Os Artesãos das Amazonas: a diversidade da indústria lítica dos Tapajó e o Muiraquitã

July 13, 2017 | Autor: Márcio Amaral | Categoria: Archaeology, Prehistoric Archaeology, Cadeia-Operatória
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Antes de Orellana Actas del 3er Encuentro Internacional de Arqueología Amazónica

Stéphen Rostain editor

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Simposio “Bajo Amazonas”

Os Artesãos das Amazonas: a diversidade da indústria lítica dos Tapajó e o Muiraquitã Claide de Paula Moraes, Anderson Márcio Amaral Lima & Rogério Andrade dos Santos A arqueologia da região de Santarém, no Pará (Brasil), é conhecida desde o século XIX através dos trabalhos de Barbosa Rodrigues (1875) e Hartt (1885). No início do século XX a sofisticação da cerâmica da região é apresentada aos europeus por Curt Nimuendajú em função de suas pesquisas de campo, coletas, envio de coleções e trocas de correspondências com Carlos Estevão do Museu Goeldi e Erland Nordenskiöld no Museu de Göteborg (Aires da Fonseca 2010). Como apontou Nimuendajú (2004:127) a cerâmica dos Tapajó é “algo sem comparativos nas cerâmicas da América do Sul”. Vários estudos de coleções de cerâmicas Tapajônicas foram realizados desde sua descoberta. Nos anos 30 Helen Palmatary (1939) fez um estudo de coleções de cerâmicas de Santarém. Nos anos 90 Vera Guapindaia (Guapindaia 1993) estuda os materiais da coleção do Museu Goeldi e do Centro Cultural João Fona em Santarém presentando uma proposta de caracterização tipológica e decorativa do conjunto. Mais recentemente Denise Gomes estuda o material Tapajônico adquirido pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (Gomes 2002). Os trabalhos são unanimes em afirmar a sofisticação e elaboração da indústria cerâmica, demonstrando uma especialização tecnológica dos ceramistas deste período. Nos anos 80 Anna Roosevelt e sua equipe (Roosevelt et al. 1991) realizam escavações em Santarém e além da sofisticação da cerâmica retomam uma outra característica dos sítios da região, que desde os anos 20 já havia sido mencionada por Nimuendajú, o tamanho dos assentamentos arqueológicos. Roosevelt então coloca Santarém e a ocupação Tapajônica no debate dos cacicados Amazônicos. O sítio Aldeia na área urbana da cidade seria um dos maiores sítios pré-coloniais da Amazônia. Outro item da cultura material da região que sempre mereceu destaque foi o muiraquitã. Apesar de existirem representações variadas de animais os artefatos mais mencionados são os em forma de rã ou sapo, objetos carregados

de valor simbólico, muito cobiçados pelo primeiros comerciantes europeus que passaram pela Amazônia. Os muiraquitãs tem uma ampla distribuição, sendo registrados no baixo curso do rio Amazonas, no estado do Maranhão, nas Guianas, Venezuela, pequenas e grandes Antilhas. Associado ao muiraquitã está o mito das Amazonas Americanas sendo o relato acerca das lendárias guerreiras popularizado pelas narrativas de Frei Gaspar de Carvajal, que, através do relato de um índio capturado pela comitiva de Orellana, supostamente teria tido uma descrição detalhada das povoações, dos bens e costumes das bravas guerreiras (Medina 1942: 53 a 56). Várias foram as hipóteses para interpretar o significado simbólico e as maneiras de aquisição dos muiraquitãs: Os cronistas descreveram de forma lendária que os muiraquitãs provinham da lama de um lago na região do rio Nhamundá, eles seriam magicamente adquiridos ou confeccionados pelas Amazonas. Barbosa Rodrigues (1899) propôs que os muiraquitãs viriam da Ásia. Arie Boomert (1987) publica um artigo que trata, dentre outras coisas, da importância dada aos muiraquitãs pelas populações précoloniais, além de sugerir três áreas prováveis de manufatura, sendo uma delas o baixo. Marcondes Costa e associados (2002), apresentam um panorama acerca da produção de muiraquitãs, na Amazônia, analisam detalhadamente a composição das matérias primas e afirmam ser difícil apontar uma área especifica de produção, dada a ampla rede de distribuição dos artefatos pelas Américas. Uma característica comum dos estudos dos artefatos líticos mencionados anteriormente está relacionada à natureza dos achados. Os muiraquitãs, sua distribuição, manufatura e importância simbólica foram estudados com base em episódios fantásticos ou com achados fortuitos do objeto acabado sem/ou com vagos dados de contexto arqueológico. Nosso trabalho busca uma primeira

