Os atores do PNDH-3, os media e o sistema deliberativo: um estudo de caso

July 19, 2017 | Autor: Vanessa Veiga | Categoria: Direitos Humanos, Mídia, Deliberative System
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Revista Eletrônica do Programa de Pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero Volume nº 4, Ano 4 - Outubro 12

Artigo

Os atores do PNDH-3, os media e o sistema deliberativo: Um estudo de caso Vanessa Veiga de Oliveira*

Resumo Resumo Pretendemos iniciar uma reflexão sobre os atores que ganham espaço na visibilidade midiática e afetam processos de decisão política no interior de um sistema deliberativo. Em um primeiro momento, realizamos uma caracterização dos sujeitos presentes em materiais dos meios de comunicação de massa (impresso e televisivo) que abordaram o controverso PNDH-3 (3º Programa Nacional de Direitos Humanos). Partindo do pressuposto de que a mídia configura-se como uma das arenas discursivas do sistema deliberativo, refletimos sobre as implicações dos desempenhos destes atores neste cenário para a constituição e funcionamento da democracia contemporânea.

Palavras-chave Palavras-chave Sistema deliberativo. Arenas discursivas. Meios de comunicação de massa. Atores. PNDH-3.

* Mestranda em Comunicação Social pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mails: [email protected]

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Introdução (...) Responsável pela criatura, o secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, agiu como o jovem estudante de medicina Victor Frankenstein, famoso personagem da literatura do século 19 que, na obstinação por vencer a morte, deu vida a um monstro. (Estado de Minas, editorial, 14 de janeiro de 2010).

Monstro, caça às bruxas, balaio de gatos, entrevero palaciano. Estes foram alguns dos termos utilizados para caracterizar o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos em sua cobertura midiática, entre os meses de janeiro a maio de 2010. Os adjetivos denotam o quão foi controverso e polêmico o objeto. Tal como a figura do Frankestein, gigante, feita de diversas partes, capaz de causar um forte estranhamento e perseguição, assim foi visto o PNDH-3. Para os propósitos deste trabalho, vimos refletir normativamente acerca de algumas questões desafiantes que o PNDH-3 instaura no que tange aos sujeitos que compuseram o debate midiático em torno do caso. Sinteticamente, nosso interesse estrutura-se do seguinte lugar: o programa de governo estudado foi construído por meio de conferências realizadas durante dois anos (2008-2009). Quando finalmente é finalizado e apresentado à população em dezembro de 2009, começa um novo debate, agora na arena dos media. Entre janeiro e maio de 2010, questionamentos sobre determinados pontos do documento foram levantados e centraram o espaço dado ao PNDH-3 na mídia. A pressão levou à mudança do texto original do programa, o qual foi reapresentado em maio de 2010 (algo que nunca aconteceu nas duas versões anteriores do projeto). Diante disso, o que nos instiga são dois fatos: 1) a mudança ser realizada após debates (e pressões) instaurados à luz da visibilidade midiática; e 2) a identificação dos atores (majoritariamente agentes do póprio governo, como ministros de Estado, e não a tradicional oposição) que realizam essa discussão e que conseguem alcançar tal resultado, a despeito de que o PNDH-3 tenha sido construído em conferências públicas. Esse contexto nos leva a perguntar: como e por quem foi realizada a oposição? Qual o peso da visibilidade midiática neste processo? Essas questões tornarão-se mais claras e problematizadas ao longo do texto. De início é importante marcar que entendemos os media como uma das arenas discursivas que compõe o sistema deliberativo. E, assim, compartilhamos dos estudos que mostram que a comunicação de massa tem papel importante no funcionamento da deliberação (Habermas, 1997, 2005, 2006; Maia, 2008; Gomes; Maia 2008; Bohman 1996; Cohen 1997; Dryzek 2001; Gutmann; Thompson, 1996, 2004). Compreendemos a cobertura midiática em torno do PNDH-3 como uma dessas arenas discursivas - que pode articular-se com a arena da política formal, com a arena de movimentos sociais e da sociedade civil organizada – e produz efeitos sistêmicos, globais. Interessa-nos, então, analisar esse movimento por meio dos atores convocados pela cobertura midiática.

