Os Aspones: cultura política no Brasil e o Dr. Doutor de Nada

July 4, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Immanuel Kant, Aspones, Bajonas Brito
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Os Aspones: cultura política no Brasil e o Dr. Doutor de Nada, um percurso entre Bajonas, Kant e Sérgio Buarque1 Abraão Carvalho abraaocarvalho.com O que a série Os Aspones nos provoca a pensar inscreve-se justo no modo como o Estado, via de participação no privilégio para tantos, promove a sua relação consigo mesmo, a saber, suas instituições, e o modo através do qual tais instituições predominantemente em nosso raio histórico promovem, desde certa perspectiva, uma dinâmica de participação no privilégio que atende à voraz fome de nossas mais arcaicas e fantasmagóricas hierarquias ou bizarrices sociais. De todo, aquele “Eu acho sim, que o governo paga o meu salário pra eu ficar aqui de enganação. Gente... não tem nada pra fazer aqui... não tem!”, dito pela Moira, em cena do episódio “O segundo dia”, nos indica aquele modo corriqueiro e sorrateiro e deveras escancarado, da forma do uso da coisa pública no Brasil. O curioso a se notar, em relação a esta forma de uso da coisa pública em nossas terras, é que esta dinâmica de enganação e risonha dissimulação devastando nossas instituições arcaicas na esfera do trabalho, é elevada e apresentada na série Os Aspones, não de outro modo senão pela via daquela tão assaz e ácida ironia, ao passo e na medida em que enganação, embromação, enrolação, dissimulação, se disseminam sob a aparência de legítimo, autêntico, transparente, de todo sob a extensão de que são justificadas seja por decisões políticas ou jurídicas, e sobretudo, pasmem, tomadas como habituais e normais em nossa particular e secular cultura política. O esporte nacional segundo o Dr. Góes, “falar mal dos outros”, o FMDO, instituição que aparece na série Os Aspones, indica-nos de todo o combustível da vida social e política brasileira não sem um tom irônico, que vai desde os escritórios até à política nacional, que segundo o Dr. Góes, trata-se de uma "democracia do falar mal dos outros", estando neste princípio a mola propulsora da política e da vida pública. A liberdade de falar mal dos outros... que tanto promove passagens abruptas, passando rapidamente da mentira ao seu oposto, a verdade, mesmo que de modo curioso ou absurdo. Passagem esta de um ser (a mentira) ao seu ser outro (a verdade), pois ao agraciar também sucedem ressentimentos, insultas, que tanto intrigam dissimuladamente os locais de trabalho que como o FMDO, não há nada a se fazer, senão fingir que se está trabalhando. Gesto este, vale ressaltar, que sem pestanejar um segundo, abre espaço para picuinhas e invenções, promovendo propagandas de ressentimentos, intrigas e vinganças, pois como nos afirma o dito popular: “Mente vazia oficina do diabo”. Ora, esse apego frenético à mediação universal da política e da vida social brasileira instaurada pela dissimulação e pelo engodo no qual se transforma o FMDO, antes denominado “Fichário Ministerial de Documentos Obrigatórios” – “O lugar em que estão reunidos todos os documentos obrigatórios que os brasileiros têm que tirar, o Monte Everest da Burocracia”; Os Aspones, O primeiro dia -, e depois de uma solene 1

Ensaio escrito em maio de 2008.

