Os avanços e recuos do acordo de paz na Colômbia
Descrição do Produto
Colaboraram nesta edição Ana Isabel Xavier
Francisco Xavier de Sousa
Maria Fernanda Fernandes
Antonio Costa e Silva
Frederico Fonseca
Maria João Ferro
António José Seguro
Georg Dutschke
Mariano Aguirre
Araceli Serantes-Pazos
Henrique Morais
Miguel Barreto Henriques
Bia Carneiro
Inês Amaral
Nancy Gomes
Bráulio Britto Neves
Inês Marques Ribeiro
Patrícia Galvão Teles
Brígida Rocha Brito
Isabel Silva
Paula Lopes
Bruno Carriço Reis
João Manuel Rocha
Reginaldo Almeida
Carlos Oliveira Santos
João Manuel Santos
Renato Vercesi Mader
Carolina Varela
Jorge Tavares da Silva
Rita Romeiras
Cátia Miriam da Costa
José Gomes André
Rui Paulo Almas
Célia Quintas
José Milhazes
Sandra Ribeiro
Cristina Sala Valdés
José Renato Ferraz da Silveira
Sandro Mendonça
Domingos S. Ferreira
Juliana Rocha Franco
Sara Araújo
Dora Santos Silva
Larlecianne Piccolli
Sergio Ricardo Quiroga
Evanthia Balla
Leonardo Miglioranza Castagna
Sofia José Santos
Fang Qi
Leonel Miranda
Tania Gupta
Fátima Lopes Cardoso
Luís Alves de Fraga
Tommaso Trillò
Felipe Pathé Duarte
Luís Moita
Viviane Riegel
Filipe Vasconcelos Romão
Luísa Godinho
Wilson Roberto Bekesas
Francisco Heras Hernández
Madalena Romão Mira
Francisco Rui Cádima
Manuel Mira Godinho
JANUS 2017 anuário de relações exteriores © OBSERVARE – Universidade Autónoma de Lisboa Lisboa, Dezembro de 2016 Luís Moita Filipe Vasconcelos Romão Editora: Madalena Romão Mira Design gráfico e paginação: Rita Romeiras Biblioteca virtual: Janusonline.pt Director:
Subdirector:
Publicação anual Propriedade: Cooperativa
de Ensino Universitário – CRL
NIF: 501641238 Redacção: R ua
de Santa Marta, 56 1169-023 Lisboa Impressão: ACD Print, S.A. Morada: Rua Marquesa de Alorna nº 12-A, Odivelas 2620-271 Ramada Tiragem: 800 exemplares Depósito legal:
2183-4814 978-989-8191-72-4 o N. de registo do ICS: 120525 ISSN:
ISBN:
Nota: os autores dos textos adoptam diferentes acordos ortográficos.
janus
2017
Conjuntura internacional
A comunicação mundializada
JANUS
2017
Índice Apresentação
7
1.
Conjuntura internacional
8
1.1
A escolha de Guterres
António José Seguro
10
1.2
Why the EU’s international legitimacy matters: the case of crisis management
Inês Marques Ribeiro
12
1.3
As respostas da Europa à crise dos refugiados
Patrícia Galvão Teles
14
1.4
As respostas europeias aos atentados de Paris e Bruxelas
Patrícia Galvão Teles
16
1.5
Os objectivos estratégicos do DAESH na Europa
Felipe Pathé Duarte
18
1.6
Líbia: um lugar que clama por esperança
Francisco Xavier de Sousa
20
1.7
Europe’s security threats: Ukraine revisited
Evanyhia Balla
22
1.8
Ucrânia: guerra sem fim à vista ou mais um conflito congelado
José Milhazes
24
1.9
O posicionamento russo no Ártico: entre ímpetos econômicos e de segurança
Larlecianne Piccolli
26
1.10
O blefe de Cameron: uma análise a partir do realismo trágico
José Renato Ferraz da Silveira Leonardo Miglioranza Castagna
28
1.11
BREXIT: o chá das cinco serve-se em Bruxelas à mesa das negociações
Ana Isabel Xavier
30
1.12
O fim do bipartidarismo em Espanha
Filipe Vasconcelos Romão
32
1.13
A política externa dos Estados Unidos depois de Obama
Mariano Aguirre
34
1.14
EUA 2016: as eleições primárias e a sucessão de Obama
José Gomes André
36
1.15
A República Bolivariana da Venezuela sem Hugo Chávez
Nancy Gomes
38
1.16
2016: o ano da debacle brasileira
Filipe Vasconcelos Romão
40
1.17
Os avanços e recuos do acordo de paz na Colômbia
Miguel Barreto Henriques
42
1.18
Taiwan e as relações com a China
Jorge Tavares da Silva
44
1.19
Geopolítica e segurança no mar do Sul da China
Leonel Miranda
46
1.20
Rota da Seda: a ascensão e desdobramento de uma agenda
Sandro Mendonça
48
1.21
A mineração do espaço marinho e a oportunidade estratégica de Portugal no século XXI
António Costa e Silva
50
1.22
El acuerdo de París: entre lo posible y lo necesario
Francisco Heras Hernández
52
1.23
Laudatio Si’: la Encíclica del Papa Francisco ante el cambio climático
Araceli Serantes-Pazos
54
1.24
Trabalho para o desenvolvimento humano
Brígida Rocha Brito
56
1.25
Estagnação secular: do debate de sábios a uma realidade mais do que provável?
