e a maneira como se construiu o seu argumento nesse fragmento, apontando a necessidade do devir do aumento de valores no aumento da quantidade de produtos a partir do diagnóstico de que a finalidade da produção burguesa é o valor de troca e de que os meios para isso levam à superprodução, somos levados a crer que nosso autor encontrou a necessidade dessa categoria, partindo, assim, da "terra" dos fatos ao "céu" da teoria e unindo-os em um cosmos total. Desse modo e juntamente com o ponto anterior, a abordagem das abstrações começam a ganhar contornos metódicos, positivos, que se aproximam mais daquele momento que Hegel (1995a: 166) chamou de especulativo ou positivamente racional, por buscar apreender "[...] a unidade das determinações em sua oposição [...]". Evidentemente, esse momento não é tomado de Hegel de maneira imediata, mas de maneira crítica, a qual buscaremos expor no próximo capítulo. 2.1.2.3- Os cadernos londrinos (1850/53): um fragmento do caderno VII. O fragmento que trataremos a seguir pertence ao sétimo daqueles cadernos supracitados. Escrito em março de 1851 e intitulado Reflection, ele expressa a primeira 94 NT: Tradução nossa de: "Wer will was Lebendings erkennen und beschreiben, / Sucht erst den Geist heraus zu treiben, / Dann hat er die Teile in seiner Hand, / Fehlt leider! Nur das geistige Band." 95 Ref. nota 66.

96 tentativa de Marx em conectar a reprodução da economia capitalista com o ciclo das crises (MARX, 1986: 22*). Aqui já há a percepção expressa de que não há uma contradição singular e isolada que leva à crise econômica, "[...] mas a interação de muitas contradições enquanto formas concretas de movimento da contradição fundamental do capitalismo" (MARX, 1986: 24*)96. Ou seja, desde o caderno VII está colocada a necessidade da apreensão dos elementos teóricos da economia política em interação uns com os outros, sendo recusadas as tentativas de uma análise que se limite a distinguir as categorias de modo unilateral e isolado, o que pudemos perceber claramente no ponto anterior. Lemos na introdução dessa edição MEGA (IV/8): No final do caderno VII [ao qual pertence o texto que ora tratamos] começou uma nova fase do processo de pesquisa, a qual determinou particularmente o caráter do caderno VIII. Em conexão com o trabalho econômico planejado [...], ele se interessou particularmente pela construção sistemática da economia burguesa. (MARX, 1986: 24*)97 (grifo nosso)

Estudou, então, no oitavo caderno, aqueles economistas que mais tarde caracterizará como "níveis do desenvolvimento da economia política burguesa", a saber, James Steuart, o qual é posto em Para a crítica da economia política (1859) como o primeiro britânico à elaborar um sistema total da economia burguesa; Adam Smith, que é apontado como aquele que desenvolveu a economia política no sentido de uma totalidade consciente (einer gewissen Totalität); e David Ricardo, considerado aquele que consumou a economia política clássica, levando-a às últimas consequências (MARX, 1986: 24*-25*). Temos assim, no caderno VIII, uma preocupação com o sistema da economia política burguesa, a qual começa a aparecer no final do caderno VII. É dentro dessa preocupação inicial que gostaríamos de ressaltar alguns elementos que dizem respeito à possibilidade de uma sistematização da vida social e, por conseguinte, de uma consideração teórica sistematizada dessa sociabilidade, elaborada a partir de abstrações. No geral, Marx busca, nesse fragmento, estabelecer uma distinção entre o comércio no qual se relacionam negociantes com negociantes, e o comércio que se dá entre negociantes e consumidores. Nessa distinção deve ser determinada não só a diferente espécie de comércio 96 NT: Tradução nossa de: "[...] sondern das Zusammenwirken vieler Widersprüche als konkreter Bewegungsformen des Grundwiderspruchs des Kapitalismus." 97 NT: Tradução nossa de: "Am Ende des Heftes VII begann eine neue Phase des Forschungsprozesses, die besonders den Charakter des Heftes VIII bestimmte. Im Zusammenhang mit dem geplanten ökonomischen Werk, [...] interessierte er sich besonders für den systematischen Aufbau der bürgerlichen Ökonomie."

97 que se estabelece entre esses pares, mas também a forma que o dinheiro assume nele, a saber, transferência de dinheiro como capital (money) entre os primeiros e troca de capital por rendimentos em moeda (Münze) entre os segundos. A motivação desse exercício empreendido por nossa autor é a divergência com relação a uma tese de Adam Smith, segundo a qual "[...] a troca entre negociantes e negociantes deve ser igual àquela entre negociantes e consumidores" (MARX, 1986: 23*)98. Não entraremos nas implicações dessa identidade, mas apontamos que ela tem a ver com a teoria da reprodução de Smith. Interessa-nos, por fim, o momento do fragmento em que Marx analisa a segunda relação, aquela entre negociantes e consumidores. Tal qual visto pelos "democratas honestos e ignorantes", essa relação é apreendida como "[...] uma troca inocente de valores contra valores, onde a liberdade dos indivíduos singulares obtém sua confirmação prática mais elevada" (MARX, 1986: 231). A condição para essa "troca inocente" é que os indivíduos se tornem monetizados: só assim se tornam participantes daquela relação de consumo, de modo que o dinheiro apareça como um elemento que perpassa de maneira condicionante a sociabilidade capitalista na sua totalidade, tendo, em função disso, um caráter universal. É particularmente interessante como Marx aponta o dinheiro como "um ingrediente essencial", organizativo, nas "ordenações sociais passadas baseadas na distinção e oposição de castas, estamentos, corporações, classes, etc.", enquanto "[...] o sistema monetário [era] a cada vez o seu declínio e seu apogeu [...]"99 (MARX, 1986: 231) (grifo nosso). Ou seja, a forma sistêmica da categoria dinheiro aparece como marcador negativo de um limite do desenvolvimento sócio-econômico. Para Marx, a visão desses "democratas" é parcial, pois abstrai as características de classe dessa "troca inocente". Ele argumenta que, no ato de compra em um negócio qualquer, o "indivíduo livre" se utiliza do "sinal de valor de seu rendimento". Em função da determinação de classe desse indivíduo, o seu rendimento apresentará uma forma determinada, a qual corresponde ao processo econômico que a gera: para os trabalhadores, o salário; para os fabricantes, o lucro; para os capitalistas, os juros 100; para os proprietários, a 98 NT: Tradução nossa de: "[...] der Austausch zwischen dealers und dealers dem zwischen dealers und consumers gleich sein müsse." 99 NT: Os trechos citados nesse parágrafo foram traduções nossas de, respectivamente: "[...] die biedren unwissenden Demokraten [...]"; "[In diesem Handel zwischen dealers und consumers sehn sie] einen biedermännischen Austausch von Werthen gegen Werthe, worin die Freiheit der einzelnen Individuen ihre höchste praktische Bestätigung erhält."; "[...] in allen bisherigen, auf dem Unterschied und Gegensatz von Kasten, Stämmen, Ständen, Klassen u.s.w. beruhnden Gesellschaftsordnungen, das Geld ein wesentliches Ingredienz dieser Organisation und das Geldsystem jedesmal ihr Verfall und ihre Blüthe war." 100NI: Vale ressaltar que capital e capitalista não têm, aqui, a mesma acepção apresentada após os Grundrisse.

98 renda. Apesar de distintos, esses rendimentos determinados aparecem, no ato da compra, como seu "sinal de valor", como ouro, prata e notas, contra o que o negociante troca seu capital, o qual é reembolsado, reproduzido e expandido nesse ato. Isso significa que as relações de classe são pressupostas àquela relação comercial e ignoradas pelos chamados "democratas", ignorância essa que está relacionada ao próprio velamento dessas relações de classe nas relações comerciais. E acrescenta Marx (1986: 232): "Por outro lado é pressuposto - e antes de tudo - a existência de relações sociais determinadas que dá à riqueza o caráter de capital e separa o capital do rendimento"101 (grifo nosso). Ou seja, além de serem pressupostas à relação comercial, as relações sociais de produção caracterizam a riqueza, conferindo a ela uma forma específica em função da sua configuração atual determinada e determinante. O fato dos rendimentos aparecerem no ato da compra como ouro, prata ou nota apresenta duas implicações: 1- que os indivíduos, transpassados por determinações de classe, não obtém seus rendimentos in natura, mas na forma de dinheiro; e 2- que a uma sociedade de classes desenvolvidas em suas particularidades sócio-econômicas corresponde um sistema monetário desenvolvido, garantidor da conversibilidade das mercadorias em dinheiro. É nesse momento que Marx apresenta uma conexão que é central para nossa leitura. Ele escreve: Na forma do dinheiro, do ouro, prata ou notas, entretanto, não se observa mais o rendimento, o qual é próprio ao indivíduo apenas enquanto pertencente a uma classe determinada, enquanto a um indivíduo de classe [...]. A douração ou prateação [do rendimento] oblitera o caráter das classes e o maquia. Daí a igualdade aparente - menos no dinheiro - na sociedade burguesa. Daí, por outro lado, [haver] efetivamente em uma sociedade, onde o sistema monetário está completamente desenvolvido, a efetiva igualdade burguesa dos indivíduos, na medida em que possuam dinheiro [...]. (MARX, 1986: 232-233)102 (grifos nossos) Nesse momento, essas categorias parecem se relacionar mais com as questões monetárias e comerciais do que com as propriamente produtivas, deixando para essas segundas a figura do fabricante ou capitalista industrial. 101NT: Tradução nossa de: "Andrerseits ist vorausgesezt und vor allem, die Existenz der bestimmten gesellschaftlichen Verhältnisse, was dem Reichtum den Charakter des Capitals giebt und Kapital von Revenüe scheidet". É curioso que existam, entre os escritos não destinados à publicação, mais trechos como esses, nos quais Marx utiliza grafias diferentes para capital, ou seja, Kapital e Capital. Aqui não há espaço para uma pesquisa a esse respeito, mas deixamos registrada nossa intuição de que essa diferença tenha a ver com os usos de termos latinos e germânicos por parte dos filósofos idealistas alemães do século XVIII e XIX, a fim de apontar nuances de significados de uma categoria ou conceito, por exemplo, o uso de Objekt e Gegenstand (objeto), Mittel e Medium (meio), Kultur e Bildung (cultura), etc. Essa intuição se pauta em Inwood (1997: 17-30). 102NT: Tradução nossa de: "In der Form von Geld, von Gold, Silber oder Noten, sieht es man allerdings dem Einkommen nicht mehr an, daß es dem Individuum nur als einer bestimmten Klasse zugehörig, als einem Klassenindividuum, zukommt, [...]. Die Vergoldung oder Versilbrung verwischt den Klassencharakter und übertüncht ihn. Daher die scheinbare Gleichheit - minus dem Geld - in der bürgerlichen Gesellschaft. Daher andrerseits wirklich in einer Gesellschaft, worin das Geldsystem vollständig entwickelt ist, die wirkliche

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Portanto, a existência do sistema monetário, isto é, o dinheiro na sua forma sistêmica e universal, dissolve potencialmente as distinções de classe, de modo que, no momento da compra, trabalhador, fabricante, capitalista e proprietário apareçam simplesmente como possuidores de dinheiro, como compradores e, nesse sentido, como iguais. Como para os "democratas honestos e ignorantes" a dimensão da relação capitalista de compra e venda entre indivíduos não possui uma profundidade social conflituosa, ou não apresenta uma perspectiva que conceba essa relação em conexão com a relação entre classes sociais em oposição, o momento da compra e venda de mercadorias seria, para eles, uma totalidade em si e para si e, portanto, a sociedade burguesa seria igualitária e livre. Isso nos remete à seguinte passagem de Sobre a questão judaica, de 1843: O Estado [suprassume] (hebt auf) à sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem consideração dessas diferenças, como participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da [vida efetiva do povo] (wirklichen Volkslebens) a partir do ponto de vista do Estado. (MARX, 2010b: 40)103 (grifos nossos)

O paralelo que traçamos aqui repousa sobre a universalidade do Estado e do sistema monetário em face da particularidade dos indivíduos. Ambos atuam como entes niveladores das disparidades sociais, muito embora esse nivelamento se dê em um nível tal de abstração que não chegue a se realizar na totalidade concreta da vida social, limitando-se, nesse caso, às esferas abstratas do direito e das leis econômicas. Ou seja, se o Estado nivela os indivíduos somente enquanto sujeitos de direito, sem anular suas "diferenças fáticas", posto que "[...] ele existe tão somente sob o pressuposto delas [...]" (MARX, 2010b: 40); então o sistema monetário os nivela somente enquanto compradores, como possuidores de dinheiro, sendo que, tão logo abandonem a relação de compra, caem na diferença qualitativa das classes sociais. É interessante pensar nessas duas instituições como entes abstrativos cooperativos, através dos quais 1- as assimetrias sociais derivadas naturalmente do modo capitalista de produção podem ser suspensas a fim de que se regule, de maneira mais ou menos eficaz, as pressões sociais e políticas, e 2- se produz uma regularidade social, um padrão, uma objetividade, a partir da qual a sociedade seja teorizável e deixe de ser uma esfera bürgerliche Gleichheit der Inviduen, so weit sie Geld besitzen, [...]" 103NT: Esse trecho foi cotejado com Marx (1981: 354).

100 absolutamente imprevisível, o que abre a possibilidade para intervenções racionais com respeito a fins nos processos sociais, tais quais são realizadas nos processos biológicos, físicos, químicos, etc. por meio das ciências naturais104. Mas voltemos à questão monetária. Do sistema monetário foi, portanto, derivada a igualdade burguesa - assim como na análise de 1843 essa igualdade fora derivada do Estado político, guardada, evidentemente, as diferenças entre os objetos em questão. A trocabilidade das mercadorias é tornada potencialmente universal, diferentemente das sociedades antigas, nas quais a capacidade de trocar estava efetivamente restrita a alguns privilegiados105. Por ser um "meio geral de troca", o dinheiro possibilita a liberdade do consumo ao invés da limitação imposta pela forma inalterável do pagamento in natura. Abre-se diante do indivíduo moderno, que vive sob o regimento de um sistema monetário desenvolvido, uma variedade imensa de opções de compras, a qual é restrita tanto por sua capacidade de pagamento quanto pela capacidade e 104NR: Achamos interessante, ainda, pensar esse segundo item a partir da distinção kantiana entre fenômeno e nômeno. Isto é, a força abstrativa dessas instituições modernas, Estado e sistema monetário, tornam a esfera das ações humanas - do incognoscível nômeno, acessível até então somente pelo terreno da ética e da moral em uma esfera fenomênica, na qual vigem regularidades processuais que podem ser expressas através de leis, as quais, por sua vez, podem ser organizadas sistematicamente. É importante salientar, ainda, a possibilidade da interferência nos efeitos dos processos fenomênicos tornados previsíveis - pensamos aqui, particularmente, nas ciências econômicas (políticas econômicas, monetárias, tributárias etc) e jurídicas (direito trabalhista, civil, penal etc.). O grande elemento social moderno, representante dessa transformação, seria a burocracia estatal, a qual resulta de um Estado tornado universal em determinado território e é concebida de modo que as formas de ação e relação entre ele e a sociedade civil possam ser tipificadas e organizadas em função das finalidades dessa universalidade - a qual, vale lembrar, nunca é universal de fato, mas uma particularidade com pretensões de universalidade. Um bom exemplo disso vemos no capítulo sobre a jornada de trabalho em O capital, quando se discute os meios legais do aumento absoluto do mais-valor. Sobre o Règlement organique de 1831, primeira constituição dos Principados do Danúbio (Moldávia e Valáquia) escreve Marx (2013b: 312-313): "Depois de ter transformado 12 dias em 54, ele [o Règlement] volta a definir o trabalho diário nominal de cada uma dessas 54 jornadas de corveia de tal modo que uma porção dele tem de ser completada no dia seguinte. [...] Em alguns tipos de trabalhos agrícolas, o dia de trabalho legal pode ser interpretado como começando em maio e terminando em outubro. Na Moldávia, as condições são ainda mais duras. 'Os 12 dias de corveia do Règlement organique' - exclamou um boiardo extasiado - 'correspondem aos 365 dias do ano!'". Por meio de uma constituição, então, pode ser alterado o que se entende por tempo de duração de um dia em uma determinada relação social de produção. Os processos sociais se tornam, portanto, a partir daquelas instituições, abstrações manipuláveis, reguláveis em função de uma finalidade determinada. 105NI: Em 1858, no rascunho de Para a crítica da economia política, Marx volta a tratar desse tema. Ele escreve: "O mundo antigo, para o qual o valor de troca não funcionava como base da produção, a qual foi, antes, destruída pelo seu desenvolvimento, produziu uma igualdade e liberdade de conteúdo completamente antitético e essencialmente local. Por outro lado, foi no mundo antigo, ao menos no círculo dos livres, que os momentos da circulação simples se desenvolveram - assim se explica que em Roma e especialmente no Império Romano, cuja história é a mesma da dissolução da comunidade antiga, foram desenvolvidas as determinações da pessoa jurídica, do sujeito do processo de troca, [e] elaborado o direito da sociedade burguesa segundo suas determinações essenciais [...]" (MARX, 1980: 60). Ou seja, a estrutura jurídica, desenvolvida a partir do desenvolvimento do valor de troca, o qual é inicialmente restrito a um círculo de privilegiados e expandido posteriormente para outras classes de indivíduos, é apresentada como um dos sustentáculos das relações de troca enquanto relação entre iguais. Portanto, essa temática observada em 1851 permanece em 1858 e estará presente também em O capital, sendo apresentada com cada vez mais determinações, em função do andamento da pesquisa de Marx.

101 diversidade da produção e de ofertas de serviços vigentes na sociedade em questão. Em suma, a liberdade e igualdade burguesas estão intimamente ligadas a uma estrutura universal e universalizante que aqui é chamada sistema monetário. É interessante o modo como Hegel ([1830] 1995b: 308) captou isso: [...] o conceito da liberdade - como inicialmente, sem outra determinação ou desenvolvimento, existe enquanto tal - é a subjetividade abstrata, como pessoa que é capaz de propriedade (§488); essa única determinação abstrata da personalidade constitui a igualdade efetiva dos homens. Mas que essa igualdade esteja presente, que seja o homem - e não somente alguns homens como na Grécia, Roma, etc. -, que [seja reconhecido] (anerkannt ist) como pessoa e [valha] (gilt) legalmente, eis algo que [...] é só produto e resultado da consciência do mais profundo princípio do espírito, e da universalidade e avanço cultural (Ausbildung) dessa consciência.106

A liberdade aparece, então, como a capacidade da pessoa abstrata em adquirir propriedade, ao passo que a universalidade dessa capacidade, ou o reconhecimento legal dessa propriedade tornado acessível e válido para a totalidade dos "homens" (ou para o homem), constitui a igualdade burguesa tal como ela é, efetiva e abstrata. Essa igualdade é produto "da universalidade e avanço cultural dessa consciência", os quais parecem estar objetivados, nesse fragmento de Marx, no sistema monetário. A partir dele, portanto, os vários homens singulares, determinados por suas classes enquanto trabalhadores, fabricantes, etc., podem ser abstraídos em categorias - como a de homem ou de comprador - que dissolvam essas determinações na aparência. Por fim, escreve Marx (1986: 234): A distinção qualitativa das classes [se] dissolve, assim, no ato do comércio entre consumidores e negociantes, na distinção quantitativa, no mais ou menos do dinheiro, sobre o que demanda o comprador e, dentro da mesma classe, a distinção quantitativa constrói a qualitativa. Assim grandes burgueses, médios burgueses, pequenos burgueses.107

Isso significa que aquelas determinações do indivíduo advindas do modo de produção vigente, que o qualificam enquanto pertencente a tal ou qual classe, determinando assim a forma do seu rendimento, são dissolvidas em determinações quantitativas. Desse modo, ele é determinado, na figura do comprador, pela quantidade de dinheiro em seu poder, o que o torna 106NT: Esse trecho foi cotejado com Hegel ([1830] 2003b). 107NT: Tradução nossa de: "Der qualitative Klassenunterschied verschwindet so in dem Akt des Handels zwischen consumers und dealers in dem quantitativen Unterschied, dem Mehr oder weniger von Geld, worüber der Käufer gebietet und innerhalb derselben Klasse bildet der quantitative Unterschied den qualitativen. So Großbürger, Mittelbürger, Kleinbürger."

102 igual a todos os demais compradores da sociedade, diferenciados entre si somente pela comparação entre as quantidades de dinheiro 108. Percebemos aqui que, por meio das categorias hegelianas de qualidade e quantidade, Marx levou a consideração da relação entre negociante e consumidor para um nível analítico mais profundo que aquele apresentado pelos "democratas ignorantes", a saber, um nível no qual se expõe a ocorrência da abstração da concretude do indivíduo nas e por meio das relações econômicas, ocorrência essa que é, por sua vez, específica dessa relação social de produção. Não nos ateremos aqui em demonstrar a passagem da qualidade para a quantidade na doutrina do ser da lógica hegeliana e suas relações possíveis com esse momento da reflexão teórica marxiana, bem como com seus desdobramentos posteriores, pois isso seria, por si mesma, matéria para um outro trabalho. Mas não podemos deixar de colocar alguns pontos a esse respeito que sustentem a nossa leitura. Na doutrina do ser, a qualidade diz respeito a três momentos seus, quais sejam o ser, o ser-aí e o ser-para-si. O desdobramento da qualidade nesses três momentos do ser a levará às determinações da quantidade, contidas em outros três momentos, a quantidade pura, o quanto e o grau. Vejamos sumariamente como se dá essa passagem. O ser puro é o começo. Imediato e indeterminado, é pura abstração e, assim, absolutamente negativo, o que, tomado de modo imediato, é o nada. Nesse sentido, esse ser puro é, ao mesmo tempo, nada e a verdade de ambos reside, portanto, na sua unidade. Essa unidade é o vir-a-ser. Ele contém em si o ser e o nada, os quais são aqui momentos contraditórios entre si e evanescentes com relação à unidade que os contém. Suprassumidos na unidade do vir-a-ser, esse aparece como resultado, como ser-aí. Ele é, por sua vez, "o ser com uma determinidade", sendo ela mesma imediata e essente. Aqui o ser possui qualidade, não é mais carente de determinação na medida em que é o ser-aí refletido nessa sua determinidade, a qual diz respeito a ele mesmo, de modo que podemos dizer que ele é em si mesmo, que ele é algo. A qualidade enquanto determinidade se contrapõe a esse algo, sendo esse algo sua negação e essa relação, a realidade. A qualidade é, então, inicialmente o seroutro de algo, ou ser-para-outro, e tem o ser-outro como determinação própria. A contraposição do ser da qualidade à essa relação em que ela é para-outro é o ser-em-si 108NI: A partir disso, é possível pensar na existência de frações ou camadas de classe. Essa questão não está desenvolvida nesse escrito e é muito pobre pensar a questão das frações ou camadas de classe apenas do ponto de vista da sua capacidade de consumo ou de investimento. A análise dessas frações se tornam mais interessantes quando elas expressam papéis políticos distintos diante de determinados processos políticosociais. Tal é a análise realizada por Marx ([1852] 1960a) em O 18 Brumário de Louis Bonaparte.

103 (HEGEL, 1995a: 175-187). Esse isolamento da qualidade enquanto determinidade, enquanto o ser-outro e em-si é, por si, uma "abstração vazia do ser", uma qualidade que não qualifica. Na consideração do ser-aí, a determinidade não subsiste fora dele: ela é sempre em relação a ele, um momento dele, de modo que ela aparece nele como sua negação, sendo assim seu limite. Desse modo, o algo é, por sua qualidade, finito e mutável. Ambas determinidades (finitude e mutabilidade) existem no ser do algo, no ser-aí. Ou seja, o algo, por ser finito e mutável, se torna outro, mas o outro é também um algo que, por sua vez se torna um outro 109... Isso prossegue ao infinito, infinitude essa que é má ou negativa por ser simples negação do finito, o qual não é suprassumido. Isto é, o finito não é aqui superado, uma vez que esse infinito não ultrapassa o "enunciar da contradição que o finito contém", qual seja, a de que algo e outro se causam reciproca e perenemente. Essa finitude é, contudo, superada ao ser exposta aquela determinação comum a ambos, a saber, a determinação de um outro. Assim sendo, quando algo se torna e é o outro, junta-se, de fato, consigo mesmo, ou seja, ele se torna o outro do outro. Nesse movimento de passar ao outro, o ser expressa uma "relação para consigo mesmo", a qual é a verdadeira infinitude, a qual é uma restauração da unidade perdida com a cisão do ser-aí em algo e outro, no qual o outro aparece como determinidade em-si, uma restauração do ser que agora se mostra como negação da negação - o outro do outro - e, que por ser em relação consigo mesmo, é ser-para-si (HEGEL, 1995a: 188-191). O ser-para-si relaciona-se consigo mesmo de modo imediato. A um só tempo o algo é outro e o outro é algo. Enquanto outro do outro (relação do negativo para com ele mesmo), ele é determinidade de si mesmo, "é o essente-para-si, o uno". Idêntico consigo mesmo, exclui o outro que existe com relação a sua unidade. Uma vez que o outro do ser-para-si é também para-si, o uno se diferencia de si mesmo, repelindo-se de si, ocorrendo, assim, o pôr de "muitos uno". Por serem imediatos, esses muitos uno são essentes, de modo que a sua posição redunda na exclusão recíproca dentro da multiplicidade dos uno. Mas não podemos perder de 109NI: Lemos no adendo ao §92: "[...] o limite, enquanto é a negação do Algo, não é um nada abstrato em geral, mas um nada essente, ou seja, aquilo que chamamos um Outro. Junto com o Algo, logo nos ocorre o Outro, e sabemos que não há somente Algo, mas que também há ainda Outro. Ora, o Outro não é um ser tal que nós só encontramos de tal forma que o Algo também poderia ser pensado sem ele; mas Algo é em si o Outro de si mesmo, e o limite do Algo se lhe torna objetivo no Outro. Se agora indagamos sobre a diferença entre o Algo e o Outro, mostra-se que os dois são o mesmo [...]" (HEGEL, 1995a: 188-189). Lembramos que os adendos não foram escritos por Hegel, mas por seus alunos que, ao acompanharem suas aulas, decidiram complementar as asserções expressas nos parágrafos. Nesse caso, o adendo explora mais a relação entre o algo e o outro através da explicitação da conexão entre os §§92 e 93, relação essa que, de fato, quando tomada unicamente pelo §93, fica bem obscura.