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cerimônia de mudanças de atribuições na fictícia repartição, passa a assumir a afecção e determinação de “Falar Mal Dos Outros”, indica-nos de todo o óleo primordial e secular da máquina institucional brasileira. A alteração de nome e atribuições à repartição, remete-nos às noções de Kant em relação à inclinação humana para o mal, situando suas posições diante do problema das decisões humanas e a força da inclinação, até que ponto um e outro levam a cabo sua prevalência e primazia. Segundo Scott Stroud, em seu ensaio “Viciado em suas próprias inclinações? Kant sobre a propensão ao mal”, a encruzilhada entre as escolhas humanas e a efetividade da força da inclinação, encaminha Kant para a direção de hierarquizar um agir humano no qual a razão reguladora dissipa a efetividade das forças que se impõem à ação por mediação das inclinações, tidas como nocivas ao poder de escolha. Ora, o que indica a solene cerimônia de homologação do nome da repartição para FMDO – Falar mal dos outros-, senão a ruína de uma proposta kantiana na qual a razão reguladora triunfa sobre a força da inclinação? Se em Kant o agente que age de acordo com a lei moral e o dever, é aquele que impõe os ditames da razão reguladora sobre os infortúnios das inclinações, elegendo desde uma hierarquia os graus de inclinação ao mal como abrigados na fragilidade, na impureza e na depravação, por outro lado, na série Os Aspones, o que encontramos trata-se justo da dissipação extrema do reconhecimento do dever diante das inclinações. Fragilidade, impureza e depravação, forças que a razão reguladora deveria excluir para se auto-afirmar, de todo triunfam a todo o momento no percurso asponiano. Neste sentido, a solene cerimônia promovida por Tales, tem sua dinâmica sobretudo, a partir de uma inversão da noção de razão reguladora em Kant, na medida em que é a determinação das inclinações, em falar mal dos outros, que é reconhecida pela vontade e pela razão, daí a ácida ironia de uma instituição federal que se especializasse em falar mal dos outros. Mesmo o homem cordial em Sérgio Buarque em “Raízes do Brasil” não dissipa de todo o oposto de sua aparente cordialidade. “Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”2. A hospitalidade, a fineza no trato, encarnada na série Os Aspones pela figura do “Chefe Gente Fina”, subitamente cede lugar à intriga, desavenças, “problemas menores”, se quisermos expressão do grupo IRA! De acordo com Sérgio Buarque, as virtudes do homem cordial “tão gabadas por estrangeiros que nos visitam”, sobretudo seguem a continuidade de padrões de sociabilidade fundados em laços de parentesco próprios de uma sociedade patriarcal e rural. Acerca deste traço histórico de nossa sociabilidade, e que não deixa de penetrar na política e de todo no trato com a coisa pública, Sérgio Buarque chega até a indicarnos que “permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.” Esta filiação cultural do homem cordial ou do chefe gente fina ao perene percurso do patriarcal, e que invade todas as esferas de nossa vida social, não poupando nem sequer o FMDO, indica-nos ao menos que a carapaça de cordialidade na caricatura2 Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, p. 146.