Henrique Morais
58
1.26
Diplomacia científica: do conhecimento académico ao soft power político
Carolina Varela Cátia Miriam Costa Manuel Mira Godinho
60
1.27
A importância do fator “língua” nas exportações portuguesas
Maria João Ferro Sandra Ribeiro
62
1.28
Tendências recentes do comércio internacional e do investimento direto de Portugal com o exterior
Rui Paulo Almas João Manuel Santos
64
2.
A comunicação mundializada
2.1
A galáxia internet
2.1.1
A cultura da internet
Francisco Rui Cádima
68
2.1.2
Internet e censura do Estado
Francisco Rui Cádima
70
2.1.3
Terrorismos e media
Francisco Rui Cádima
72
2.1.4
Exclusão e cidadania na era digital
Frederico Fonseca Inês Amaral
74
2.1.5
66
Lines in the sand: Digital India, ethical data practices and privacy
Tania Gupta
76
2.1.6
Os Media e a proposta das Epistemologias do Sul
Sara Araújo Sofia José Santos
78
2.1.7
O poder da imagem mediática: a consciência do humanismo em conflitos internacionais
Fátima Lopes Cardoso
80
4
2.2
Sistemas de representação na actualidade
2.2.1
De pessoas a migrantes: os processos de construção discursiva da xenofobia
Luísa Godinho
82
2.2.2
O legado dos desenhadores da guerra
Reginaldo Almeida
84
2.2.3
“Primavera Árabe”: o mito das revoluções Twitter e Facebook
Inês Amaral
86
2.2.4
Pistas para pensar as relações entre media e terrorismos
João Manuel Rocha
88
2.2.5
As representações mediáticas do (pós)colonialismo português na imprensa popular.
Bruno Carriço Reis
90
2.2.6
Aesthetic cosmopolitanism and media consumption of young people in São Paulo
Viviane Riegel Renato Vercesi Mader Wilson Roberto Bekesas
92
2.2.7
Europeanness in Chinese historical perceptions
Fang Qi
94
2.3
Utilizações e manipulações da informação e da comunicação
2.3.1
Referenciais e estratégias comunicativas internacionais
Carlos Oliveira Santos
96
2.3.2
Grupos de comunicação social em Portugal e desafios da globalização
Célia Quintas Georg Dutschke Isabel Silva
98
2.3.3
Jovens, práticas digitais e novos riscos em rede
Paula Lopes
100
2.3.4
Média alternativos e contrahegemonia
Bia Carneiro
102
2.3.5
La Comunicación para el Cambio Social: una mirada participativa al concepto de desarrollo
Cristina Sala Valdés
104
2.3.6
La Comunicación para el Desarrollo: conceptos, aproximación histórica y características generales
Cristina Sala Valdés
106
2.3.7
Comunicación comunitaria y medios ciudadanos: la voz desde dentro de las comunidades
Cristina Sala Valdés
108
2.3.8
Think Tanks num mundo globalizado
Cátia Miriam Costa
110
2.3.9
As bases do jornalismo intercultural em ambiente digital
Dora Santos Silva
112
2.3.10
Public perceptions, sports ideologies and journalism I
Sérgio Ricardo Quiroga
114
2.3.11
Public perceptions, sports ideologies and journalism II
Sérgio Ricardo Quiroga
116
2.3.12
Public perceptions, sports ideologies and journalism III
Sérgio Ricardo Quiroga
118
2.3.13
The distributed performance of artefactual representation by mobile video in Brazil
Juliana Rocha Franco Bráulio Britto Neves
120
2.3.14
Mediterranean migration and the language of crisis: an Italian case study
Tommaso Trillò
122
2.3.15
The Treaty of Lisbon: changing perceptions through redenomination
Maria Fernanda Fernandes Domingos S. Ferreira
124
2.3.16
Portugal na Grande Guerra: a propaganda beligerante nacional no contexto da aliança luso-britânica
Luís Alves de Fraga
126
Colaboradores
128
20 anos de Anuário
138
5
JANUS
2017
1.17 • Conjuntura Internacional
Os avanços e recuos do acordo de paz na Colômbia 26 DE SETEMBRO DE 2016 bem poderia ter representado para os Colombianos o primeiro dia do resto das suas vidas ou, nas imortais palavras de Sophia Mello Breyner, a propósito do 25 de Abril em Portugal, o dia inicial inteiro e limpo, onde emergissem da noite e do silêncio, mas a história e a vontade popular assim não quiseram.