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Marco Teórico “De uma maneira simples, a deliberação pode ser entendida como uma atividade interativa, envolvendo duas ou mais pessoas que examinam e consideram os argumentos uma das outras sobre determinadas matérias” (Maia, 2008, p.27). A definição de deliberação passa pelas condições de existir uma troca de argumentos – a racionalidade é um fator fundamental - que acontece em um contexto livre de coerções internas e externas, sendo inclusiva e pública. O diferencial está no peso dado à justificação pública: todas as decisões coletivas requerem uma explicação das razões, sendo este o fator que dá legitimidade a elas. À medida em que perspectivas não são excluídas do debate e os interlocutores são considerados mutuamente como seres moralmente capazes de participar da deliberação, há um aprimoramento dos resultados produzidos, aproximando-se de um ideal coletivo de justiça. Vários autores já se dedicaram a analisar o conceito de deliberação, seus aspectos e suas controvérsias, entendendo-o como um modelo político que contribui para a superação de limites teóricos e práticos dos modelos liberal e republicano (Bohman, 1996; Cohen, 1997; Dryzek, 2000; Gutmann; Thompson, 1996, 2004; Habermas, 1997; Marques; Miola, 2010;). Como aponta Neblo (2005, p.3-4), a deliberação é um padrão normativo pelo qual podemos julgar a legitimidade de uma instância empírica. Os procedimentos ideiais de uma política deliberativa são: a) ela preza pela racionalidade argumentativa; b) considera a igualdade moral e política dos participantes da contenda; c) deve ser livres de coerções internas e externas; d) deve ocorrer de forma inclusiva e pública, d) visa um acordo motivado racionalmente; e) visa uma reversibilidade das decisões, dado que seu objetivo é uma decisão consensual; f) pode abranger todas as matérias possíveis de regulamentação, g) considera no debate as necessidades e a transformaçlão de preferências e enfoques pré-políticos (Maia, 2008). Maia também aponta que essa situação ideal de discurso foi proposta por Habermas para a realização de debates, no entanto, ela esbarra em restrições do mundo ideal, tais como a desigualdade de status dos participantes, a diferença nas capacidades de participação, a existência de atores que não desejam se engajar no debate político. Por outro lado, há as vantagens que a deliberação fornece para a democracia. Neblo (2005) aponta as seguintes: 1) A deliberação contribui para a justiça das decisões dado que por ela ser inclusiva e pública todos têm a chance de expressar seus interesses; 2) Contribui para a eficácia da decisão, porque aumenta as possibilidades de soluções no processo decisório; 3) A decisão torna-se mais estável, pois as críticas foram conhecidas (tornadas públicas e repensadas) durante o debate;

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4) Contribui para que as decisões sejam sustentadas pelos participantes, uma vez que elas foram geradas em um procedimento justo e público, o que promove uma racionalidade forte; 5) Contribui para o capital social, gerando vínculos cívicos; 6) Contribui para a virtude e inteligência dos próprios participantes; 7) Contribui para autonomia dos cidadãos, envolvendo eles no governo; 8) Promove uma esfera pública vigorosa, ao protegê-la da complacência e do despotismo; 9) Institucionaliza uma prática que expressa um múto respeito entre os cidadãos. A proposta de democracia deliberativa é celebrada como um modelo que inclui os cidadãos no processo de decisão política o qual é amparado na racionalidade comunicativa. Tal sistema gera aprendizado social e legitimidade, pois se aproxima de um resultado mais justo possível, dado que a deliberação busca – nos seus pilares da inclusividade e da publicidade – escutar as justificativas de todos os lados afetados pelo objeto em debate. No desenvolvimento da teoria deliberacionista um conceito vem ganhando destaque: o de sistema deliberativo, o qual nos parece bastante profícuo. É uma noção – em termos bastante sintéticos - que torna possível apreender a deliberação em múltiplas formas, modelos e níveis (Goodin, 2005; Hendriks, 2006; Mansbridge, 1999; Parkinson, 2006, 2009;). A idéia de sistema deliberativo apresenta uma perspectiva global, ampliada para a análise da deliberação em abordagens micro e macro, percebendo as relações existentes em vários lugares (subsistemas) em que ocorre a deliberação. Para o propósito deste trabalho, interessa-nos essa discussão sobre sistema deliberativo, composto por várias arenas discursivas, sendo uma delas os meios de comunicação de massa. Parte dos estudos sobre as relações entre a deliberação e os meios de comunicação enfoca a constituição de debates na própria esfera de visibilidade dos media (Maia, 2008). Nessa perspectiva, não entendemos os meios de comunicação apenas como “medium” entre a informação e o público, mas também como arena de debate. Como destaca Wilson Gomes (2008), o campo da comunicação tem a prerrogativa de sequestrar temas políticos para a esfera de visibilidade pública, ou mesmo de iniciar novas discussões. A esfera de visibilidade pública midiática não é nem monolítica, nem universal. Não é monolítica porque não temos uma unicidade de emissor nem uma inteligência unificadora por trás do que é dito, a controlar cada expressão. (...) Tampouco é universal, porque não há um público único, uma espécie de consumidor-de-massa-modelo que desfruta das mesmas mensagens ao mesmo tempo. (...) A esfera de visibilidade midiática é, em si mesma, um conjunto volumoso e complexo de materiais que os seus apreciadores ou fruidores organizam, estruturam e compõem – em uma palavra, editam. (Gomes;Maia, 2008, p.146-147,162).