104 vista que esses muitos que se excluem reciprocamente são, cada um, o mesmo que o outro. Nisso, na totalidade dessas repulsões, expressa-se uma relação do uno consigo mesmo. E como a repulsão de um uno com relação ao outro o leva em direção a outro uno, a repulsão é ainda atração. Assim, o "Uno exclusivo", o ser-para-si, na medida em que passa a ser enquanto se relaciona com outros de si, é suprassumido. Se no uno a determinidade qualitativa se apresenta como ser-determinado-em-si-e-para-si, e se o uno foi suprassumido por se relacionar consigo mesmo repulsa e atrativamente, essa determinidade passa a ser determinidade enquanto suprassumida, passando, assim, ao "ser enquanto quantidade" (HEGEL, 1995a: 193-196). Conforme lemos no adendo ao §98: Ora, a quantidade não é outra coisa que a qualidade suprassumida; e é pela dialética da qualidade, aqui examinada, que essa suprassunção se efetua. [...] essa qualidade suprassumida nem é um nada abstrato, nem o ser igualmente abstrato, e carente-de-determinação; mas somente o ser indiferente à determinidade, e é essa figura do ser que se encontra também em nossa representação ordinária como quantidade. (HEGEL, 1995a: 198)

Por fim, o paralelo que vemos no fragmento de Marx é o que segue: o indivíduo é definido primeiro qualitativamente, como pertencente a uma classe social, o que se constitui como pressuposto da relação comercial. Ele é, dessa forma, ser-aí, o "ser com uma determinidade". O indivíduo não existe apartado dessa determinidade, uma vez que o modo de produção capitalista impõe a ele um papel na divisão do trabalho, na reprodução social. Tal determinidade é seu limite. Ocorre que o fato do indivíduo ser determinado a partir da existência das classes sociais implica no fato de ele viver com outros indivíduos, posto que vive em sociedade. Quando esses indivíduos em interação se percebem enquanto outros de outros, ou seja, reconhecem-se um no outro como participantes de uma mesma unidade - o mercado, a comunidade, a sociedade, etc. -, deixando de ser-em-si - um indivíduo autosuficiente e portador natural de toda cultura ocidental, como Robinson Crusoe - para se tornarem um ser-para-si universal, temos a imagem de um grupo unido imediata e universalmente por meio do qual o indivíduo determinado existe. Contudo, cada indivíduo antes de ser para o outro é essente-para-si, um uno. Esse uno é para outro uno mediante uma relação que é, ao mesmo tempo, repulsão e atração, tal como podemos ver na concorrência econômica entre indivíduos. Através dessa relação, muitos indivíduos são colocados em conexão, em uma relação onde eles são para os outros, suprassumindo, assim, o seu ser-para-si - pensamos que reside aqui, logicamente, o fato da

105 produção burguesa ser orientada para o valor de troca, para a sua relação econômica com o outro. Ao suprassumir-se o ser-para-si nas relações comerciais, ou ao abstrair-se as diferenças fáticas dos indivíduos nas relações monetizadas, suprassume-se a determinidade qualitativa, ou a qualidade do indivíduo enquanto trabalhador, fabricante, etc., de modo que o ser do indivíduo se torna indiferente a ela, muito embora essa qualidade esteja pressuposta na sua relação para com outros. Vale ressaltar que é por isso que a qualidade é suprassumida, e não cancelada ou inexistente: ela permanece como momento necessário da relação, mesmo tendo sido superada. A quantidade de dinheiro nubla a qualidade, tornando os indivíduos quantificáveis a partir dos seus rendimentos, os quais também não aparecem mais em suas especificidades de salário, lucro, renda, etc., mas apenas como quantidade de dinheiro, o que dificulta a percepção das relações sociais de produção responsáveis pelo surgimento desses rendimentos e, antes, dessas classes. Se em Hegel a passagem da qualidade para quantidade se dá a partir da própria dialética inerente à primeira, em Marx essa passagem dos indivíduos determinados a partir do pertencimento à uma classe social para compradores e vendedores também se dá a partir da dialética inerente à dimensão qualitativa, ou seja, à natureza contraditória da existência das classes sociais, existência essa que é expressa objetivamente na existência do aqui chamado sistema monetário110. Vemos, assim, que o processo de abstração dos indivíduos determinados, do qual resultam aspectos importantíssimos da sociedade moderna sob o sistema monetário, o qual por sua vez corresponde a um modo de produção específico, permite perceber a validade de algumas abstrações metódicas, como a passagem dialética da qualidade para a quantidade. Nesse caso, esse processo abstrato apareceu como um meio de demonstrar a estruturação social de classe que sustenta aquele simples e abstrato ato de compra e venda de mercadorias, dando a essa abstração econômica uma profundidade social.

110NI: "[...] o sistema monetário pressupõe um alto desenvolvimento, uma grande separação e disjunção de classes [...]. Sem dinheiro, não há trabalho assalariado, portanto também nem lucro e juros na outra forma, portanto também nem renda da terra, a qual é apenas uma parte do lucro." (MARX, 1986: 232). Ou seja, o sistema monetário tanto pressupõe a existência das classes sociais como as condiciona. A citação desta nota é uma tradução nossa de: "[...] das Geldsystem eine hohe Entwicklung und größre Scheidung und Trennung der Klassen voraussezt [...]. Ohne Geld keine Lohnarbeit, daher auch kein Profit und Zins in der andren Form, daher auch keine Grundrente, die nur ein Theil vom Profit ist".

106 2.2- Razões externas para uma leitura hegeliana dos textos anteriores: evidências de uma "cultura hegeliana" entre os interlocutores de Marx. (Um excurso) As leituras anteriores parecem pressupor o hegelianismo de Marx, sem maiores subsídios que sustentem essa interpretação. Buscaremos nesse excurso apresentar alguns elementos que nos permitem pensar essa afinidade teórica de nosso autor. Se imaginássemos o futuro da teoria de Marx a partir de seus Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, talvez o seu recurso teórico às categorias hegelianas - tal qual propomos nas páginas anteriores pareceria pouco provável . Lemos nesse manuscrito: [...] a Enciclopédia [das ciências filosóficas de Hegel] toda acaba sendo nada mais do que a essência propagada do espírito filosófico, sua autoobjetivação. Assim, o espírito filosófico nada mais é que o espírito pensante a partir do interior de seu estranhamento-de-si [...]. A lógica [...] é o pensar exteriorizado que, por essa razão, faz abstração da natureza e do ser humano efetivo; o pensar abstrato. (MARX, 2004: 120)

Ou seja, o ponto de vista lógico oferecido por Hegel nessa obra seria uma visão a partir de um espírito estranhado, de um pensamento que já não pertence mais a algo vivo, mas que foi dele arrancado e dissecado por uma consciência analítica, tal qual um cadáver é tratado por um médico legista. Apesar da Fenomenologia do espírito não receber essas críticas, Marx (2004: 122) afirma que ela é "[...] a crítica oculta, em si mesma ainda obscura e mistificadora [...]" (grifo nosso), e que já contém o gérmen do positivismo e idealismo acríticos, ainda que essa crítica guarde elementos "[...] muitas vezes preparados e elaborados de modo que suplantam largamente o ponto de vista hegeliano". Ou seja, muito embora Marx reconheça algumas potencialidades críticas na filosofia hegeliana, trata-se aqui de uma apreciação negativa dela, diante da qual dificilmente esperaríamos algum uso positivo seu. Contudo, se é verdade que nada poderíamos esperar da Enciclopédia ou da Ciência da lógica, não seria absurdo esperar, ao menos, algo da Fenomenologia. Tanto isso não é absurdo que podemos notar em um artigo de jornal escrito por Marx em 28 de janeiro de 1853 para o New-York Daily Tribune e intitulado Capital punishment (ou Pena capital) - no qual ele critica uma teoria da pena que reconhece apenas abstratamente a dignidade humana -, que ele apresenta um posicionamento consoante ao argumento que o próprio Hegel endereça contra o pensamento abstrato em 1807, ano da publicação da

107 Fenomenologia. Comparemos, rapidamente, os dois trechos a seguir, o primeiro retirado de um artigo de jornal escrito por Hegel e o segundo extraído do artigo acima citado de Marx. Um assassino é conduzido ao local de execução. Para o povo em geral tratase somente de um criminoso e nada mais. [...] Uma pessoa que realmente conheça o ser humano traça o caminho de formação do criminoso: ele encontrará na história do criminoso uma educação deficiente; péssimas relações familiares entre seu pai e sua mãe; alguma punição monstruosa após um leve delito, que deixa esse homem amargurado com a ordem civil; uma primeira reação dessa ordem contra ele, excluindo-o da sociedade e possibilitando-lhe a partir daí a sobrevivência somente através do crime. [...] Pensar abstratamente significa isto: ver no assassino somente o fato abstrato que ele é um assassino e através desta simples qualidade anular toda a essência humana ainda remanescente nele. (HEGEL, [1807] 1995c: 237) (grifos nossos) [...] nós descobrimos que o idealismo alemão aqui [na teoria da pena, do ponto de vista do direito abstrato], como em muitas outras instâncias, não tem feito mais que dar uma sanção transcendental às regras da sociedade existente. Não é uma alucinação substituir o indivíduo com seus motivos reais, com múltiplas circunstâncias sociais que o pressionam, pela abstração do "livre arbítrio" - uma dentre várias qualidades do homem em lugar do homem mesmo?111 (MARX, [1853] 1979: 496-497) (grifos nossos)

Assim, nos parece que aquela crítica à abstração enquanto totalidade abstrata presente na tese de doutorado de Marx, da qual tratamos no primeiro capítulo (ponto 1.1.3.2.1), aparece tanto neste artigo seu quanto no artigo de Hegel, de modo que a crítica marxiana às abstrações nesse período acompanhe o ponto de vista hegeliano de 1807 112. Esses posicionamentos poderiam ser entendidos como contrários tanto ao formalismo que o idealista alemão aderirá notadamente após 1817, quanto ao uso de algumas categorias lógicas 111NT: Esse foi o primeiro artigo escrito por Marx em inglês, segundo nota 304 do volume 11 da Collected Works. Tradução nossa de: "[...] we discover that German idealism here, as in most other instances, has but given a trascendental sanction to the rules of existing society. Is it not a delusion to substitute for the individual with his real motives, with multifarious social circumstances pressing upon him, the abstraction of 'free-will' - one among the many qualities of man for man himself!". 112NR: Nesse sentido, é interessante recuperar um poema escrito por Marx em 1837, chamado Hegel. Epigramme. Lemos na terceira estrofe: "Vagam felizes pelo éter Fichte e Kant, / Buscavam eles lá uma terra distante, / Mas busco apenas apreender habilmente, / Aquilo que na rua a mim se apresente!" (MARX, 1968: 608). Aqui, o eu-lírico satirizado é Hegel, o qual é criticado por Marx - um "romântico subjetivo" à época "por estar ligado demais à realidade do dia-a-dia" (MCLELLAN, 1990: 35). Podemos dizer, no mínimo, que essa disposição filosófica de lidar com o real ao invés de se ocupar com o "éter" da razão, era uma característica que Marx já percebia no mestre idealista e que chamava a sua atenção, mesmo anos antes de sua tese doutoral e ainda que sob um juízo negativo. O trecho do poema foi traduzido por nós de: "Kant und Fichte gern zum Äther schweifen, / Suchten dort ein fernes Land, / Doch ich such' nur tüchtig zu begreifen, / Was ich - auf der Straße fand!".

108 hegelianas por Marx em 1851, se não levarmos em consideração que essas categorias formais e abstratas tem a sua gênese ("o caminho de formação" ou os "motivos reais") como conteúdo. A consideração da gênese dessas categorias abstratas nos permite conceber, de maneira não mutuamente exclusiva, a relação entre as apreciações negativas das abstrações, como vemos no capítulo anterior, e a consideração positiva de algumas abstrações lógicas, como estamos apresentando neste capítulo. Com esse argumento podemos afirmar que a "admissão da lógica" hegeliana na década de 1850 é possível em face da crítica produzida pelo jovem Marx. Mas isso não demonstra que essa admissão seja provável, o que pode nos levar a questionar se aquelas categorias (fenômeno, essência, qualidade, quantidade e suprassunção) teriam mesmo conotação hegeliana, ou seja, se elas não poderiam ter outros significados e funções que aqueles que apresentamos a pouco. Ao lançar o olhar para o contexto intelectual de Marx, percebemos que essa admissão é tanto possível quanto provável. Citaremos a seguir cinco casos que buscam ilustrar esse contexto, nos quais transparecerá a naturalidade com a qual o léxico e a atmosfera de uma "cultura hegeliana" eram compartilhadas entre Marx e seus interlocutores. O primeiro caso se refere a um panfleto escrito por Marx entre 21 e 28 de novembro de 1853 e publicado em janeiro de 1854 em Nova York sob o título Der Ritter vom edelmütigen Bewußtsein (ou O cavaleiro da consciência nobre). Esse panfleto era uma resposta ao artigo de August Willich, membro da Liga dos Comunistas, chamado Doktor Karl Marx und seine Enthüllungen (ou Doutor Karl Marx e suas revelações), publicado em 28 de outubro e 4 de novembro de 1853 no Belletristischen Journal und New-Yorker CriminalZeitung. Nesse artigo, Willich tentou colocar em dúvida a validade da crítica que Marx desferiu contra a atividade sectária da fração Willich-Schapper, apontada no artigo Enthüllung über den Kommunisten-Prozeß zu Köln (ou Revelações sobre o processo dos comunistas em Colônia) como uma das causas da divisão da Liga dos Comunistas (MARX, 1960: 489-518, ref. nota 337). O que nos interessa aqui é que, em Der Ritter, Marx se utiliza da figura da consciência nobre trabalhada no item A cultura e seu reino da efetividade presente na Fenomenologia do espírito (HEGEL, 2011: 339-364) para criticar seu oponente. O modo como se inicia o panfleto dá a ideia geral do que se pretende com o uso dessa figura: "A consciência nobre se torna, segundo Hegel, necessariamente em consciência vil. Esclarecerei essa mudança a partir

109 das efusões do sr. Willich [...]."113 (MARX, 1960: 493). Grosso modo, o desenvolvimento dessa crítica é operacionalizado, ao longo do panfleto, pelas determinações dessa figura. Mas vale ressaltar que essa operacionalização é antes externa que interna, ou seja, tem mais uma função retórica que propriamente conceitual. Fazer uma leitura desse panfleto à luz de um estudo desse trecho da Fenomenologia, a fim de caracterizar a interpretação marxiana dessa ideia de Hegel, é algo que extrapola nossos objetivos, mas que devemos tentar em outra ocasião. Por ora, contentamo-nos com essa constatação, também feita por Adolf Cluß que, escrevendo a Joseph Weydemeyer em 12 de dezembro de 1853, afirma: "M[arx] respondeu detalhadamente a Willich, de modo completa e 'hegelianamente' erudito." 114 (CLUSS, 1963: 652). Algo parecido se verifica também no segundo caso, no qual nosso autor escreve o artigo Zum Prozesse von Karl Vogt contra die Augsburger "Allgemeine Zeitung" (ou Sobre os processos de Karl Vogt contra o "Allgemeine Zeitung" de Augsburg), publicado no jornal Die Reform em 19 de novembro de 1859, no qual critica Eduard Meyen, um publicista jovemhegeliano e democrata pequeno-burguês. Lemos nesse artigo: "Eu me encontro agora, no fim desta epístola, em dificuldade inversa à de Hegel no começo de sua lógica. Ele quer transitar do ser ao nada, enquanto eu quero transitar do nada ao ser, a saber de Eduard Meyen a um fato, o fato Vogt."115 (MARX, 1987: 690) (grifo nosso). Mas, diferente do primeiro artigo, essa ideia hegeliana não operacionaliza - nem externamente - a crítica, aparecendo apenas como simples recurso retórico, o que sugere, ao menos, uma familiaridade dos seus interlocutores com o léxico hegeliano. É interessante, ainda, pensar que o uso desse léxico pode estar associado à disputa política, enquanto meio de demonstrar ao oponente e ao leitor sua superioridade através da exibição de sua erudição. Isso indicaria uma aceitação por parte de Marx das regras de um campo intelectual determinado, possibilitando pensar que ele usasse dessa filosofia apenas instrumentalmente, ou seja, que não desse crédito à ela de fato, mas a utilizasse apenas como uma arma aceita pelos contestantes em uma luta retórica. Contudo, é possível perceber o uso desse léxico também em ambientes privados, em assuntos cotidianos, nos quais é improvável que hajam disputas em jogo, o que reforça nossa leitura do compartilhamento de uma certa "cultura hegeliana" entre os interlocutores de Marx. 113NT: Tradução nossa de: "Das edelmütige Bewußtsein schlägt nach Hegel notwendig in das niederträchtige. Diesen Umschlag werde ich erläutern an den Ergüssen des Herrn Willich [...]." 114NT: Tradução nossa de: "M. hat dem Willich ausführlich geantwortet, ganz gelehrt 'hegelianisch'." 115NT: Tradução nossa de: "Ich befinde mich nun am Ende dieser Epistel in der umgekehrten Schwierigkeit wie Hegel am Anfang seiner Logik. Er will vom Sein zum Nichts übergehen, ich vom Nichts zum Sein, nämlich von Eduard Meyen zu einer Sache, der Sache Vogt.".

110 Por exemplo, nosso terceiro caso. Ao justificar o atraso de sua resposta a Lassalle, Marx escreve a ele em 08 de novembro de 1855: Tu obtiveste resposta muito tarde. Por um lado, eu recebi suas cartas tarde, porque eu estava em Manchester e as cartas, em Londres; minha mulher também não sabia exatamente se eu já não deixara Manchester. Por outro lado, eu estava tão acometido pela mais infame das dores de dente, que me ocorreu aquilo que Hegel exige da consciência sensível na estação em que se deve sobrepassar à consciência-de-si: deixaram-me o ouvir e o ver, portanto, também, o escrever.116 (MARX, 1963d: 624) (grifo nosso)

Marx parece fazer referência ao início do terceiro capítulo da Fenomenologia, qual seja Força e entendimento; fenômeno e mundo suprassensível. Lá Hegel (2011: 108) escreve: "Para a consciência, na dialética da certeza sensível (sinnlichen Gewißheit), dissiparam-se o ouvir, o ver, etc." (grifo nosso). Não podemos deixar de mencionar que o verbo relacionado ao "ouvir" e ao "ver" utilizado por Hegel e Marx é o mesmo, vergehen, traduzido aqui como dissipar e lá como deixar. Isso sugere uma certa proximidade do nosso autor com o texto hegeliano à época ou um conhecimento tal do texto que o permitisse reproduzir de memória os termos originais, sem estar sob exigências acadêmicas, editoriais ou retóricas. É interessante que algo semelhante tenha ocorrido em uma carta de Marx a Engels em 28 de novembro de 1860, nosso quarto caso. Após extrair um dente e estilhaços de sua raiz ainda restarem no lugar da extração, Marx descreve ironicamente a Engels o quanto as suas dores ou "essa pressão física promove, e muito, a incapacidade do pensamento e, portanto, a força de abstração, pois, como diz Hegel, o puro pensar ou puro ser ou nada são idênticos"117 (MARX, 1974a: 117). Aqui a referência é clara ao §87 da Enciclopédia, onde podemos ler: "Ora, esse puro ser é pura abstração, e portanto o absolutamente negativo que, tomado de modo igualmente imediato, é o nada" (HEGEL, 1995a: 178). Entendemos, então, que esses recursos espontâneos à linguagem hegeliana denotam uma familiaridade dos interlocutores com esses termos, sendo mais plausível pensar que eles comungavam de uma certa "cultura hegeliana". O quinto e último caso se refere a duas famosas correspondências e apresenta 116NT: Tradução nossa de: "Du erhältst sehr spät Antwort. Einerseits bekam ich Deine Briefe später, weil ich in Manchester und die Briefe in London waren, meine Frau auch nicht genau wußte, ob ich nicht Manchester wieder verlassen. Andrerseits war ich so von den infamsten Zahnschmerzen heimgesucht, daß mir das geschah, was Hegel vom sinnlichen Bewußtsein verlangt, auf der Station, wo es in das Selbstbewußtsein herüberreiten soll, - daß mir nämlich Hören und Sehn verging, also auch Schreiben." 117NT: Tradução nossa de: "Dieser physiche Druck befördert sehr die Denkunfähigkeit und daher Abstraktionskraft, denn, wie Hegel [sagt], das reine Denken oder reine Sein oder Nichts identisch."

111 ressonâncias significativas na questão do método que será tratada adiante. Em 22 de outubro de 1857, Ferdinand Freiligrath, companheiro de Marx nos dias da Neue Rheinischen Zeitung entre 1848/49 e membro da Liga dos Comunistas, enviou a ele uma carta com a seguinte oferta: "Querido Marx, eu encontrei, na arrumação de minha livraria, alguns volumes peculiares das obras completas de Hegel, as quais foram antes propriedade de Bakunin; aqui e ali são vistas suas notas marginais [...]. Caso isso lhe sirva, fique a vontade!" 118 (FREILIGRATH, 1990: 497). Tal oferta e sua aceitação por parte de Marx parece ter sido decisiva ao desenvolvimento de sua pesquisa. Além dos estudos que afirmam a importância da lógica hegeliana nos Grundrisse e em O Capital (HORST, 2000; RANIERI, 2011; REICHELT, 2013; ROSDOLSKY, 2001; VIEIRA, 2012; entre outros), o próprio Marx teria feito essa avaliação em carta a Engels de 16 de janeiro de 1858: Rendeu-me grande serviço no método do elaborar que eu tenha, por mero acidente - Freiligrath encontrou alguns volumes de Hegel que pertenceram originalmente a Bakunin e os enviou a mim como presente -, folheado novamente a "Lógica" de Hegel. Tão logo haja tempo para tais trabalhos, teria grande prazer em tornar acessível ao entendimento comum, em duas ou três folhas de impressão119, o racional no método que Hegel escondeu e, ao mesmo tempo, mistificou.120 (MARX, 1978a: 260)

Essa disposição para o trato teórico e crítico da dialética se manteve fixa pelo menos até 1868. É o que podemos perceber através da carta de Marx a Joseph Dietzgen de 09 de maio daquele ano, já citada na nota 38 desta dissertação: "[...] quando eu estiver me desvencilhado do fardo econômico, escreverei uma 'dialética'. As leis corretas da dialética já 118NT: Tradução nossa de: "Lieber Marx, beim Ausräumen meiner Library finde ich einige odd volumes von Hegels Sämmtlichen Werken, die früher Bakunins Eigenthum waren, hier und da mit Marginalstrichen von seiner Hand versehen sind [...]. Ist Dir damit gedient, so bist Du welcome!". 119NI: "Folhas de impressão", do alemão Druckbogen, denota uma grande folha de papel desdobrado, no qual geralmente são impressas várias páginas de um livro ou de um jornal. Segundo Sellinat (2007: 62), uma folha de impressão era, no século XIX, o padrão de medida para o honorário do autor na sua primeira edição. Ao ser dobrada uma vez, essa folha de impressão rendia duas folhas com frente e verso ou quatro páginas com alturas entre 35 e 45 cm. O formato dessa página se chama "folio". Com uma segunda dobra, produzia-se oito páginas de formato "quarto" (Quartformat). E, portanto, com uma terceira dobra, tinha-se dezesseis páginas com altura de 25 cm, cujo formato era chamado "octavo" (Oktav). Foi sob tal formato, até hoje utilizado, que A ideologia alemã foi entregue à uma editora em Westfalen para impressão, "[...] dois grossos volumes in octavo [...]" segundo Marx (1985: 131). Como se sabe, essa impressão não ocorreu. Portanto, esse "tornar acessível o racional no método" de Hegel se daria em 32 ou 48 páginas com 25 cm de altura, o que dá uma dimensão diferente do que se imagina quando se lê rapidamente este trecho, ou seja, de que esse exercício se daria em duas ou três páginas. 120NT: Tradução nossa de: "In der Methode des Bearbeitens hat es mir großen Dienst geleistet, daß ich by mere accident - Freiligrath fand einige, ursprünglich dem Bakunin gehörige Bände Hegels und schickte sie mir als Präsent - Hegels 'Logik' wieder durchgeblättert hatte. Wenn je wieder Zeit für solche Arbeiten kommt, hätte ich große Lust, in 2 oder 3 Druckbogen das Rationelle an der Methode, die H. entdeckt, aber zugleich mystifiziert hat".