Si, se pudo! Nesta data, assinar-se-ia na cidade de Cartagena de Índias o “Acordo final para a terminação do conflito e construção de uma paz estável e duradoura” entre o governo colombiano, presidido por Juan Manuel Santos, e Rodrigo Londoño, aliás Timochenko, comandante máximo das FARC-EP, que pretendia colocar um ponto final em cinquenta e dois anos de conflito armado, que deixou mais de oito milhões de vítimas. O acordo de paz, negociado ao longo de mais de quatro anos, em Havana (e numa fase inicial na Noruega), era o corolário de mais de trinta anos de processos de paz na Colômbia, tendo chegado onde nenhum anteriormente conseguira com as FARC. Sentia-se no ar um ambiente de grande optimismo: à cerimónia de assinatura assistiriam inúmeros chefes de estado do mundo; a comunidade internacional aplaudia unanimemente o acordo; nas zonas rurais da Colômbia soavam os sinos das igrejas por ocasião do fim da guerra; vítimas entoavam em coro “Si, se pudo!”. Vários factores permitiram que este processo de paz, ao contrário de vários anteriores, culminasse num acordo com a mais antiga e poderosa guerrilha da América Latina. Processo de negociação e não de rendição Em primeiro lugar, ao contrário do que ocorreu no último processo de paz com as FARC na Colômbia, entre 1998 e 2002, durante a presidência de Andrés Pastrana, no qual este grupo insurgente chegava às negociações na sua máxima força em toda a sua história, a guerrilha que negociou com o governo Santos encontrava-se profundamente debilitada militarmente, em retração territorial e com escassa base social, após os duros golpes e reveses militares sofridos durante os oito anos de “Política de Seguridad Democratica” do governo de Álvaro Uribe. A correlação de forças mudou, o que imprimiu nas FARC uma dose de realismo, levando a uma redefinição da sua postura política e estratégica: por um lado, uma consciência do esgotamento da via armada, por outro, uma desradicalização e contenção nas suas reivindicações na mesa de negociação. Da mesma forma, encontrou na equipa de negociação do governo, chefiada por Humberto de la Calle, um interlocutor que entendeu, pragmaticamente, que esta era uma guerrilha enfraquecida mas não
derrotada, permitindo que este fosse um processo político de negociação e não de rendição. Isto traduziu-se não só na abertura de um verdadeiro espaço para discutir temas políticos de fundo, como a reforma agrária, a participação política, o problema do narcotráfico, assim como na procura de soluções de compromisso, o que implicou cedências políticas de ambas partes.
