Os candomblés de Belmonte. variação e convenção no sul da Bahia

May 30, 2017 | Autor: Bianca Arruda | Categoria: Afro-Brazilian Culture, Antrophology of Religion, Antrophology
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Os candomblés de Belmonte: variação e convenção no sul da Bahia

Bianca Arruda Soares

2014

Os candomblés de Belmonte: variação e convenção no sul da Bahia

Bianca Arruda Soares

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para a obtenção do título de Doutora em Antropologia Social. Orientador: Marcio Goldman

Rio de Janeiro, 2014

Os candomblés de Belmonte variação e convenção no sul da Bahia Bianca Arruda Soares Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. __________________________ Marcio Goldman, Doutor, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN) (orientador) __________________________ Cecília Mello, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR) __________________________ Jérôme Souty, Doutor, Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________ Olivia Cunha, Doutora, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN) __________________________ Vânia Zikán Cardoso, Doutora, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Rio de Janeiro, fevereiro de 2014

ARRUDA SOARES, Bianca. Os candomblés de Belmonte: variação e convenção nos sul da Bahia / Bianca Arruda Soares. Rio de Janeiro, PPGAS – MN/UFRJ, 2014. 231 pp.; xii pp. Tese de doutorado – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAS – Museu Nacional. 1. Antropologia Social. 2. Religiões de Matriz Africana. 3. Candomblé. 4. Tese. I. Goldman, Marcio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III. Título

AGRADECIMENTOS Eu sou porque você é. Princípio forte que se vive no universo do candomblé e que se baseia na ideia de que só se existe em relação. O existir se processa nos compromissos que vão sendo firmados com o passar do tempo com outras diferentes manifestações do existir, com outros seres. Esta tese é resultado de um compromisso firmado há cinco anos e que passou a adquirir maior consistência em função das relações outras que passaram a constituíla. Por motivos variados há um pouco de cada um dos que cito nesta seção nas linhas que compõem esta tese. A todo/as muito e muito obrigada! A começar por Marcio Goldman, professor que não apenas aceitou me orientar como também foi importante incentivador e quem abriu caminho para efetuar o trabalho de campo na cidade de Belmonte. Seu apoio foi fundamental no início e correr de todo processo. A confiança e incentivo depositado para a finalização também. Agradeço imensamente por sua generosidade e reafirmo minha grande admiração por seu trabalho. Aos professores Cecília Mello e Jêróme Souty que por ocasião da banca de qualificação trouxeram contribuições valiosas para o rumo deste trabalho e que aceitaram participar da banca examinadora. Do mesmo modo, às professoras Olivia Cunha e Vânia Cardoso que compõem a banca examinadora e aos professores e colegas Marina Annie Ribeiro e Gabriel Banaggia que integram a banca como suplentes. É um privilégio poder contar com a leitura e comentários de vocês. Agradeço igualmente ao corpo docente do PPGAS e a professora da UFF Tânia Stolze Lima pela minha formação na pós-graduação, especialmente no curso de doutorado. Agradeço aos funcionários da secretaria (Tânia, Isabelly e todos os demais) pela presteza e eficiência para auxiliar nos trâmites burocráticos da vida acadêmica. Agradeço a Carla, Fernanda e Alessandra, excelentes funcionárias da Biblioteca Francisca Keller. Carmen e Fabiano, o antigo pessoal da xerox do PPGAS, e o pessoal do restaurante. Ao CNPq pela bolsa concedida durante três anos, a FAPERJ e a FINEP por terem financiado uma parte da minha pesquisa de campo. Aos colegas do PPGAS e, mais especialmente, aqueles que em diferentes momentos contribuíram para a realização deste trabalho: Orlando que no início do processo deu o incentivo que faltava e que oportunamente me lembrou das vantagens de fazer o campo numa