112 estão contidas em Hegel; contudo em forma mística. Trata-se de esfolar essa forma [...]" (MARX, 1974d: 547). É notável que cresce em Marx uma preocupação crítica com a dialética hegeliana, e tal preocupação crescente parece estar associada aos avanços alcançados pela sua pesquisa sobre o sistema econômico capitalista. Portanto, levando em consideração as discussões empreendidas por Marx em jornais na década de 1850, bem como algumas peculiaridades de suas cartas em âmbito privado, percebemos que ele está imerso em uma atmosfera intelectual onde a dialética de Hegel é, ainda, "a última palavra em toda filosofia" 121. Isso - somado às conexões entre a crítica marxiana à economia política e as funções das categorias hegelianas realizadas no último tópico - implica em que, ao observarmos categorias como fenômeno, essência, qualidade, quantidade e suprassunção naqueles escritos de 1851, podemos pensá-las como categorias filosóficas no sentido hegeliano122. Pois além da sua generalidade e função articuladora de outras categorias, elas parecem ter sido cultivadas em um solo cultural, por assim dizer, hegeliano, qual seja, um ambiente intelectual compartilhado por Marx e seus interlocutores, isto é, integrado por intelectuais que evidenciam - pelo menos nos casos citados - alguma aproximação com a filosofia hegeliana e fazem dessa filosofia seu meio de expressão. 2.3- A busca pela totalidade em uma multidão de contingências: os Grundrisse de 1857. A economia política antes da sistematização burguesa realizada por James Steuert, Adam Smith e David Ricardo era uma coleção de fatos econômicos, cuja relação era 121NI: Essa citação foi tirada de uma carta que Marx escreve a Lassalle em 31 de maio de 1858. Isolada, ela aparenta que Marx está convencido incondicionalmente da superioridade filosófica de Hegel. Mas existem nuances. Essa carta é escrita após a leitura do livro de Lassalle sobre Heráclito, sobre o qual são tecidos alguns comentários críticos. É nesse momento em que aparecem essas linhas: "Eu desejaria, além disso, encontrar no livro até mesmo indicações críticas sobre tua relação com a dialética hegeliana. Tão mais essa dialética seja incondicionalmente a última palavra de toda filosofia, tão mais é necessário, por outro lado, libertá-la da aparência mística que tem em Hegel" (MARX, 1978f: 561). Esse reconhecimento da dialética hegeliana por Marx e a necessidade de "libertá-la da aparência mística" serão assuntos do próximo capítulo. A citação foi tradução nossa de: "Ich hätte ferner gewünscht, in dem Buche selbst kritische Andeutungen über Dein Verhältnis zur Hegelschen Dialektik zu finden. So sehr diese Dialektik unbedingt das letzte Wort aller Philosophie ist, so sehr ist es andrerseits nötig, sie von dem mystischen Schein, den sie bei Hegel hat, zu befreien". 122NI: O sentido filosófico em Hegel pode ser sumariamente expresso na seguinte citação: "Enquanto o refletir em geral contém o princípio (também no sentido de começo) da filosofia, e depois que ele floresceu de novo em sua autonomia nos tempos modernos (depois do tempo da reforma luterana) assim [...], o nome de filosofia foi dado a todo o saber que se ocupou do conhecimento da medida fixa e do universal, no mar das singularidades empíricas, e do necessário, das leis, na desordem aparente da multidão infinita do contingente; e com isso, ao mesmo tempo, tomou seu conteúdo do próprio intuir e perceber do exterior e do interior, da natureza presente como do espírito também presente, e do coração do homem." (HEGEL, 1995a: 46)

113 estabelecida parcialmente e em função de um ponto de vista particular. A partir da economia política, da sistematização desses fatos econômicos em sua totalidade, eles aparecem como uma grande paisagem fixada em um quadro, do qual o olhar teórico da época poderia extrair quaisquer elementos (categorias econômicas), em função do seu interesse, e estabelecer uma conexão explicativa entre eles que satisfizesse a descrição de um fenômeno (modelo). Dussel ([1985] 1998: 50) chamará essa paisagem estabelecida pelos economistas clássicos de totalidade construída, ou seja, uma síntese de determinações abstratas elaboradas a partir da representação plena ou totalidade caótica, uma multidão de contingências reunidas por meio de uma intuição. O quadro da paisagem não é, portanto, a paisagem, mas uma representação total e genérica dela. A totalidade dessa representação é caótica na medida em que ela não respeita as articulações internas que compõem a totalidade do existente, e essas articulações internas não são respeitadas quando as categorias econômicas não operam como abstrações resultantes das relações sociais reais, transitórias, históricas, etc., tal como escreve Marx (2009) a Annenkov em 1846. A crítica às abstrações político-econômicas se mostraram, em 1847, no sentido da dissolução do seu conteúdo extra-mundano - eterno, imutável, essencialmente verdadeiro -, e do seu "preenchimento" com um conteúdo mundano, perecível, histórico, tal como são as relações sociais. Esse "preenchimento material" permite a compatibilidade entre a totalidade construída e aquela real, entre o quadro da paisagem e a paisagem mesma. Como viemos mostrando neste capítulo, a década de 1850 é marcada pela tentativa de reconstruir a totalidade das categorias econômicas, na intenção de compreender a crise econômica, um fenômeno que explicita a inter-relação de todos os momentos do modo de produção capitalista. As categorias hegelianas utilizadas por Marx nos fragmentos dos chamados Cadernos londrinos operam como elementos teóricos articuladores de categorias econômicas - ou de abstrações - cujo conteúdo atual corresponde à crítica do conteúdo político-econômico burguês nelas presente em sua formulação teórica original. Busca-se, dessa forma, uma apresentação dialética e material do modo de produção capitalista, isto é, um quadro total no plano do pensamento que não se atenha à sua forma de manifestação, que demonstre a sua realidade em termos processuais e que não perca sua conexão com as relações sociais de produção existentes. Se até julho de 1857 o trabalho de Marx consistiu na apropriação crítica de elementos teóricos e empíricos da economia política de sua época, sendo aí "uma primeira elaboração do

114 material agregado" como posto acima, de julho de 1857 até maio de 1858 ele consistiu em uma grande síntese, a qual é descrita na introdução à edição MEGA dos Grundrisse (II/1.1) como "o resultado transmitido mais importante da generalização criativa e [da] sistematização dos materiais agregados [por Marx] nos anos 1840 e, particularmente, nos anos 1850 [...]"123 (MARX, 1976: 11*) (grifos nossos). Esse trabalho ganhou forma em três rascunhos, a saber 1- Bastiat e Carey, de julho de 1857; 2- Introdução, do fim de agosto do mesmo ano; e, o mais extenso, 3- os cadernos de I a VII dos chamados Grundrisse (ou Esboços da crítica da economia política) escritos entre outubro de 1857 a maio de 1858124. Com esses três rascunhos Marx (2011: 53) conseguiu estabelecer não só a unidade entre produção, distribuição, troca e consumo, de modo que cada esfera constitui um momento da totalidade, como encontrou na produção o momento determinante dessa totalidade. Por essa totalidade, como aparecerá no desenvolvimento dos Esboços, será entendido o capital, não em sua singularidade ou particularidade, mas em sua generalidade. E como alerta Marx (2011: 41) ao tratar da produção em geral (Production im Allgemeinen), "[..] esse Universal [Allgemeine], ou o comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações". Isso será desenvolvido no próximo tópico. Neste primeiro tópico nos ateremos à Introdução, notadamente à sua terceira parte, O método da economia política, por ser aí que Marx estabelece metodicamente o sentido de sua síntese, ou da reconstrução crítica das categorias econômicas, tal como aponta Flickinger (1986: 107). Portanto, não trataremos da síntese em si do processo econômico capitalista aqui apresentada, isto é, das duas primeiras partes da Introdução que tratam da relação geral entre produção, distribuição, troca e consumo, apesar da sua importância tanto do ponto de vista do salto teórico que ela representa em relação à economia política da época, quanto do ponto de vista da reafirmação da importância da lógica hegeliana para a crítica marxiana da economia política. Essa generalidade será tratada no segundo ponto, não sob a discussão da produção em geral, mas sob a do capital em geral, já nos Esboços. Vale ressaltar que no fim de 1857, época em que foi produzida essa elaboração crítica dos materiais, Marx tinha em mãos um exemplar da "Lógica" de Hegel, como atestam as cartas de Freiligrath a Marx, de 22 de outubro de 1857, e de Marx a Engels, de 16 de janeiro 123NT: Tradução nossa de: "Das wichtigste überlieferte Ergebnis der schöpferischen Verallgemeinerung und Systematisierung der in den vierziger und besonders in den fünfziger Jahren gesammelten Materialen [...]" 124NR: Vale notar que, ainda nesse esforço sintético, Marx escreve, entre junho e dezembro de 1858, apontamentos, índices, cartas e uma redação inicial e preparatória de Para a crítica da economia política, conhecido como Urtext (DUSSEL, 1998: 25).

115 de 1858, ambas citadas anteriormente. Disso podemos inferir que a elaboração dos Esboços contaria com o estudo da lógica hegeliana, enquanto a Introdução não. Mas, como pudemos perceber nos pontos 2.1.2 e 2.2, e como ficará claro no próximo ponto, o pensamento hegeliano não desapareceu das interlocuções de Marx na década de 1850, nem de sua forma de fazer crítica. 2.3.1- O caminho da reconstrução. Por se tratar de um texto fragmentário, inconcluso e não destinado à publicação, assim como todo os Grundrisse, O método da economia política (MARX, 2011: 54-61) deixa muitos aspectos não explicados, outros subentendidos, embora as linhas gerais do discurso estejam definidas (DUSSEL, 1998: 54). Assim sendo, nos guiaremos pelo texto através dos temas centrais destacados por Dussel (1998: 48), quais sejam: 1- a questão da abstração das determinações; 2- o ascenso dialético do abstrato ao concreto; 3- a construção sintética do todo concreto; 4- a problemática em torno das categorias; e 5- o primeiro plano de investigação. Veremos que, apesar dessa fina distinção, os temas se interpenetram, apresentando raros momentos de independência singular. Entretanto, para fins didáticos, tentaremos seguir essa divisão em nosso argumento. A questão da abstração das determinações. Logo no início se apresenta um posicionamento teórico que confronta a figura de um Marx materialista e positivista, na medida em que o real e o concreto, o ponto de partida imediato, aparece por meio da representação. O real e o concreto, o todo sensível externo a nós, aparece em nossa consciência como o seu conteúdo, o qual constitui, segundo Hegel (1995a: 41-42), a determinidade das suas próprias formas (sentimentos, intuições, imagens, etc.). Uma vez dotado de formas, não mais indeterminado, o conteúdo da consciência se torna objeto da consciência. Essas formas do conteúdo, constituídas a partir dele mesmo e apropriadas pela consciência enquanto objeto, são as representações. Portanto, o aparecer imediato do real e do concreto na consciência, ou seja, o aparecer sem a mediação reflexiva da constituição interna e essencial desse real e concreto transposto na constituição interna de sua representação, redundaria em uma representação falsa, visto que não corresponde necessariamente ao real e concreto existente fora da consciência. Nessa direção, Dussel (1998: 50) ressalta que o conhecimento pela via da representação é um ato ingênuo, "pleno de sentido mas confuso,

116 caótico". O ponto de partida imediato do método é, assim, o real e concreto representado, mediado pela consciência mas imediado pela reflexão. Confuso e caótico, portanto. Marx (2011: 54) usa o exemplo da população como ponto de partida imediato, real e concreto da economia: A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. (grifos nossos)

Ou seja, há pressupostos para a categoria população, assim como para o trabalho assalariado, o capital etc. que, caso ignorados, fazem dessa categorias meras abstrações vazias. A abstração das determinações aparece aqui como um procedimento analítico que busca dissolver essa representação caótica em determinações mais simples. A finalidade desse procedimento é consoante à compreensão de Hegel (1995b: 227), na medida em que ele afirma que a abstração é a transformação do concreto em simplicidade, a qual ocorre ao se pôr de lado uma parte daquele todo mediante a análise. Podemos pensá-lo mesmo como o primeiro momento do lógico-real hegeliano, isto é, seu momento abstrato ou do entendimento (Verstand). Segundo o filósofo idealista, "o pensar enquanto entendimento fica na determinidade fixa e na diferenciação dela em relação a outra determinidade; um tal abstrato limitado vale para o pensar enquanto entendimento como se fosse para si subsistente e essente" (HEGEL, 1995a: 159). Nesse sentido, quando Marx (2011: 41), na primeira parte da Introdução, se refere à produção em geral como uma abstração razoável (verständige Abstraktion, cujo sentido se aproxima mais de um elemento pertencente àquele primeiro momento do lógico-real do que de algo relativo à razão [Vernunft]), ele a diferencia de uma abstração vazia "[...] na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição" (grifo nosso). Ou seja, confere à abstração uma função do entendimento (Verstand), tal como vemos em Hegel125. 125NR: É interessante pensar, a partir dessa noção de entendimento (Verstand, que é uma substantivação do particípio II do verbo verstehen [verstanden], o qual significa entender, compreender; literalmente, Verstand seria aquilo que é entendido), o sentido da grande obra de Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e sociedade), cujo subtítulo da edição realizada por Johannes Winckelmann é Grundriss der verstehenden Soziologie, ou Esboço da sociologia compreensiva ou sociologia do entendimento. Na chave hegeliana, tal sociologia estaria preocupada tão somente em estabelecer e diferenciar entre si as

117 Dussel (1998: 51) corrobora essa leitura quando distingue a abstração como ato como separação ou análise - e como conteúdo - como produção de uma determinação abstrata por meio da análise ou como reprodução no pensamento do momento real da coisa, de modo que se busca, por meio da análise, separar a parte do todo e tratá-la como todo abstrato, como conteúdo "para si subsistente e essente". É como afirma Marx (2011: 54): "[...] por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado chegaria a conceitos abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples" (grifos nossos). Dessa forma, o momento analítico, do entendimento, ou abstrativo, ao se referir a seu objeto "[...] separando e abstraindo, ele é o contrário da intuição e sensação imediata [, da representação, portanto], que como tal só lida exclusivamente com o concreto e nele permanece" (HEGEL, 1995a: 160, Adendo) (grifo nosso). Nega, assim, aquela representação inicial, volatilizando-a na determinação abstrata. Esse é um primeiro e importante passo no método de reconstrução, uma vez que desconstrói o momento "pré-científico" do conhecimento (DUSSEL, 1998: 51) que se dá pela representação. Tal foi a via tomada historicamente pela ciência econômica no século XVII: partiam das representações totais e, através do esforço analítico, chegavam a "relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc.", as quais eram postas como o fim da investigação (MARX, 2011: 54). O ascenso dialético do abstrato ao concreto e a construção sintética do todo concreto. Após fixadas as determinações abstratas, ocorre aquilo que Dussel (1998: 52) entende como "o momento dialético por essência", qual seja, a ascensão do abstrato ao concreto, e o seu resultado, a construção de uma totalidade concreta a partir desse ascenso. Tal foi o procedimento dos sistemas econômicos que, partindo dos "[...] momentos singulares [que] foram mais ou menos fixados e abstraídos [...] [,] se elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial" (MARX, 2011: 54). Por elevação ou ascenso podemos entender um procedimento de síntese das várias determinações abstratas produzidas, sendo esse "[...] manifestamente o método cientificamente correto" (MARX, 2011: 54). Ele pode incorrer em erro quando, em favor da síntese, o pesquisador omite algumas conexões entre as determinações abstratas que poderiam comprometê-la. É o que Marx ([1861/1863] 1967: 161determinidades fixas do objeto, como ação social e relação social, o que constituiria apenas o primeiro passo para atingir o conceito, ou a verdade, sendo, portanto, incompleta.

118 162) aponta em Ricardo na seguinte citação: O método de Ricardo consiste nisso: ele parte da determinação da grandeza de valor da mercadoria através do tempo de trabalho e, então, investiga se as demais relações, categorias econômicas contradizem a determinação do valor ou o quanto elas a modificam. Vê-se à primeira vista tanto a justificação histórica dessa maneira de procedimento, sua necessidade científica na história da economia, quanto também, ao mesmo tempo, sua insuficiência científica, uma insuficiência que se mostra não apenas na maneira da apresentação (formal), mas leva a resultados errôneos, pois ela salta os elos intermediários necessários e procura demonstrar, de modo imediato, a congruência das categorias econômicas entre si. 126

Temos, portanto, um movimento que rompe com a representação ao partir das determinações abstratas, mas falha no ascenso, no momento da síntese, ao saltar "elos intermediários necessários" para a construção da totalidade, a fim de afirmar imediatamente "a congruência das categorias econômicas entre si", conservando assim, através dessas "omissões", a determinação abstrata do valor no todo. A maneira de lidar com uma síntese de determinações abstratas diversas sem ignorar a existência da contradição que traz essa diversidade, é fazer desse procedimento algo dialético. É no sentido de construir uma "unidade da diversidade", um concreto enquanto "síntese de múltiplas determinações" (MARX, 2011: 54), que o ascenso aparece como um "momento dialético por essência". Observamos esse procedimento no pensamento de Hegel (1995b: 159), o qual aparece como o segundo momento do lógico-real denominado "dialético ou negativamente racional". Vale a pena acompanhar a citação seguinte, a qual oferece elementos para compreender tanto esse ascenso como uma construção da totalidade que evite a dogmatização de determinações abstratas e consiga lidar com a diversidade contraditória: O momento dialético é o próprio suprassumir-se de tais determinações finitas e seu ultrapassar para suas opostas. [...]. Em sua determinidade peculiar, a dialética é antes a natureza própria e verdadeira das determinações-do-entendimento (Verstandesbestimmungen) - das coisas e do finito em geral. A reflexão é, antes de tudo, o ultrapassar sobre a 126NT: Tradução nossa de: "Die Methode Ric[ardo]s besteht nun darin: Er geht aus von der Bestimmung der Wertgröße der Ware durch die Arbeitszeit und untersucht dann, ob die übrigen ökonomischen Verhältnisse, Kategorien, dieser Bestimmung des Wertes widersprechen oder wie weit sie dieselbe modifizieren. Man sieht auf den ersten Blick sowohl die historische Berechtigung dieser Verfahrungsart, ihre wissenschaftliche Notwendigkeit in der Geschichte der Ökonomie, aber zugleich auch ihre wissenschaftliche Unzulänglichkeit, eine Unzulänglichkeit, die sich nicht nur in der Darstellungsart (formell) zeigt, sondern zu irrigen Resultaten führt, weil sie notwendige Mittelglieder überspringt und in unmittelbarer Weise die Kongruenz der ökonomischen Kategorien untereinander nachzuweisen sucht."

119 determinidade isolada, e um [conectar] (Beziehen) dessa última pelo qual ela é posta em relação (Verhältnis) - embora sendo mantida em seu valor isolado. A dialética, ao contrário, é esse ultrapassar imanente, em que a unilateralidade, a limitação das determinações-do-entendimento é exposta como ela é, isto é, sua negação. Todo finito é isto; suprassumir-se a si mesmo. O dialético constitui pois a alma motriz do progredir científico; e é o único princípio pelo qual entram no conteúdo (Inhalt) da ciência a conexão e a necessidade imanentes, assim como, no dialético em geral, reside a verdadeira elevação - não exterior - sobre o finito. (HEGEL, 1995a: 162163)

Percebemos claramente que a dialética se eleva, ultrapassando as determinações-doentendimento - ou as determinações abstratas fixas, ou simplesmente abstrações - a partir de sua própria conexão e necessidade imanentes. A conexão e necessidade imanentes dessas determinações advém do seu próprio processo analítico de construção, o qual as põe enquanto "conceitos"127, que por sua vez são "'construídos' enquanto essência pensada com determinações internas", como aponta Dussel (1998: 53). Ou seja, esse "ultrapassar dialético" das determinações-do-entendimento é mais que a inter-conexão entre as abstrações que supera o isolamento entre umas e outras pela relação que aí se estabelece: tal é o caso da reflexão, que ainda sim mantém os seus valores isolados. A dialética, por sua vez, suprassume essas abstrações inter-conectadas segundo sua necessidade imanente. Nesse sentido, elas se dissolvem em um uno superior posteriormente. Esse movimento nega, portanto, radicalmente o entendimento, uma vez que encontra, em sua raiz, "a conexão e a necessidade imanente" da relação entre as abstrações, constituindo, a partir dessa conexão e necessidade, uma nova totalidade com relação àquela representada inicialmente de modo "pré-científico". Tal totalidade, enquanto articulação necessária de múltiplas determinações, adquire autonomia em função dessa multiplicidade articulada, escapando ao estabelecimento de relações arbitrárias que, por vezes, nublam a correspondência entre as determinações abstratas do real e o próprio real - como no caso de Ricardo. Forma-se, assim, uma unidade de diversos. É interessante, ainda, a observação de Dussel (1998: 53), segundo a qual, no âmbito desse concreto autônomo, o que aparecia como oposto, por exemplo produção e o consumo, aparece agora enquanto momentos de uma unidade explicativa - como a produção em geral. Tal momento parece corresponder ao que Hegel (1995a: 166) chama de momento especulativo ou positivamente racional, o qual "[...] 127NI: Dussel (1998: 57) compreende o conceito como determinações abstratas definidas, enquanto a categoria é entendida como instrumentos ou mediações interpretativas do real. Essa é uma interpretação do autor. Ele mesmo reconhece que Marx não define o que é uma categoria (DUSSEL, 1998: 54).

120 apreende a unidade das determinações em sua oposição". Essa correspondência fica mais evidente no seguinte trecho: Esse racional, portanto, embora seja algo pensado - também abstrato -, é ao mesmo tempo algo concreto, porque não é unidade simples, formal, mas unidade de determinações diferentes. Por isso a filosofia em geral nada tem a ver, absolutamente, com simples abstrações ou pensamentos formais, mas somente com pensamentos concretos. (HEGEL, 1995a: 167)128

Assim, "[...] as determinações abstratas levam à reprodução do concreto [no caminho do pensar] (im Weg des Denkens)" (MARX, 2011: 54) (grifo nosso). Alcançada essa totalidade construída, concreta e em geral, inicia-se, a partir dela, uma "viagem de retorno" ao concreto que fora representado de modo intuitivo, pré-científico, etc. Aquele concreto inicial empiricamente dado - a população por exemplo - ganha um sentido mais profundo que aquele percebido pela intuição da empiria, o qual é tão mais profundo quanto mais rico em determinações abstratas articuladas segundo sua própria imanência. Dessa maneira, "[...] o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação" (MARX, 2011: 54). O concreto é, portanto, ponto de partida e de chegada: ponto de partida enquanto "representação caótica" a ser desconstruída ou decomposta em abstrações fixas simples, e ponto de chegada enquanto "uma rica totalidade de muitas determinações e relações" (MARX, 2011: 54)129. Na medida em que essa "rica totalidade" resulte de uma totalização construída a partir da conexão e necessidade imanentes das determinações abstratas, e essas determinações sejam de fato abstrações do real, isto é, momentos constitutivos da internalidade do real que 128NI: Note-se que o primeiro momento do entendimento (Verstand) se opõe aos dois momentos racionais (vernünftige), sendo o primeiro momento racional a negação imanente do momento do entendimento, e o segundo momento racional, o resultado positivo do anterior, o conteúdo pensado determinado e mediato, ao mesmo tempo abstrato e concreto. 129NR: Flickinger (1986: 115) faz uma observação interessante acerca do entendimento de Marx sobre o concreto enquanto "resultado de muitas determinações", "unidade de um múltiplo", etc.: "A referência a Kant, na dedução transcendental das categorias, facilita o entendimento do propósito marxiano, sublinhando a capacidade original da 'constituição do objeto do conhecimento'". Ele afirma na nota 133 que, igual à reflexão que Kant realizou na Dedução transcendental das categorias - ou Dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento (KANT, [1781] 1991: 80-96) - em torno da constituição do "[...] o objeto do conhecimento, Marx denunciou as categorias econômicas como meios da expressão objetiva de diversas experiências e fatos econômicos" (grifo nosso). Pensamos que seria interessante um estudo comparativo entre esse trecho da obra de Kant e essa concepção marxiana do concreto, o que relegaremos, na medida do possível, a próximos trabalhos.

121 são fixados e separados do seu todo, muito embora sejam concebidos de modo não isolado a partir de relações de reflexão estabelecidas entre si, essa "rica totalidade" pode ser considerada explicativa do mundo real, justamente por ser construída a partir de um procedimento no qual a própria análise do real ordene a sua reprodução ideal130. Dessa maneira, o concreto existente se torna realidade conhecida, de modo que, segundo escreve Marx (2013a: 90) anos após essa reflexão sobre o método, "[...] o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem" (grifos nossos). A problemática em torno das categorias. Se as determinações abstratas apresentam conexão e necessidade imanentes, isso significa que essas abstrações - enquanto categorias ou "mediações interpretativas do real" (DUSSEL, 1998: 57) - devem ter uma ordem de exposição determinada por essa mesma imanência, ou seja, determinada segundo a lógica dessa imanência. Em função do método de ascender do abstrato ao concreto conceitual e, a partir daí, explicar o real, Marx nega 1- o posicionamento de Hegel, segundo o qual o real é produzido na ordem do pensar ou nas categorias; 2- o empirismo, segundo o qual a realidade já se manifesta em sua verdade na representação; 3- a confusão entre a ordem do pensamento, ou das categorias, com a da realidade; 4- a total separação entre as duas ordens anteriores, de modo que o movimento das categorias fosse explicado como efeito da ordem do pensamento 130NR: Fica claro, aqui, 1- que o método resulta do próprio objeto real, cuja existência é externa à consciência que analisa, 2- que por meio da análise, essa consciência apreende o objeto segundo suas determinações internas e essenciais, e 3- que tais determinações existem em conexão necessária umas com as outras em função da própria constituição interna do objeto. Pode-se levantar a suspeita de que a constituição interna do objeto - no caso da obra máxima de Marx, o capital - tome a função de um princípio geral em torno do qual todas as categorias econômicas serão explicadas. Contudo, entendemos que, na medida em que o capital aparece como um processo, como uma concretude dialética concebida a partir da análise do real, ele fica impedido de ser considerado como um "princípio" e Marx, livre da acusação de um idealismo parecido com aquele que ele mesmo apontou na obra de Proudhon em 1847, segundo o qual a razão pura se movimenta em tese, antítese e síntese e, assim, produz as relações econômicas. Para Marx, nem mesmo Hegel teria se apegado a um princípio geral sob o qual apareceriam as particularidades. Ele escreve em uma carta para Engels de 9 de dezembro de 1861 a propósito do livro Das System der erworbenen Rechte, de Ferdinand Lassalle : "O ideologismo atravessa [a obra], e o método dialético foi falsamente utilizado. Hegel nunca chamou de dialética a submissão de uma massa de 'casos' a um princípio geral" (MARX, 1974b: 207). Se justapusermos esse juízo de Marx com relação a Hegel - o qual é facilmente comprovável, por exemplo, com uma leitura cuidadosa da Introdução da Fenomenologia do espírito, na qual é perceptível que as particularidades são constitutivas do universal - com a discussão sobre o método que viemos apresentando, é possível perceber que a leitura que Marx faz de Hegel acaba afastando a sua filosofia de uma compreensão mistificante e a alocando em uma chave que a torna potencialmente materialista, ou seja, que apresenta implicações materialistas. Por exemplo, quando, do ponto de vista da relação contraditória entre trabalho assalariado e capital, se abandona a resolução idealista e lógica da contradição na forma do fundamento, tal qual proposto por Hegel na doutrina da essência, abre-se caminho para uma teoria social calcada em uma contradição material cuja resolução deve surgir, portanto, do próprio mundo material, a partir de agentes materiais, tal como veremos no próximo capítulo. Abre-se o caminho, assim, para uma teoria crítica revolucionária. O trecho citado é tradução nossa de: "Der Ideologismus geht durch, und die dialektische Methode wird falsch angewandt. Hegel hat nie die Subsumtion einer Masse von 'Cases' under a general principle Dialektik genannt".