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símbolo do “chefe gente fina”, do mesmo modo que na aparente generosidade e simpatia encontra seu abrigo, por outro lado, subitamente cede lugar ao medíocre falar mal dos outros, que aparece desde aquela já referida cerimônia de re-inauguração, como sendo o seu objeto primordial, principal fim, meta. Segundo Sérgio Buarque, a carapaça das virtudes “finíssimas”, se quisermos expressão de Leda Maria na série Os Aspones, próprias da noção de homem cordial, não podem nos levar a tomar tais virtudes ou boas maneiras como características da civilidade. “Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade.”3 De modo inverso, a cordialidade, marcada pela polidez, trata-se justo do oposto de nossas normas de sociabilidade, assim nos indica Sérgio Buarque: “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez – ela pode iludir na aparência...” Ora, o que é o chefe gente fina assumindo o ofício de falar mal dos outros senão a caricatura asponiana da cordialidade e de sua pretensa polidez diluindo-se em sua inflamável mediocridade? Na leitura de Sérgio Buarque, “No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, (...) antes um viver nos outros.”4 Bajonas Brito, em seu ensaio “Os Sertões e a fundamentação do pensamento crítico brasileiro do século XX”, acentua os traços sociais e culturais de nossas elites assentados no parasitismo, naquele modo de vida em que o explorar promove-se desde um trato ruinoso, seja com a natureza, a produtividade social ou mesmo em relação à cultura. No trato com a natureza, o latifúndio onipresente. Na esfera da produtividade social, o trabalho escravo em suas apaziguantes e criminosas formas, e o monocultivo para exportação de todo alheio às necessidades nacionais. No plano das idéias, um fascínio gratuito pelo estrangeiro, como nos indica a própria expressão de Euclides da Cunha acerca daquele “viver parasitáriamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa.” A extensão desse parasitismo, na perspectiva de Bajonas Brito, se sustentará então desde uma relação exploratória, que “se propaga nas três direções da vida histórica – natureza, sociedade e cultura.”5 Nesse sentido, nada de fixo se articula, a natureza violentada através de suas formas de uso no percurso de nossa experiência histórica, as instituições “mal nascidas, tornam-se obsoletas”6, na cultura as novidades estrangeiras substituem-se umas às outras subitamente. No caso das instituições, retomando o cuidado em relação ao modo como aparece o FMDO na série Os Aspones, lembremos que se trata de uma instituição criada em 1969 e que já perdera sua utilidade pública há muito tempo, e que nem por isso deixou de figurar caricatamente na folha de pagamento do Estado, “o último cargo de chefia do Governo Federal” para Tales Teles, é esta a graça que o Dr. Góes faz para calar o sumiço repentino das “pastas rosas”, a pasta das finanças do país. Ora, o que é o FMDO, uma instituição pública fantasmagoricamente real, senão a extensão máxima de nosso parasitismo? Ainda no ensaio a partir de Euclides da Cunha nos indica Bajonas Brito, que “A corrupção no Estado pode e dever ser pensada como um prolongamento da vida fácil, orientada pela apropriação e o parasitismo.” De todo, a apropriação do Estado desde a ótica do parasitismo sustentado em falar mal Idem, p. 147. Idem. 5 Bajonas Brito, Os sertões e a fundamentação do pensamento crítico brasileiro do século XX, p. 84. 6 Idem. 3 4

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dos outros, tal como aparece na série Os Aspones, trata-se justo do oposto ao projeto kantiano de agente que impõe as rédeas nas inclinações para o mal em favor da lei moral. Ao contrário, o que vemos na série Os Aspones em relação ao uso do Estado e de seus recursos, consiste sobretudo na identificação kantiana da inclinação humana para o mal, próprio da natureza humana, na medida em que, segundo Scott Stroud, em seu ensaio “Viciado em suas próprias inclinações? Kant sobre a propensão ao mal”, “A propensão ao mal surge, contudo, na propensão do ser humano de desenvolver inclinações mais fortes e exigentes, quanto mais seus objetos forem desfrutados.”7 De todo, a noção de parasitismo aparece-nos como este desfrutar sem esforço orientado pela apropriação da coisa pública como particular. Não sem propósito o recém chefe gente fina insiste em assinar um documento da instituição FMDO com uma identificação pessoal ao mesmo tempo em que oficial. A mudança de nome e atribuições da instituição, devido a certas inclinações, para a determinação em Falar Mal Dos Outros, indica-nos sobretudo o encontro do projeto asponiano com as noções de Kant acerca da natureza humana. De acordo com Scott Stroud, Kant nos “adianta a intrigante declaração de que a natureza humana tem uma propensão para o mal.”8 Nesta direção, o uso da coisa pública fundada na apropriação que desfruta no parasitismo, em uma visão kantiana, estaria de pleno acordo com a noção de que a natureza humana facilmente cede lugar às inclinações para o mal, falar mal dos outros, mau uso do Estado, da terra, dos recursos, e tantos outros. Se em Kant, os graus de inclinação para o mal e que a razão reguladora no cumprimento do seu dever e a serviço da lei moral, deve se livrar, e que se abrigam de todo na fragilidade, na impureza e na depravação, na caricatura asponiana, de modo adverso, tais graus de inclinação ao mal na ótica de Kant, têm no percurso parasitário do FMDO as suas mais plenas manifestações e aparições. Na série Os Aspones, os graus de inclinação ao mal traçados por Kant, se proliferam a todo o momento, sem pedir licença, a fragilidade da Moira – “Excelentíssimo Presidente Garrastazu Médice. Pelo menos excelente ele devia ser né gente?”; a impureza revestida da dissimulação de todos os personagens, e a depravação como o projeto de Tales como constituinte primordial do inconsciente humano, indicam de todo, a ruína da noção kantiana de homem racional e que age em favor da lei moral e do dever. De modo oposto, são as inclinações ao mal, tida como nocivas para Kant, que devastam o tempo asponiano, na perspectiva de que a sua máxima potência pública, antes encoberta pela cordialidade e pela amizade – lembremos do chefe gente fina-, cede lugar rapidamente a um ofício outro e de todo primordial para a ação, também pública, em falar mal dos outros. Neste sentido, encontramos no projeto Aspones, aquele fio que enlaça os três graus de propensão ao mal em Kant, a saber, o parasitismo, na medida em que este viver parasitáriamente se afirma desde um desfrutar alimentado pelas inclinações levadas pela apropriação fácil, tentação que a razão – indicada por Kant como a abertura da possibilidade de efetivação do poder de escolha - nem insiste ou dá conta 7 8