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apresentação da variada indústria lítica associada à ocupação Tapajônica, principalmente com dados de escavações arqueológicas, coletas de material aflorando em áreas erodidas e com estudo de coleções arqueológicas provenientes do sítio do Porto, na área urbana de Santarém (mapa 01). Entre o material lítico daremos enfoque principal ao muiraquitã, porém, desta vez trataremos o artefato com base em sua cadeia operatória de produção e não como um objeto acabado. Nossas escavações no sítio do Porto tiveram início no ano de 2011, no primeiro momento os trabalhos foram coordenados por Denise Gomes (Gomes et al. 2011). Com a realização de uma etapa de escavação nas dependências do campus da Universidade (UFOPA) (Figura 1) percebemos o grande potencial das indústrias líticas existentes em associação com o contexto da cultura Tapajônica. Em uma segunda etapa de campo em 2012, já sob nossa coordenação, procuramos estabelecer uma metodologia para refinar, desde a coleta, as possibilidades de análise do material lítico. Os estudos de material lítico associados a ocupações de grupos ceramistas na Amazônia são bastante raros. Basicamente encontramos descrições de artefatos como machados, bigornas, afiadores, contas e pingentes em um capítulo a parte dos detalhados estudos das indústrias cerâmicas. Algumas exceções podem ser destacadas em estudos mais recentes, como é o caso dos trabalhos de Rodet e Guapindaia (2010) e Duarte-Talim (2012) que apresentaram um estudo da tecnologia lítica nos sítios cerâmicos da região do rio Trombetas; e de Silva (2012) em um estudo do material lítico do sítio do Porto em Santarém. Neste capítulo tentaremos demonstrar o papel importante que desempenhou a indústria lítica para os ceramistas Tapajó e como o lítico foi importante mesmo no processo produtivo da cerâmica.

escola francesa (Leroi-Gouhan 1964, Tixier 1978, Boeda et al. 1990) e difundida no Brasil por estudiosos que fizeram sua formação na Europa (Caldarelli 1983, Fogaça 2001 e Rodet 2006). Neste enfoque o refugo da produção de artefatos é tão ou mais importante que os artefatos em si. Em 2011 observamos o quão minimalista era a indústria lítica associada à ocupação Tapajônica. Centenas de lascas e detritos de lascamento puderam ser recuperados durante o peneiramento do solo escavado. Notamos que alguns fragmentos eram tão pequenos que a malha utilizada no peneiramento nem sempre garantia a sua recuperação. Com estas informações prévias, em 2012, decidimos modificar a metodologia para garantir uma coleta mais refinada do material. Aproveitando as facilidades de desenvolver escavações em área urbana, no caso a menos de 300 metros do laboratório onde o material seria analisado, optamos por não peneirar o solo escavado durante a etapa de campo, armazenando-o em volumes de aproximadamente 60 kg, para o posterior processamento com água em uma sequência de peneiras com malha de 4 a 1mm. No laboratório o peneiramento com água possibilitou reduzir as amostras com volume aproximado de 60kg para volumes de aproximadamente 4 a 5kg. Este material foi posteriormente triado para separação do vestígios líticos, cerâmicos e orgânicos. Utilizando os dados da triagem e análises espaciais pudemos constatar a existência de três áreas de produção de artefatos líticos no sítio, duas delas identificadas através de escavações e uma com a observação de erosão das camadas arqueológicas em uma via pública da cidade de Santarém (Figura 1). Os resultados comprovaram a nossa expectativa. Foi possível recolher um grande número de material de tamanho menor que 4mm (malha que normalmente é usada no peneiramento de escavações arqueológicas).

