Os brasileiros e o artigo 196 da Constituição

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ELIANE BARDANACHVILI

Os brasileiros e o artigo 196 da Constituição

Trabalho final apresentado à disciplina Fundamentos Teóricos da Saúde, Ciência e Tecnologia, do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict/Fiocruz), coordenada pelos professores José Noronha, Ana Luiza Pavão, Maria Cristina Guimarães e Denise Nassif.

Rio de Janeiro Jun/2015

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Os brasileiros e o artigo 196 da Constituição Eliane Bardanachvili

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)

Fruto de intensa mobilização conformada no Movimento da Reforma Sanitária Brasileira e “seu ideário em prol de um projeto civilizatório com amplas mudanças nos valores societários” (CEBES, 2014), a inclusão da saúde como direito na Constituição brasileira, em 1988, representa importante e notável conquista social. Uma medida dessa importância está no fato que se trata de estágio ainda não alcançado por muitos países – em relação à América do Sul, apenas seis contam com essa garantia constitucional (GIOVANELLA et al, 2012)1. Sair do poderoso enunciado do artigo para a prática, no entanto, veio, ao longo das décadas, revelando-se enorme desafio. Entre os muitos aspectos a serem levados em conta nesse processo, um merece ser focalizado: a necessidade de apropriação pela maioria dos brasileiros dessa conquista, resgatando e compreendendo seu significado, para mobilizar-se, assim, por sua concretização e manutenção2. Observa-se que o artigo 196 afirma o direito à saúde como sendo “de todos” e “dever do Estado”, viabilizado por políticas que garantam “acesso universal e igualitário”, e que pressupõe “promoção e proteção” ao lado da “recuperação”. Nessa construção, em especial no que diz respeito aos termos “promoção e proteção”, está embutido o conceito ampliado de saúde, formulado em 1986, na 8ª Conferência 1

Dos doze países que integram o Conselho de Saúde Sul-Americano da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), apenas seis – Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Suriname e Venezuela – consideram a saúde como um direito universal em suas constituições, com diferentes abordagens. “Alguns referem-se a esse direito de modo geral, outros o relacionam com os determinantes sociais da saúde e alguns acrescentam preocupação expressa do direito à saúde também como garantia de acesso aos serviços de saúde” (GIOVANELLA et al, 2012). 2

Pesquisa realizada pelo Ipea, em 2011, mostrou que aqueles que consideravam o sistema público de saúde brasileiro ruim ou muito ruim eram em maior número entre os que informaram nunca terem usado o sistema (34,3%) do que entre os que disseram tê-lo usado (27,6%). A pesquisa mostrou, ainda, que, embora todos os brasileiros tenham provavalmente tido alguma experiência com o sistema de saúde, nem todos o reconheciam. Cf. www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_ content&view=article&id=7187. Acesso em: 24/06/2015.

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Nacional de Saúde, e que entende a saúde como algo mais amplo do que a ausência de doença. O conceito inclui alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade e acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde, como determinantes para se garantir a saúde3. Ou seja, “a saúde envolve modos de ser e produzir e/ou recriar a vida em sua singularidade e multidimensionalidade” (BERNARDES, GUARESCHI e MEDEIROS, 2005, apud DALMOLIN et al., 2011). Esse entendimento, no entanto, não é hegemônico e interessa pouco a nossa sociedade globalizada e mercantilizada, na qual, cada vez mais, a saúde é tomada como negócio e mercadoria (CEBES, 2014), abrindo-se espaço à instalação de um pensamento fragmentado e privatista, no qual a atenção à saúde confunde-se com uma abordagem pontual de tratamento e cura de doenças – o que pode ser suprido por planos de saúde privados. Como observa Temporão (2015), “o senso comum, quando fala de saúde, pensa em médicos, hospitais, tecnologias”4. Torna-se natural, assim, que o Sistema Único de Saúde brasileiro, que deu forma ao artigo 196 e cuja criação também é constitucional, pelo artigo 198, confunda-se com um plano de saúde público, voltado estritamente ao atendimento médico, para aqueles que não podem pagar pelo privado, na contramão do que embute o artigo 196 e do que sacramenta a Lei Orgânica da Saúde (8.080 e 8.142/1990), que regulamenta o SUS5. O avanço e a riqueza embutidos no projeto de saúde brasileiro acaba desvirtuado e ofuscado, dificultando que a população dele se aproprie para defendê-lo e concretizá-lo. Distanciam-se os brasileiros do entendimento de que promoção e proteção conferem especificidade ao sistema de saúde, que não pode ser comparado, suprido ou substituído por planos privados, nos quais não estão incluídas ações como organização da rede de assistência, vigilância sanitária, epidemiológica, saúde do trabalhador e ordenação de recursos humanos para a saúde (NORONHA, LIMA E MACHADO, 2014). Na afirmação do “direito de todos”, “são as necessidades de saúde e não a capacidade de pagamento por serviços que devem pautar a atenção à saúde” (CEBES, 2014). 3