São duas Colômbias antagónicas, que escassamente se conhecem, se compreendem e dialogam entre si. A paz parecia próxima, mas faltava uma prova de fogo – submeter a um plebiscito o acordo negociado, de forma a legitimar popularmente o processo de paz. Isto implicava riscos num país altamente fragmentado e polarizado e com poderosas forças políticas contra o processo de paz, lideradas pelo ex-presidente Álvaro Uribe. As sondagens indicavam uma clara tendência a favor do “sim”, mas no dia 2 de Outubro, não só o furacão Matthew provocou estragos na Colômbia: o resultado inesperado do plebiscito foi um balde de água fria para os que esperavam a paz no país. O “não” ganhou, ainda que por uma margem mínima: 50, 21%, contra 49,78% a favor do “sim”. Menos de sessenta mil votos ditaram o destino da nação, tendo igualmente sido reduzido o nível de participação, com uma taxa de abstenção de 62,59% (La del plebiscito…, 2016). A complexidade do referendo A leitura do referendo é complexa. São vários os factores que explicam a rejeição popular do acordo de paz. Desde logo os resultados constituem, tal como já havia acontecido na segunda volta das eleições presidenciais, uma radiografia do país: revelam uma sociedade profundamente polarizada e dividida na percepção do conflito armado e na projeção de saídas para a paz. A geografia dos resultados do referendo tendem a corresponder com as dinâmicas regionalmente diferenciadas do conflito armado. Em algumas das zonas mais fustigadas e afectadas pela violência armada, prevaleceu maioritariamente o “sim”. No centro do país e em grande parte dos centros urbanos, onde a população olha para o conflito armado desde a comodidade da sua poltrona e do ecrã da televisão, teve grande impacto o “não”. São duas Colômbias antagónicas, que escassamente se conhecem, se compreendem e dialogam entre si, factor que deu origem e alimentou o mesmo conflito armado e que complica até ao dia de hoje a sua resolução. 42
Miguel Barreto Henriques Por outro lado, a recusa popular do acordo com as FARC relaciona-se com uma satanização generalizada desta guerrilha na sociedade colombiana, provocada pelos próprios erros cometidos por este grupo (sequestros, extorsão, massacres, ligações com o narcotráfico), mas também pelos meios de comunicação dominantes, que veiculam uma percepção desequilibrada do conflito armado que sobrevaloriza e expõe a violência guerrilheira e oculta a violência paramilitar e do Estado colombiano. Da mesma forma, o desconhecimento de grande parte da população colombiana da história do conflito armado, da natureza das FARC e seus membros e de fenómenos como o genocídio da Unión Patriotica, partido político criado pelas FARC e exterminado nos anos oitenta, conduzem a um entendimento muito generalizado deste grupo insurgente como um bando de delinquentes, narcotraficantes e terroristas sem objetivos políticos nem ideológicos, o que complica profundamente a sua incorporação no sistema político colombiano. O que estava em jogo com este acordo de paz era também reintegrar na comunidade política colombiana a esquerda. Para muitos dos que saíram a votar ou a manifestar-se em Cartagena pelo “não”, envergando a camisola da seleção nacional colombiana, como um ato performativo de patriotismo, como se dissessem que não há lugar no país para comunistas; são inimigos da pátria e não merecem outro destino que não seja morrer ou apodrecer na prisão. Neste sentido, a paz e a reconciliação na Colômbia encontram sérios obstáculos, não só pela permanência de grupos armados ilegais, mas também pela cultura política reinante. Assim, em grande medida a vitória do “não” no referendo representou a supremacia do rancor, do ódio e do desejo de vingança sobre os guerrilheiros das FARC, em detrimento da paz e da reconciliação no país. Para uma muito significativa parte da população colombiana era inaceitável que guerrilheiros das FARC pudessem ter assento no parlamento colombiano e se submetessem a mecanismos de justiça transicional que não implicavam penas de prisão efetiva; da mesma forma que era ilegítimo negociar e definir temas políticos de importância para o país, com um grupo guerrilheiro ou terrorista. Todas estas reticências foram, além do mais, aproveitadas por uma campanha pelo “não”, liderada por Álvaro Uribe, baseada no medo e na manipulação das massas, que levantou a bandeira do fantasma e ameaça comunistas, da entrega do país à guerrilha e do perigo da conversão da Colômbia num regime “castrochavista”. Para tal, desenvolveu uma estratégia de indignação e desinformação via redes sociais, através de rumores, como que os reformados iriam perder parte da sua pensão para pagar chorudos salários aos guerrilheiros desmobilizados. Por último, conseguiu mobilizar os sectores