Scott Stroud, Viciado em suas próprias inclinações? Kant sobre a propensão ao mal, p. 24. Idem, p. 25. 4

de recusar, cabe ressaltar, se levarmos em consideração a noção kantiana da natureza humana como afetada rigidamente pelas formas e forças de inclinação para o mal. Ora, se na canção “Paradoxo” do grupo FURTO, de Marcelo Yuka, procura-se livrar das inclinações humanas para o mal como fixadas secularmente em nossa cultura – “No país do paradoxo o ilegal transmitido ainda não é cultural, pois a maioria de nós ainda possui poucas virtudes para o mal”9, à luz da interpretação kantiana, acerca do problema e da relação entre o poder de escolha e a força das inclinações para o mal, e bem como aparece ironicamente na série Os Aspones, justo tais virtudes para o mal, ao contrário do que nos indica Marcelo Yuka, consistem na via de regra no trato com o Estado por nossas terras. O problema, o paradoxo, da relação entre as vontades humanas manifestas no poder de escolha e a força da inclinação, encontram no parasitismo especializado em falar mal dos outros a sua eficácia e continuidade. Ora, é neste sentido que nos indica Sérgio Buarque ao afirmar que para o homem cordial a vida social “é antes um viver nos outros”, o que de todo é levado ao extremo nos ofícios do FMDO. Mas a que devemos este tão hilário parasitismo na série Os Aspones? Não seria aquele “viver nos outros” ao qual se refere Sérgio Buarque o traço escancaradamente acentuado na série Os Aspones na caricata figura do FMDO? De todo, tomando algumas das noções de Sérgio Buarque em “Raízes do Brasil” acerca da formação social, econômica e cultural brasileira, as raízes históricas da extensão do parasitismo nos remetem à herança, ou antes mesmo, aos resquícios, de uma sociedade assentada ao modo patriarcal, em que a esfera particular, própria da família e do âmbito doméstico, e sobretudo íntima ao meio rural, fantasmagoricamente, insiste a todo o momento em submeter às suas inclinações particularistas, toda a extensão do público, incluindo neste horizonte, de todo, a dimensão do Estado. Assim já nos indica Sérgio Buarque na primeira frase do capítulo dedicado ao “homem cordial”: “O estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo...”10 Em uma sociedade em que a família patriarcal, aristocrata, ocupa lugar privilegiado, os laços sociais se fixam e inclinam-se de todo, à primazia e prevalência dos laços de parentesco e vínculos de afetividade, em prejuízo do mérito individual ou em relação às capacidades humanas. De modo adverso à primazia dos méritos individuas, como nos indica Sérgio Buarque em capítulo de nome “Herança Rural”, em relação à formação cultural brasileira, é “A entidade privada” que “precede sempre, (...), a entidade pública”. Daí Sérgio Buarque indicar-nos que a prevalência da força das inclinações próprias ao limite familiar e doméstico encontram sua extensão, não de outro modo senão amanteigado, na forma de apropriação do Estado, pois como afirma o pensador FURTO, Sangue Audiência, 2005. Encarte. 10 Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, p. 141. 9