122 puro, o que redundaria em um idealismo; e 5- a determinação da ordem das categorias segundo sua sucessão histórica (DUSSEL, 1998: 56). Afirma, por outro lado, que "a sua ordem [das categorias econômicas, das determinações abstratas] é determinada [...] pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa [...]. Trata-se [...] de sua estruturação [das relações econômicas] no interior da moderna sociedade burguesa" (MARX, 2011: 60). Há, portanto, uma aceitação da ordem lógica das categorias econômicas por parte da crítica marxiana 131, aceitação essa que não pode ser entendida isolada da consideração do método apresentada acima, o qual nega a representação caótica por meio do processo de abstração e que, em seguida, nega as abstrações fixas resultantes desse processo por meio da ascensão dialética do abstrato ao concreto, a qual desloca o olhar teórico das partes do todo ao todo das partes. Diante dessa aceitação, não podemos perder de vista que [...] no curso das categorias econômicas [...] o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas [do ser-aí] (Daseinsformen), determinações da existência (Existenzbestimmungen), com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, [...]. (MARX, 2011: 59) (Grifos nossos)

131NI: Dussel (1998: 55) confronta esse posicionamento de Marx sobre a ordem das categorias econômicas com as suas críticas a Proudhon em A miséria da filosofia, especificamente aquelas que constituem a primeira observação sobre o método da economia política. O filósofo argentino aponta que Marx, nessa observação de 1847, rechaça a ordem das ideias em favor do movimento histórico, enquanto adota, nos Grundrisse, uma posição mais complexa: a exposição em abstrato das categorias segundo a sua própria ordem lógica, a qual advém da totalidade concreta do modo de produção capitalista. Daí Dussel perceber esse posicionamento como uma autocrítica de Marx à sua crítica a Proudhon, uma vez que o tratamento das categorias econômicas segundo sua ordem lógica, exaltada pelo socialista francês, seria parcialmente acatada por nosso autor. Parcialmente, pois se Proudhon percebe essa ordem lógica como produto do movimento da razão pura, Marx a percebe como resultado da totalidade concreta que expressa o modo de produção vigente por meio do pensamento. Conforme notamos no primeiro capítulo desta dissertação, para Marx, em 1847, as categorias econômicas eram expressões das relações de produção historicamente constituídas, enquanto em Proudhon essas relações apareciam como produto da razão pura, sendo, portanto, eternas e imutáveis. Essa imutabilidade derivava, segundo Marx, da compreensão de seu oponente de que o modo de produção burguês era eterno e imutável, de modo que a própria revolução fosse pensada dentro dos limites impostos pela validade da economia política burguesa. Se antes Marx colocava a tônica na historicidade das relações de produção, a partir da qual se pensava criticamente o conteúdo das categorias econômicas burguesas, agora essa historicidade, embora seja conservada no conteúdo dessas categorias criticadas, é submetida, na exposição das categorias, às articulações internas da totalidade construída do modo de produção capitalista, essa sim explicativa do funcionamento da economia da sociedade burguesa e expressiva da estruturação vigente das relações de produção - tal é a importância, por exemplo, do capital em geral enquanto abstração que expressa essa totalidade, como veremos adiante. A ordem lógica das categorias econômicas defendida por Marx nos Grundrisse é, portanto, aquela que as próprias categorias expressam historicamente na sociedade burguesa por meio das conexões internas que as relacionam umas às outras em função da totalidade. O ponto de partida e de chegada de Marx é, dessa forma, o presente.

123 Vejamos como se dá essa expressão das "formas do ser-aí", das "determinações da existência", por meio do exemplo da categoria trabalho. Enquanto representação em geral, universal, a categoria trabalho é "muito antiga" e pouco determinada. Podemos pensá-la, por exemplo, desde os chamados doze trabalhos de Hércules, ou Héracles, e o trabalho eterno de Sísifo, representados pela literatura da Antiguidade clássica e que conotam atividades expiatórias, passando pelos trabalhos artísticos de todos os tempos, que se referem a atividades estéticas e criativas transistóricas, até o trabalho assalariado, como atividade aviltante e legítima sob a ordem moderna do capital. Mas, do ponto de vista de uma concepção econômica simples, geral, universal do "trabalho", ele "[...] é uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples abstração" (MARX, 2011: 57). A universalidade "moderna" do trabalho gerada pelas "relações modernas" de produção - trabalho enquanto categoria econômica simples - se refere ao trabalho enquanto atividade subjetiva geradora de riqueza. Marx (2011: 57) explica que tal como o sistema monetário (Monetarsystem), que põe a riqueza de modo objetivo como coisa fora de si - põe-na enquanto dinheiro, riqueza na forma de dinheiro -, "[...] o sistema manufatureiro ou comercial transpôs a fonte da riqueza do objeto para a atividade subjetiva - o trabalho manufatureiro ou comercial -, embora concebendo ainda essa própria atividade sob a forma estreita do simples ganhar dinheiro". Essa transposição da fonte de riqueza do objeto para a atividade subjetiva manufatureira ou comercial pode ser compreendida como a passagem da "consciência fisiocrata" - que concebe o produto agrícola despido da forma-dinheiro como o resultado universal do trabalho, como o produto em geral, como riqueza, e portanto, a terra trabalhada como fonte de toda a riqueza para a "consciência mercantil" - que, por conceber a riqueza como dinheiro em função do sistema monetário, aumenta a quantidade de formas determinadas de atividades subjetivas que geram riqueza, visto que o produto dessas atividades se transformará em dinheiro na medida em que integram o processo de circulação de mercadorias. É nesse sentido que Adam Smith representa um grande avanço para a economia política: ele descarta "[...] toda determinabilidade da atividade criadora de riqueza", já que percebe que se o objeto da riqueza é abstrato - toda mercadoria se torna dinheiro -, só pode ser abstrata a atividade que o gera toda atividade produtora de mercadorias. O produto em geral é, assim, a forma passada, objetivada do trabalho em geral. Se, por um lado, essa concepção moderna permite um olhar para o passado que

124 classifique os seres humanos como produtores, independente da forma da sociedade observada, por outro lado não. Segue a razão dessa negativa: A indiferença diante de um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade muito desenvolvida de tipos efetivos de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais. Portanto, as abstrações mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto (Eines) aparece (erscheint) como comum a muitos, comum a todos. Nessa caso, deixa de poder ser pensado exclusivamente em uma forma particular. (MARX, 2011: 57)

Põe-se, portanto, a necessidade da abstração em geral, quando, diante de um momento rico em concretude, a diversidade das determinações - ou a variedade de trabalhos determinados segundo sua técnica, finalidade, etc. - conta com um elemento interno determinante comum aos singulares, capaz não só de ordenar essa diversidade no âmbito de uma unidade significativa, como também de impor essa ordenação. Tal imposição se dá no sentido da impossibilidade de tratar isoladamente uma particularidade, pois, sob essa condição, a verdade dessa particularidade só se revela quando em relação com aquelas outras particularidades a ela conectadas de modo imanente e necessário. A produção em geral é um exemplo dessa unidade que se impõe às diversas determinações do trabalho - lembrando que essa imposição, bem como essa unidade, não são eternas e nem produtos isolados do pensamento, mas perecíveis e autônomas com relação ao pensamento, justamente por ser também existente "fora da cabeça". A generalidade dessa abstração - da categoria trabalho - não resulta apenas de um exercício mental de agrupamento de atividades variadas geradoras de riqueza, mas também de uma forma de sociedade em que os indivíduos não estão necessariamente conectados a uma forma determinada de trabalho, e que podem, portanto, transitar por essas formas, de modo que essa variedade se torna contingente para eles, enquanto a unidade, o trabalho em geral, necessária132. O livre trânsito dos indivíduos pelas formas determinadas de trabalho é atributo 132NI: Como ilustração dessa afirmação, lembramos aqui a máxima de um famoso personagem do programa televisivo mexicano El Chavo del Ocho, popular no Brasil principalmente na década de 1990. O personagem a quem nos referimos é o Don Ramón (ou Seu Madruga, no Brasil), e a sua máxima é: "não existe trabalho ruim, o ruim é ter que trabalhar". Essa máxima fica ainda mais interessante quando determinamos o personagem: ele é um homem viúvo, solteiro, pai de uma filha, morador do subúrbio, constantemente desempregado, ameaçado de despejo do imóvel por não pagar o aluguel e hostilizado por uma moradora viúva de um militar que visivelmente pertencia à uma certa "classe média". Talvez ele possa ser encarado como um retrato caricato do trabalhador médio latino-americano das décadas de 1970 e 1980, que enfrentava a tragédia de uma crise econômica do ponto de vista de um país subdesenvolvido. Se em 1973 as economias da América Latina sofriam os efeitos adinâmicos do aumento do preço do petróleo, na década de 1980, além de um novo aumento do preço do petróleo, o aumento do endividamento externo, a elevação das taxas de

125 da "[...] mais moderna forma de existência da sociedade burguesa - os Estados Unidos", onde "[...] a abstração da categoria 'trabalho', 'trabalho em geral', trabalho puro e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática" (MARX, 2011: 58) (grifo nosso). Ou seja, essa abstração geral do trabalho, expressiva de relações antigas e "válida para todas as formas de sociedade", só alcança sua verdade prática na mais moderna das sociedades burguesas do século XIX, a sociedade norte-americana. Embora a verdade do conceito - ou da categoria - seja alcançada tão somente no tempo presente do modo de produção capitalista analisado por Marx, ela - resultante que é das relações atuais - não deixa de ter relações com o passado. A seguinte citação fornece elementos significativos para pensar essa relação: A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. [As categorias que expressam suas relações, o entendimento de sua articulação, permitem, portanto, ao mesmo tempo, a vista penetrante na articulação e nas relações de produção] de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos [ela se] edificou, [dos quais, em parte, restos ainda não superados se arrastam nela, {em parte} meros indícios se desenvolveram em significações plenas etc.] (MARX, 2011: 58)133 juros internacionais (o que, ceteris paribus, redunda no aumento absoluto da dívida externa) e a recessão nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), entre outros fatores, agravaram o cenário econômico desses países, o que acabou por acentuar a inflação média - notadamente entre os anos 1971/75 e 1981/85 na Argentina, Bolívia, Brasil, Peru e México - e elevar os índices de pobreza (CARDOSO E FISHLOW, 1990: 316, 321, 328). Enfim, esse personagem e sua máxima são ilustrações significativas na medida em que o seu desemprego - produto de um cenário de crise etc. - torna explícita a proposição de que, no capitalismo, torna-se indiferente, contingente a forma determinada do trabalho, enquanto a sua forma geral, a sua indeterminação, o "ter que trabalhar" independente do que seja, se torna uma necessidade. 133NT: Aqui se faz necessário inserirmos a totalidade do original referente ao trecho citado, uma vez que a tradução que estamos seguindo (MARX, 2011) apresenta algumas divergências com o texto alemão (MARX, 1976) que acabam gerando certa confusão na interpretação do texto. Referimo-nos principalmente ao momento onde se lê: "[...] todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se [a sociedade burguesa], parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte que nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc." (MARX, 2011: 58). As partes grifadas marcam o momento da divergência. Ao interpretar esse trecho, diríamos que parte daqueles "escombros e elementos" antigos que participaram da edificação da sociedade burguesa é carregada por ela "como resíduos não superados", parte essa que "nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc.". A primeira confusão que salta aos olhos diz respeito ao sujeito da última oração: ele pode ser 1"parte", o qual é recuperado no início da oração enquanto referência da anterior; ou, se "parte" não funcionar como sujeito visto que não concorda com a flexão plural do verbo, ele pode ser 2- "resíduos". Isso é resolvido na nossa opção, segundo a qual o sujeito é expresso claramente em "meros indícios". A segunda confusão está em "parte dos quais [dos escombros e elementos] ainda carrega consigo como resíduos não superados". Para que a oração faça sentido, o sujeito deve ser a "sociedade burguesa" - ou seja, ela carrega em si a "parte [dos escombros etc.]" -, apesar da forma como a frase é construída sugerir que o sujeito seja a "parte [dos escombros etc.]". Mas ao admitirmos a "sociedade burguesa" por sujeito, por mais que a oração faça sentido, ela diverge do texto original, segundo o qual esses resíduos "se arrastam" (sich fortschleppen) na sociedade burguesa, ou seja, existem como se fossem autônomos, indiferentes à sua ação. Tal é a maneira que, em parte, existem os escombros da velha sociedade na sociedade burguesa. Além desses elementos

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Dois são os pontos que gostaríamos de ressaltar nesse trecho: 1- a possibilidade de se acessar o passado do modo de produção vigente a partir das categorias atuais; e 2- a existências dos "restos não superados" das formas de sociedade passadas. A síntese do acesso ao passado por meio do presente é expresso na seguinte e conhecida analogia: "A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco" (MARX, 2011: 58). Nessa analogia, o ser humano representa a economia burguesa; o macaco, a "economia antiga"; e a chave, a possibilidade de acesso cognitivo às formas anatômicas "inferiores", mais antigas, possibilidade essa que é condicionada justa e evidentemente pelo pleno conhecimento das "formas superiores". Isso significa que, por exemplo, a partir da categoria renda da terra é possível compreender o tributo e a dízima, ou que a partir da categoria salário, podemos compreender as relações de trabalho sob a servidão e a escravidão etc. Os economistas tendem a identificar essas formas, apagando as diferenças históricas, de modo a ver no passado nada além de si mesmos, nada além da sociedade burguesa. Assim, por exemplo, podem falar sobre a renda da terra na Idade Média ou mesmo chamar de salário qualquer forma de rendimento auferida por trabalhadores juridicamente livres, da Grécia antiga ao mundo contemporâneo. Mas se por um lado é verdade que a "economia antiga" pode ser determinada por meio daquilo que a economia presente expressa - as categorias da economia burguesa -, por outro lado a identificação a priori dos dois termos é falsa, já que as formas não-burguesas de sociedade "[...] podem conter tais categorias de modo desenvolvido, atrofiado, caricato etc., mas sempre com diferença essencial" (MARX, 2011: 59) (grifo nosso). O dinheiro que existe na Antiguidade clássica difere essencialmente do dinheiro da sociedade industrial que pode, por sua vez, ser diferente do dinheiro da sociedade contemporânea ou futura. Essa diferença é definida pela posição e função que a categoria ocupa na totalidade de uma forma de produção determinada, forma essa que se relaciona de modo determinante com outras formas de

indiferentes, temos elementos não-indiferentes, os "meros indícios" que se desenvolveram na sociedade burguesa em "significações plenas". Esse trecho é realmente complicado, por isso deixaremos aqui o original para que a leitora ou o leitor que seja familiarizado com a língua alemã integre o debate: "Die bürgerliche Gesellschaft ist die entwickeltste und mannigfaltigste historische Organisation der Production. Die Categorien, die ihre Verhältnisse ausdrücken, das Verständniß ihrer Gliederung, gewähren daher zugleich Einsicht in die Gliederung und die Productionsverhältnisse aller der untergegangnen Gesellschaftsformen, mit deren Trümmern und Elementen sie sich aufgebaut, von denen theils noch unüberwundne Reste sich in ihr fortschleppen, blose Andeutungen sich zu ausgebildeten Bedeutungen entwickelt haben etc." (MARX, 1976: 40).

127 produção dentro da totalidade da produção em geral134. As categorias da economia burguesa expressam, portanto, o resultado de um desenvolvimento lógico e histórico, na medida em que existe, por trás delas, tanto um caminho de figuras suprassumidas que apontam a sua trajetória até as formas superiores, as quais são assumidas no contexto produtivo mais desenvolvido, quanto um processo histórico material apreensível por meio da percepção das transformações das relações sociais de produção135. A suprassunção das figuras dessas categorias não impede, entretanto, como foi posto acima, de subsistirem "restos não superados", relações arcaicas que "se arrastam" pelos becos e esquinas mal iluminadas das ruas que cruzam e entrecruzam a sociedade do capital, e que por vezes até escapam dos efeitos determinantes da totalidade. A diferença, seja ela interna à categoria, com relação às várias formas históricas e lógicas que assume, seja ela externa, com relação ao seu outro categórico, desempenha papel decisivo no processo de conhecimento das sociedades. Vejamos a seguinte citação, bem elucidativa dessa importância: [...] a economia burguesa só chegou à compreensão (Verständniß) das sociedades feudal, antiga e oriental quando começou a autocrítica da sociedade burguesa. Na medida em que a economia burguesa não se identifica pura e simplesmente com o passado, mitologizando-o, sua crítica das sociedades precedentes, sobretudo a feudal, com a qual ainda tinha de lutar diretamente, é similar à crítica feita pelo cristianismo ao paganismo, ou do protestantismo ao catolicismo. (MARX, 2011: 59) (Grifo nosso)

O processo de conhecimento se estabelece, assim, como a investigação das diferenças específicas e históricas existentes entre as formas econômicas, seja do ponto de vista das suas categorias, ou da sua forma em si, seja do ponto de vista das suas relações de produção, ou do 134NI: Aqui vale a seguinte citação: "Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e influência das demais produções e suas respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta" (MARX, 2011: 59) (grifo nosso). 135NI: Em carta a Engels de 2 de abril de 1858 escreve Marx (1978e: 312): "A passagem [dialética] do capital para a propriedade fundiária é ao mesmo tempo histórica, pois a forma moderna da propriedade fundiária [é] produto do efeito do capital sobre a propriedade feudal etc. [...]. Do mesmo jeito, a passagem da propriedade fundiária no trabalho assalariado é não apenas dialética, mas histórica, pois o último produto da propriedade fundiária moderna [é] o pôr universal do trabalho assalariado, o qual aparece então como base de toda merda". Tradução nossa de: "Der Übergang von Kapital auf Grundeigentum ist zugleich historisch, da die moderne Form des Grundeigentums Produkt der Wirkung des Kapitals auf das Feudal- etc. [...] Ebenso ist der Übergang des Grundeigentums in die Lohnarbeit nicht nur dialektisch, sondern historisch, da das letzte Produkt des modernen Grundeigentums das allgemeine Setzen der Lohnarbeit, die dann als Basis der ganzen Scheiße erscheint."

128 seu conteúdo. Uma última observação acerca das categorias feita por Dussel (1998: 59-60). As categorias mais simples - constituídas de determinações mais abstratas - podem constituir categorias mais complexas, ou seja, a categoria trabalho constitui um suposto da categoria dinheiro, a qual, por sua vez, constitui um suposto da categoria capital etc. Vale ressaltar que a categoria é mais simples com relação à mais complexa e vice-versa: o dinheiro é complexo com relação ao trabalho, mas simples com relação ao capital. Por outro lado, as categorias mais complexas, ou a totalidade em geral construída a partir da inter-relação reflexiva das determinações abstratas, podem explicar, por meio das categorias mais simples que a constituem, a totalidade concreta da sociedade burguesa, a qual se mostrara inicialmente como matéria da representação caótica136. Marx deixa claro que a totalidade em geral, por meio de cujas categorias suprassumidas a realidade socioeconômica da sociedade burguesa pode ser explicada, é a do capital em geral. Tal podemos perceber na seguinte citação: [Nas sociedades em que domina o capital,] a renda da terra não pode ser compreendida [sem ele]. Mas o capital é perfeitamente compreensível sem a renda da terra. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada, e tem de ser desenvolvido antes da renda da terra. Após o exame particular de cada um, é necessário examinar a sua relação recíproca. (MARX, 2011: 60) (Grifo nosso)

Os primeiro plano de investigação. Em função da discussão do método realizada por Marx, ele chega a um plano de investigação cujo ordenamento respeita o ascenso dialético do abstrato ao concreto. Esse plano sofrerá modificações na medida em que avança a investigação de Marx, muito embora conserve o movimento metódico discutido, de modo que as modificações redundem em uma acurácia no sentido de torná-lo mais concreto. Apresentaremos, por ora, apenas o primeiro plano e, no próximo ponto, apresentaremos alguns outros, a fim de demonstrar o significado da posição e da função que o capital em geral ocupa no método. A subdivisão do primeiro plano fica como segue: [...] 1- as determinações universais abstratas, que por essa razão, correspondem mais ou menos a todas as formas de sociedade, mas no sentido explicado acima. 2- As categorias que constituem a articulação 136NI: Há um momento anterior do texto em que Marx (2011: 54) chega a denominar algumas categorias simples - a saber trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca (dinheiro) - e algumas complexas como Estado, troca entre as nações e mercado mundial.

129 interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária. [Sua conexão uma com a outra] (ihre Beziehung zu einander). Cidade e campo. As três grandes classes sociais. A troca entre elas. Circulação. Sistema de crédito (Creditwesen) (privado). 3- Síntese da sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em [conexão consigo mesma] (in Beziehung zu sich selbst). As classes "improdutivas". Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população. As colônias. Emigração. 4- Relação internacional da produção. Divisão internacional do trabalho. Troca internacional. Exportação e importação. Curso do câmbio. 5- O mercado mundial e as crises. (MARX, 2011: 61) (Grifos nossos)

Dussel (1998: 62) comenta que, segundo o método, tanto as determinações universais abstratas (1) como as categorias (2) seriam "deixadas de lado", uma vez que seriam suprassumidas na síntese da sociedade burguesa. Mas esse plano não chegou a se concretizar, de modo que os pontos de 3 a 5 - do Estado ao mercado mundial - não sofreram alterações, mas se mantiveram até o último plano de O capital, enquanto os pontos 1 e 2 sofreram modificações. Isso seria indicativo, segundo Dussel (1998: 61), de que Marx não chegou a tratar esses momentos sintéticos "de um ponto de vista estritamente teórico". Por fim, um último comentário interessante: apesar do caráter abstrato desse plano, "as categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa" já estão definidas como capital, trabalho assalariado e propriedade fundiária, cuja ordenação está relacionada à existência das três classes fundamentais dessa sociedade: burguesia, proletariado e proprietários fundiários. Essas três categorias constituirão posteriormente os três primeiros livros de um plano geral de seis livros (DUSSEL, 1998: 62); aqueles três primeiros livros irão se condensar em um único livro em três tomos sobre o capital, enquanto os outros três não serão desenvolvidos (ROSDOLSKY, 2001: 60). Diante desses 5 temas tratados a partir de O método da economia política percebemos que a crítica marxiana se constitui não só de uma negação da "representação natural", para usarmos o termo de Hegel, isto é, a dissolução analítica daquela representação em determinações abstratas essenciais, ou o pensar enquanto entendimento. Essa crítica se constitui, ainda, de mais dois momentos racionais: 1- de uma negação da negação, ou seja, a negação desse momento analítico pela unidade necessária e imanente daquelas abstrações; e, finalmente, 2- no resultado positivo daquela negação da negação, qual seja o conteúdo determinado e mediato da totalidade concreta. Nesse sentido é uma "crítica por meio da abstração": ela aparece como elemento importantíssimo, tanto no processo (determinações abstratas essenciais) como no resultado, que é, a um só tempo, concreto e abstrato, visto ser

130 "síntese de múltiplas determinações" reproduzida "no caminho do pensar". 2.3.2- O capital em geral como abstração crítica, ou os antolhos da crítica social. Como vimos no ponto anterior, a totalidade concreta por meio da qual a economia da sociedade burguesa será explicada, o ponto de partida e de chegada da pesquisa marxiana, é o capital em geral. Essa abstração funcionará como os antolhos que se colocam nos cavalos: eles evitam sustos com elementos surpresas existentes no caminho trilhado, os quais podem fazer o animal tomar um rumo que fuja do propósito inicial do deslocamento. Embora esse caminho trilhado seja o da descoberta científica, e portanto lide com o desconhecido, com o ainda indeterminado, é preciso que esse caminho seja trilhado com rigor, de maneira a impedir que pequenas descobertas satisfaçam de imediato o ímpeto de conhecer. Daí a importância de uma abstração construída segundo as determinações do real, por meio da qual tanto a investigação quanto a reconstrução sistemática das categorias econômicas serão orientadas do ponto de vista dos limites das categorias, da sua ordenação na exposição, etc. Daí a analogia com os antolhos. Veremos neste momento três elementos: 1- como o capital em geral vai tomando centralidade nos planos de investigação de Marx na medida em que essa avança, 2- qual o seu significado do ponto de vista do método, e 3- em que medida ele é uma abstração crítica. O capital em geral nos planos de reconstrução das categorias econômicas. Rosdolsky (2001: 60), a partir da análise de esboços e anotações de planos de reconstrução das categorias econômicas escritos por Marx, chegou em duas estruturas de investigação: uma estrutura primitiva concebida em seis livros (livro sobre o capital, sobre a propriedade da terra, sobre o trabalho assalariado, sobre o Estado, sobre o comércio exterior e sobre o mercado mundial) e uma estrutura modificada (um livro sobre o capital em três tomos, sendo eles sobre 1- o processo de produção do capital, 2- o processo de circulação do capital e 3- o processo global da produção capitalista). Os três últimos livros da primeira estrutura teriam sido abandonados na estrutura modificada, enquanto os três primeiros livros teriam sido absorvidos nos três tomos do livro sobre o capital. Percebemos, já a partir disso, que o capital ganha centralidade na reconstrução crítica das categorias econômicas. Mas vejamos em alguns esboços como se dá esse processo por meio do qual o capital vai aparecendo como centro da crítica. Para tanto, desconsideraremos as três partes finais dos esboços (Estado, comércio exterior e mercado

131 mundial), visto que, como apontou Dussel (1998: 61), eles são uma constante. O primeiro esboço foi tratado no ponto anterior. Ele aparece na Introdução dos Grundrisse e data de fins de agosto de 1857. Os dois primeiros elementos desse plano são: 1"as determinações universais abstratas", que dizem respeito ao "trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca [dinheiro]", por exemplo, e 2- "as categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária" (MARX, 2011: 54, 61). O capital, aqui já considerado como "[...] a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina" (MARX, 2011: 60), aparece como uma das categorias constituintes da articulação interna da sociedade moderna, ao lado do trabalho assalariado e da propriedade fundiária. No segundo esboço por nós selecionado - datado de dezembro de 1857, segundo Dussel (1998: 62) - é apresentada uma hierarquia entre essas categorias constituintes da articulação interna da sociedade burguesa, sendo que o capital ocupa nela a posição "mais elevada", de modo que são dele desdobradas, primeiro, a propriedade fundiária e, depois, o trabalho assalariado. Ao mesmo tempo em que é posta essa hierarquia, a própria categoria de capital aparece mais bem mais determinada. Vejamos o esboço: I. 1) Conceito universal de capital. - 2) Particularidade do capital: capital circulante, capital fixo. (Capital como meio de subsistência, matéria-prima, instrumento de trabalho.) 3) O capital como dinheiro. II. 1) Quantidade do capital. Acumulação. 2) O capital medido em si mesmo. Lucro. Juro. Valor do capital, i.e., o capital em contraste consigo como juro e lucro. 3) A circulação dos capitais. α) Troca do capital por capital. Troca de capital por renda. Capital e preços. β) Concorrência dos capitais. γ) Concentração dos capitais. III. O capital como crédito. IV. O capital como capital por ações. V. O capital como mercado monetário. VI. O capital como fonte de riqueza. O capitalista. Depois do capital, teria de ser tratada a propriedade fundiária. Depois desta, o trabalho assalariado. Todos os três pressupostos, o movimento dos preços, como circulação agora determinada em sua totalidade interna. De outro lado, as três classes, [como produção posta,] (als die Production gesezt) em suas três formas básicas e pressupostos da circulação. (MARX, 2011: 204)

O capital aparece dividido em pontos que vão de I a VI, os quais, no seu todo, expressam um movimento interno à categoria, que a expõe a partir de suas formas mais abstratas até as mais concretas. No ponto I, que diz respeito à totalidade do capital em geral, é possível inferir uma subdivisão em momentos universal, particular e singular. Depois da totalidade do capital (I-VI) aparece a propriedade fundiária e, depois dela, o trabalho

132 assalariado. Somando a esses três elementos aqueles que desconsideramos, ou seja, o Estado, comércio exterior e mercado mundial, já vislumbramos os seis livos da estrutura primitiva apontada por Rosdolsky (2001), muito embora ela não tenha sido, aqui, explicitamente expressa como na carta que Marx (1978c: 551) escreve a Lassalle em 22 de fevereiro de 1858. Algumas páginas adiante nos Grundrisse, no subtítulo Troca entre capital e trabalho, nos deparamos com um terceiro esboço, uma nova divisão do capital, segundo a qual ele aparece como I- universalidade, II- particularidade e III- singularidade. Dentro de Iuniversalidade temos uma subdivisão que aparece como segue: 1) a) Devir do capital a partir do dinheiro. b) Capital e trabalho (mediando-se pelo trabalho alheio). c) Os elementos do capital decompostos de acordo com sua relação com o trabalho. (Produto. Matéria-prima. Instrumento de trabalho.) 2) Particularização do capital: a) Capital circulante, capital fixo. Circuito do capital. 3) A singularidade do capital: capital e lucro. Capital e juro. O capital como valor, diferente de si mesmo como juro e lucro. (MARX, 2011: 214)

Nas divisões II e III, a particularidade apresenta o capital como quantidade (acumulação, concorrência e concentração) e a singularidade, o capital tal como aparece na efetividade (crédito, capital por ações, mercado de dinheiro), respectivamente. No geral, a diferença com relação ao plano anterior se mostra na determinação da universalidade do capital (I), a qual contém, em si mesma, de modo mais explícito e determinado, a universalidade, particularidade e singularidade. Isso significa que, aqui, o capital em geral está mais rico em determinações que antes. A universalidade da sua universalidade (I.1. a, b, c) contempla o seu surgimento a partir do dinheiro e a sua relação com o trabalho alheio (fremd) como momento da sua existência. Em carta de 11 de março de 1858, Marx (1978d: 554) escreve a Lassalle sobre seu "primeiro fascículo", o qual "[...] teria de ser, sob todas as circunstâncias, um todo relativo" e no qual constaria "a fundação para o desenvolvimento total": "Ele contém 1. valor, 2. dinheiro, 3. o capital em geral ([a-] processo de produção do capital, [b-] processo de circulação do capital, [c-] unidade dos dois ou capital e lucro, juros). Tal faz disso uma brochura autônoma"137. Podemos perceber neste quarto esboço dois elementos: 1- se antes 137NT: Tradução nossa de, respectivamente: "Die erste Lieferung müßte unter allen Umständen ein relatives Ganzes sein [...]"; "[...] in ihr die Grundlage für die ganze Entwicklung enthalten ist [...]"; "Sie enthält 1. Wert, 2. Geld, 3. das Kapital im allgemeinen (Produktionsprozeß des Kapitals, Zirkulationsprozeß des Kapitals, Einheit von beiden oder Kapital und Proft, Zins). Es bildet dies eine selbständige Brochure."