Cabe observar que o conceito de determinantes sociais da saúde (DSS) orienta esse olhar, como se pode constatar, entre outros, na I Conferência Internacional de Determinantes Sociais da Saúde, realizada no Rio de Janeiro em 2011. Cf. http://dssbr.org/site/ 4

Entrevista ao site do Instituto Humanitas UniSinos. Disponível em www.ihu.unisinos.br/entrevistas/539065-a-contaminacao-do-sus-pela-fragilidade-da-atencao-basica-ema-formacao-de-medicos-entrevista-especial-com-jose-gomes-temporao. Acesso em: 24/6/2015. 5

De acordo com o artigo 2º da Lei 8.080, “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

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Um dos sistemas mais avançados do mundo O “acesso universal”, de que trata o artigo 196, foi firmado como primeiro dos três princípios do SUS: universalidade – “todos têm o mesmo direito de obter as ações e os serviços de que necessitam independentemente de complexidade, custo e natureza” – equidade – não discriminação no acesso aos serviços de saúde – e integralidade – ações e serviços exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema (NORONHA, LIMA E MACHADO, 2014). O SUS é um dos mais completos sistemas de saúde do mundo, porque leva em consideração o indivíduo, sua família, sua comunidade e o seu cuidado (HUMANIZASUS, 2010). Hoje, 75% dos brasileiros são usuários diretos do sistema. Vale citar algumas dessas realizações em curso: aumento da participação dos municípios e estados no financiamento da saude, aumento da oferta pública de serviços de saúde, comissões intergestores envolvendo estados, municípios e União; expansão de oferta de serviços a áreas até então desassistidas; ampliação do acesso, expansão de estratégias de agentes comunitários de saúde e saúde da família no país; melhoria dos indicadores de saúde; constituição dos conselhos de Saúde, nos âmbitos nacional, estadual e municipal; participação dos usuários e controle social; preservação da capacidade nacional de medicamentos e vacinas; garantia de medicamentos a programas específicos, como HIV/Aids (NORONHA, LIMA E MACHADO, 2014). O sistema, no entanto, tem muitos outros pontos a alcançar, para que se concretize: insuficiente volume de recursos; limitações na adoção de critérios de promoção da equidade; capacidade gestora de estados e municípios heterogênea; caráter mais consultivo do que deliberativo dos conselhos de Saúde; persistência nas desigualdades de acesso; distorções no modelo de atenção, com medicalização e uso inadequado de tecnologia; custos elevados de insumos; conflitos nas relações entre gestores estaduais, municipais e federais; e multiplicação de novas formas de articulação público-privada na saúde (terceirizações, fundações, cooperativas, organizações sociais), entre outras dificuldades (NORONHA, LIMA E MACHADO, 2014). A não concretização do projeto, mais de 25 anos depois de sua concepção vem levando a que ele se descaracterize, em vez de que se prossiga na busca de seu sucesso. Na gênese desse processo, cabe examinar o artigo 196 tomando-se outro artigo constitucional que integra o capítulo sobre a Saúde: o 199, que afirma que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada” (BRASIL, 1988). Apesar de essa participação do setor privado dever se dar “de forma complementar” (BRASIL, 1988, artigo 199, Parágrafo 1º), a “permanência de um setor privado de saúde que está entre os maiores