cristãos mais reacionários contra o enfoque de género e as menções a direitos da comunidade LGBTI no acordo de paz, denunciados como um atentado a instituição da família. Não há acordos perfeitos Na realidade, como todos os acordos de paz, este não era um acordo perfeito. Havia falências, ausências e limitações na letra do acordo. Tampouco encontraria o país neste documento a panaceia para todos os seus problemas políticos e sociais. Na verdade, a paz é um processo sempre inacabado e imperfeito (Muñoz Muñoz, 2000), como imperfeito é o mesmo ser humano. Porém, efetivamente, como muitos sublinharam, entre os quais o Presidente Santos, “é preferível uma paz imperfeita a uma guerra perfeita” (Santos, 2016). Realmente, a paz não se assina, nem se materializa como um café instantâneo com a finalização de uma negociação; a paz constrói-se. É um caminho exigente e de longo prazo, que pressupõe múltiplos atores e dimensões, extravasando o papel e âmbito dos atores armados. Como refere Lederach (1997), mais que um processo de paz necessitam-se processos de paz a vários níveis. No entanto, este acordo significava um passo de gigante no caminho da paz – o fechar de um dos mais sombrios capítulos da história da Colômbia e um dos mais visíveis rostos da violência no país. Da mesma forma, respondia a algumas das deficiências estruturais e problemas políticos do país e estabelecia mecanismos para a justiça, a reparação às vítimas e a verificação da exigente tarefa de desmobilização, desarme e reintegração de combatentes. O primeiro ponto acordado na agenda de negociação procurava saldar uma das maiores dívidas históricas do país e incidir sobre porventura a principal raiz do conflito armado – o problema agrário e de subdesenvolvimento das zonas rurais colombianas. Estabelecia uma reforma agrária e um programa integral de promoção do desenvolvimento no campo colombiano e de extensão dos serviços públicos nas zonais mais recônditas do território nacional. Estas reformas eram e são necessárias, independentemente do conflito armado e da questão da guerrilha. Situação semelhante ocorria com os acordos referentes às drogas e cultivos ilícitos. Promoviam uma mudança de paradigma relativamente a este tema: romper com o passado de “guerra contra as drogas” e fumigações aéreas, abordando o assunto como um problema de saúde, de alternativas de desenvolvimento e produção agrícola para os camponeses. Além do mais, reconhecia o carácter necessariamente internacional da questão do narcotráfico e sua solução, comprometendo o Estado colombiano com a realização de uma grande conferência internacional para reavaliar a política internacional antidrogas. O acordo sobre participação política tinha como eixo fundamental o que a literatura anglo-saxónica chama de ballots for bullets – transformar o conflito colombiano, mediante a conversão das FARC num partido, redirecionando a luta política para um plano civil, sem armas. Adicionalmente,
pretendia contribuir à “democratização da democracia” (Santos, 2003) colombiana por via do aumento dos canais de participação cidadã, do estabelecimento de maiores garantias para a oposição e a mobilização social. Resultados feridos: ‘impunidade, impunidade’ No tema das vítimas a base do negociado era a criação de uma jurisdição especial para a paz, assente num equilíbrio entre uma amnistia a delitos políticos e a sanção às mais graves violações ao direito internacional humanitário, como crimes de guerra e de lesa humanidade. No entanto, não estabelecia penas de prisão efetiva, mas sim sanções alternativas que passavam pela reparação às vítimas e a “restrição da liberdade” em condições especiais. Este elemento foi profundamente controverso na sociedade colombiana e motivou entre os sectores de oposição ao acordo a repetição constante do mantra “impunidade, impunidade”. Nada havia de “castrochavista” no acordo: as FARC aceitavam as regras do jogo da democracia liberal e pluralista; não se tocava no essencial da política económica do Estado, nem na estrutura agrária, institucional e jurídica do país; e muito menos se estabelecia a colectivização dos meios de produção de riqueza. Contudo, subjazia ao acordo uma visão política progressista da sociedade, que lançava bases para reformas e processos de transformação social importantes. Do pântano de incertezas ao novo acordo de paz O acordo estava moribundo ou gravemente ferido. O país dera um salto no escuro, abrindo uma caixa de pandora que o mergulhava num pântano de incertezas. O