133 Marx concebia o surgimento do capital a partir do dinheiro, agora ele trabalha também com o surgimento do dinheiro a partir do valor - veremos isso nos próximos parágrafos -; e 2- o capital em geral, resultado do dinheiro e do valor, aparece já como unidade do processo de produção e de circulação do capital, o que nos remete aos subtítulos dos três livros publicados de O capital - isso pode ser notado, entretanto, implicitamente já no terceiro esboço. Em carta a Engels de 2 de abril de 1858, partindo da chamada estrutura primitiva (ROSDOLSKY, 2001: 60) em seis livros, Marx (1978e: 312) focaliza o que viria a ser o livro do capital. Inicialmente, neste quinto esboço, ele busca definir aquilo sobre o que se tratará na seção do capital em geral: I. Capital. Primeira seção. Capital em geral. (Em toda essa seção é pressuposto que o salário é permanentemente igual a seu mínimo. Os movimentos do salário por si mesmos e o decréscimo ou acréscimo do [seu] mínimo pertencem à consideração do trabalho assalariado. Além disso, a propriedade fundiária é posta = 0, isto é, ela, enquanto relação econômica particular, ainda não concerne a esse momento. Apenas através desse caminho é possível não falar sempre de tudo em todas as relações.) (MARX, 1978e: 312, 315) (Grifos nossos)

Se justapomos essa proposta de isolamento da categoria capital em geral - posição do salário e da propriedade fundiária como constantes, ou o que se chama em economia de ceteris paribus - à concretude da sua universalidade expressa no terceiro esboço, entendemos como é possível que essa categoria se apresente como um abstrato concreto. Tal compreensão ficará mais clara ao observarmos o vir-a-ser dessa categoria, ou o movimento constitutivo que expõe seu conteúdo, cujo ponto de partida é o valor, passa pelo dinheiro, e culmina no capital. A citação a seguir, que ainda pertence ao quinto esboço, será longa, mas vale a pena considerá-la, uma vez apresenta o modo pelo qual Marx pensava em expor o capital em geral: 1. Valor. Puramente reduzido ao quantum de trabalho; tempo como medida do trabalho. O valor de uso - seja considerado subjetivamente, enquanto usefulness do trabalho, ou objetivamente, enquanto utility do produto aparece aqui meramente como pressuposto material do valor, o qual é, momentaneamente, excluído da determinação da forma econômica. O valor enquanto tal não tem outra "matéria" que o próprio trabalho. Essa determinação do valor [...] é meramente a forma mais abstrata da riqueza burguesa. [...] Todas as objeções contra essa definição de valor ou são tomadas de relações de produção não desenvolvidas, ou elas [se] baseiam na confusão [das] determinações econômicas mais concretas, das quais o valor

134 é abstraído [...]. A categoria do dinheiro resulta da contradição das características universais do valor com seu ser-aí material em uma mercadoria determinada etc. essas características universais são as mesmas que aparecem mais tarde no dinheiro. 2. Dinheiro. [...] a) Dinheiro como medida. [...] b) o dinheiro como meio de troca ou a circulação simples. [...] c) O dinheiro como dinheiro. [...] d) [...] o reino da liberdade, igualdade e da propriedade fundada no "trabalho". [...] 3. Capital. Esse é na verdade o que importa desse primeiro caderno, sobre o que eu tenho mais necessidade do seu parecer. Hoje, porém, não posso mais escrever. (MARX, 1978e: 315-318) (Grifos nossos)138

De modo geral, esse conteúdo do capital em geral, ou seja, o seu vir-a-ser a partir do valor, já traz à nossa mente a estrutura expositiva do livro I de O capital, com a grande diferença de que aqui o movimento começa no valor, e não na mercadoria 139. Isso se repetirá, salvo pequenas alterações, no nosso sexto esboço, a saber, o índice rascunhado em junho de 1858, no qual "[...] Marx delineou pela primeira vez o plano do capítulo 'O processo de produção do capital', o qual formou também, no essencial, a fundação para a preparação tardia do primeiro tomo de O capital"140 (MARX, 1980: 11*). É bem significativo que, nesse índice, tanto o processo de produção como o de circulação do capital - ou o que viria a se tornar os livros I e II de O capital - estejam alocados no capítulo 3, chamado O capital em geral (MARX, 1980: 7). Isso corrobora a leitura de Rosdolsky (2001: 49), segundo a qual os 138NT: Tradução nossa de: "1. Wert. Rein reduziert auf Arbeitsquantum; Zeit als Maß der Arbeit. Der Gebrauchswert - sei es subjektiv, als usefulness der Arbeit, oder objektiv als utility des Produkts betrachtet erscheint hier bloß als stoffliche Voraussetzung des Werts, die einstweilen ganz aus der ökonomischen Formbestimmung herausfällt. Der Wert als solcher hat keinen andren 'Stoff' als die Arbeit selbst. Diese Bestimmung des Werts [...] ist bloß die abstrakteste Form des bürgerlichen Reichtums. [...] Alle Einwürfe gegen diese Definition des Werts sind entweder hergenommen aus unentwickeltern Produktionsverhältnissen, oder sie beruhn auf der Konfusion, die konkreteren ökonomischen Bestimmungen, von denen der Wert abstrahiert ist [...]. Aus dem Widerspruch der allgemeinen Charaktere des Werts mit seinem stofflichen Dasein in einer bestimmten Ware etc. - diese allgemeinen Charaktere sind dieselben, die später im Geld erscheinen - ergibt sich die Kategorie des Geldes. 2. Geld. [...] a) Geld als Maß. [...] b) Das Geld als Tauschmittel oder die einfache Zirkulation. [...] c) Das Geld als Geld. [...] d) [...] das Reich der Freiheit, Gleichheit und des auf der 'Arbeit' gegründeten Eigentums [...]. 3. Das Kapital. Dies ist eigentlich das Wichtige dieses ersten Hefts, worüber ich am meisten Deine Ansicht haben muß. Heute aber kann ich nicht fortschreiben". 139NI: Embora o movimento parta do valor, é possível notar no segundo parágrafo da citação que a mercadoria já aparece como elemento fundamental no desdobramento do valor para o dinheiro, como o "ser-aí material" que entra em contradição com as "características universais do valor" e resulta, assim, na categoria dinheiro. Outro indício de que Marx já tinha em mente a importância da categoria mercadoria está nos próprios Grundrisse. No subtítulo 1) Valor, ele escreve: "A primeira categoria em que se apresenta a riqueza burguesa é a da mercadoria. A própria mercadoria aparece como unidade de duas determinações [valor de uso e valor de troca] [...]" (MARX, 2011: 756). Ou seja, a mercadoria é forma fenomênica e material do ser-valor. Daí sua importância. 140NT: Tradução nossa de: "[In diesem Entwurf] skizzierte Marx erstmals den Plan des Kapitels 'Der Produktionsprozeß des Kapitals', der im wesentlichen auch die Grundlage für die spätere Ausarbeitung des ersten Bandes des 'Kapitals' bildete".

135 primeiros dois tomos de O capital "[...] não ultrapassam a análise do 'capital em geral' [...]", enquanto o terceiro já apresenta temas relativos à pluralidade de capitais que se relacionam entre si, como a concorrência, o crédito e o capital dividido em ações. É bom ressalvar que, nesse índice de junho de 1858, assim como nos esboços quarto e quinto, o capital em geral em si não inclui, enquanto tópicos, o valor e o dinheiro, iniciandose, de fato, a partir da Troca do capital com a capacidade de trabalho (MARX, 1980: 7). Já em Para a crítica da economia política, de 1859, a primeira seção O capital em geral não inclui o terceiro capítulo sobre o capital em geral, mas trata tão somente da mercadoria e do dinheiro. Esse capítulo seria publicado em 1867, diluído na exposição de O capital, na qual seriam, ainda, recuperados e modificados os dois capítulos publicados em 1859. O que podemos pensar disso? Se levarmos em consideração a discussão sobre o método, podemos concluir que o capital em geral é resultado do movimento no qual o valor - ou mercadoria - e o dinheiro, enquanto categorias mais simples, aparecem como figuras dialéticas, de modo que elas sejam o próprio conteúdo constitutivo do capital em geral. Ou seja, elas podem não aparecer como tópicos do capital em geral em si, mas estão incluídas nele enquanto categorias suprassumidas. Por meio da discussão que viemos de apresentar é possível perceber que a própria investigação da produção, da distribuição, da troca e do consumo na sociedade moderna burguesa levou Marx a se aprofundar no estudo do capital em geral. Esse aprofundamento foi de tal ordem que, dos seis livros planejados inicialmente, dois (sobre a propriedade fundiária e sobre o trabalho assalariado) acabaram sendo absorvidos por esse estudo, assim como demonstra Rosdolsky (2001: 60) com sua estrutura modificada, enquanto os outros três (sobre o Estado, sobre o comércio exterior e sobre o mercado mundial) acabaram não sendo realizados. O capital em geral passou a ser o objeto de pesquisa de Marx por imposição da própria investigação do modo de produção capitalista, pois foi segundo as determinações abstratas desse modo de produção - em suas conexões necessárias e imanentes umas com as outras - e por meio do ascenso dialético do abstrato ao concreto que a totalidade "capital em geral" foi concebida. O significado metódico do capital em geral. No tópico anterior pudemos notar como as determinações abstratas das categorias de valor e de dinheiro estão contidas na de capital em geral, sendo ele, portanto, entre as três, a categoria mais complexa. No entanto, embora o capital em geral contenha essas determinações, ele não se identifica com aquelas categorias

136 mais simples que as contém, mas as ressignificam a partir do ponto de vista de sua síntese. Como escreve Marx (2011: 243), o capital em geral é "[...] a síntese (Inbegriff) das determinações que diferenciam o valor como capital do valor como simples valor ou dinheiro" (grifos nossos). É, portanto, uma categoria sintética, abstrata, que expressa uma nova forma de ser - valor como capital - de algo que já existia em uma forma determinada valor como dinheiro. Isso ocorre, pois ela reúne em si as determinações abstratas daquelas categorias pressupostas (valor, dinheiro, circulação, preços, trabalho, etc) - tal como sugere o sentido da palavra alemã Inbegriff -, determinações essas cujas conexões originais se reorganizam em função dessa totalidade articuladora (o capital em geral), conferindo a essas categorias simples e pressupostas um novo sentido. O valor, por exemplo, deixa de existir só enquanto simples valor, enquanto dinheiro, como acreditavam os mercantilistas, para existir também enquanto capital, enquanto valor que se autovaloriza. O capital em geral é, nesse sentido, a um só tempo, uma categoria resultante da investigação de Marx sobre a "anatomia" da sociedade burguesa, a qual expressa a especificidade do moderno, sendo assim um diagnóstico de época, e uma categoria mediante a qual ele reconstruirá, de modo sistemático, as categorias da economia política burguesa. Tal reconstrução, por ter como articuladora uma categoria expressiva do novo e sintética do passado - tanto em termos históricos como lógicos -, terá a pretensão de atualizar todas as demais categorias econômicas, trazendo-as à sua verdade, ou seja, ao sentido que elas expressam no modo de produção capitalista. Ao pretender atualizar as categorias econômicas, essa reconstrução sistêmica se mostra crítica da economia política burguesa, assim como é crítico, consequentemente, o significado metódico da categoria de capital em geral, já que é por meio dela que essa reconstrução se processa. Assim podemos entender que esse trabalho teórico-crítico de Marx (1978c: 550) seja uma "[...] crítica das categorias econômicas ou, se você quiser, o sistema da economia burguesa exposto criticamente. É, ao mesmo tempo, exposição do sistema e, por meio da exposição, sua crítica", tal como escreveu para Lassalle em 22 de fevereiro de 1858. Apesar do objeto ser exposto enquanto sistema e tal exposição ser crítica, a crítica mesma não produz um sistema autônomo que possa ser utilizado como ferramenta analítica do universal e do eterno, pois isso seria ignorar as dinâmicas histórico-espaciais das relações sociais de produção que podem, em função das suas transformações, alterar características essenciais das categorias econômicas. Assim, o objeto se põe como sistema, mas como um

137 sistema sistematicamente instável, em permanente movimento e autodestruição. A crítica não pode, portanto, ser tornada sistema, sob pena de não captar aquilo que há de assistêmico na ordem econômica do capital. Nesse sentido, a crítica deve ser dialética e captar o movimento do objeto: ela, enquanto método, se opõe, dessa forma, à sua pretensa sistematicidade. Hegel (1995a: 370) aponta esses momentos enquanto não opostos nos seguintes termos: "O método é [...] a alma e o conceito do conteúdo [...]. Enquanto [...] o conteúdo se reconduz com a forma à ideia, esta se expõe como totalidade sistemática [...]". Aqui o sistema é verdadeiro, visto que se valida e se constrói na harmonização estabelecida entre forma e conteúdo. Contudo, do ponto de vista do objeto de Marx, essa harmonia é inexistente, tal como veremos no próximo capítulo. A maneira metódica pela qual o capital em geral é tratado por Marx - ou seja, enquanto resultado dialético e racional daquelas determinações abstratas advindas da análise do real - permite que, de dentro de sua exposição sistemática, surja a denúncia da sua assistematicidade, da desarmonia entre forma e conteúdo. Diferentemente de Hegel, cujo sistema conceitual é expressão da ideia pelo fato do conceito ser capaz de abarcar a realidade, em Marx "[...] a correspondência da realidade com o conceito de capital é inalcançável, uma vez que o capital não pode, por mais que isso lhe convenha (e, logicamente, é isto o que mais lhe convém), prescindir da força de trabalho viva para sua reprodução" (RANIERI, 1997/98: 166) (grifos nossos). Ou seja, as determinações do capital em geral não se efetivam no real, pois, segundo essas determinações, o capital tende - sempre sem sucesso - a eliminar o trabalho vivo da produção, de modo que se totalize, se torne autônomo, sistêmico. Veremos isso mais detidamente no próximo capítulo. Por ora, ficamos com a delimitação dessa categoria proposta por Müller (1982: 22), segundo a qual [...] o desenvolvimento conceitual do capital em geral, no método dialético, [...] é, primeiro, a condição de compreensão adequada do devir histórico do capital e da sua constituição em totalidade, e segundo, ele pretende ser apenas, isto é, tão só e cabalmente, a exposição das articulações sistemáticas de todas as relações econômicas que se implicam reciprocamente numa sociedade submetida à dominação do capital. (Grifos nossos)

Reafirma-se, assim, o caráter metódico do capital em geral. A criticidade do capital em geral. Até agora foram mencionados esparsamente alguns dos aspectos do capital em geral. Tentaremos, agora, tratar esses aspectos de maneira mais

138 detida e concentrada, de modo a explicitar a sua criticidade. Primeiramente, essa categoria difere dos capitais particulares por aparecer "[...] só como uma abstração [...] que captura a differentia specifica do capital em contraste com todas as outras formas de riqueza - ou modos - em que se desenvolve a produção (social)" (MARX, 2011: 369). Para capturar essa differentia specifica do capital em relação a outras formas de riqueza, ele deve consistir de uma abstração representativa da totalidade das formas particulares de manifestação do capital e expressiva da sua essência. Essa totalidade é comparada, por sua vez, com outra totalidade abstrata de outras formas particulares de riqueza. Do contrário, as próprias diferenças particulares e internas do capital se confundiriam com formas de riqueza distintas, visto que, do ponto de vista do conteúdo concreto dessas particularidades, elas podem coincidir: é possível, por exemplo, pensar no dinheiro como meio de circulação de mercadorias tanto na Idade Média como na modernidade - parte do conteúdo da forma-dinheiro coincide aqui -, mas é impossível pensá-lo como meio de circulação e como moeda mundial em ambos os períodos, pois essa nova determinação é específica do dinheiro subordinado ao capital em geral, enquanto na Idade Média esse capital não havia se desenvolvido, sendo que o dinheiro era determinado por outras relações. O dinheiro medieval difere, deste modo, do moderno. Essa totalidade é, portanto, diferente do "inventário" das suas formas particulares, pois, como foi visto, é a síntese (Inbegriff) das determinações comuns às particularidades que, abstraídas de suas formas originais e concretas, se relacionam entre si de modo necessário e imanente segundo o seu pertencimento à totalidade. A ordenação racional e a determinação das formas de relação que se estabelecem entre tais particularidades - de modo que o conteúdo da realidade efetiva não apareça de modo arbitrário - são, assim, expressas naquela totalidade abstrata, a qual é, consequentemente, a expressão racional das formas particulares e de suas relações. Assim, no caso do capital em geral, "[...] as diferenças no interior dessa abstração são igualmente particularidades abstratas que caracterizam cada tipo de capital, à medida que esse seja sua afirmação ou negação (por exemplo, capital fixo ou capital circulante) [...]" (MARX, 2011: 369). Por ser a expressão racional dos "capitais reais particulares", o capital em geral, diferentemente deles, "[...] é ele próprio uma existência real (reell)" (MARX, 2011: 369). Percebemos aqui uma certa reminiscência da proposição "o que é racional, é efetivo, e o que é efetivo, é racional" expressa por Hegel (1911: 14). A análise do capital em sua existência particular - por exemplo, do "capital fixo" -, não pode expressar sua realidade total, sua

139 verdade, uma vez que essa verdade é expressa na relação necessária e imanente dessa forma particular com outras formas particulares que também informam a totalidade, que, nesse caso, é o capital em geral. Tal relação é real, efetiva porque é racional, e é racional, porque é real, efetiva. Não se trata, entretanto, de considerar os "capitais reais particulares" como categorias falsas, mas de compreendê-los em unidade com o capital em geral, como diferentes determinações de uma unidade: "[...] se o universal [o real, efetivo], por um lado, é somente differentia specifica pensada, por outro, é forma real [o real, existente] particular ao lado da forma do particular e do singular" (MARX, 2011: 370). Ou seja, a forma universal do capital em geral - abstrata etc. - apresenta formas particulares de existência que, do ponto de vista da sua particularidade, podem contradizê-la, enquanto que essas particularidades, do ponto de vista da totalidade, aparecem como momentos constitutivos seus. Portanto, a racionalidade dessas formas particulares reside, ao mesmo tempo, nelas - na sua interação necessária e imanente - e fora delas - na categoria universal de capital em geral -, de modo que ao observá-las racionalmente, pressupomos a universalidade que as conforma. "Assim como na álgebra", compara Marx (2011: 370), "[...] a, b, c são números; números em geral; contudo, são números inteiros em relação à a/b, b/c, c/b, c/a, b/a etc., que, todavia, os pressupõe como elementos gerais" (grifo nosso). A partir dessa forma geral do capital é possível perceber a sua gênese contraditória. Marx apresenta o capital em geral como o resultado conceitual de passagens dialéticas cujos momentos elementares são o valor e o dinheiro. Não entraremos nessas passagens de modo meticuloso, mas apenas apontaremos o momento que nos interessa, o qual, evidentemente, pressupõe todo um movimento dialético. O dinheiro enquanto capital existe em um nível tal de abstração que corresponde à todas as mercadorias. Assim sendo, o dinheiro enquanto capital não se opõe aos valores de uso. Antes é existente por meio deles e, portanto, a sua própria substância é valor de uso. O capital existe, então, na forma de mercadorias - valores de uso portadores de valor -, de modo que não haja uma mercadoria em particular que se oponha a ele. Destarte, o capital domina soberanamente, pondo-se como totalidade no mundo das mercadorias. Mas se pensarmos que a determinação comum a todas as mercadorias é a de que elas são valores de uso e, como valores de uso, resultado do trabalho humano, portanto trabalho objetivado, e que, então, o próprio capital seja trabalho objetivado, encontramos sua antítese no trabalho que se objetiva, no trabalho enquanto atividade, enquanto subjetividade, uma vez

140 que ao cessar essa atividade, cessa também o seu resultado. O trabalho como atividade presente no tempo, existente tão somente por meio de um sujeito vivo - o trabalhador enquanto sua capacidade e sua possibilidade, aparece, assim, como único valor de uso que se opõe ao capital (MARX, 2011: 211-212). Segue, então, que "o valor de uso que confronta o capital como valor de troca posto é o trabalho. O capital se troca ou está nessa determinabilidade só em relação com o não capital, a negação do capital, e só é capital relativamente a esta última; o não capital efetivo é o trabalho" (MARX, 2011: 213). O trabalho enquanto subjetividade é trabalho em geral, tal como foi discutido anteriormente: ele é resultado das relações modernas de produção por meio das quais a diversidade do produto da atividade subjetiva produtiva será reduzida à quantidade de dinheiro, ocasionando que essa atividade exista socialmente não com a finalidade imediata de produzir valores de uso, mas com a finalidade de produzir valor de troca. Assim todo e qualquer trabalho particular segundo sua técnica, finalidade imediata, etc. subsistirá no modo de produção capitalista em função da alienabilidade ou venalidade de seu produto, ou seja, da propriedade desse produto em se tornar dinheiro na circulação de mercadorias (MARX, 2011: 57-58). Por conta disso, formas culturais e de sociabilidade determinantes de uma dada sociedade e desenvolvidas em torno de atividades produtivas determinadas podem desaparecer tão logo o avanço da técnica, da organização do trabalho, etc. torne aquela atividade inviável do ponto de vista da produção de valor de troca (dinheiro). Tal é o caso da forma específica da sociabilidade dos vaqueiros do sertão do nordeste e do norte de Minas Gerais e de sua expressão musical, o aboio, que é o canto improvisado utilizado na orientação do gado no caminho entre os pastos. Essas formas principiaram a se extinguir quando o transporte do gado começou a ser feito por caminhões contratados pelos fazendeiros, fragmentando, assim, aos poucos aqueles grupos sociais articulados pelo compartilhamento daquela sociabilidade e formas de expressão, e que sobreviviam por meio do pagamento de suas viagens. Hoje o aboio sobrevive não mais na voz do vaqueiro que viaja dias a fio pelo sertão, vivendo a experiência real da origem desse canto, mas nos conservatórios de música, na academia, etc. que o fixam como uma forma de arte. A tragédia está na separação entre essa forma e seu conteúdo, qual seja, a relação entre o vaqueiro e o sertão mediada por sua atividade. O aboio é, desse modo, reproduzido artificialmente como o aboio apreendido por consciências que não participaram do processo formativo dessa arte, de modo que trilhará um desenvolvimento - se trilhar - informado não mais pela atividade do

141 vaqueiro, mas pela consciência que a concebe como particularidade da música em geral. Essa é uma negatividade que, entretanto, poderá ser resolvida em outras novas formas musicais que conservem o aboio como momento da sua criação141. O fato do trabalho em geral alcançar sua verdade na sociedade do capital não é acidental. Essa efetivação do conceito está atrelado ao próprio estabelecimento do domínio do capital. O desenvolvimento do capital em geral, que implica no processo de mercadorização da totalidade dos valores de uso produzidos pelo trabalho, conecta entre si a diversidade dos trabalhos particulares, de modo que não se apreende o caráter moderno do trabalho em uma atividade determinada, mas tão somente na relação necessária e imanente entre os muitos trabalhos posta pelo capital em geral na forma da produção social. A determinação comum a esses muitos trabalhos é a sua existência enquanto pura atividade, pura subjetividade. Tal existência está relacionada ao isolamento da subjetividade - ou do processo de objetivação do trabalho - com relação à sua forma objetiva, a riqueza, a propriedade. A separação entre trabalho e propriedade privada é aqui, assim como nos Manuscritos de Paris - muito embora a partir de um ponto de vista muito mais rico em termos de determinação dessa propriedade privada (propriedade enquanto capital) -, o elemento determinante da forma contraditória da relação entre o capital (atividade objetivada) e o trabalho (atividade objetivante, subjetiva) (MARX, 2011: 229). Isso traz consequências para o trabalho. Ele, sob o capital em geral e, assim, [...] posto como o não capital enquanto tal, é: 1) trabalho não objetivado, concebido negativamente [...]. O trabalho vivo existindo como abstração desses momentos de sua real efetividade [...] como completa exclusão da riqueza objetiva. [...] 2) Trabalho não objetivado [...] concebido positivamente [...]. O trabalho [...] como atividade [...] como fonte viva do valor. [...] Portanto, [...] o trabalho é, por um lado, a pobreza absoluta como objeto e, por outro, a possibilidade universal da riqueza como sujeito e como atividade [...]. (MARX, 2011: 229-230)

Vemos que, tanto em sua concepção negativa como positiva, o trabalho aparece, sob o capital em geral, como não objetivo, excluído da objetividade resultante da sua própria efetivação. O trabalho é, assim, impedido de retornar a si mesmo de modo enriquecido como riqueza objetiva, de se completar enquanto conceito autônomo e livre. Esse impedimento, vale 141NE: Esse exemplo foi extraído de um documentário exibido na edição de número 900 do programa televisivo Globo Rural, exibido no ano de 1998. Ele pode ser conferido em .