cidade a beira mar no sul da Bahia; aos colegas que por ocasião das apresentações de partes deste trabalho na Sexta na Quinta, ou em conversas de corredores e bares contribuíram com sugestões e comentários inspiradores: Gabriel Banaggia, Clara Flacksman, Julia Sauma, Marina Vanzolini, Diana Espírito Santo, João Languens, Marcelo Mello, Virna Plastino, Ana Carneiro, Indira Viana, Bruno Marques, Clarice Kubrusly e Carla Semedo, esta última teve papel fundamental nos momentos finais da escrita. Valeu a todo/as pela força! Também aos amigos do México: Carlo e Edite, Fuji e Isabel. Aos colegas das interseções do PPGAS, IFCS, UERJ e de muitas outras bandas que igualmente fortaleceram a tese: Paulo Victor Leite Lopes, Juliana Farias, Olivia von der Weid, Marisol Goia, Jeane Miguel, Felipe Agostini, Leonardo Duque, Thais Danton, Heloisa Helena, Valéria Aquino, Luciana Carvalho e Cacá Pitrez. Raíza Siqueira, companheira de vida, grande incentivadora e pessoa a quem admiro demais, a ela devo também a solícita revisão e apoio para feitura deste trabalho. Do mesmo modo, José Luiz Soares, Talita de Castro, Bernard Belisário e Marianne Carle-Marsan que me visitaram em Belmonte e com quem pude trocar muitas ideias sobre o campo quando estavam por lá e bem depois. É sempre bom tê-los por perto. Ao pessoal do trabalho que me deu tranquilidade para poder me dedicar integralmente a conclusão da escrita: Renata, Francis, Mônica e o/as colegas professore/as da rede de ensino do estado do Rio de Janeiro, estou aprendendo muito com vocês! Aos diferentes coletivos que me dão a oportunidade de me sentir pertencente a muitas casas: ao povo da mansão 202 (Érica e Fred, Débora e Ives e o menino Joni), obrigada pela força e acolhida. Também ao povo de casa: Wanda Maria, Thaís Ribeiro e Flavia Marina: valeu todo o incentivo e as pequenas ajudas cotidianas. O povo todo do Kabula Capoeira Angola representado na figura do contramestre Leandro Bicicleta e da trenel Fatinha: iê, camaradas! Do mesmo modo, um salve ao povo todo de axé da Casa de Axé Luz de Maria que tem no babalorixá Henrique e na ialorixá “vó” Andréa seus centros de força e fios condutores. A toda egrégora desta casa minha imensa gratidão e respeito. Ana Clara das Vestes Valle e Kiki, compadres e grandes amigos, pais do Joaquim, coisa mais linda de viver, minha imensa gratidão. Gisele e Ana Muniz, amigas queridas. Bruna Rosa que é quase da família. Luana Dias, presente da vida e grande companheira, obrigada por tudo e mais um pouco. Dona Sônia e seu Luiz, meus pais, raiz forte, e ao meu irmão Bruno com suas

presenças inestimáveis, meus maiores incentivadores. Obrigada por me ensinarem a ousar voos, mas mais obrigada ainda por sempre me disponibilizarem um lugar onde pousar. Amo vocês. Agradeço também o cuidado das minhas irmãs soteropolitanas que conheceram os candomblés de Belmonte: Claudiana e Luciana. Do mesmo modo, Analia, Luiz e o pessoal do Instituto Tribos Jovens de Porto Seguro e aos amigos do Ponto de Cultura Pataxó de Aldeia Velha e Coroa Vermelha, especialmente Paty Pataxó, Ajurú Pataxó e Jabes, bravos txohãs a quem tenho profundo respeito e admiração. Finalmente, agradeço aos amigos de Belmonte que com muita paciência e generosidade permitiram a realização deste trabalho. Obrigada pelo zelo, pelo cuidado, pela escuta e explicações. Obrigada pelos ensinamentos e obrigada por me ensinarem que a vida pode (e deve) ser muito maior. Agradeço especialmente a seu Celso do Gandhy e família; Ariane Piedade, Anísia e família; dona Rita Camuinganga e família; seu Raimundo das Flores; Cosme Talassidã; d'ajuda; Naiana e o povo da casa de dona Otília; Vanderson, Honorina, Fumaça e seu Nilton. A vocês, axé!

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores Faz comunhão com as aves Faz comunhão com as chuvas Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios, com os ventos, com o sol, com os sapos Falar a partir de ninguém Faz comunhão com borra Faz comunhão com os seres que incidem sobre andrajos Falar a partir de ninguém Ensina a ver o sexo nas nuvens E ensina o sentido sonoro das palavras Falar a partir de ninguém Faz comunhão com o começo do verbo. Manoel de Barros (Ninguém. Ensaios Fotográficos, p.25).

RESUMO Esta tese é resultado da pesquisa etnográfica realizada na cidade de Belmonte, sul da Bahia. A descrição etnográfica que apresento tem por objetivo explicitar diferentes trajetórias de modulação e organização do axé, força-fluxo que é o constituinte-constitutivo de tudo o que há no mundo. Enquanto pessoa, o existir depende de um trabalho contínuo de modulação dessa força que se manifesta nas faixas de intensidade dos orixás. A vida no santo, assim, é uma vida de trabalho, pois o ser não é estável e só existe na medida em que vai sendo feito. A considerar que, nos candomblés de Belmonte, trabalha-se com duas principais linhas, também chamadas doutrinas, para operar essa modulação e organizar essa força e que elas são combinadas de diferentes maneiras nas casas de santo, o material etnográfico contribui para essa reflexão em particular. É por meio de combinatórias singulares e de manipulações específicas que as pessoas vão aprendendo a viver no santo (o que é em toda a sua amplitude aprender a viver).