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brasileiro, “O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família.”· Ora, esta invasão do público pela dimensão do privado e do particular, indicada por Sérgio Buarque como a continuidade de traços de um Brasil arcaico, patriarcal, e que não hesita em se alastrar por todas as esferas do Estado, nem mesmo no FMDO, aparece-nos como um importante indício da forma de uso da coisa pública na experiência histórica e política brasileira. Uma passagem do primeiro episódio da série Os Aspones, acerca do poder de influência da família na investidura na coisa pública, trata-se da apresentação de Leda Maria ao setor intitulado ironicamente de “Arquivo Morto”: “Bom dia, eu sou a Leda. Leda? Leda Maria. Não te comunicaram nada? Não. Eu sou afilhada do Doutor Ary... Qual? O Nogueira? Não o Fontes. Eu sou afilhada dele e ele trabalhou como chefe de gabinete do Doutor Léo... Na verdade eu ia trabalhar na recepção mas aí passaram uma vagabundinha mais jovem na minha frente aí... Aí exatamente o quê? Tô começando hoje aqui como a sua estagiária. Minha estagiária? É... vou... preciso verificar e...”11 A identificação pessoal de Leda Maria por mediação de um suposto laço de parentesco, nos fixa importantes contornos para as noções desenvolvidas por Sérgio Buarque acerca do poder do “quadro familiar” na participação da coisa pública. Como já apontamos, essa participação na coisa pública aparece em nossa experiência histórica como assentada na participação no privilégio, participação no privilégio via de regra tendo no favor, a mediação para a passagem e ascensão da exclusão à inclusão. Ora, o que seria o parasitismo assentado naquele viver nos outros, ou melhor, no falar mal dos outros, como no caso da série Os Aspones, senão o resultado nefasto e crônico da participação no privilégio aberta pelo patriarcalismo e pelas “boas maneiras” expostas na carapaça do "homem cordial”? Encontrar uma instituição para se escorar, onde não há nada a se fazer, trata-se justo do triunfo do homem cordial, que do mesmo modo que participa do privilégio dos parasitismos, o desfrutar ilimitadamente sem maiores esforços, por outro lado, subitamente, quando suas cômodas posições estão em jogo, lança à fogueira, assim como o povo lança um Judas, a sua máscara de boas maneiras, cordialidade, generosidade e fineza no trato, encobrindo-as por debaixo do tapete, tal como aquela sujeita denunciadora para as visitas, tudo aquilo que indica civilidade. Se o homem cordial é reconhecido como tal pelas suas boas virtudes, de tal modo que se trata daquele que preza por suas boas maneiras, segundo Sérgio Buarque, o que ocorre na prática, ao invés da amizade própria da cordialidade, trata-se justo do 11

Os Aspones (Assessores de porcaria nenhuma), O primeiro dia.