futuro da paz e do acordo era um grande ponto de interrogação. Renegociá-lo com vista a endurecer os mecanismos de sanção às FARC e a bloquear a sua participação política, como o defendiam os líderes do “não”, poderia ser profundamente difícil ou, mesmo, irrealista. Nesta medida, poder-se-iam abrir as portas à continuação da guerra com as FARC (ou algumas das suas frentes), ao mesmo tempo que continuava por resolver o problema do ELN, a segunda maior guerrilha colombiana, assim como o fenómeno paramilitar de extrema-direita, que se reciclou e reconfigurou depois da extinção das AUC. No entanto, nem tudo era negro: o dirigente das FARC, Timochenko, na mesma noite do plebiscito, manifestou a sua vontade de não voltar à guerra e de “usar só a palavra como arma de construção de futuro” (Las Farc…, 2016). Igualmente, entre as vozes pelo “não”, houve mensagens conciliadoras e no sentido de não deitar o acordo na íntegra no caixote do lixo, mas sim renegociar certos pontos. Da mesma forma, a sociedade civil permaneceu no clamor da paz no país. Inúmeras marchas, manifestações e eventos realizaram-se exigindo que as perspectivas de paz não se esfumassem e se encontrassem soluções de consenso para não deixar cair o acordo. Da mesma forma, o Comité do Nobel de Paz em Oslo atribuiu a distinção a Juan Manuel Santos, 43
deixando uma mensagem de esperança e de alento. Assim, tanto a nível interno como internacional, era notória a pressão para perseverar na procura da paz e amarrar Santos, Timochenko e Uribe neste desígnio. Nesta medida, o caminho para a paz na Colômbia continuava difícil, mas em aberto. Neste contexto, o presidente Santos realizou um processo de diálogo com vários sectores sociais e políticos ligados à campanha do “não”. Estabeleceram-se pontes e pactos, aproximaram-se posições entre os defensores e líderes do “sim” e do “não” e o que parecia impossível foi conseguido em tempo quase record. Dois meses depois da assinatura do acordo original, a 24 de novembro, apresentava-se um novo acordo de paz. Contrariamente às expectativas do ex-presidente Uribe, este não era um acordo radicalmente novo e reestruturado. As mudanças eram cirúrgicas e nalguns casos cosméticas. Alguns novos pontos foram adicionados, outros retirados, outros reformulados. No entanto, não se tocava nos cavalos de batalha da campanha do “não”: a participação política das FARC mantinha-se e o acordo sobre justiça transicional preservava os pontos principais. Todavia, o eixo político e ideológico do acordo deslocou-se para a direita. A reforma agrária foi limitada e moderada. Privilégios para os grandes proprietários de terras e militares foram incluídos. Neste sentido, este não é um melhor acordo de paz mas, de certa forma, é mais representativo da sociedade colombiana. Se algo de positivo saiu dos resultados do plebiscito foi abrir a mesa de negociação a mais sectores sociais e políticos, ao mesmo tempo que se gerou um movimento social pela paz. No entanto, a legitimidade do novo acordo não é necessariamente superior. Depois do trauma do plebiscito de 2 de Outubro, não se arriscou levar a novo referendo popular o acordo de paz. A aprovação fez-se por via parlamentar, sem o apoio do partido do ex-presidente Uribe e sem grande entusiasmo popular e mediatismo. Nesta medida, se a terminação do conflito armado com as FARC é uma realidade, a construção da paz continua um desafio por cumprir, ao mesmo tempo que os dois países que se confrontaram nos resultados do plebiscito permanecem por reconciliar. n Referências bibliográficas “La del plebiscito fue la mayor abstención en 22 años” (2016). El Tiempo (2 Out.), disponível em http://www.eltiempo.com/ politica/proceso-de-paz/abstencion-en-el-plebiscito-por-lapaz/16716874. “Las Farc mantienen su voluntad de paz” (2016). El Espectador (2 Out.), disponível em http://www.elespectador.com/ noticias/paz/farc-mantienen-su-voluntad-de-paz-timochenkoarticulo-658172. Lederach, J. P. (1997) Building Peace. Sustainable Reconciliation in Divided Societies, Washington DC: United States Institute of Peace Press. Muñoz Muñoz, F. A. (ed.) (2000), La paz imperfecta. Granada: Editorial Universidad de Granada, disponível em http://www. ugr.es/~fmunoz/documentos/Paz%20imperfecta.html . Santos, B. S. (ed.) (2003) Democratizar a Democracia: Os Caminhos da Democracia Participativa, Porto: Edições Afrontamento. Santos, J. M. (2016), Mejor paz imperfecta que guerra perfecta. El Espectador (6 Sept.), disponível em http://www. elespectador.com/noticias/paz/mejor-paz-imperfecta-guerraperfecta-santos-video-653275.
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