Metodologia de trabalho Nossa pesquisa buscou um enfoque que pudesse ajudar a entender as indústrias líticas não simplesmente considerando a presença de artefatos acabados. O objetivo era recolher o maior número de evidências que pudesse ajudar a compreender os artefatos e principalmente o seu processo produtivo. Portanto, consideramos o estudo do material lítico num processo conhecido como chaîne opératoire, usado inicialmente na arqueologia pela

A Aquisição da Matéria Prima Reciclagem foi um conceito que estas populações certamente souberam o que significava. Algumas matérias primas, principalmente as mais raras, foram utilizadas e reutilizadas através da transformação de um artefato quebrado em outro novo e em alguns casos até o total esgotamento do suporte. O sítio em análise está implantado no final da

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bacia sedimentar do rio Tapajós, na margem direita de sua foz com o rio Amazonas (Figura 1). O fato de ter suas nascentes no escudo cristalino do Brasil central torna as praias do baixo curso do rio Tapajós fontes de variadas ocorrências líticas em forma de seixos, nódulos, placas e em alguns casos afloramentos, que serviram tanto como fonte de extração de matéria prima como para oficinas com polidores fixos para a produção de artefatos de pedra. A maior limitação que as populações do passado parecem ter encontrado no tocante à oferta de matéria prima foi a restrição volumétrica dos suportes disponíveis nas referidas praias. De qualquer maneira parece que algumas destas limitações foram sanadas através da elaboração de técnicas para produção de artefatos de tamanhos muito reduzidos e da construção de redes de troca/coleta de matérias primas em longas distâncias. Um dos casos mais emblemáticos é a obtenção das pedras verdes sob as quais foram produzidos alguns dos muiraquitãs. Os principais materiais disponíveis em curta distância são os óxidos de ferros (hematitas e derivados) que podem ser encontrados no próprio local do sítio. Rochas sedimentares como os arenitos (principalmente os mais friáveis) podem ser também obtidos com facilidade. Arenitos, argilitos e siltitos em diferentes estágios de metamorfização aparecem em forma de pequenas plaquetas e seixos nas praias do Tapajós. Silexitos são bem raros, podem ocorrer localmente em pequenos nódulos, principalmente porções de óxidos de ferro silicificados, mas maiores concentrações puderam ser observadas somente nas imediações do atual município de Itaituba, área das últimas cachoeiras do baixo curso do rio Tapajós. Quartzos e quartzitos formam a base sedimentar da região, porém os seixos desta matéria prima são de proporções reduzidas. Basaltos e granitos certamente foram adquiridos a distâncias maiores. Finalmente, no caso das pedras verdes (serpentinitas, jadeítas e amazonitas) na bacia do Tapajós ainda não foram identificadas fontes de matéria prima.

estendida para as indústrias líticas. O processo de produção de ferramentas líticas envolveu desde o uso de suportes em estado bruto como seixos e plaquetas até uma gama variada de técnicas de transformação da pedra em artefatos formais e informais. Para produzir ferramentas foi utilizado o lascamento, com percussão direta, bipolar e unipolar. A pré-forma de artefatos foi também obtida através da técnica de picoteamento. O polimento pode ser observado no acabamento de artefatos ou de forma passiva, com marcas produzidas pela confecção de outros artefatos em variadas matérias primas. Um sofisticado sistema de corte e perfuração de matérias primas líticas pode ser observado e será descrito em maior detalhe adiante. O fogo foi utilizado para dar tratamento térmico nas rochas para facilitar o lascamento e proporcionar maior enrijecimento. Estas diferentes estratégias puderam ser verificadas de forma individual ou em associação compondo o processo de fabricação dos artefatos. Do ponto de vista técnico a indústria lítica observada não é inferior à de períodos como o final do Pleistoceno e início do Holoceno, época em que os grupos de caçadores coletores produziram artefatos formais finamente retocados como as pontas de flechas e lanças encontradas pela Amazônia (Roosevelt 1996, Costa 2009) e os raspadores plano-convexos bastante comuns no planalto central brasileiro (Fogaça 2001). A associação entre as indústrias líticas e o período dos ceramistas pode ser constatada tanto em termos espaciais como pela observação da cadeia operatória de artefatos líticos e cerâmico da ocupação Tapajônica. As três áreas de produção de artefatos líticos observadas apresentam associação estratigráfica com ocorrência de cerâmicas Tapajônicas e, em uma delas, feições características da ocupação, conhecidas na arqueologia regional como bolsões, (feições circulares e cônicas cavadas no solo para colocação ou descarte de materiais variados) estavam abaixo das concentrações de material lítico. Artefatos lascados O material mais abundante na coleção foi produzido através de técnicas de lascamento unipolar e bipolar. Com a coleta refinada dos materiais foi possível perceber que as áreas escavadas serviram como oficinas de lascamento para a produção dos artefatos. Um número muito grande de lascas e estilhas