ABSTRACT This thesis is the result of ethnographic research conducted in the city of Belmonte, southern Bahia. The ethnographic description aims to describe the different trajectories of modulation and organization of axé, force that is the constituent of all that is in the world. Everything that exists in this world depends on a continuous modulation of this force that manifests itself in the intensity of deities, the orixás. Life in this context is a working life, because being is not stable and exists only insofar as it is being done. Also, candomblés in Belmonte works with two different lines, also called doctrines, to operate and organizing this force. They are combined in different ways in the casas de santo, so the ethnographic material contributes to this debate in particular. It is through specific manipulations that people are learning to viver no santo (which is in all its breadth learn to live).

SOBRE AS CONVENÇÕES GRÁFICAS

Procuro grafar em itálico todos os termos nativos utilizados com propósitos descritivos e conceituais e oferecer o significado de cada um deles no correr do texto, ou logo em seguida, entre parênteses ( ), geralmente ao lado de sua primeira menção. Apenas quando considero que é interessante oferecer uma explicação imediata, mas observo que esta pode interromper o fluxo da leitura, opto por apresentar o significado na nota de rodapé. Quando é o caso de se tratar da citação da fala de uma pessoa, mas não se trata de ultrapassar três linhas de texto corrido, recorro apenas às aspas duplas para demarcá-la graficamente. Procedo do mesmo modo com as citações de trechos de outros autores, acrescentando o ano da edição da obra consultada e a página. No caso de acrescentar comentários no interior das citações, recorro ao uso dos colchetes [ ]. Utilizo aspas simples apenas quando elas são utilizadas nos trechos citados de outros autores e mantenho todos os sinais e grafias tal qual aparecem na obra consultada. No caso de citar falas de pessoas que ultrapassem três linhas, procedo de modo a distingui-las do corpo do texto utilizando o espaçamento simples. Já no caso de citações de trechos de outros autores, procedo da forma indicada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Finalmente, no caso das citações em língua estrangeira, opto por apresentar a tradução que realizei na parte corrida do texto, indicando as referências da obra consultada.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO

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- A pesquisa de campo

24

Capítulo 1: O MUNDO SUPERPOVOADO DE BELMONTE

35

1.1Erês

53

1.2 Caboclos

54

Capítulo 2: MANIFESTAÇÃO, IRRADIAÇÃO, APARIÇÃO E POSSESSÃO

65

2.1 Manifestação

65

2.2 Irradiação

67

2.3 Aparição

80

2.4 Possessão

82

Capítulo 3: TRAJETÓRIAS NO SANTO

84

3.1 Seu Raimundo das Flores e o Ilê de Obaluaiê

95

3.2 Dona Rita Camuinganga e o Abassá da Iansã

104

3.3 Cosme Talassidã e o Abassá d'ilê do Oxóssi

117

3.4 Dona Otília e a Casa do Caboclo Juremeira

127

3.5 Filho de Exu

140

Capítulo 4: CASAS DE SANTO

143

4.1 Notas sobre a iniciação

147

4.2 Ogãs e equedes

157

4.3 Formas de organização

163

4.4 Linhagem de sangue, linhagem de santo, linhagem espiritual e convivência

170

Capítulo 5: NETOS DE GANDHY

178

5.1 Preparação

178

5.2 Saída

187

5.3 Resenhas

196

5.4 Fazendo a corrente

202

SACUDIMENTO: notas à guisa de conclusão

203

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

215

ANEXOS

219

INTRODUÇÃO

“Sem Exu não se faz nada.” Laroyê, Exu!