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do mundo passou a constituir o maior entrave para a efetivação da universalidade” (Cebes, 2014). O “dever do Estado” para com a garantia do direito à saúde enunciado no artigo 196, pressupõe “a garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação de saúde, em todos os seus níveis, a todos os habitantes do território nacional” (CEBES, 2014). Atualmente, no entanto, o setor privado prestador de serviços complementares ao SUS “é remunerado, muitas vezes regiamente para isso, principalmente quando presta serviços de média e alta complexidade” (CEBES, 2014), tendo-se que “o mesmo Estado que tem o dever de garantir o direito universal à saúde abre mão de recursos financeiros que deveriam financiar ações e serviços de saúde pública, para beneficiar as empresas que negociam com a saúde. “O direito à saúde é um direito social que deve ser garantido pelo Estado, por meio de políticas econômicas, sociais e culturais, tal como conquistado na Constituição Federal de 1988, sendo incompatível com propostas nas quais a saúde é tratada como negócio ou mercadoria” (CEBES, 2014). De acordo com Noronha, Lima e Machado (2014), há “regulação ainda incipiente sobre os prestadores privados do SUS e o setor privado supletivo” e crescimento desse setor “subsidiado por renúncia fiscal, com segmentação da clientela”. Tal envolvimento do Estado com o setor privado acentua o olhar sobre o SUS como um plano de saúde público, em detrimento de sua amplitude, complexidade e grandeza. Essa olhar ganhou concretude com a tramitação, ora no Congresso, da Emenda Constitucional 451, que pretende tornar obrigatórios planos privados aos trabalhadores empregados, na contramão do projeto do SUS, cujas ações e serviços não estão condicionados a capacidade de pagamento prévio.

Capital financeiro na saúde em escala global A não concretização do artigo 196 e do projeto do SUS deve ser entendida também à luz do contexto neoliberal mundial, que vem acentuando o entendimento limitador da saúde como a ausência de doença, de modo firmar o protagonismo dos seguros e planos privados de saúde no atendimento à população em escala global, aprofundando a entrada do capital financeiro na área da Saúde. Desde 20056 está em

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Nesse ano, a Assembleia da OMS aprovou a resolução 58.33 (Financiamento sustentável da saúde: cobertura universal e seguro social de saúde) e publicou o documento Atingindo a cobertura universal de saúde: desenvolvendo o sistema de financiamento da saúde. Dois outros relatórios mundiais se seguiram, procurando associar o acesso à saúde à ideia de que é

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disputa no mundo a defesa aguerrida de sistemas universais de saúde em oposição à cobertura universal em saúde, proposta que vem sendo liderada pela Fundação Rockefeller e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Trata-se de fazer uso do conceito de universalidade, garantindo-se cobertura para todos, para “fortalecer o papel do setor privado na oferta de seguros e serviços de saúde” (CEBES, 2014). Mais uma vez a visão estrita da saúde como a ausência de doença é levada em conta, em nome de um projeto privatista. Nesse avanço da presença do mercado na Saúde, o Brasil, apesar do seu SUS e de sua Constituição, votou favoravelmente à resolução aprovada na 67ª sessão da Assembleia das Nações Unidas, em 2012, em favor da proposta de cobertura universal (CEBES, 2014). A resolução conclama os países a desenvolverem mecanismos para assegurar o acesso a “serviços necessários” de saúde (necessary services) e à proteção contra riscos financeiros inerentes a este acesso, em um “insidioso ataque à ideia do direito universal à saúde” (CEBES, 2014).

Estranhamente, os postuladores do conceito supostamente inovador da "cobertura universal" passam ao largo do gravíssimo problema da segmentação da oferta de acordo com as classes sociais e o tipo de proteção garantido pelas diferentes modalidades de seguros públicos ou privados. Segmentação na cesta e na qualidade dos cuidados garantidos (NORONHA, 2013).

A 15ª CNS como espaço de mobilização Na medida em que a 15ª Conferência Nacional de Saúde se orientará pelo tema Saúde pública de qualidade para cuidar bem das pessoas. Direito do povo brasileiro, levar em conta a necessidade e a importância de os brasileiros se apropriarem da conquista que representam tanto o direito à saúde garantido constitucionalmente quanto um sistema de saúde público, gratuito e universal, pode ser um caminho para se conformar uma mobilização em prol da concretização desses projetos e radicalizar o cumprimento dos princípios e diretrizes da política de saúde “construídos na contracorrente das tendências hegemônicas de reforma dos Estados”, (NORONHA, LIMA E MACHADO, 2014). Tratar doenças é apenas parte disso, o que torna a lógica necessário protegê-la contra “riscos financeiros” (CEBES, 2014). Como apontado no Manifesto do Cebes, a fórmula da cobertura universal de saúde vem sendo construída a partir da iniciativa de doadores e parceiros privados e encampada pela OMS e aparece no documento publicado pela Fundação Rockefeller intitulado “Mercados futuros de saúde: uma declaração da reunião em Bellagio” (ROCKEFELLER FOUNDATION, 2012).