Variedade da Indústria Lítica A primeira consideração que podemos fazer após observar a coleção arqueológica é que a sofisticação observada nas indústrias cerâmicas da cultura Tapajônica pode ser também

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de descorticagem, façonagem e retoque puderam ser observadas. Além deste refugo de produção, artefatos como percutores inteiros ou quebrados durante o uso, bigornas, artefatos inacabados ou pré-formas quebradas durante a manufatura estavam ali depositados (Figura 2). Entre os artefatos a maior abundância é de um tipo alongado, pontiagudo, finamente retocado sob um suporte de lasca bipolar ou unipolar. Trabalhos anteriores propuseram que estes objetos seriam utilizados como dentes de ralador (Duarte-Talim 2012 e Silva 2012). O investimento tecnológico da produção destes artefatos visto através das sequências de retoques muito pequenos, e a comparação com dentes de raladores modernos de grupos indígenas da região, nos fazem pensar que estes artefatos poderiam ter outras funções (Figura 2 i - j). O interessante foi perceber que lascas de retoques de cerca de 2mm, compatíveis com os negativos observados nos artefatos estavam também presentes no mesmo contexto (Figura 2 k). Algumas pré-formas fragmentadas são bastante sugestivas de serem de pontas de projétil bifaciais. Os exemplares foram abandonados após algum acidente de lascamento ocorrido depois da produção do pedúnculo do artefato (Figura 2 l-m-n-o-p). Lascas e nucleiformes foram utilizados como raspadores, percutores e bigornas, podendo receber retoques para produzir gumes, aparar arestas ou em alguns casos observadas apenas marcas de uso em gumes brutos (Figura 2 q-rs-t-u-v).

derivados. São eles abrasadores planos, sulcados e furadores de diâmetros variados (Figura 3). No caso das rodas de fuso, alguns furadores apresentam diâmetros muito sugestivos de terem sido utilizados para a produção dos furos das mesmas (Figura 3 f-g). As marcas de rotação dos furadores e dos furos também são compatíveis. É importante notar que no caso dos furadores técnicas de lascamento e polimento foram conjugadas para a produção do artefato (Figura 3 e). Os Muiraquitãs Como foi apresentado em Gomes (2001:141) é possível fazer correlações entre a cerâmica Tapajônica e os muiraquitãs. Algumas estatuetas antropomorfas representam, de forma muito naturalista, indivíduos ornamentados com pintura corporal e adereços como tiaras onde é possível ver muiraquitãs afixados. Uma estatueta encontrada na região de Óbidos, na foz do rio Trombetas, que não pode ser diretamente associada à cultura Tapajônica, demonstra que os muiraquitãs tiveram ampla circulação. Mais uma vez é possível observar que a figura representada porta um muiraquitã, desta vez pendurado por um cordão no pescoço (Figura 4 f). Todas as representações humanas portando muiraquitãs que pudemos observar são figuras femininas. Mesmo com a associação entre a cerâmica e os muiraquitãs, a grande ocorrência de achados deste objeto na região do baixo Amazonas, uma questão ainda paira sobre suas origens. Os Tapajó seriam produtores ou teriam adquiridos os muiraquitãs por meio extensas redes de trocas que poderiam ter atingido inclusive regiões fora da floresta Amazônica? Alguns dos vestígios descritos a seguir parecem ajudar a resolver esta questão: Buscando analisar os muiraquitãs em seu processo produtivo e não somente os artefatos em si, fizemos descobertas bastante interessantes. Observando a coleção de material lítico do sítio do Porto foi possível perceber que algumas lascas unipolares parecem remeter ao processo de produção da pré-forma dos muiraquitãs (Figura 4 a). As lascas são claramente fragmentos das mesmas rochas verdes dos muiraquitãs. Além disso, outro objeto bastante singular pôde ser recuperando dando pistas de uma das questões mais enigmáticas que envolve a produção dos muiraquitãs: Como teriam sido