“Você não acredita em nada.” Foi com essa afirmação que seu João Caveira, acho eu, interrompeu minha fala, soltou a característica gargalhada que os exus costumam dar e deixou o aparelho, Naiana, que voltou se sentindo muito mal, atordoada, fraca e com dores de cabeça. Ele falou isso logo após perguntar se eu sabia quem ele era e porque eu titubeei ao responder, demonstrando dúvidas em afirmar se era ele mesmo, outro exu, ou mesmo Naiana que me fizera a pergunta. Um detalhe importante a observar foi que, no momento, vi João e não Naiana. Esta fora a primeira e única vez em que ele apareceu deste modo, materializado em Naiana, e achamos que foi por isso que ela regressou se sentindo muito mal. Não fora a primeira vez que falava com João Caveira. Pelo contrário, ele já havia se apresentado (isto é, feito presente) em outras ocasiões. À afirmação categórica que se deu nesse episódio, contudo, seguiu-se um quase mutismo no restante do período que passei no campo, ainda que não conversássemos tanto assim antes. De todo modo, ele nunca deixou de se fazer presente em sonhos ou mesmo irradiado1 no aparelho Naiana. Quando contei a Naiana o que aconteceu, ela riu e disse que achava estranho ele não se apresentar para mim – nesse caso, referindo-se ao fato de se identificar. Contudo, ela mesma dizia que não sabia ao certo se era João Caveira que vinha quando estávamos juntas. O que ela dizia é que, dos seus exus, João Caveira, escravo do Omulu, já tinha se apresentado para outras pessoas em situações similares e, além disso, ela achava que seu Exu Marabô, escravo 1

Irradiar é uma categoria usada para marcar a presença e influência de um orixá ou de caboclos, preto-velhos, marujos ou exus em determinadas ocasiões. Mais à frente retornarei a esse assunto. Por hora, cabe destacar que a agência desses seres na vida humana pode ocorrer de diferentes formas e que a irradiação aparece como uma forma de manifestação diferente da incorporação, da aparição ou possessão, sendo uma forma mais sutil de manifestação.

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do Xangô, não se apresentaria corriqueiramente, pois ele não era “presepeiro”, assim como Exu Tiriri, escravo do Ogum, também não era. Naiana é filha de Xangô e Omulu e tem ainda Ogum de Ronda, que acha que recebeu de herança de sua avó materna. Ela também é da Oxum, que se apresenta como terceiro santo de cabeça e que tem como escrava a Maria Padilha, sua exua, a moça, bombogira ou legbara, como também chamam em Belmonte. O santo de cabeça de Naiana é Xangô e depois de ter feito sete anos de iniciada é que Ogum a pegou. A Oxum passa pouco por Naiana e ela acha que ela só deve se apresentar mesmo depois de completar os quatorze anos de feitura no santo. Naiana desconfiava que este exu que se manifestava quando estávamos a sós poderia não ser um exu seu, isto é, um exu doutrinado, escravo de um dos seus orixás – poderia ser um exu da rua, alimentado por pessoas que gostavam dele. Essa dúvida se apresentava porque ela considerava que seus exus estavam devidamente alimentados; observava que eles comiam e bebiam os alimentos do assentamento. Além disso, Naiana observava que a manifestação deste exu – que ela não obstava, diga-se de passagem – se dava sempre em situações em que estava “na farra” e sem a permissão de sua mãe, dona Otília, que é também mãe de santo da casa de candomblé em que ela é mãe pequena. *

*

*

Exu é ser ambíguo, que transita em diferentes mundos e tem como domínio primordial o estabelecimento das ligações entre eles. O mundo dos homens, o mundo da natureza, o mundo dos mortos e o mundo dos orixás. Participa desses mundos e estabelece participação entre eles, pois liga uns aos outros e estabelece ligações no interior deles: Exu liga os homens aos seus odus, domínio de Ifá; Exu é guardião da floresta onde crescem os ewe, as folhas sagradas, domínio de Ossanha; Exu está intimamente ligado aos mortos; finalmente, Exu é

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mensageiro dos orixás, levando mensagens entre as divindades. “O papel desta divindade não é tomar aos outros o que lhes pertence de pleno direito, como vemos, e sim estabelecer comunicações, fazer abertura nas paredes, lançar pontes sobre as separações, fazendo participar entre si os compartimentos do real. É ele o único Orixá que tem um pé em cada um desses compartimentos.” (Bastide 1978: 187. Grifo do autor).

Para ligar os compartimentos do real, Exu precisa participar destes compartimentos e e exercer sua função de mensageiro, comunicador entre os mundos. É, então, também intérprete, ou melhor, tradutor: domina diferentes linguagens e as transforma de modo a tornarem-se inteligíveis para seus receptores. Exu também participa um pouco daquilo que transmite, sem jamais se identificar completamente com o que é transmitido. Exu é o caminho e o próprio caminhar. É o movimento. O início de tudo 2. Sua residência é o limiar, a beira. Diferentemente dos demais orixás que governam domínios específicos no mundo (Iemanjá é a “rainha do mar”, Oxóssi é o “senhor das matas”, Ossanha o/a “dono/a das ervas” ...), Exu governa o entre-mundos. Por isso, afirmou Bastide: “Exu não deve ser um Orixá semelhante aos outros.” (idem: 170. Grifo do autor). Além disso, Exu é um e muitos: além de ser o orixá mensageiro, se multiplica, pois cada orixá possui um exu que lhe serve de escravo, de mensageiro particular, e mesmo cada ser vivente possui seu exu (Bastide 1978: 179; Cruz 1995: 95; Elbein dos Santos 1977: 131; Goldman 1984: 124; Santos 1995: 140-141)3. Exu é o mais um. Exu, neste caso, é e não é um 2