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Partimos da perspectiva de que a esfera de visibilidade midiática – com sua complexidade, desafios e caractetísticas – configura-se como uma das arenas (ou subsistema) do sistema deliberativo. Arenas podem ser definidas como os locais “nos quais os cidadãos podem propor questões para a agenda política e participar do debate acerca dessas questões” (Cohen apud Marques, 2009, p.104). Audiências públicas, mini-públicos, parlamento, entre outros ambientes são arenas que compõem/contribuem para a deliberação. Os media enquanto uma esfera de debate, de acesso dos cidadãos à formação da opinião pública, ou mesmo como um local de troca de razões públicas, pode também ser considerada uma das arenas discursivas.

O caso do PNDH-3 nos media A fim de refletirmos sobre a relação que os media de massa estabelecem com o sistema deliberativo, pretendemos caracterizar o subsistema midiático no debate em torno da mais recente política de promoção dos direitos humanos no Brasil: o terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3). Em nossa análise, interessa-nos os momentos de trocas de razões que ganharam visibilidade no espaço do jornalismo (especificamente, o telejornal Jornal Nacional da TV Globo, o jornal impresso de cobertura nacional Folha de S.Paulo e o jornal impresso de cobertura regional, o Estado de Minas) e que levaram à uma discussão pública e à uma reformulação da proposta de direitos humanos para o país. Para este trabalho, partimos dos elementos comuns e recorrentes (temas abordados e atores que ganharam espaço no conteúdo das matérias) na cobertura geral do caso, não destacando as especificidades de cada linguagem do jornalismo. A escolha por centrar neste trabalho uma análise sobre a natureza dos atores que ganham o espaço midiático em geral, levou-nos a um atenuamento das fronteiras entre cada tipo de jornal que utilizamos, mas essa será certamente uma questão que voltaremos a considerar em futuros trabalhos. Apresentado à população no dia 21 de dezembro de 2009, o PNDH-3 só ganhou força na cena midiática em 7 de janeiro de 2010, devido ao recesso do final de ano no Congresso. Desde então, uma série de discussões no plenário, reuniões interministeriais e entrevistas de atores influentes da sociedade civil tomou espaço nos meios de comunicação, até a divulgação do novo programa em maio do mesmo ano. Apesar de tratar de cerca de 40 questões (desde questões indígenas até direitos do consumidor), o projeto tornou-se pauta de forte discussão quando tocou em quatro questões-chaves, a saber: 1) a proposta de descriminalização do aborto e o estado laico no Brasil; 2) a comissão da verdade e conseguinte apuração dos crimes cometidos pelos militares duComtempo 1 - Outubro 12 Comtempo––Revista RevistaEletrônica Eletrônicado doPrograma Programade dePós-graduação Pós-graduaçãoda daFaculdade FaculdadeCásper CásperLíbero Líbero––Volume Volume4nºnº2, Ano 3 - Dezembro 2011 http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comtempo http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comtempo