Artefatos polidos Neste ponto é interessante notar a relação entre as indústrias líticas e cerâmicas. O polimento parece ter sido utilizado principalmente com a finalidade de produzir pigmento (Figura 3). Cerca de 35% dos fragmentos de cerâmica da coleção ainda conservam vestígios de engobo vermelho. No processo de produção do pigmento para o engobo os suportes vão ganhando forma e parece que alguns artefatos foram confeccionados como subprodutos do pigmento. Os mais emblemáticos são as rodas de fuso finamente decoradas, porém, pequenos recipientes, pingentes, contas de colar e os próprios muiraquitãs podem ser produzidos sob óxidos de ferro. Alguns artefatos encontrados apresentam marcas de abrasão compatíveis com o processo de produção de pigmento e dos subprodutos

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produzidos os pequenos furos de suspensão dos amuletos? Estes pequenos objetos vistos na figura 4 (b-c-d-e-h) parecem ter servido como brocas para a produção dos furos. Observando as marcas de uso das brocas fica claro que as mesmas foram utilizadas em movimento de rotação. Analisando os furos de muiraquitãs e contas de colar em lupa binocular é possível perceber que as marcas da parte interna dos furos são bastante semelhantes às marcas das brocas. Outra relação interessante pôde ser constatada entre o diâmetro dos furos e o diâmetro das brocas como pode ser visto na figura 04. Alguns elementos reforçam o fato da produção local de muiraquitãs. Encontramos pré-formas inacabadas que se fragmentaram durante o processo produtivo. Um fragmento de pedra verde, já com a forma da cabeça do batráquio apresenta os furos inacabados. Alguns outros objetos apresentam furos que não foram bem sucedidos e fragmentaram a borda (Figura 4 h-i). O processo produtivo das próprias brocas pode ser observado através de vários objetos que compõem a cadeia operatória de produção das mesmas (Figura 4 j-k-l). Nas brocas é possível perceber que as mesmas foram produzidas com a retirada de bastonetes de placas inicialmente polidas e depois cortadas com a produção de um sulco. Algumas placas com o processo inacabado são compatíveis com as marcas vistas nas brocas. É possível perceber inclusive que algumas rodas de fuso fragmentadas foram reutilizadas como placas para retirada dos bastonetes das brocas. A própria placa utilizada como suporte para produção de brocas aparece com um gume afiado por polimento em uma das extremidades que pode ter sido utilizada como ferramenta para produzir os sulcos que destacam os bastonetes (Figura 4 l). Assim, o processo produtivo dos muiraquitãs e das ferramentas envolvidas em sua produção atestam que os mesmos foram produzidos localmente. Uma diversidade muito grande de matérias primas pode ser observada na produção de muiraquitãs, desde a cerâmica, passando por óxidos de ferro, quartzos, esteatitas e as famosas pedras verdes. As matérias primas “menos nobres” parecem cumprir um papel popularizar um objeto simbólico carregado de significado.