142 ressaltar, não é contingente, mas está inscrito na própria forma da relação entre o puro subjetivo do trabalho e o puro objetivo do capital que usurpa a vida e o movimento do primeiro. Em outras palavras, o trabalho sob o capital em geral é necessariamente cativo, privado de liberdade, o que reflete a condição das trabalhadoras e trabalhadores na sociedade burguesa analisada por Marx: enquanto expropriados dos meios de produção, da riqueza produzida socialmente, o trabalho é para eles miséria, enquanto é, para o capital, "possibilidade universal da riqueza". Se a relação entre trabalho e capital é condição da produção de riqueza na sociedade moderna e, assim, conteúdo da categoria de capital em geral; se "a separação da propriedade aparece como lei necessária" dessa relação (MARX, 2011: 229); e se o capital em geral é aquela categoria total em torno da qual as categorias econômicas serão criticamente reconstruídas; então essa reconstrução será crítica na medida em que é pautada na contradição reconhecidamente insolúvel e necessária entre capital e trabalho sob o modo de produção capitalista. Eis aqui a materialidade e criticidade da categoria de capital em geral: por meio dela reconhecemos tanto a origem do capital no trabalho estranhado e a insolubilidade dessa contradição nos seus próprios termos, quanto a função ideológica do sistema categórico econômico burguês, que resolve essa contradição na forma jurídica de indivíduos contratantes e contratados, na qual o mais-valor não aparece como expropriação de trabalho, mas como formas de remuneração de fatores de produção que se relacionam de forma horizontal e justa. A reconstrução desse sistema categórico a partir da abstração do capital em geral, a partir da explicitação dessa contradição fundante, é, portanto, crítica. 2.4- Considerações parciais. Neste segundo capítulo vimos um movimento que, partindo de uma crítica contra as abstrações político-econômicas - a qual foi construída nos escritos de juventude de Marx e tentamos apresentar no primeiro capítulo - chega a uma forma teórico-crítica que se processa por meio de uma abstração, a saber, o capital em geral. Tal movimento não expressaria, entretanto, uma contradição ou ruptura no processo de formação do pensamento do autor. Essa forma teórico-crítica é resultante do exercício de estabelecer uma totalidade daquelas categorias da economia política, cujos conteúdos foram criticados em um primeiro momento. Nesse exercício, que pode ser conferido em escritos como Bullion. Das vollendete

143 Geldsystem e os Londoner Hefte de 1850/53, aparecem algumas categorias hegelianas - tais como fenômeno e essência, qualidade e quantidade e suprassunção - que funcionariam como articuladoras daquelas categorias econômicas trabalhadas por Marx. Em 1857/58, Marx aprofunda esse processo de totalização nos Grundrisse, a partir do qual surgem não só as obras publicadas Para a crítica da economia política e O capital, mas também os manuscritos que darão origem ao Teorias da mais-valia e aos livros II e III de O capital. Esse

movimento

parece

corresponder

paralelamente

a

dois

movimentos

correlacionados. O primeiro é aquele tratado na Introdução aos Grundrisse, segundo o qual atoma-se o real representado imediatamente pela consciência e submete-o à análise, decompondo-o em determinações abstratas que se relacionem entre si de modo necessário e imanente; b- estabelece-se, a partir dessa rede de determinações, uma unidade entre as determinações essenciais e entre as formas de relação que se põem entre essas abstrações; e cse constrói uma totalidade abstrata que encerre em si aquelas determinações, a partir da qual as categorias mais simples serão ressignificadas no sentido da sua atualização. O segundo diz respeito àqueles momentos do lógico-real hegeliano, quais sejam a- o momento abstrato ou do entendimento, b- o momento dialético ou negativamente racional e c- o momento especulativo ou positivamente racional. Ou seja, o movimento que apresentamos neste capítulo, que denota parte da trajetória da investigação crítica de Marx, pode ser visto como o movimento que ascende do abstrato ao concreto: a- as críticas às abstrações tomam o lugar do momento analítico em que se desconstrói aquelas representações que são imediatas do ponto de vista da reflexão; b- os escritos de 1851 mostram a tentativa de síntese dessas determinações abstratas produzidas a partir da crítica; e c- o capital em geral denota a totalidade construída, por meio da qual se sintetiza as múltiplas determinações do modo de produção capitalista e se atualiza as categorias mais simples como trabalho, valor e dinheiro. Portanto, a universalidade, o capital em geral, funcionará, enquanto forma, como os antolhos da crítica, já que, uma vez que detém em si as determinações essenciais do todo, nos guia pelos vários significados possíveis que os momentos particulares podem apresentar, nos apontando aqueles que correspondem de fato à sua forma moderna e válida. Do ponto de vista do seu conteúdo, o capital em geral desvelará uma contradição que, segundo sua materialidade, é insolúvel. Isso implicará na necessidade de desvirar a dialética hegeliana solucionadora de todas as contradições da modernidade por meio da sua fundamentação -, de modo que ela opere não a partir da unidade contraditória, mas da contradição em si, fazendo

144 dela o seu núcleo, sua essência, enquanto essa unidade resolutiva passa à aparência. É isso que veremos no próximo capítulo.

145 3- Crítica dialética da dialética hegeliana: uma implicação crítica do tratamento marxiano das abstrações. Ao ascender do abstrato ao concreto e, assim, estabelecer uma totalidade por meio da qual seria possível reconstruir as categorias fundamentais da economia política burguesa a partir das suas próprias determinações atuais - o capital em geral - , Marx põe, na base mesma dessa reconstrução, uma contradição insolúvel do ponto de vista da sua materialidade: a dependência genética do capital (trabalho objetivado) com relação ao trabalho (atividade subjetiva) e a dependência histórica do trabalho com relação ao capital (expropriação universal dos meios de produção), de modo que 1- o capital busca - sem sucesso - eliminar a sua dependência do trabalho e se totalizar efetivamente enquanto sujeito autônomo do processo de valorização e 2- o trabalho busca - sem sucesso - se livrar do domínio do capital e se tornar sujeito autônomo do processo de produção da riqueza. Como Marx pretende uma reconstrução dialética das categorias econômicas a fim de que o modo de produção capitalista seja apreendido na sua totalidade, ele recorre à dialética hegeliana, que é "a última palavra em toda filosofia" (MARX, 1978f: 561). Ocorre que, do ponto de vista dessa dialética, não há contradição que não se resolva por si mesma e que não se torne fundamento de uma nova contradição (HEGEL, 1995a: 236-238). Isso se põe frontalmente contra o diagnóstico de Marx a respeito da sociedade burguesa, segundo o qual a contradição fundamental da produção em geral historicamente determinada não só se mostrou insolúvel até a sua época, como não apresenta perspectivas de superação a partir de si mesma. Daí a necessidade de se pensar a negação prática do capital em geral enquanto estruturador social, econômico, político e cultural da sociedade moderna: infelizmente não se propõe uma forma positiva dessa negação, mas sabemos que a aposta política de Marx foi uma organização política da classe trabalhadora que busque construir uma revolução social, isto é, o "passo além" com relação à revolução política iniciada pela burguesia francesa em 1789. Como, então, se utilizar de uma filosofia que exige algo no plano ideal que não ocorre no real? A resposta à essa questão é o tema deste último capítulo, qual seja, o desvirar da dialética hegeliana. Entendemos esse tema como uma implicação crítica do tratamento marxiano das abstrações em sua maturidade, na medida em que esse impasse surge do desenvolvimento da totalidade abstrata do capital em geral, cuja gênese e oposição é o

146 trabalho em geral estranhado. Ele será desenvolvido em dois momentos: 1- o sentido do "desvirar a dialética"; e 2- o procedimento de desvirar a dialética. 3.1- A luva dialética de Hans Friedrich Fulda, ou o desvirar da dialética hegeliana como exercício crítico marxiano: o avesso do avesso. Em função do tratamento dialético dispensado por Marx àquela contradição materialmente insolúvel indicada acima, a dialética hegeliana sofrerá uma transformação. A necessidade dessa transformação é afirmada por Marx na sua carta a Lassalle de 31 de maio de 1858: "Tão mais essa dialética seja incondicionalmente a última palavra de toda filosofia, tão mais é necessário, por outro lado, libertá-la (sie zu befreien) da aparência mística que tem em Hegel" (MARX, 1978f: 561). O sentido dessa "libertação da aparência mística" pode ser apreendido em pelo menos três menções: 1°- Marx (1974c: 538) escreve em carta a Ludwig Kugelmann de 06 de março de 1868: "[...] meu método de desenvolvimento não é o hegeliano, pois eu sou materialista, e Hegel, idealista. A dialética de Hegel é a forma fundamental de toda dialética, mas somente após a esfola (Abstreifung) da sua forma mística, e isso distingue precisamente meu método"; 2°- em carta a Joseph Dietzgen de 09 de maio de 1868 lemos o seguinte: "As leis corretas da dialética já estão contidas em Hegel; contudo em forma mística. Trata-se de esfolar (abstreifen) essa forma. [...]" (MARX, 1974d: 547); 3º- afirma-se no posfácio à segunda edição de O capital de 1873: "Nele [em Hegel], ela [a dialética] se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la (sie umstülpen), a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico" (MARX, 2013a: 91). A transformação da dialética hegeliana aparece, então, como "libertação" e "esfola" da sua forma mística, como o seu "desvirar" para que, assim, se descubra o seu "cerne racional". Embora sejam utilizadas três figuras distintas, notamos que elas se referem a um só processo: à crítica da dialética hegeliana. Tentaremos aqui explorar o sentido desse "libertar-esfolardesvirar" (befreien-abstreifen-umstülpen) por meio das considerações de Fulda (1975). Mas,

147 antes, problematizaremos esse sentido, notadamente o do "desvirar". A citação mais conhecida a respeito da relação crítica que Marx estabelece com a dialética hegeliana é aquela já mencionada e presente no posfácio à segunda edição de O capital, de 1873, onde lemos: A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor (dargestellt hat), de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la (sie umstülpen), a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico. (MARX, 2013a: 91) (Grifos nossos)

Temos aqui - bem como nas referências mencionadas no segundo parágrafo deste tópico uma testificação à época de O capital de que a dialética hegeliana é algo válido, desde que liberta da forma mística oriunda do tratamento teórico-filosófico de Hegel. Do ponto de vista de uma possível resolução crítica dessa mística, a dialética está de cabeça para baixo, enquanto o próprio ato crítico para com ela é definido como o seu desvirar. Por serem expressões figuradas, os dois termos em itálico protagonizam compreensões divergentes entre si e até mesmo incompreensões que impactam, de alguma forma, os textos de ciências sociais que tomam esse eixo teórico como referência. Um exemplo é Celso Furtado em seu livro Dialética do desenvolvimento. Logo no início afirma o economista brasileiro: O fato de que Hegel, em sua ânsia de integrar um sistema filosófico, fôsse buscar no desenvolvimento de uma suposta Idéia Absoluta o fundamento da dialética não tinha maior significação do ponto de vista da validade desta como método. Marx compreendeu muito bem êste ponto quando afirmou que Hegel havia concebido a dialética de cabeça para baixo, e que tudo que lhe coube fazer foi pô-la de cabeça para cima. (FURTADO, 1964: 14) (Grifo nosso)

Nesse texto, Furtado expressa uma compreensão da crítica marxiana à dialética hegeliana que se confunde em alguma medida com a crítica feuerbachiana, tal como comentamos na nota 29 desta dissertação. Ou seja, segundo essa leitura, Marx teria tão somente invertido a dialética de Hegel. O que antes estava de cabeça para baixo foi posto de cabeça para cima, o que se iniciava com o predicado se inicia agora com o sujeito, o primado da idealidade se torna primado da materialidade etc142. Grespan (2002: 30-31) explica que 142NR: Para além dessa implicação teórico-filosófica na interpretação do movimento crítico de Marx, tal leitura

148 uma inversão entre o material e o ideal implica tão somente em um inversão da ordem desses elementos, conservando, contudo, a forma da dialética. Se é possível, pois, inverter o conteúdo ao mesmo tempo que se mantém a forma, isso significa que forma e conteúdo estão separados e indiferentes entre si e, portanto, estão encerrados em uma relação dicotômica e não-dialética. Vale lembrar que Marx (2013a: 90) reconhece o seu método não apenas como diverso ao de Hegel, mas como diretamente oposto a ele, "[...] de modo que há também uma oposição formal entre eles" (GRESPAN, 2002: 31). Outro argumento que podemos apresentar nesse sentido é o trecho da carta supracitada de Marx (1974c: 538) a Kugelmann, na qual escreve: "A dialética de Hegel é a forma fundamental de toda dialética, mas somente após a esfola da sua forma mística, e isso distingue precisamente meu método" (grifos nossos). Portanto, quando abordarmos o processo mesmo de desvirar a dialética, levaremos em conta a forma e o conteúdo em relação recíproca. Pensamos que essa compreensão que negligencia a oposição formal entre as dialéticas hegeliana e marxiana parte de uma confusão entre inverter (umkehren) e desvirar (umstülpen), a qual pode estar tanto associada a uma negligência com relação ao estudo da filosofia hegeliana como a uma tradução não problematizada e literal do termo alemão auf den Kopf stehen. Literalmente e de fato, esse termo denota algo que está de cabeça para baixo, mas pode conotar também algo que está fora do lugar, sem ordem, desorganizado. Vejamos, por exemplo, a fala de Mephistopheles entre os versos 11.735 e 11.738 na segunda parte de Faust, segundo a tradução para o português de Haroldo de Campos (1981: 21): "Maldição! Minha tropa se dispersa! / Satanazes caem de ponta-cabeça, / Aos trancos, de roldão, cabriolando, / De culatra, vão todos dar no inferno". Percebemos aqui que o verso "Satanazes caem de ponta-cabeça" (Satane stehen auf den Köpfen) indica não só a queda dos demônios, mas pode ter permitido a Furtado uma percepção teórica marxista da luta de classes que fosse, a um só tempo, conformada ao ponto de vista do capital em geral e consoante a uma teoria política da reprodução. Ou seja, na medida em que Marx tenha posto a dialética hegeliana "de cabeça para cima", a sua novidade se restringe a uma nova perspectiva lançada sobre a mesma forma, de modo que, mesmo em um contexto de luta de classes, o Estado mantenha a função positivamente conciliadora que tem em Hegel e esteja posto, em si mesmo, enquanto politicamente neutro. Nesse sentido e em condições "flexíveis" (leia-se "condições democráticas ótimas"), o Estado tende a absorver essa luta, transformando-a em desenvolvimento das forças produtivas: "Sem essa flexibilidade das instituições políticas, as lutas de classe não poderiam ter desempenhado o papel de instrumento propulsor do desenvolvimento das forças produtivas que lhes coube, nem o capitalismo teria alcançado o impulso que conheceu" (FURTADO, 1964: 41). É bom esclarecer que não questionamos o diagnóstico de Furtado, mas sim as implicações de sua interpretação da crítica de Marx a Hegel. Isso porque, caso a forma idealista se mantenha, ou nesse caso, o Estado mantenha essas características ideais e a propriedade de absorver as lutas sociais, mostrando-se, de modo idealista, como o momento da resolução das contradições entre capital e trabalho, essa análise tende a anular teoricamente os possíveis protagonismos políticos advindos da sociedade civil, isto é, da classe trabalhadora enquanto sujeito político.

149 também a desorganização típica de uma retirada de tropa ao fim de uma batalha perdida. Outro exemplo que podemos dar da literatura alemã sobre a nuance desse termo está no romance Jakob der Lügner, publicado em 1969 e escrito por Jurek Becker. A narrativa se passa na Alemanha durante o nazismo. A personagem Felix, ao reprovar a ideia de ter um aparelho de rádio no gueto judaico para acompanhar os avanços das tropas russas contra os nazistas, argumenta: "Quero dizer, uma vez que a Gestapo saiba que há um rádio no gueto, o que eles fazem? Colocam imediatamente cada rua de pernas pro ar, casa por casa, não darão sossego enquanto não tiverem encontrado o rádio"143 (BECKER, 1982: 59) (grifo nosso). Ou seja, "colocar cada rua de pernas pro ar" ([stellen] jede Straße auf den Kopf) conota claramente que todos os lugares do gueto serão revirados pela polícia a fim de que se encontre o aparelho de rádio. Portanto, traduzir auf den Kopf stehen/stellen como "colocar/estar de ponta-cabeça" sem alguma nota de esclarecimento pode levar a interpretações tais como a que vimos acima, a qual, tomada isoladamente, pode sugerir um Marx maduro comprometido com a crítica feuerbachiana dos anos 1840, diferentemente do que afirmamos na nota 29 desta dissertação. Se "estar de ponta-cabeça" não significa somente que algo está ao contrário de sua posição normal ou natural, então a sua resolução não pode estar restrita a uma "inversão", como vimos acima. Antes, o ato crítico de Marx é o desvirar (umstülpen), o qual se relaciona com uma desorganização tanto de forma quanto de conteúdo. Para Fulda (1975: 206), "Desvirar" denota muito mais um processo, tal qual se o executa, por exemplo, em uma luva144. Ocorre também aqui que, o que antes - sob certas circunstâncias [se apresentava] de modo inverso - estava acima, agora veio abaixo. Ao mesmo tempo, contudo, ocorre que, o que antes estava fora, ainda que sob certas circunstâncias pertença ao interior, agora veio de fato para dentro; e aquilo que, nesse caso e de modo falso, estava dentro, veio para fora. Estando escondido, por exemplo, um caroço na luva, ele aparecerá, assim, por si mesmo com esse procedimento de desvirar; seu envoltório é "esfolado".145 (Grifos nossos) 143NT: Tradução nossa de: "Ich meine, auf einmal weiß die Gestapo, daß im Ghetto ein Radio ist. Und was machen die? Sie stellen sofort jede Straße auf den Kopf, Haus für Haus, sie geben nicht eher Ruhe, bis sie das Radio gefunden haben." 144NI: Vale mencionar que, em outro texto, Fulda (1978: 188) utiliza, além da imagem da luva, a de uma manga de camisa (Ärmel) dobrada. 145NT: Tradução nossa de: "'Umstülpen' bezeichnet vielmehr einen Vorgang, wie man ihn zum Beispiel an einem Handschuh vornimmt. Auch dadurch kommt, was vorher - unter Umständen verkehrterweise - oben war, nun nach unten. Zugleich aber kommt, was vorher außen war, obwohl es unter Umständen nach innen gehört, nu tatsächlich nach innen; und das, was in diesem Fall fälschlicherweise innen war, kommt nach außen. War etwa im Handschuh ein Kern versteckt, so wird er bei diesem Umstülpverfahren ganz von selbst zum Vorschein kommen; seine Umhüllung wird 'abgestreift'."

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O movimento de desvirar envolve, portanto, segundo esse exemplo, pelo menos três sentidos: de cima para baixo, de fora para dentro e de dentro para fora. Bem mais profundo que um mero "colocar de cabeça para cima", o desvirar provoca uma mudança não só de perspectiva do que o objeto é para o observador -, mas também do objeto em si. Tomando o exemplo da luva de Fulda: se em um primeiro momento se trata de uma luva de couro com forro de lã, ao virá-la do avesso ela se torna uma luva de lã com forro de couro. Alteram-se aparência, função, denominação, etc. Devido o grau de abstração do exemplo, não tomaremos aqui os sentidos desse movimento como indicações metodológicas a serem rigorosamente cumpridas, mas apenas como indicadores de que o que Marx propõe extrapola a imagem de algo que, uma vez de cabeça para baixo, basta que seja tornado de cabeça para cima. Entretanto, a partir do argumento de Müller (1982: 26), podemos notar um desenvolvimento mais concreto do sentido proposto por Fulda: Não basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulação já inverteu, com a intenção de fazer a dialética hegeliana andar com os próprios pés, para que ela revele um potencial de racionalidade que a projete além de seus limites idealistas. É preciso, além de invertê-la, virá-la do avesso, como exige a outra significação presente na palavra alemã "umstülpen", mostrando que as contradições presentes nos fenômenos não são a aparência de uma unidade essencial, mas a essência verdadeira de uma "objetividade alienada" [...], e que sua resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o lado aparente, mistificador, de uma realidade contraditória. Virando ao avesso a realidade invertida, alienada pelo capital, "enquanto figura objetiva consumada da propriedade privada", a contradição que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, [...] e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradições, revela-se como o seu exterior aparente, o seu envoltório não só místico, mas mistificador. (Grifos nossos)

Essa longa citação se fez necessária na medida em que, a partir da discussão etimológica realizada por Fulda (1975; 1978), põe claramente aqueles elementos que se movem de dentro para fora e de fora para dentro, os quais iremos desenvolver no próximo ponto, a saber a contradição e a sua unidade resolutiva e integradora. O importante por ora é, no entanto, tão somente ressaltar a significação do desvirar marxiano da dialética hegeliana, a saber: se, para Hegel, a sociedade moderna vive - em termos sociológicos - um momento de dilaceração dos sentidos e de diversificação dos papéis sociais, nos quais se produzem

151 conflitos e múltiplas visões de mundo, ao mesmo tempo que conserva dentro de si, enquanto essência, algo que a mantém em unidade, "a unidade resolutiva e integradora das contradições" (como o Estado, por exemplo)146; então resulta desse exercício crítico de Marx desenvolvido durante toda sua trajetória intelectual, mas que apresenta seus traços mais marcantes, do ponto de vista do método, na década de 1850 - que essa unidade resolutiva seja externa, aparente, o fenômeno de um núcleo racional, real constituído pela contradição. Assim atesta Cressoni (2014: 113): É necessário, se não quisermos ser levados a concluir que Marx foi ingênuo quanto à relação de forma e conteúdo, [...] que a unidade especulativa, que enreda a contradição e a resolve harmoniosamente, dê lugar à contradição, e aí sim tratarmos Marx como autor de uma dialética de fato revolucionária - o que Marx vinha buscando desde sua juventude. Deste modo, o contraditório deixará de ser um momento na elaboração da unidade especulativa da ideia lógica, para constituir-se, de fato, enquanto fundamento que põe e, por isso, enreda a unidade lógica almejada do capital. (Grifos nossos)

Isso não significa, contudo, que a obra de Hegel seja falsa do ponto de vista desse processo crítico. São interessantes, nesse sentido, os apontamentos de Schmied-Kowarzik (1981: 70) sobre os desenvolvimentos marxianos na Crítica da filosofia do direito de Hegel, através dos quais ele afirma que Hegel, em sua filosofia do Estado, teria expressado a verdade das relações efetivas, mas [...] a verdade do presente, [de] que [1] o Estado assumiu uma existência independente com relação aos indivíduos sociais, [de] que [2] eles se confrontam na sociedade burguesa em um total isolamento: não é essa a efetividade racional, a qual vem à luz nesses elementos como crê Hegel, mas sim a verdade nua das relações presentes e estranhadas.147 (Grifos nossos)

As relações presentes e estranhadas pela ação alienante do capital teriam sido, assim, tratadas 146NI: Aqui se faz particularmente interessante a recuperação que Habermas ([1985] 2000: 31) faz de Hegel: "'Quanto mais progride a formação, mais diverso é o desenvolvimento das manifestações vitais em que a cisão pode se entrelaçar, maior é o poder da cisão... e mais insignificantes e estranhos ao todo da formação são os esforços da vida (outrora a cargo da religião) para se reproduzir em harmonia'. Essa frase provém de um escrito polêmico contra Reinhold, o chamado Differenzschrift, de 1801, em que Hegel concebe a harmonia dilacerada da vida como sendo o desafio prático e a necessidade da filosofia". Tal "desafio prático" e "necessidade da filosofia" parecem ter sido consumados em Hegel a partir da ideia de eticidade, uma unidade especulativa constituída a partir de formas substanciais de harmonização social das relações intersubjetivas, quais sejam, a família, a sociedade civil e o Estado (HEGEL, 1995c: 295-336). 147NT: Tradução nossa de: "[...] die Wahrheit der Gegenwart, daß der Staat sich gegenüber den gesellschaftlichen Individuen verselbständigt hat, daß diese in der bürgerlichen Gesellschaft sich in totaler Vereinzelung gegenübertreten, doch ist dies nicht die vernünftige Wirklichkeit, die hierin zum Vorschein kommt, wie Hegel glaubt, sondern die nackte Wahrheit der gegenwärtigen entfremdeten Verhältnisse."