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rante a ditadura; 3) a negociação/proteção com invasores de terra em detrimento ao agronegócio; 4) a fiscalização do conteúdo editorial de meios de comunicação. É interessante notar que as questões sensíveis neste debate foram aquelas ligadas à atores com interesses específicos e que possuem tradição e representatividade na opinião pública: setores ligados à Igreja, ao agronegócio, ao exército e aos conglomerados midiáticos. Identificamos em nossa análise que o debate acerca do PNDH-3 foi conduzido principalmente por atores ligados ao próprio executivo (sendo a maioria ministros do então presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, como o ministro da Agricultura, da Defesa, Militares), e não por agentes da oposição, que usualmente são as fontes de crítica do governo. De tal maneira, a discussão foi caracterizada pela imprensa como uma crise de governo, pois a presidência não conseguia articular seus aliados. A ameaça de pedidos de demissão e a imagem de que o governo sequer consegue controlar sua base em pleno ano eleitoral provocaram uma forte pressão pela mudança do texto do programa. O que foi alcançado com o relançamento do PNDH-3 em maio de 2010, a despeito de manifestos envolvendo centenas de organizações da sociedade civil que apoiavam e participaram da proposta original do PNDH-3. O trecho a seguir revela o descontentamento de setores da sociedade civil organizada, diante da mudança no PNDH-3: O PNDH-3 é resultado de amplo processo participativo. Resultou das diretrizes aprovadas na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, e na sistematização de resoluções de mais de 50 conferências nacionais sobre diversos temas. (...). Desta forma, manifestamos nossa oposição frontal (...) ao Decreto nº 7.177 (...) que altera vários pontos do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) originalmente publicado em dezembro de 2009, por ter sido feito sem o devido respeito ao processo democrático e participativo. (...) (Campanha Nacional pela Integralidade e Implementação do PNDH-3 – nota pública, maio de 2010).

No início da cobertura, a estratégio do governo foi de uma argumentação responsiva às críticas recebidas. No entanto, ao final de janeiro já era possível perceber uma aceitação (ou abafamento) das críticas ao PNDH-3: Lula lembrou que nem tudo que está proposto no plano se tornará lei. “Daquele resultado do plano de direitos humanos, uma parte daquilo pode ser transformada em lei, a outra parte fica no programa. (“Lula descarta caça às bruxas”. Jornal Estado de Minas, publicado em 16/01/2010)

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Sobre as críticas dos setores do agronegócio, o ministro afirmou que há vinculações políticas na entidade representativa dos produtores rurais, a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária). “A atual presidente [Kátia Abreu] é uma senadora do DEM. Quando a CUT tem vínculos com o PT é tratada sistematicamente como aparelho partidário, a CNA não é tratada assim por ninguém”, disse Paulo Vanucchi, ministro dos Direitos Humanos. (Vanucchi diz que críticos querem a volta do DOI-CODI. Jornal Folha de S.Paulo. Publicado em 28/01/2010).

Inicialmente, a defesa do PNDH-3 era feita de maneira objetiva: “o projeto contempla a liberdade religiosa” ou “o projeto defende o direito à comunicação”. Esse posicionamento normalmente aparecia na forma de uma nota publicada oficialmente, como se vê no exemplo: A Secretaria Nacional de Direitos Humanos divulgou, uma nota em que declara que o programa foi discutido em conferências em todo o país e que tem como um de seus objetivos estratégicos o acesso à Justiça no campo e na cidade. (“Programa de Direitos Humanos tem mais críticas”. Jornal Nacional, matéria exibida em 8/1/2010)

A pressão exercida pela frente oposta levou a uma complexificação do debate e os atores da defesa começaram a aparecer diretamente no processo responsivo: (soundbite presidente Lula): “Não se trata de caça às bruxas. Trata-se apenas de você pegar 140 pessoas que ainda não encontraram os seus parentes que desapareceram, sabe que essas pessoas possam ter o direito de encontrar o cadáver e enterrar. As pessoas, de vez em quando, criam chifre na cabeça de cavalo” (Lula fala sobre Programa de Direitos Humanos. Jornal Nacional, matéria exibida em 15/1/2010)

O presidente Lula recebeu ontem uma comissão da CNBB e garantiu que mudará o texto do PNDH 3. Lula afirmou que serão retirados o apoio à descriminalização do aborto e a proibição à ostentação de símbolos religiosos em prédios públicos. Ontem, os précandidatos à Presidência adotaram um discurso moderado sobre aborto, em consonância com a CNBB. Em Porto Alegre, em entrevista a um programa da rede RBS, Dilma Rousseff (PT) disse que aborto “é uma coisa que nenhuma mulher defende”. “Ninguém fala: “Eu quero fazer aborto”. Aborto é uma violência contra as mulheres”, disse. (CNBB prega voto pró-vida e candidatos condenam aborto”. Jornal Folha de S.Paulo. Publicado em 12 de maio de 2010)