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mercantilista que leva a se almejar plano de saúde como caminho de proteção à saúde, redutora para dar conta de toda a proposta. A manutenção de políticas sociais não está no rol dos serviços ofertados pelas seguradoras privadas de saúde... Em suas Teses para a 15ª, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) aponta, ao lado de iniciativas de caráter macro, como realizar auditoria da dívida pública e as reformas política e tributária, que é necessário impedir retrocessos no direito à saúde e repudiar a proposta da OMS de cobertura universal de saúde, “que não produz cobertura a todos, mas pacotes limitados de serviços que não atendem às necessidades de saúde da população” (CEBES, 2015) O cenário aponta para a necessidade de uma luta contra-hegemônica em prol do conceito ampliado de saúde e da manutenção do artigo 196 como cláusula pétrea, questionando-se “os discursos que privilegiam o conceito de saúde somente pela sua dimensão biológica, assegurando uma concepção fragmentada do ser humano, bem como o caráter impositivo e normativo dos modos de se intervir na realidade dos indivíduos e comunidades” (Bernardes, Guareschi e Medeiros, 2005, apud Dalmolin, et al., 2011), o que abre espaço ao protagonismo da saúde privada e desigual. O alcance do conceito ampliado de saúde pode ser poderoso aliado a conferir concretude ao projeto do SUS, tomando-se a saúde como direito, tal como expresso no artigo 196. Os esforços em espaços de controle social como a 15ª CNS, assim, podem concentrar-se em buscar recuperar e fazer valer esse entendimento e quão avançado é o projeto que os brasileiros têm nas mãos, para que se valorize e consequentemente, se defenda o SUS. Daí virão a força e a mobilização para que as mazelas do sistema sejam enfrentadas, em vez de serem motivo para sua desqualificação e para a instalação de outro projeto em seu lugar.

REFERÊNCIAS CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Manifesto em defesa do direito universal à saúde – saúde é direito e não negócio. Disponível em http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2014/09/Manifesto_Cebes _Sa%C3%BAde_%C3%A9_direito_e_n%C3%A3o_neg%C3%B3cio.pdf. Acesso em: 23/06/2015. Cebes: 2014. CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Tese do Cebes para a 15ª Conferência Nacional de Saúde. Disponível em: http://cebes.org.br/2015/04/tese-docebes-para-a-15a-conferencia-nacional-de-saude. Acesso em: 25/06/2015. Cebes: 2015.

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DALMOLIN, Bárbara Brezolin et al. Significados do conceito de saúde na perspectiva de docentes da área da saúde. Esc. Anna Nery, Rio de Janeiro , v. 15, n. 2, p. 389394, junho/2011. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S1414-81452011000200023&lng=en&nrm=iso. Acesso em 27/06/2015. GIOVANELLA, Ligia, FEO, Oscar, FARIA, Marina e TOBAR, Sebastian. Sistemas de Salud en Suramérica: desafíos para la universalidad, la integralidad y la equidad. Isags, 2012. Disponível em: www5.ensp.fiocruz.br/biblioteca/dados/txt_403158050.pdf HUMANIZASUS. Caderno de Textos. Cartilhas da Política Nacional de Humanização. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_textos_cartilhas_ politica_humanizacao.pdf. Ministério da Saúde, 2010. NORONHA, José Carvalho de; LIMA, Luciana Dias de; MACHADO, Cristiani Vieira. O sistema único de saúde – SUS. In. GIOVANELLA, Lígia et al. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014. p.365-393 NORONHA, José Carvalho de. Cobertura universal de saúde: como misturar conceitos, confundir objetivos, abandonar princípios. Cad. Saúde Pública [online]. 2013, vol.29, n.5, pp. 847-849. Disponível em: www.scielo.br/pdf/csp/v29n5/03.pdf . Acesso em: 27/06/2015. TEMPORÃO, José Gomes. A contaminação do SUS pela fragilidade da atenção básica e má formação de médicos. Entrevista concedida ao portal do Instituto Humanitas UniSinos. Disponível em www.ihu.unisinos.br/entrevistas/539065-a-contaminacao -do-sus-pela-fragilidade-da-atencao-basica-e-ma-formacao-de-medicos-entrevistaespecial-com-jose-gomes-temporao. IHU-UniSinos, 2015.

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