Experimentação Arqueológica Como definiu John Coles a arqueologia experimental sugere um ensaio, uma maneira de testar e verificar uma teoria ou ideia. O que ela pode produzir é uma pista ou caminho para o pensamento arqueológico a respeito do comportamento humano do passado. Desta maneira a arqueologia experimental não pretende nem pode provar coisa alguma (Coles 1973:11 e 18). Nosso trabalho de experimentação e replicação de instrumentos arqueológicos utilizados em diversos estágios da cadeia operatória, resgatados em superfície e em contexto estratigráfico, tem como meta testar a eficiência de modelos construídos com as análises de funcionalidade. Outra questão importante é pensar no tempo gasto para a produção de um determinado objeto, caso fosse produzido obedecendo alguns processos técnicos sugeridos. Nossa intenção não é reproduzir o objeto como era no passado, mas testar formas e métodos para saber se os resultados estão próximos dos observados na refinada indústria lítica do baixo Amazonas. Particularmente nos interessa observar se marcas de uso identificadas em objetos arqueológicos podem ser compatíveis com alguns gestos técnicos que reproduzimos. Nos deteremos à algumas observações que fizemos sobre possibilidades para o processo de produção de contas de colar e muiraquitãs. Uma grande quantidade de implementos líticos era utilizada na cadeia operatória: cortadores de pedra, raspadores, abrasadores planos, côncavos, internos, bigornas, percutores, calibradores, brocas e uma série de elementos que certamente não conseguimos recuperar. Selecionamos algumas peças com função provável definida, para testar se o gesto técnico que imaginávamos poderia produzir marcas compatíveis com as que observamos nos objetos. Procuramos utilizar matérias primas semelhantes às observadas no contexto arqueológico. A primeira tentativa foi de reproduzir as brocas utilizadas para fazer furos em contas e muiraquitãs. A matéria prima trabalhada foi uma placa de argilito metamorfizada medindo 11x6x3 cm. Primeiro se utilizou seixos rolados de quartzito como percutor e bigorna de apoio, aplicando a técnica de percussão bipolar para a obtenção de placas mais finas. Neste caso não obtivemos resultados satisfatórios

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dada a pequena dimensão das lascas que se destacavam. Outra tentativa foi feita através da exposição direta ao fogo por cerca de 30 minutos. Posteriormente a peça foi retirada e submetida a um choque térmico em água. Com o resfriamento brusco verificou-se o desplaquetamento parcial. Novas tentativas de percussão bipolar, resultaram em lâminas finas e adequadas a produção de placas polidas. Além disso, percebeu-se que a exposição ao fogo e o choque térmico resultaram em durezas distintas em partes do suporte (Figura 5). Como abrasadores para o polimento e corte foram utilizados arenitos de granulação e agregação variadas, resultando em durezas diferentes. Um arenito com cerca de oito quilos, granulação fina e um pouco friável, foi utilizado com água como suporte para polir uma placa com cerca de 3x3x0,5 cm. Várias faces do polidor se tornaram planas após o uso. Em um intervalo de cerca de quatro horas a placa ficou pronta. O passo seguinte foi destacar, por percussão unipolar, duas lascas de um arenito bem agregado e de granulação de cerca de 0,5mm. As lascas resultantes foram polidas para produzir um gume. A lasca com gume polido foi utilizada em movimentos de vai e vem para produzir um corte na placa previamente polida. Primeiramente utilizamos um suporte de borda retilínea como guia. Após o surgimento de um pequeno canal, o processo foi feito a mão livre. Constatamos que a utilização de areia como abrasivo pode maximizar o efeito abrasivo. Os cortes foram feitos simetricamente nas duas faces da placa, em conformidade com as pré-formas de brocas existentes nas coleções arqueológicas. Ao final do processo obtivemos um bastonete com cerca de 3x0,5x0,5 cm, que foi novamente abrasado, no arenito de faces planas, com adição de água e areia, o que resultou em uma broca similar às existentes na coleção arqueológica (Figura 5 b-c-f). Observando em lupa binocular, percebeuse que os furos existentes em muiraquitãs e as marcas das brocas, apresentam ranhuras horizontais que indicam provável, movimento rotacional em velocidade. Com base em registro etnográfico (Levi-Strauss 1996: figura 30), percebeu-se que populações americanas às vezes usavam um extensor de madeira, com uma provável broca na ponta. Produzimos então um extensor de maçaranduba (Manilkara huberi). Tentamos utilizar arenitos de granulação e agregação semelhantes aos calibradores arqueológicos, mas não obtivemos