As críticas ao PNDH-3 permaneceram e em março de 2010, a SEDH divulgou uma nota afirmando que algumas mudanças seriam acatadas, e, em maio a nova versão do PNDH-3 foi divulga-

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da. O quadro abaixo ilustra alguns dos argumentos usados pelos críticos ao programa que apareceram na cobertura midiática e a mudança realizada pelo governo. Argumentos contra o PNDH-3

Mudanças realizadas

O projeto pode atrasar a desocupação de terras de O projeto propõe instituir a mediação dos conflitos invasores, pois isso passa a ser condicionado por agrários, sem prejudicar as ações de reintegração negociações de posse na Justiça. O projeto deixa as empresas de comunicação vulneráveis, pois preveem penalidades como multas, suspensão de programação e cassação para as emissoras que o governo considerar que violam os direitos humanos

Foi retirado do documento

O projeto prevê a constituição de uma comissão da Inicialmente, previa uma comissão de verdade verdade proposta de maneira equivocada, sendo que investigasse o período de 1964-1984. composta por pessoas que no passado foram Agora, o período abrange o que está previsto na criminosas Constituição. O projeto atenta contra a vida, pois prevê a Agora o governo prefere tratá-lo como uma questão descriminalização do aborto de saúde pública, sugerindo apenas a discussão no legislativo sobre o código penal relativo à prática Fig.1: quadro comparativo com a lista dos argumentos utilizados para criticar o texto original do PNDH-3 e que foram incorporados à nova versão do programa1

Apontamentos Ao caracterizar o caso do PNDH-3 nos media, percebemos de imediato a presença de três fatores: a) a existência de um jogo político presente na negociação de interesses; b) a realização de um debate argumentativo, com trocas públicas de razões sobre as questões que deveriam mudar ou não no PNDH-3; c) o debate é realizado em um espaço de ampla visibilidade e discutibilidade. Tais fatores foram fundamentais para o processo de decisão, que resultou nas mudanças acatadas pelo governo. Os atores que participaram do debate na arena midiática eram em sua maioria atores do sistema político formal (ministros, deputados, senadores), e em minoria representantes da sociedade civil organizada. Além disso, eram atores ligados à fortes relações de poder no Brasil: Igreja Católica (CNBB), grande produtores rurais (senadores da bancada ruralista, CNA), militares e representantes de grandes veículos de comunicação (Aberj, ANJ). A oposição ao programa do governo não foi feita apenas por esses atores influentes, como também por membros do alto escalão do governo (ministros), ou seja, sujeitos que a priori deveriam estar alinhados com a presidência. A arena midiática mostrou-se ser uma esfera de debate, amparada em proferimentos racionais publicamente defensáveis, apresentados em um ambiente público e amplo. Quando a oposição

1 Além das mudanças citadas, outros pontos de interesse dos atores analisados foram atendidos. O uso de símbolos religiosos em repartições públicas federais não está mais impedido, a mudança de nomes de ruas e repartições públicas com nomes de torturadores não está mais imposta, mas recomenda como fonte de debate público. Outra mudança significativa está na redação. Inicialmente, constava escrito no projeto: “fica aprovado o PNDH-3”. Na nova versão, o texto será: “torno público o PNDH-3”. A mudança nas palavras visava afastar a idéia de que o PNDH-3 era um programa de governo, mas sim uma proposta a longo prazo para o país. Essa era uma crítica amparada por vários atores, dado que o PNDH-3 foi lançado em ano eleitoral para a presidência do país.

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ao PNDH-3 realizava alguma acusação, os defensores do programa (o presidente, ministros) também ganhavam voz nas matérias. Ainda assim, o incômodo que motivou a realização deste trabalho persiste e ainda será objeto de novas reflexões. Parece pernicioso o fato de atores de tradicional influência na sociedade brasileira realizar a oposição, ignorando consensos construídos anteriormente em espaços de debate público. A pressão realizada por esses atores, somada a uma iminente crise de governo que começava em ano eleitoral, parece ter sido fundamental para o desfecho do debate. Para melhor avaliar este quadro, talvez seja necessário voltar à noção de sistema. O que caracterizamos neste trabalho foi o subsistema dos media no interior de um sistema deliberativo. Bem sabemos que a arena midiática não move sozinha o processo de produção de decisão política. Por isso, talvez seja interessante futuramente articular esse contexto a processos que se desenrolaram simultaneamente em outros subsistemas da deliberação.

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