152 por Hegel como relações efetivas não estranhadas, uma vez que elas teriam encontrado no Estado a unidade resolutiva para suas contradições 148. Assim sendo, completa mais adiante: "Tarefa da crítica é, portanto, revelar a verdade do presente, a qual Hegel afirma como racional, no seu estranhamento e na sua gênese efetiva como [verdade] estranhada [...]149" (SCHMIED-KOWARZIK, 1981: 70-71) (grifos nossos). Ou seja, a "verdade do presente" não é considerada como falsa, mas como ponto de partida necessário a partir do qual o exercício crítico se desenvolve na direção do desvelamento da gênese efetiva daquilo que é dado, bem como da percepção de seu caráter estranhado atual. Não podemos deixar de notar uma certa similitude entre essa "verdade do presente", a "representação natural" tratada criticamente por Hegel na sua Fenomenologia e a "representação caótica" mencionada no capítulo anterior. Desvirar a dialética hegeliana e evidenciar, assim, a "verdade do presente" como uma "verdade estranhada", teria, portanto, o sentido de alocar a contradição no interior da sociedade burguesa, na sua "anatomia", ao mesmo tempo em que a unidade conciliadora, antes interna ao objeto, seria posta para fora, como aparência desse objeto. Desse modo, Marx teria tornado a dialética hegeliana adequada à realidade social que ele buscava ler, o que demonstra uma primazia do objeto sobre o método: como o objeto de Marx, o capital em geral, a totalidade distintiva do modo de produção moderno, apresenta uma contradição que não se soluciona por si só na materialidade, o método que irá apreendê-lo e expô-lo deve ser capaz de conceber uma contradição que, do ponto de vista das suas próprias determinações, seja insolúvel. Dado o sentido do "desvirar a dialética", veremos agora como se dá o processo desse desvirar, a fim de perceber a profundidade da implicação crítica da categoria de capital em geral na teorização marxiana. Para isso, seguiremos a leitura de Jorge Grespan (2002), a qual 148NI: Nesse mesmo sentido Arthur (2000: 107) questiona: "[...] e se o significado secreto da dialética de Hegel derivar de um 'mundo invertido' feito pelo próprio capital? [...] Quando Marx caracterizou a ideia hegeliana como o demiurgo da realidade, ele quis dizer aquilo como uma objeção; mas e se isso prover a diretriz para uma leitura do capital que revela a 'metafísica' da forma-valor?". Acrescentamos ainda a seguinte colocação de Reichelt ([1970] 2013: 86): "É preciso assumir [...] que também em O capital, Marx tem de recorrer a essas estruturas [hegelianas] por ser forçado a fazê-lo em função do tema, e não só por isso, mas também porque existe uma identidade estrutural entre o conceito marxiano de capital e o conceito hegeliano de espírito". Ambos os autores pensam aqui como Schmied-Kowarzik, isto é, que tanto Hegel quanto Marx teorizam sobre um objeto total, específico da modernidade e cujo funcionamento se apresenta como um autômato. Mas enquanto o primeiro entende esse autômato (o espírito) como o racional e o real, o segundo o entende (o capital) como um autômato aparente, que falha em estabelecer a sua autonomia, sendo portanto dependente do seu outro (o trabalho). A citação de Arthur foi traduzido por nós de: "[...] what if the secret meaning of Hegel's dialectic derives from an 'inverted world' of capital's own making? [...] When Marx characterised Hegel's Idea as the demiurge of reality he meant that as an objection; but what if it provides the guideline to a reading of capital that uncovers the 'metaphysics' of the value-form?". 149NT: Tradução nossa de: "Aufgabe der Kritik ist es also, die Wahrheit der Gegenwart, die Hegel als vernünftige affirmiert, in ihrer Entfremdung und ihrer wirklichen Genesis als entfremdete aufzudecken [...]".

153 buscou, por meio de um estudo minucioso dos Grundrisse e da Lógica de Hegel, expor esse processo. Faremos, portanto, a seguir, um aprofundamento da questão tratada neste tópico. 3.2- O procedimento marxiano de desvirar a dialética hegeliana segundo a leitura de Jorge Grespan. Elegemos o artigo de Grespan (2002) para nos guiar no difícil problema do desvirar marxiano da dialética de Hegel, pois se trata de um trabalho relativamente recente que parte de uma reflexão significativa sobre teses muito interessantes a esse respeito e que, infelizmente, não tiveram ampla circulação ou influência entre os textos marxistas do grande campo das ciências sociais. As teses a que nos referimos dizem respeito aos textos de Fulda (1975) e de Theunissen (1975) publicados no Hegel-Jahrbuch 1974, os quais não foram publicados no Brasil e que impactam sensivelmente os textos filosóficos de Flickinger (1986) e Müller (1982)150, que por sua vez inspiraram nossa dissertação. 3.2.1- Identidade hegeliana versus diferença marxiana. Segundo Grespan (2002: 31), o procedimento marxiano de desvirar a dialética hegeliana deve ser concebido "dialeticamente", "[...] de modo que também a forma lógica se altere com seu conteúdo real" (grifos nossos). O ponto de partida é, portanto, a forma e o conteúdo da dialética hegeliana a serem alteradas, ou seja, a forma como Hegel concebe e expõe o conteúdo real. Para ele, como já foi posto anteriormente, "[...] a realidade teria uma figura 'múltipla e conflitante' de coisas diversas e só a dialética seria capaz de descobrir, por baixo desse caos aparente, a 'unidade perfeita e harmônica' da essência interior" (GRESPAN, 2002: 32). Em Marx percebemos o oposto: a realidade, tal qual ela se apresenta, é constituída de contradições superficiais que podem até encontrar uma resolução idealista - uma unidade conciliadora que internalize e solucione os conflitos, como o faz o Estado na perspectiva hegeliana. Mas essa superfície caótica que se harmoniza tem por essência não a unidade que expressa, mas uma contradição interna da qual essa expressão unitária se desdobra 151. O modo 150NR: Segundo indicações de Flickinger (1986: 17, nota 18), ele e Müller comungam de perspectivas próximas uma da outra em função de um tempo que passaram juntos na Universidade de Heidelberg, onde lecionavam Fulda e Theunissen, que influenciaram as suas tentativas de compreensão da teoria marxiana. 151NI: Grespan (2002: 32) evoca uma citação de Marx que alude essa perspectiva na medida em que distingue as contradições superficiais daquela essencial: "Na mesma medida em que [John S.] Mill é alheio à 'contradição' hegeliana, fonte de toda a dialética, tanto mais [é familiar às] (so heimisch ist er in) contradições

154 como Marx desvira152 a dialética hegeliana, constituindo assim a sua própria, segundo a leitura de Grespan, é o objeto deste tópico. A perspectiva dialética marxiana, enquanto não "apenas diferente (verschieden)" mas o "[direto] oposto (direktes Gegenteil)" da de Hegel (MARX, 2013a: 90), deverá se tornar mais clara com a exposição dessa leitura. O desvirar se constitui basicamente, aqui, em um procedimento no qual as figuras lógicas "diferença" e "identidade" das chamadas "determinações da reflexão" de Hegel são deslocadas para posições contrárias com relação às que ocupam no pensamento idealista. Isso significa que se hegelianamente a "diferença" é aparente e a "identidade" - que é determinante e oculta e, por isso, é o que deve ser descoberto - é a essência, em Marx a "diferença" aparece como "contraditória e fundante de identidades superficiais" (GRESPAN, 2002: 32-33). A partir dessa formulação o conteúdo é invertido - isto é, de um lado a identidade determina a diferença, enquanto de outro a diferença determina a identidade - mas a forma da relação entre essas figuras permanece. De fato, em ambas as perspectivas essas figuras se determinam reciprocamente, dado que ambas se relacionam dialeticamente. A distinção apresentada entre elas nessa leitura, entretanto, é a seguinte: "[...] o idealismo afirma que é a identidade que constitui o todo maior, englobando a diferença e a resolvendo; enquanto o materialismo pensa, senão a preponderância da diferença, pelo menos que [ela] é irredutível a qualquer unidade identitária e conciliadora153" (GRESPAN, 2002: 33) (grifos nossos). Compreender a identidade como esse "todo maior" constituiria, então, a partir do ponto de vista marxiano ou materialista, a chamada "mistificação" idealista. Se o processo de "desmistificação" levado a termo por Marx ocorre no contexto da triviais." (MARX, 2013b: 672, nota 41). 152NE: Grespan (2002) utiliza o termo "inverter" para "umstülpen" e parte, como nós, da interpretação de Fulda (1975; 1978) desse verbo. Para manter a coerência e inteligibilidade de nosso texto, substituiremos as "inversões" por "desvirar" ou "virar do avesso", tal como viemos escrevendo. 153NR: Temos um exemplo de irredutibilidade da diferença com relação à identidade em uma reflexão de Adorno ([1968] 2008: 173) sobre a teoria do conflito fundamentada na sociologia do conflito de Simmel, na qual afirma: "O decisivo, porém, é que numa tal teoria uma categoria como a do conflito social é hipostasiada. Isto é, ela é retirada de seu nexo, da sua conexão com contraposições e conflitos bem determinados, explicáveis e tendencialmente superáveis, para ser tratada como se fosse uma propriedade da sociedade como tal. Uma característica dessa teoria [...] está na ausência de qualquer referência ao sofrimento, ao indescritível sofrimento presente no conflito social de grandes dimensões" (grifos nossos). Ou seja, no exercício formal de constituição de uma categoria, ou no processo de abstração que ele implica, a ideia é isolada de suas relações concretas e materiais, ganhando assim unidade não contraditória, idêntica consigo mesma. A título de esclarecimento, o conflito para Simmel ([1908] 2009: 227) é definido, antes de tudo, como uma forma de associação, um padrão de interação existente entre as pessoas considerado por ele como um dos mais vitais. Não nos estenderemos nesse tema, mas é possível perceber como a categoria simmeliana de conflito social é despida de seus nexos materiais, tal como o sofrimento, em favor de uma formulação teórica ancorada em uma identidade resolutiva não dialética - uma forma de associação. Se essa identidade fosse dialética, tal como a hegeliana, ela seria, como veremos adiante, potencialmente concreta, o que invalidaria, em algum sentido, a crítica de Adorno.

155 crítica interna à economia política154, isto é, da crítica das categorias econômicas a partir das suas próprias contradições, seu substrato remonta à sua recusa juvenil da solução hegeliana do Estado como instituição capaz de conciliar as assimetrias geradas na sociedade civil e unificar politicamente o múltiplo próprio daquela esfera. Nessa recusa, Marx entende que a diferença social predomina sobre a igualdade jurídica oferecida pelo Estado burguês, de modo que aquela diferença seja irredutível a essa identidade (GRESPAN, 2002: 33-34). Além disso, não só o Estado é incapaz de lidar com a diferença social, como seu próprio aparato é condição de existência dessa diferença. Citamos: [...] a desigualdade social determina o próprio ordenamento jurídico civilburguês, na medida em que ele se baseia na propriedade privada. E, uma vez que essa instituição define as regras do intercâmbio comercial e dos contratos a partir do direito de que os indivíduos se revestem enquanto proprietários privados de mercadorias, é ela que estabelece as condições em que estes aparecem reciprocamente como iguais. Por seu turno, tal igualdade permite a livre movimentação dos recursos materiais e humanos, condição sine qua non da acumulação de capital. (GRESPAN, 2002: 34) (Grifos nossos)

Por fim, a acumulação de capital condicionada pela identidade - igualdade jurídica entre os indivíduos compradores e vendedores - e pela diferença - desigualdade social resultante da expropriação universal dos meios de produção - reproduz uma sociabilidade dupla, segundo a qual, de um lado (o aparente), os trabalhadores assalariados são juridicamente iguais aos seus empregadores, e de outro (o essencial), eles são socialmente diferentes, visto que os empregadores detém exclusivamente os meios de produção e, por isso, se colocam em posição de mando com relação aos trabalhadores. Daí conclui Grespan (2002: 34): "Fecha-se um círculo de mútua determinação entre a identidade externa e a diferença profunda, mas é esse último 'momento' que compõe o todo" (grifo nosso). Conceber, contudo, a identidade hegeliana como "simples identidade" é simplificar o 154NR: Na nota 8 de seu artigo, Grespan (2002: 28) expressa a compreensão de que essa crítica interna de maturidade se oporia "[...] à crítica de juventude da economia política, que a rejeitava praticamente em bloco, em nome da alienação e da desumanização que ele pressupunha" (grifo nosso). Essa leitura é interessante e pode ser relacionada com a de Martin Nicolaus ([1968] 2009), por ser afirmado ali que Marx teria, nos seus escritos econômicos entre 1844 e 1849, rechaçado o "moralismo unilateral" da crítica de Engels apresentado em Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie, de 1844. Tal "moralismo" teria sido substituído por uma base dialética, entendendo a partir dela que o mercado era, além de uma afronta à moral, uma fragmentação e renúncia à capacidade de desenvolvimento inerente à espécie humana. Apesar de interessante, desconfiamos dessa rejeição "praticamente em bloco" da economia política na juventude de Marx, por conta da sua análise das categorias econômicas presente nos Manuscritos de 1844, bem como do "moralismo unilateral" de Engels. Essa desconfiança não será desenvolvida aqui em função dos limites desta dissertação, mas o faremos em outra oportunidade.

156 pensamento do filósofo idealista. Vejamos o que aponta Hegel no §115 da sua Enciclopédia: "O absoluto é o idêntico consigo mesmo". Por verdadeira que seja essa proposição, ainda assim é duvidoso se ela é "visada" em sua verdade; por isso, é incompleta, pelo menos em sua expressão, já que está por decidir [1] se é identidade abstrata do entendimento, isto é, em oposição às outras determinações da essência; ou [2] se é a identidade enquanto concreta em si, que é "visada". Assim essa identidade, tal como vai mostrar-se, é primeiro o fundamento, e depois, em mais alta verdade, o conceito. (HEGEL, 1995a: 228)

Vemos, portanto, que não há uma concepção monolítica e unilateral de identidade em Hegel, de modo que ela mesma, em si e para si, ou seja, no ápice do seu desenvolvimento interno, contenha a contradição do concreto. Assim, é válida a advertência que lemos no adendo a esse mesmo parágrafo: "[...] não confundir a identidade verdadeira - que contém em si o ser e suas determinações como suprassumidas - com a identidade abstrata, meramente formal [,] [...] isto é, como identidade com exclusão da diferença" (HEGEL, 1995a: 229). Vale esclarecer, ainda, que Hegel (1995a: 227) entende por abstração o pôr dessa identidade formal, a transformação de algo que é em si concreto, nessa forma da simplicidade - ou porque se põe de lado uma parte do multiforme que está presente no concreto (mediante o que se chama "analisar") e se destaca somente um desses multiformes, ou porque, com a exclusão de sua diversidade, as determinidades multiformes se concentram em uma só.

Lemos aqui um sentido de abstração que vale também para Marx, tal qual pudemos acompanhar nos outros dois capítulos desta dissertação. Mesmo se nos determos no ponto a- As puras determinações-da-reflexão do capítulo A essência como fundamento da existência, sem avançarmos para a Doutrina do conceito, já podemos perceber como a identidade, no seu caminho à figura do fundamento da existência e em função da lógica reflexionante desse caminhar, se aprofunda em si de tal forma que não seja possível aceitar uma concepção hegeliana de identidade "com exclusão da diferença". Citamos Grespan (2002: 34-35): "O conceito inicial de identidade - a coincidência de algo consigo mesmo - também se altera, passando a ser coincidência consigo através do outro, o retorno a si que tem na oposição com este outro um momento que não pode ser eliminado. A identidade é, ela mesma, contraditória". Isso significa que o outro de si, o diferente de si, por meio do qual a coincidência consigo mesmo pode se estabelecer, torna-se momento

157 ineliminável e determinante da identidade, de modo que a diferença apareça logica e geneticamente na sua própria estrutura, fazendo da identidade uma figura contraditória. Assim, Grespan (2002: 35) aponta a partir do texto de Fulda (1975) um aspecto que acaba por questionar a contraposição entre Marx e Hegel, qual seja: "[...] a 'unidade mais profunda' hegeliana é contraditória da mesma forma que a 'contradição mais essencial' de Marx, justamente porque 'presidem um campo mais amplo de fenômenos' enquanto forças sintetizadoras, unificadoras". Se assim é, não seriam ambas perspectivas tão próximas a ponto de não fazer sentido contrapô-las? E, se isso é verdade, como ficaria a crítica de Marx ao modo como Hegel concebe a relação entre Estado e sociedade civil? A solução proposta por Grespan (2002: 35) é manter essa aproximação interna dos autores e questionar como eles definem contradição, já que ela constitui o momento fundamental para ambos. Desse modo, a questão da "mistificação" se desloca da redutibilidade da diferença à simples identidade posto que, como vimos, tal não se sustenta no pensamento de Hegel - para o como a dialética idealista "resolve o jogo da negação", isto é, como ela soluciona a contradição. Isso não significa, entretanto, que as teorias que reduzem a diferença à mera identidade deixem, a partir desse momento, de serem criticadas nessa chave. Esse deslocamento diz respeito tão somente à investigação da "mistificação" por meio da dialética hegeliana. 3.2.2- Contradição hegeliana versus contradição marxiana. Para tornar mais claras as aproximações e diferenças dessas duas concepções de contradição, vejamos, primeiro, como se dá o percurso dialético das puras determinações-dareflexão em Hegel, a fim de apreender a resolução idealista da contradição. Mas, antes, um rápido esclarecimento. O primeiro dos três tomos da Enciclopédia das ciências filosóficas diz respeito à Ciência da lógica e, tal como a sua obra homônima publicada em dois tomos em 1812 e 1816 (Wissenschaft der Logik), é dividida em três momentos: doutrina do ser, da essência e do conceito. Essas doutrinas se relacionam entre si de tal forma que constituem um percurso no qual a ideia parte de suas determinações mais abstratas para as mais concretas. Nesse processo de se tornar concreta, a ideia passa, após a doutrina do conceito, da sua forma lógica (tomo I) para sua forma presente na natureza (tomo II) e, posteriormente, para sua forma espiritual (tomo III). Neste momento de nossa exposição, atemo-nos à doutrina da essência, a qual se relaciona com a doutrina do ser do seguinte modo:

158

No desenvolvimento da essência [...] apresentam-se as mesmas determinações que [encontramos] no desenvolvimento do ser [...]; porém em uma forma refletida (in reflektierter Form). Assim, em vez do ser e do nada, aparecem agora as formas do positivo e do negativo; o primeiro, correspondendo antes de tudo ao ser carente-de-oposição, enquanto identidade; e o segundo, desenvolvido (aparecendo dentro de si) como a diferença. Além disso, aparece o vir-a-ser enquanto ele mesmo é fundamento do ser-aí, o qual, enquanto refletido sobre o fundamento, é existência etc. (HEGEL, 1995a: 226)

É como se víssemos os desdobramentos do ser em um nível mais profundo, um nível no qual o ser e suas determinações foram negados e, ao mesmo tempo, conservados, ou seja, suprassumidos. É o que sugere a interpretação da expressão "forma refletida", presente no adendo ao §112: O termo "reflexão" é empregado inicialmente a propósito da luz, quando em sua propagação em linha reta encontra uma superfície espelhante e é por ela relançada para trás. Temos pois aqui um duplo elemento: primeiro, um imediato, um essente; e, segundo, o mesmo enquanto mediatizado ou posto. Ora, é exatamente esse o caso quando refletimos (reflektieren) ou (como também se costuma dizer) repensamos (nachdenken) sobre um objeto, enquanto aqui não é mesmo o objeto que conta em sua imediatez, mas queremos conhecê-lo enquanto mediatizado. (HEGEL, 1995a: 223)

A esfera da essência seria, portanto, aquela em que as determinações do ser, aquelas que "já passaram"155, são reexaminadas, não mais como imediatas, mas como mediadas. Nas palavras de Hegel (1995a: 222): O ser não desvaneceu [na essência]; mas em primeiro lugar a essência, como [conexão] (Beziehung) simples a si mesma, é ser; porém, em segundo lugar, o ser, conforme sua determinação unilateral - de que seja [imediato] (unmittelbares) -, é rebaixado a algo [apenas] (nur) negativo, a uma aparência. A essência, portanto, é o ser enquanto aparecer em si mesmo.

Isto é, nessa doutrina se trata do ser tal como ele aparece, a qual se desenvolve em três capítulos: A essência como fundamento da existência, A aparição [O fenômeno] e A 155NI: É interessante o comentário sobre o significado de essência presente no adendo ao §112 (HEGEL, 1995b: 223). A palavra alemã para essência (Wesen) constitui uma forma pretérita - o particípio perfeito (Perfekt) - do verbo ser (sein), qual seja gewesen (que pode ser traduzido como sido). A partir disso se afirma: "Essa irregularidade do uso linguístico funda-se em uma intuição correta da relação do ser para com a essência, enquanto decerto podemos considerar a essência como o ser que-passou. Ainda a esse propósito, só resta a notar que aquilo que passou nem por isso é negado abstratamente, mas apenas suprassumido; e por isso, ao mesmo tempo, conservado" (grifos nossos).

159 efetividade. As chamadas "puras determinações-da-reflexão" são apresentadas no primeiro ponto do primeiro capítulo da doutrina da essência e os seus três momentos são identidade, diferença e fundamento. O percurso dialético que tentaremos apresentar a seguir de maneira superficial diz respeito à passagem por esses três momentos e podem ser conferidos em Hegel (1995a: 227-242). Se "a essência é o ser enquanto aparecer em si mesmo", podemos dizer que ela é, em um primeiro momento, pura aparência. Mas ela, enquanto aparência, reflete o ser suprassumido, imediato, de modo que ela não seja mera aparência em si, mas sim uma reflexão pura. Portanto, se há reflexão, há também aquilo que é refletido, ou seja, uma mediação através da qual a essência - que "aparece nela mesma" - estabelece uma identidade consigo, ou uma coincidência entre aquilo que é e aquilo que aparece. Contudo, essa identidade se dá na medida em que ela seja "a negatividade que se refere a si mesma" e, assim, "o repelir-se de si mesma". Em outras palavras: se dá na medida em que ela contenha em si o seu ser-outro, o qual, na esfera da essência ou enquanto autorreferente, é "a negação como relação, diferença, ser-posto, ser-mediatizado". A identidade guarda em si, portanto, a diferença156. A diferença é 1- imediata - ou diversidade - e 2- essencial. Enquanto 1- diversidade, a diferença é exterior, visto que aqui os diferentes o são para si e indiferentes para com o outro, tal como unidades indivisíveis isoladas do seu meio e de outras unidades, o que só existe abstratamente157. A relação externa que lhes cabe é, mediante um terceiro termo comum, a comparação. A diferença externa, ou a comparação, pode ser assim uma igualdade - quando há identidade entre os termos relacionados - e desigualdade - quando, ao contrário, se estabelece uma relação de não-identidade entre eles. A igualdade e desigualdade, enquanto relações que conectam "termos tais que não são os mesmos" e que, a partir de um terceiro termo externo, estabelece comparativamente uma identidade ou não-identidade entre eles 158, 156NI: O adendo ao §116 pode auxiliar na compreensão da proposição: "[...] a identidade é certamente algo negativo; contudo, não é o nada vazio e abstrato em geral, mas é a negação do ser e de suas determinações. Porém, como tal, a identidade é ao mesmo tempo relação (Beziehung); e na verdade relação negativa para consigo mesma, ou diferença dela consigo mesma." (HEGEL, 1995b: 230) 157NR: Por meio desse exemplo estamos pensando, principalmente, na ideia de indivíduo no contexto do individualismo metodológico. 158NI: Há um exemplo belíssimo desse terceiro termo comparativo - pelo qual se estabelece a identidade entre termos diversos, ou seja, a igualdade - na canção "Em nome de Deus" do álbum "Missa dos Quilombos" de Milton Nascimento, lançado em 1982 pela gravadora Decca Records. Lá ouvimos: "Em nome do Deus de todos os nomes. Javé, Obatalá, Olorum, Oió. / Em nome do Deus que a todos os homens nos fez da ternura e do pó. / Em nome do Pai que fez toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue.". Temos, portanto, no primeiro verso, a igualdade entre a diversidade das entidades divinas sob o termo "Deus"; no segundo verso, a igualdade entre os diversos homens através da origem comum (feitos por Deus por meio "da ternura e do

160 aparecem uma na outra: a igualdade é uma não-desigualdade, enquanto que a desigualdade, uma não-igualdade. A diversidade é, assim "diferença da reflexão ou diferença em si mesma, diferença determinada". Essa diferença em si, determinada é a 2- essencial, segundo a qual o que é para si (positivo), o é enquanto "não é o outro" (negativo), de tal forma que se a determinação do que é para si está na negação do outro, o outro é condição daquilo que é para si. Portanto, aquilo que é para si só o pode ser mediante o ser do outro. Mas, por ser determinada, a "diferença da essência" exige a particularidade do outro, o que significa que "o diferente não tem frente a si [um] outro em geral (ein Anderes überhaupt), mas o seu outro, isto é, cada um tem sua própria determinação só na sua relação ao outro; [...] cada um é assim seu outro do outro" (HEGEL, 1995a: 233). A diferença da essência é, desse modo, oposição. Nessa determinação de que um outro é oposto ao seu outro está implicado que o negativo seja, nele mesmo, positivo. Isso nos leva ao §120, onde Hegel (1995a: 237) afirma: O positivo é esse diverso, que deve ser para si e, ao mesmo tempo, nãoindiferente à sua relação para com seu outro. O negativo deve ser também autônomo - a relação negativa para consigo, ser para si - mas ao mesmo tempo, enquanto pura e simplesmente negativo, deve ter essa sua relação para consigo - o seu positivo - somente no outro.

Positivo e negativo são, em si, o mesmo na medida em que ambos são contraditórios: tanto o positivo é positivo (na sua diversidade e autonomia, no seu ser positivo para si) e negativo (na necessidade da sua relação para com seu outro), como o negativo é negativo (no seu ser negativo para si, autônomo em relação ao outro) e positivo (na sua relação para consigo, a qual, enquanto negativo, deve ser mediada pelo outro). Ou seja, "eles incluem o outro como 'momento' e simultaneamente o excluem, como totalidade. São, cada qual, totalidades mutuamente excludentes" (GRESPAN, 2002: 37) (grifos nossos). Se esse par é o mesmo em si (partes contraditórias e mutuamente excludentes enquanto totalidades em si), eles são também para si, uma vez que "cada um é o suprassumir do outro e de si mesmo" (HEGEL, 1995a: 237), isto é, "[...] tudo, e não só parte, do que cada [totalidade] é se define pela outra [...]", de tal modo que "[...] negar a outra é negar-se inteiramente, e não só parcialmente" (GRESPAN, 2002: 37). A negação, que se mostrava em si como o repelir do outro, constitui-se então em pó"); e no terceiro verso, a igualdade entre as carnes preta e branca, diversas nas cores externas, mas igualmente "vermelhas no sangue".

161 negação de si mesmo, em autonegação, visto que o outro repelido é momento constituinte da totalidade de si. Assim a contradição é plena, é para si ou posta. Nessa contradição em si e para si, "os dois vão ao fundo (zu Grunde)". Aqui já começamos a perceber a resolução idealista da contradição que se desenvolve a partir da identidade simples e abstrata. Mas tentemos tornar isso mais claro. A chamada "diferença da essência", na qual há um outro determinado, se mostra como "diferença de si consigo mesma", pois o outro com o qual se estabelece a diferença necessária e determinada é parte daquilo que é: trata-se, então, de uma diferença constituinte de uma unidade relacional que aparece enquanto aquela diferença mesma. No que conclui Hegel (1995a: 237): [...] à totalidade da diferença essente em si e para si (zum ganzen an und für sich seienden Unterschied), pertence, pois, tanto a própria diferença quanto a identidade. Enquanto diferença que se refere (beziehend) a si mesma, já foi expressa igualmente como aquilo que é idêntico a si mesmo; e o oposto é, em geral (überhaupt), o que dentro de si contém o uno e o seu outro, a si mesmo e o seu oposto. O ser-dentro-de-si da essência, assim determinado, é o fundamento (Grund).