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aparecimento daquele homem cordial que se fixa de todo, em seu agir, exatamente pelo seu oposto, a saber, a inimizade. Em expressão de Sérgio Buarque tal inimizade, “sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade.”12 Ora, não é senão na medíocre hostilidade em relação aos outros – sustentáculo de seus parasitismos -, que se fixam os princípios primordiais do FMDO pós-chefe gente fina? Ou seria o FMDO a própria ruína do paradigma pós-burocrático no Brasil? – pegando carona em mais um modismo por nossas terras. Se por um lado encontramos uma instituição federal em que o ofício primeiro consiste em Falar Mal Dos Outros, nem por isso o trato com os superiores, desde uma obediente subordinação, deixará de transpor sua aparente cordialidade. A ligação entre as “boas maneiras” próprias da cordialidade e o tratamento dos superiores determinados, desde a perspectiva da subserviência, como “doutores”, mesmo sem o serem, indica-nos sobretudo que justo nesta reverência, nesta solenidade não tão gratuita como o pensamos, encontramos uma das formas de sustentação, ou antes mesmo indícios, da magnitude e equilíbrio de nossas fantasmagóricas hierarquias. A insistência fixada pela cultura e pelo costume em designar doutor aquele imediatamente superior, como acontece com a Moira ao insistir, embora mediante reprovações, em chamar Tales de Doutor Tales Teles, involuntariamente, mesmo sendo advertida que chamá-lo de “doutor” é “resquício do autoritarismo”, indica-nos de todo o modo próprio como aparece para Sérgio Buarque a noção de homem cordial. O aparecimento do tratamento de doutor filia-se tão fielmente à noção de homem cordial em Sérgio Buarque, que sua feição em chamar o outro superior de doutor, demonstra sua capacidade tão afiada em subordinar-se docilmente, de modo que, assim como nos indica Bajonas Brito, a mediação que cadencia a coexistência na sociedade brasileira, de uma exclusão violentamente massiva por um lado e a permanência e eficácia de nossas extremas desigualdades sociais por outro, aponta-nos em certa medida para a perspectiva de que uma das vias de inclusão, passa sobretudo pela habilidade e cordialidade em subordinar-se fielmente, azeitando fotograficamente as hierarquias que perpassam e sustentam uma sociedade que exclui sanguinariamente por um lado, mas ao mesmo tempo inclui via de regra pela participação no privilégio. Ora, mas qual é a porta que leva à participação no privilégio desde a perspectiva da exclusão, dos “excluídos”? Dito de outro modo, como a participação no privilégio pode ser o sustentáculo de uma sociedade hierárquica? De todo, ao que nos indica a “Lógica do Disparate” de Bajonas Brito, o perdurar de nossas hierarquias que tanto produzem exclusão megalomaníaca quanto a patriarcal inclusão por mediação da participação do privilégio, indica-nos uma dinâmica que equilibra os desequilíbrios, dito de outro modo, um sistema que harmoniza as desigualdades. Estamos nos referindo à noção demarcada e fixada no tecido de nossa experiência histórica, que atende pela denominação, na “Lógica do disparate”, de “lógica do favor”. De acordo com o que encontramos ao capítulo “Liberdade e hierarquia” – “Lógica do disparate” -, a própria pré-condição da hierarquia consiste justo no favor, capaz de tanto abrir para a participação no privilégio como também limitar o indivíduo na circunscrição da cordialidade e da eficaz e obediente subordinação. Ora, o que são

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Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, p. 205.