sucesso. Lascas de gume bruto ou retocados se mostraram mais eficientes para modelar o extensor. Com a broca fixada ao cabo testamos algumas possibilidades de furar apoiando o objeto a ser furado no solo, prendendo com os dedos do pé e prendendo em um galho de madeira. O mais crítico do processo é justamente conseguir uma boa fixação do suporte a ser furado para que a broca não quebre durante o movimento de rotação. Desconsiderando a facilidade de quebra da broca por conta de movimentos descontrolados, o uso do furador se mostrou bastante eficiente. Os suportes de óxidos de ferro podem ser furados em menos de 10 minutos. Suportes de dureza maior como as jadeítas, que possuem dureza acima de 5 na escala de Mohs, demoraram cerca de duas horas para serem furados, isto levando em consideração a falta de habilidade técnica para operarmos o instrumento (Figura 5 h-i). As experimentações arqueológicas sugerem que o processo de produção dos muiraquitãs foi bastante laborioso, porém parece que, apesar de exigência de muita habilidade técnica, não foi um processo inacessível para a maior parte da população. A maior dificuldade envolvida na produção dos muiraquitãs certamente foi a aquisição das matérias primas adequadas. Considerações Finais Na ocupação Tapajônica as populações investiram tecnologicamente para produzir uma gama muito variada de artefatos líticos, os artesãos dominaram praticamente toda a tecnologia disponível na época para o trabalho da pedra. Nas extensas redes de trocas americanas certamente estes povos tiveram papel importante como produtores de objetos líticos. No caso dos muiraquitãs a indústria lítica não deixa dúvida que eles foram produzidos localmente. O engenhoso processo técnico da produção certamente envolveu especialização, porém, a nosso ver, não parece uma tecnologia inacessível para indivíduos minimamente treinados. Nos parece tão ou mais laborioso produzir um vaso de gargalo ou um dos elaborados vasos esfiges da cerâmica Tapajônica. A reprodução de muiraquitãs em matérias primas de fácil acesso parece comprovar que a tecnologia de produção se popularizou. Diante das análises que empreendemos, acreditamos que o que deve ter agregado maior valor simbólico, status e prestígio para os possuidores de muiraquitãs foi a raridade da

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matéria prima sob a qual ele foi produzido. Os objetos de pedras verdes, muito raras na região, seriam como joias, enquanto os produzidos com a mesma tecnologia, em matérias primas abundantes, seriam como bijuterias. Se as lendárias guerreiras do baixo Amazonas foram consumidoras do mais famoso amuleto do passado amazônico, os Tapajó certamente foram seus habilidosos artesãos.

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Figura 1. Situação geográfica da área de pesquisa com destaque para o sítio Porto

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Figura 2. Material lítico lascado – (a) a (f) – lascas unipolares, (g) e (h) percutores de seixos apresentando marcas de uso, (i) e (j) artefatos alongados com bordas retocadas e extremidades pontiagudas, (k) estilhas e microlascas de retoques, (l) a (p) pré-formas de pontas inacabadas e fragmentadas, (q) núcleo reutilizado como bigorna, (r) núcleo reutilizado como percutor e (s) a (v) artefatos com gume retocado

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Lámina 3. Carretera asfaltada en 2004, ahora parcialmente derrumbada (foto DSC02644a 14/FEB/2013). Se aprecia la capa de sedimento oscuro del depósito arqueológico, cortada por el relleno de la carretera. La carreta estaba unos 50 metros más al interior del camino de tierra indicado en el mapa de 1950 de Cruxent y Rouse.

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Os Artesãos das Amazonas: a diversidade da indústria lítica dos Tapajó e o Muiraquitã Claide de Paula Moraes, Anderson Márcio Amaral Lima & Rogério Andrade dos Santos

Figura 4. Elementos da cadeia operatória de produção do muiraquitãs - (a) lascas unipolares de pedras verdes, (b) e (c) brocas, (d), (e), (g) e (h), comparação do diâmetro do furo de contas e muiraquitãs com o diâmetros das brocas, (f) estatueta feminina portando um muiraquitã no pescoço, (H) fragmento de pré-forma de muiraquitã (em pedra verde) com furos inacabados, (j) muiraquitã e pré-formas, (j) início do processo de corte das placas de argilito, (k) bastonete já no ponto de ser destacado e (l) placa apresentando um gume na extremidade direita com cicatriz de retiradas de bastonetes nas extremidades superior e inferior

Figura 5. Etapas do processo de experimentação arqueológica para a produção de brocas e furos – (a) desplaquetamento após choque térmico, (b) e (c) o material para o furados e as peças a serem furadas, (d), (e) e (f) e execução do furo, (g) e (h) suportes de hematita perfurados e (i) suporte de feldspato potássico perfurado

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