Assim chegamos à resolução da contradição hegeliana, o fundamento, o fundo ao qual chegam o positivo e o negativo na sua contradição em si e para si. Ele é definido como "a unidade da identidade e da diferença" e, por fim, "a essência posta como totalidade (Totalität)" (HEGEL, 1995a: 237). A contradição se põe e se resolve, por fim, em uma unidade, mas unidade contraditória a partir da qual "algo é vivo e 'funda' a partir de si outras coisas" (GRESPAN, 2002: 37)159. Já a contradição materialista, ou marxiana, se dá de maneira distinta. O movimento que faz Hegel de separar o uno em duas totalidades contraditórias, a fim de perceber o seu fundamento, não seria possível para Marx. Na contradição mais elementar do modo capitalista de produção por ele percebida - trabalho e capital - só se põe como totalidade - ou, pelo menos, tem a pretensão de como tal se pôr - o polo do capital. Tentaremos expor a razão dessa 159NR: Dentro dos limites de nossa dissertação que, nesse momento, segue a argumentação de Grespan (2002), cessamos aqui a discussão sobre a contradição hegeliana. Mas gostaríamos de esclarecer que esse tema está bem longe de ser esgotado. Veja-se, por exemplo, no adendo ao §121 o que se afirma sobre suficiência do fundamento: "[...] o fundamento não tem ainda um conteúdo determinado em si e para si, e por isso não é auto-ativo e produtivo. Dentro em pouco se produzirá diante de nós o conceito - como um tal conteúdo determinado em si e para si e por isso auto-ativo - [...]" (HEGEL, 1995a: 240). Isso significa que a fundação de outras coisas a partir de si se dá no momento do conceito, do fundamento com um "conteúdo determinado em si e para si". Não avançaremos em Hegel o tanto exigido para expormos esse conteúdo. Mas já podemos suspeitar que, em Marx, esse conteúdo determinado seja constituído a partir da contradição entre trabalho assalariado e capital em geral.

162 impossibilidade a partir da consideração que faz Grespan (2002) sobre a relação entre capital e trabalho desenvolvida, principalmente, nos Grundrisse. Aqui serão retomados, em favor do argumento, alguns elementos já trabalhados. Na esfera da circulação de mercadorias, a relação entre o trabalhador assalariado e o capitalista se dá, primeiro, na dimensão da identidade na diversidade - isto é, igualdade jurídica entre proprietários de mercadorias - e, depois, como oposição, em função da mercadoria ou do valor que cada um possui: o trabalhador assalariado possui o valor de uso da sua atividade subjetiva a ser vendida, enquanto o capitalista possui o valor de troca (dinheiro) que será trocado por ela sob a forma de salário. Essa oposição está ancorada no fato de que ambos são portadores de formas opostas do valor (valor de uso e valor de troca, mercadoria e dinheiro). Do ponto de vista da troca econômica, essa oposição se resolverá ao serem saciadas as necessidades dos atores através dos valores de uso que serão trocados pelos valores de troca. Mas de um ponto de vista mais profundo e mais geral, a imagem se altera, pois mercadoria em geral e dinheiro em geral se identificam sob a determinação do conceito de capital. Escreve Marx (2011: 211) nos seus Grundrisse: "Em conformidade com seu conceito (Begriff), o capital é dinheiro, mas dinheiro que não existe mais na forma simples de ouro e prata, nem tampouco como dinheiro em oposição à circulação, mas dinheiro na forma de todas as substâncias - mercadorias" (grifos nossos). Ou seja, capital é dinheiro, mas "dinheiro na forma de todas as substâncias" e, portanto, mercadoria em geral. Por ser mercadoria em geral nessa determinação, o capital tem por substância o valor de uso, de modo que não se opõe a quaisquer mercadorias que possam aparecer. Entretanto, toda mercadoria é, ainda, trabalho objetivado e, enquanto tal, encontra sua oposição no trabalho não-objetivado, que está em processo de objetivação, "o trabalho como subjetividade". Conclui então Marx (2011: 212): "Como deve existir como trabalho no tempo, vivo, só pode existir como sujeito vivo, no qual existe como capacidade, como possibilidade; logo, como trabalhador. Por isso, o único valor de uso que pode constituir uma antítese ao capital é o trabalho [...]". A explicação dessa antítese que 1- opõe, na esfera da circulação, trabalhador assalariado e capitalista como vendedor e comprador, e que também 2- os põe como dois iguais perante a lei, está na materialidade das "condições de produção, caracterizadas pelo divórcio entre trabalho e propriedade privada" (GRESPAN, 2002: 38). As condições de produção são percebidas já a partir da esfera da circulação, ou seja, o capital enquanto

163 dinheiro compra o trabalho enquanto força de trabalho mediante uma estrutura jurídica que legitima a transação através da celebração de contratos entre iguais-jurídicos. Então, o valor de uso da força de trabalho é consumido legitimamente pelo capital, o que significa que o trabalhador produz para o capitalista segundo as condições impostas por ele "justamente". O trabalho é, desse modo, incluído no capital com um momento seu, aparecendo aí como capital variável. Assim, o capital se apresenta como totalidade formal em função da sua posse legal e temporária desse valor de uso não objetivo, posse essa que é mediada pela compra e pelo contrato (GRESPAN, 2002: 39). A totalidade do capital é, portanto, formal e não de fato. Explicamos. Lembrando da contradição hegeliana posta, o capital é para si, total, no momento da imposição das condições legais de produção ao trabalho. Ou seja, esse ser-para-si do capital se processa efetivamente quando mediado pelo seu outro. Portanto, para que a totalidade seja composta, o capital deve se "rebaixar" a momento da sua própria totalidade, a fim de que, mediante a sua relação para com seu outro, o trabalho, ela se realize. Assim, enquanto capital constante, enquanto momento da totalidade, o capital interage com o trabalho vivo sob a forma de meios de produção, de tal modo que, nessa interação, "[...] ele exclui de si o outro momento, o trabalho vivo; [e] por outro lado, enquanto totalidade, ele inclui em si 'seu outro' como capital variável. É a mesma 'estrutura' lógica da oposição contraditória de Hegel, vista pelo ângulo de um dos termos, o capital" (GRESPAN, 2002: 39) (grifos nossos). Do ponto de vista do trabalho, entretanto, essa totalização não ocorre sequer formalmente. Segundo Marx (2011: 229-230), o trabalho enquanto "não capital" apresenta um duplo aspecto: 1- "trabalho não objetivado, concebido negativamente", ou seja, "separado de todos os meios de produção e objetos de trabalho, separado de toda sua objetividade", abstraído dos "momentos de sua real efetividade", puramente subjetivo em função da "completa exclusão da riqueza objetiva", objetivo tão somente no corpo que trabalha; 2"trabalho não objetivado [...] concebido positivamente", isto é, trabalho como atividade, "não como valor ele mesmo, mas como fonte viva do valor". Assim, o trabalho é, ao mesmo tempo, "pobreza absoluta como objeto" e "possibilidade universal da riqueza como sujeito e como atividade". Essa proposições "inteiramente contraditórias" e mutuamente condicionadas são resultantes da "essência do trabalho", o qual é "pressuposto pelo capital como antítese" e, ao mesmo tempo, pressupõe o capital. Assim o trabalho, que aparece ao mesmo tempo como "pobreza absoluta" e como "fonte viva de valor", despojado da "riqueza objetiva" ou dos

164 meios objetivos de sua realização, seria incapaz de "incluir e rebaixar o capital a seu momento, compondo por seu lado uma totalidade" (GRESPAN, 2002: 40) (grifo nosso). Essa incapacidade se dá porque, mesmo em sua concepção positiva, potencialmente totalizante, o trabalho precisa interagir com meios de produção para produzir, dos quais ele é privado. O trabalho é, desse modo, dependente do capital possuidor desses meios, sendo assim nãoautônomo e impedido de se pôr como totalidade sequer por um momento. A posição de totalidade do capital é questionada a partir do momento em que se percebe também a sua dependência com relação ao trabalho. Ranieri (1997/1998: 166) afirma a esse respeito: Do ponto de vista de Marx, [...] ainda que a pretensão do capital enquanto sujeito seja a plenitude de sua dominação [sobre o trabalho], ela está impossibilitada porque, no limite, sua dependência do trabalho humano não pode ser suprimida, uma vez que somente a relação com o trabalho vivo é geradora da lógica interna de desenvolvimento, acumulação e valorização do capital [...]. (grifos nossos)

Por mais que o capital se imponha como totalidade, como polo dominante, sobre o trabalho, empregando-o, organizando-o e associando-o tecnicamente aos meios de produção (GRESPAN, 2002: 42), e assim determinando-o como "pobreza absoluta", a sua necessidade de se relacionar com ele, uma vez que é ele que o vivifica, impede a plenitude autônoma dessa totalização. É como afirma Marx (2013b: 307): "O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção do trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho suga" (grifo nosso). Essa metáfora aponta para, além da dependência vital do capital com relação ao trabalho, o impacto que essa relação causa do lado do trabalho. Para que tenha vida, o capital necessita "sugar" a vitalidade do trabalhador: a vida do capital é, assim, atiçada pelo sangue do trabalho. Sem a vitalidade do trabalhador, o capital é mero trabalho morto. E tal como constatamos nos contos e filmes sobre vampiros, as pessoas cuja energia vital é "sugada" raramente sobrevivem para contar a história. Isso significa que ao excluir de si o trabalho, o capital exclui de si aquilo que o mantém vivo, funcionando enquanto "valor que se valoriza". Temos, então, que a exclusão total do trabalho significa, ao mesmo tempo, o fim do capital. Tal é seu processo de autonegação que, caso consumado e caso a contradição conseguisse se pôr também do ponto de vista do trabalho, "afundaria" o capital e o trabalho em contradição, estabelecendo um fundamento vivo e criador. Entretanto tal consumação não ocorre, visto que a contradição que

165 se estabelece tão somente do ponto de vista do capital é aquela contradição na qual o uno e o outro subsistem, na qual, simultaneamente, o uno inclui o outro como seu momento e o exclui da sua totalidade, do seu ser para si. Temos, portanto, a "oposição contraditória" ou a "contradição em si" hegeliana. Essa contradição é expressa na não consumação da tendência que apresenta a composição orgânica do capital em aumentar o capital constante em detrimento do capital variável. Por mais que essa tendência se agudize, o trabalho vivo enquanto capital variável jamais é excluído totalmente, uma vez que isso significaria a dissolução de ambos os termos, capital e trabalho. Para Hegel (1995b: 237), que pensa as contradições como postas do ponto de vista de ambos os lados, esse seria o momento em que ambos estariam para si: em reflexão mútua, "[...] cada um [seria] o suprassumir do outro e de si mesmo". Eles se "afundariam em contradição" (GRESPAN, 2002: 41). Mas os fatos materiais e concretos 1- do trabalho vivo não ser eliminado dessa relação contraditória - e junto com ele o próprio capital - e 2- do trabalho ser incapaz de rebaixar o capital a momento de sua totalidade - devido à dominação do primeiro pelo segundo - impede a resolução dessa contradição pela via idealista, de modo que ela se apresente irresoluta, apenas em si, e não para si. Ao recusar essa solução idealista, segundo a qual a contradição se desenvolve, a partir de si mesma, de em si a para si, Marx propõe uma solução materialista, segundo a qual a contradição entre capital e trabalho não se resolve a partir de sua lógica interna, mas de uma ação revolucionária provocada por essa contradição e que leve a termo esse par. Vale esclarecer que o trabalho aqui considerado é o trabalho sob a determinação do capital em geral, isto é, o trabalho assalariado. Portanto, a expressão "levar a termo o trabalho" não significa o fim do trabalho enquanto mediação entre ser humano e natureza, mas sim do trabalho enquanto estranhado, submetido ao capital. Ressaltamos que a impossibilidade de Marx completar a transição dialética da relação entre capital e trabalho é "devido à necessidade determinada por este objeto mesmo" (GRESPAN, 2002: 42-44). O fato da totalidade do capital se constituir apenas formalmente advém do fato de que sua substância não lhe pertence. A substância que compõe essa totalidade, isto é, a relação entre capital e trabalho, é a força de trabalho, trabalho enquanto atividade, "'fonte' efetiva de valor". Como em função do despojamento do trabalho de sua objetividade, ou seja, da sua cisão em pura objetividade (trabalho morto) e pura subjetividade (trabalho vivo), ele é impedido pelo capital de se realizar por si mesmo, de "rebaixar" o capital a momento de sua totalidade, o trabalho fica impedido, enquanto substância, de

166 ascender à condição de sujeito, à condição de autodeterminante de si 160. Ao mesmo tempo que o capital impede essa ascensão, ele mesmo não consegue realizar esse movimento sozinho, uma vez que ele não é a substância, mas é em si a pura objetividade resultante daquela cisão e usurpadora daquela substância. Ou seja, de um lado o capital (trabalho morto) estabelece uma totalidade condicionada à usurpação da substância "trabalho vivo" e, de outro, a força de trabalho (trabalho vivo), por ser despojada de sua objetividade, tem por única opção entregar-se à usurpação, uma vez que só se realiza ao se submeter ao seu usurpador. Disso resulta que nenhum dos dois consegue chegar efetivamente à sua autodeterminação, muito embora o capital apareça como totalidade, como uma objetividade adequada à sua própria subjetividade, tal qual uma substância que ascendeu à condição de sujeito. Mas nós sabemos que essa subjetividade é alheia àquela objetividade, e não própria dela, é roubada do seu outro, e não intrínseca a si. Nisso conclui Grespan (2002: 44): Permanece, pois, uma diferença irredutível entre as duas [totalidades - a formal e a substancial, a submissão da atividade laboral ao capital e a realização dessa atividade mediante o capital -] e a contradição se constitui só como formalidade e pelo lado do capital, jamais podendo se resolver num fundamento positivo. Há assim uma oposição radical e insolúvel no fundamento da realidade capitalista, que sempre se repõe e apenas se oculta por trás de identidades superficiais. (Grifos nossos)

Portanto, a dialética materialista ou marxiana, diferentemente da hegeliana, concebe uma contradição em si insolúvel na medida em que essa "consiste não numa simples oposição entre substância e sujeito, mas sim numa torção em que a subjetividade é um poder alheio à substância" (GRESPAN, 2002: 44). Nesse sentido, completar a transição dialética seria ignorar de maneira idealista as determinações do objeto de Marx. A necessidade da consideração - na análise marxiana da "anatomia da sociedade burguesa" - do alheamento da subjetividade com relação à substância, expressa historicamente pela expropriação universal dos meios de produção, leva Marx a perceber como racional não o fundamento criador, positivo, resultante da completude da transição dialética, mas a incompletude daquela transição, a não resolução da contradição em si e, portanto, a impossibilidade da contradição 160NI: "'Sujeito' significa aqui", explica Grespan (2002: 42), "o movimento de reflexão em que o real retorna a si a partir do outro em que antes se projetara; movimento pelo qual ele apreende não apenas sua existência substancial, mas também que esta, com suas especificações e particularidades, é fruto dele mesmo em seu processo de autoconstituição."

167 para si. O que em Hegel estava no interior - a unidade contraditória, o fundamento criador veio para fora como aparência; o que nele estava fora - a contradição em si que iria se resolver a partir de si mesma - veio para dentro como contradição em si insolúvel. Essa contradição em si é o "caroço racional" da dialética hegeliana que, através do desvirar marxiano, ocupa centralidade. Fazendo isso, ele percebe a identidade entre sujeito e objeto como falsa e, portanto, a admissão da "autonomia" do capital, objeto cujo sujeito é não-idêntico, como problemática. Em outras palavras, o movimento do capital enquanto totalidade é falsamente autônomo, de modo que haja sempre algo diferente dele por trás do seu funcionamento. 3.3- Considerações parciais. O capital em geral, que apareceu no segundo capítulo como resultado do ascenso do abstrato ao concreto, o qual, por sua vez, resultou de um processo de investigação intenso, crítico e articulador das categorias da economia política, durante o qual o papel da abstração ganhou contornos positivos do ponto de vista do método, aparece aqui como a exigência de um "acerto de contas" de Marx para com a dialética hegeliana. Nesse "acerto de contas" ela se transforma - forma e conteúdo - de tal modo que passa de "mistificação" da realidade à exposição da realidade da "mistificação", ou seja, de meio mistificador do real a meio de denúncia dessa "mistificação". Isso ocorre porque, ao chegar na totalidade abstrata do capital em geral, isto é, na categoria resultante da "síntese de múltiplas determinações" do modo de produção capitalista, mediante sua pesquisa, apresenta-se a Marx uma contradição que, do ponto de vista das suas próprias determinações, não poderiam ser solucionadas: a contradição entre a categoria específica desse modo de produção, o capital em geral, e a sua gênese ontológica, o trabalho em geral161. Essa impossibilidade justaposta ao reconhecimento da dialética enquanto modo 161NI: Duas observações. 1- O trabalho em geral é gênese ontológica do capital em geral na medida em que, na moderna sociedade burguesa, o produto do trabalho é produto em geral, e o capital, enquanto valor de uso particular da produção em geral, é também produto do trabalho. Portanto, o ser do capital contém geneticamente o ser do trabalho em sua forma moderna. O produto do trabalho é, por sua vez, produção em geral, pois existe, nessa sociedade, um sistema monetário que dissolve os valores de uso - resultantes das produções particulares - em valor de troca (dinheiro), integrando esses produtos em um sistema de trocas a partir do qual os valores de uso particulares se tornam valor de troca universal por meio do qual qualquer valor de uso é acessível. A permutabilidade desses produtos se pauta na sua forma unitária de valor de uso e valor de troca, na sua forma-mercadoria, forma segundo a qual o produto do trabalho aparece no capitalismo. 2- Por fim, em razão dessa generalidade específica da produção sob capital, o trabalho em geral é uma especificidade do modo de produção capitalista.

168 crítico de exposição do conceito (MÜLLER, 1982: 19-20), por meio do qual o desenvolvimento do conceito de capital pode ser demonstrado, requiriu de Marx um novo trato com relação à dialética. Segundo esse trato, a dialética deixa de mostrar a unidade como essência das contradições do mundo moderno, para demonstrar essas contradições como sua verdadeira essência, especialmente a contradição entre capital e trabalho, sobre a qual se erigem as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais (no sentido de Bildung) da modernidade. A dialética pode, por fim, assumir a "sua configuração racional", pela qual [...] ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia e seus portavozes doutrinários, uma vez que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária. (MARX, 2013a: 91)

169 4- Antolhos que nos cegam, antolhos que nos guiam: algumas considerações finais. Esse trabalho buscou refletir sobre o papel das abstrações na formação do pensamento crítico de Marx, dando ênfase àqueles aspectos direta ou indiretamente relacionados à crítica da economia política. Percebemos que esse papel apresenta dois sentidos gerais em dois momentos dessa formação: se Marx apresenta, na sua juventude, aquilo que se poderia chamar de crítica do conteúdo das categorias político-econômicas, de modo que a abstração apresente uma conotação negativa, então, na sua maturidade, apresenta uma proposta de método segundo a qual a negatividade da abstração ganha um novo sentido, ao mesmo tempo em que coexiste com um lado positivo. No primeiro sentido geral, a abstração aparece como algo negativo, como objeto de desconstrução porque ela 1- enquanto totalidade abstrata encobre as diferenças constituintes do objeto; 2- permite a separação pura entre a lógica da coisa e a coisa da lógica, de modo que a coisa apareça como resultado da lógica; 3- tem efeito mistificador no processo de reconexão entre sujeito e objeto, separados no mundo moderno; e, 4- enquanto categoria econômica e totalidade abstrata, vela as relações sociais de produção constituintes dessas abstrações, dando a elas um caráter não transitório. Sinteticamente, ela torna superficial e sistemático aquilo que em si se apresenta como profundo e assistemático, ou seja, ela oculta a totalidade do objeto, tornando-o parcial, unilateral, a-histórico etc. No segundo caso, existem dois momentos. Primeiro, a abstração ganha contornos positivos ao aparecerem sob a forma de categorias lógicas hegelianas, as quais articulam categorias portadoras de conteúdos internamente críticos da economia política. Ela é positiva, assim, do ponto de vista da tentativa de construção de uma totalidade - inter-relação geral entre as categorias econômicas criticamente postas - capaz de expressar criticamente o modo de produção capitalista. Em um segundo momento, aquela negatividade do primeiro caso ganha um novo sentido: ela se desloca da categoria abstrata para a abstração não refletida e, portanto, caótica da representação de um concreto dado. Mas a isso já se sobrepõe um sentido positivo da abstração, segundo o qual se busca organizar o caos de determinações que aparece na representação intuída, a qual se mostra, assim, como um todo indeterminado. Tal é o sentido da análise. Por meio dela, decompomos essa representação intuitiva em determinações simples e essenciais e as isolamos desse todo caótico. Essas determinações abstratas, decompostas e isoladas do mesmo todo, serão examinadas, a fim de que se descubra os pontos

170 de conexão entre umas e outras. Tais conexões não são arbitrárias, mas determinadas pela própria internalidade dessas abstrações. A partir da rede categorial que se forma, é possível construir uma nova totalidade sintética daquelas múltiplas determinações, organizada e estruturada de acordo com as conexões estabelecidas entre as categorias abstratas, sendo essa totalidade mesma expressa em uma categoria abstrata. Conforme vimos no capítulo 2, essa totalidade construída é expressa na categoria de capital em geral. Se na juventude de Marx a crítica era desconstrutivista, uma vez que denunciava as construções categóricas a partir do confronto do seu conteúdo abstrato com o conteúdo concreto do real, podemos dizer que, na sua maturidade, a crítica é construtivista, no sentido de que a crítica aparece como a atualização da totalidade das categorias econômicas dialeticamente expostas, de modo a demonstrar o processo lógico e histórico da formação do capital, ou da "potência econômica que a tudo domina". Isso é possível porque aquela totalidade construída, que foi concebida a partir das conexões entre as determinações mais simples que a compõe - conexões essas estabelecidas em função da necessidade interna atual dessas mesmas determinações abstratas - e que, portanto, possui estatura de verdade do ponto de vista dessas determinações atuais, confronta as formas mais antigas daquelas categorias ou determinações abstratas, como trabalho, valor, dinheiro etc. destacando, assim, as especificidades dessas categorias no novo modo de produção, o modo capitalista, determinado pelo capital em geral. Ocorre que nesse processo de "ascenso do abstrato ao concreto", podemos perceber que há, na gênese do capital em geral, uma contradição insolúvel a partir dos seus próprios termos, o que contraria a forma como o idealismo objetivo lida com a contradição, já que, para essa filosofia, toda contradição é auto-solúvel. Essa contradição é a que se dá entre o capital em geral e o trabalho em geral. A consequência dessa insolubilidade é tanto política quanto teórica. Política, pois se a contradição não se resolve por si mesma e ela se manifesta na realidade como miséria para a classe trabalhadora, ela só pode se resolver a partir de fora da esfera relacional do capital e por meio de uma revolução social articulada por essa classe que vive da miséria. Teórica, pois, tendo na dialética o modo de exposição a partir do qual o capital poderá ser revelado, tanto do ponto de vista da sua formação, quanto do ponto de vista das formas nas quais ele se desdobrará a partir do movimento do seu existir, ela terá de ser transformada de acordo com a demanda do seu objeto, o qual exige uma dialética que conceba uma contradição insolúvel. Daí que o desvirar da dialética seja uma expressão significativa do

171 primado do objeto sobre o método em Marx. A partir desse primado do objeto sobre o método, chamamos a atenção sobre dois possíveis sentidos que o capital em geral pode ganhar no esforço intelectual de compreensão do capitalismo contemporâneo. Esses dois sentidos são análogos aos efeitos do uso de antolhos em um cavalo. Em primeiro lugar, podemos tomar o capital em geral de Marx tal como ele o descreveu em seus escritos de maturidade, ignorando o tempo, o espaço e até o meio cultural e político do qual o seu pensamento é produto; ignorando que essa abstração é resultado de um método que exige uma análise - ou decomposição - da representação do concreto, o exame das suas determinações abstratas e essenciais e a reprodução do concreto "no caminho do pensar" em função das conexões internas estabelecidas entre aquelas determinações; e ignorando que o seu ponto de partida concreto era o capitalismo industrial inglês de meados do século XIX em franca expansão colonialista. Desconsiderados esses elementos que localizam a categoria em um "chão" determinado e transposto imediatamente para o século XXI, a abstração capital em geral funcionará como antolhos que cegam, que permitem ver tão somente o que a abstração fixa apresenta, impedindo que o olhar teórico vasculhe a totalidade e investigue suas determinações. Mas se considerarmos aqueles elementos, a descrição do capital em geral é um meio interessante para compreender o modo de ser do capital e as suas consequências políticas, sociais, culturais, etc. em um espaço e tempo crucial para entender o século XX. Nesse sentido, tal descrição é essencial para o estudo da sociedade moderna. Mas, enquanto meio de investigação do capitalismo contemporâneo, é limitado, visto que o seu conteúdo deve ser atualizado, tal como nos mostra a discussão sobre o método no capítulo 2. Em segundo lugar, podemos tomar o capital em geral de Marx tal como ele o concebeu em seus escritos de maturidade, buscando entender o método segundo o qual ele foi construído e nos questionando de que maneira essa categoria pode ser atualizada no século XXI. Vimos que a força crítica da exposição sistemática das categorias econômicas por meio do capital em geral foi, justamente, a atualização daquelas categorias mais simples, como valor e dinheiro. A crítica residia, portanto, no realocar dessas categorias em posições que expressavam suas funções atuais e reais, fazendo, dessa forma, um contraponto que negava a ideologia constitutiva da teoria econômica burguesa. Assim, orientado pelas determinações presentes em sua própria época, Marx questionava a economia política do momento, demonstrando a transitoriedade de suas categorias, as quais, em algum momento, chegariam a

172 um fim - seja esse fim enquanto fim do capitalismo, seja esse fim enquanto a transformação interna dessas categorias impulsionada pelas transformações das relações sociais de produção dentro da ordem capitalista. Tomada a partir dessa perspectiva de transitoriedade das categorias econômicas, a qual coloca a necessidade de analisar o novo, o capital em geral funcionará como antolhos que guiam, que exige de nosso olhar teórico, limitado pela parcialidade momentânea da empiria, rigor e disciplina para, mediante um processo de abstração, reconstruir e expor a nova totalidade que se esconde por trás das representações vigentes. Se é inegável que o mundo mudou desde o fim do século XIX até hoje, e se essa mudança é a forma pela qual se apresentam as transformações que sofreram as relações sociais de produção, então o capital em geral, enquanto abstração concebida segundo um método e enquanto meio pelo qual Marx realizou a crítica da economia política, nos desafia hoje com a possibilidade real de enfrentar o enigma do capital no mundo contemporâneo.

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