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os escândalos de corrupção de nossas elites políticas senão a quebra e dilatação da cordialidade das hierarquias e das subordinações secretas acordadas privativamente? De todo, é por mediação do favor - não sem propósito se apresenta Leda Maria ao “Arquivo Morto” da série Os Aspones como “afilhada do Doutor Ary”, que trabalhou como “chefe de gabinete do Doutor Léo” -, que as hierarquias sustentadas pela dinâmica que possui tal extensão, do mesmo modo que asseguram o parasitismo de nossas elites por mediação daquele usufruir gratuitamente do privilégio, por outra via, também estas mesmas hierarquias, promovem de modo hostil e adverso, a mais sanguinária exclusão. Ora, a própria dialética do doutor não-doutor, que abre o capítulo “Liberdade e Hierarquia”, indica-nos de todo algo das absurdas inversões hierárquicas quanto ao reconhecimento individual por nossas terras. A noção de doutor demarcada na “Lógica do disparate”, e que se encontra com a cena da Moira tratando o “chefe gente fina” de “doutor”, mesmo sem o sê-lo, aproxima-nos das noções de atribuição do signo de doutor em nossa experiência política e cultural. Do mesmo modo que Sérgio Buarque indica o viver do homem cordial como assentado em um “viver nos outros”, indicar laços de parentesco com um “doutor”, como no caso da apresentação de Leda Maria em seu primeiro dia de “estágio”, não indica outra coisa senão aquele modo de vida que procura sua saída do anonimato e da mediocridade, na pretensa filiação afetiva ou familiar com um ser outro, superior, tão somente pelo seu signo de “doutor”, embora não importe em ocasião alguma a discriminação de tal titulação de doutor, que por si só já desafoga de qualquer lama ou vergonha. Para a denominação de doutor por nossas terras, vale a passagem de Von Binzer encontrada na “Lógica do disparate”: “O Dr. Rameiro veio buscar-me. Não sei porque o chamam de ‘doutor’ e duvido muito que ele próprio saiba encontrar a razão desse tratamento. A única explicação... seria a de que todo brasileiro bem colocado na vida já nasce com direito a esse título...” Por outro lado, se uns são chamados de doutores mesmo sem o serem, José Murilo de Carvalho em passagem também encontrada na “Lógica do disparate”, fuçando as vísceras de nossa experiência histórica, e tratando dos primeiros anos das escolas superiores de São Paulo, chama-nos a atenção para a presença de alunos de cor em tais instituições, “aos quais, ..., um dos professores se recusava a cumprimentar alegando que negro não podia ser doutor.”13 Na leitura oferecida por Bajonas Brito, a dinâmica de determinação na designação de doutor por nossas terras, afirma-se desde uma implacável contradição, “uns são (doutores) sem terem se tornado; outros, mesmo tornando-se (doutores), não o podem ser.” É neste sentido que nos indica Bajonas Brito acerca do peso da hierarquia em nossa experiência histórica: “valem aqui os ditames da hierarquia que, sem qualquer pudor diante do princípio de identidade, discrimina entre o Ser maiúsculo (o de um doutor tão doutor que não precisa ser doutor para ser doutor) e o ser minúsculo (o de um doutor tão pouco doutor que sendo doutor não é doutor) e, assim, faz da questão do ser algo irrelevante. (...) O que é, não se torna e o que se torna, não é. O que é é uma posse inata – “todo brasileiro bem colocado na 13

Bajonas Brito, Lógica do Disparate, p. 175.

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vida já nasce com o direito a esse título”; o que não é é igualmente uma destituição congênita – “negro não podia ser doutor”.14

Referências:  Os Aspones. Texto de Alexandre Machado e Fernanda Youg. Direção Geral: José Alvarenga Júnior. Central Globo de Produção, 2004. TV Globo LTDA.  Brito, Bajonas.Os sertões e a fundamentação do pensamento crítico brasileiro do século XX. Vitória, maio de 2002.  ___________ Lógica do disparate. Edufes, CCHN Publicações. Vitória, 2001.  Buarque de Hollanda, Sérgio. Raízes do Brasil. Companhia das letras. São Paulo, 1995.  Carvalho, Abraão. Experiência brasileira: entre Tom Zé, Sérgio Buarque e Aracruz Celulose. In: Com o cérebro entre os trópicos – artigos e ensaios. Cariacica, janeiro de 2008.  R. Stroud, Scott. Viciado em suas próprias inclinações? Kant sobre a propensão ao mal. Impulso, Piracicaba, 2004.  Yuka, Marcelo. Paradoxo. Sangue Audiência – FURTO (Frente Urbana de trabalhos organizados). Sony & BMG. Music Enterteinment. Rio de Janeiro, janeiro de 2005.

14 Idem,

p. 176.

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