As cerimônias de candomblé têm início obrigatoriamente com o padê de Exu, estabelecendo a comunicação com o mundo dos homens e das divindades. Como observou Bastide: o padê serve para despachar Exu, isto é, mandá-lo estabelecer a comunicação entre os mortais e as divindades. “Exu seria como que o embaixador dos mortais; e é porque o consideram servo dos Orixás, intermediário entre eles e os homens em suas relações, que o candomblé o festeja em primeiro lugar.” (1978: 180. Grifos do autor). 3

Santos (1995: 140-141), Elbein dos Santos (1977: 135-137), por meio do exame da mitologia iorubá, afirmam que Exu é a primeira tentativa de criação do ser humano: criação de Olodumaré e Orisanlá, que é mais forte e é mais difícil que seus criadores. Orunmilá insiste para ser seu pai no ayê; assim que nasce, Exu passa a devorar tudo o que vê pela frente, inclusive sua mãe. Ao tentar devorar seu pai, Exu é perseguido e recortado em duzentos pedaços, mas quando Olodumaré corta o ducentésimo primeiro pedaço, Exu ressurge em sua integralidade novamente. Essa perseguição se dá até o momento em que Exu e Olodumaré estabelecem um acordo: todos os pedaços de Exu, os exu-yangi, estariam para sempre a serviço de Olodumaré, o próprio Exu se comprometendo a governá-los. Com o acordo estabelecido, Exu devolve todos os seres que devorara para o ayê.

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orixá: “Para a maioria dos adeptos, Exu “não é bem um orixá”, mas, antes, seu mensageiro. “Não é bem”, “Não é exatamente”, ou afirmações similares, são formas de expressão invariavelmente aplicadas a Exu, expressando sua natureza polivalente, ou antes, indefinida, o fato de ele ser quase infinitamente múltiplo, o que é quase não ser coisa alguma.” (Cruz 1995: 95).

Essa sua indeterminação, seu caráter ambíguo e múltiplo e também de liminaridade, somado ao fato de ser um dos orixás a que se permite participar do mundo dos mortos, dos eguns, faz com que muitas vezes Exu seja considerado ora orixá, ora egum 4. “Èsù é cultuado tanto como lèsè-Ègun como lèsè-Òrisà (…) Èsù circula livremente entre todos os elementos do sistema: é o princípio de comunicação.” (Elbein dos Santos 1977: 165). Diante dessa multiplicidade, é possível sugerir categorias distintas de Exu: “existe uma categoria de egum que representa uma fusão com Exu e, de fato, todos as chamam de “exu”. Neste tipo entram o já mencionado “Seu Tiriri”, e há ainda “Seu Marabô”, “Exu Caveira”, “Exu Veludo”, e aspectos femininos, como “Maria Padilha”, “Maria Mulambo”, “Cigana”, “Sete Saias”, e quase uma infinidade de denominações.” (Cruz 1995: 96).

Podem existir, portanto, exu-eguns que diferem dos exu-orixás, por exemplo. Mas é justamente o caráter transformacional de Exu que o torna nem propriamente um orixá, nem propriamente um egum, mas todos estes e, por isso, outro. Exu é o múltiplo e, portanto, o indefinido. Deste modo, as imprecisões e a indiscernibilidade é que são o seu território. Exu é o entre, é o que confunde e, portanto, é tudo aquilo que escapa à classificação. Exu é, desse É por isso que todos os seres vivos no mundo têm a ver com Exu, cada um de nós tem seu próprio exu, cada orixá tem seu próprio exu. 4

Afora Exu, apenas Iansã pode ingressar neste mundo, pois, conforme a mitologia iorubá, Iansã é progenitora de Egum e a fundadora da sociedade Egungum. Obaluaiê, que tem o poder de constranger Egum, Nanã, que é também a morte, e Ogum, que, por ser orixá da guerra, também se apresenta como um aspecto da morte, podem se fazer presentes nos rituais mortuários. Oxóssi e Xangô também tomam parte destes rituais: o primeiro, relembrando o vínculo com a ancestralidade e os laços de parentesco que unem todos da mesma família de axé, inclusive os ancestrais; o segundo, por ser o inverso simétrico de Egum, humano que se tornou orixá. Já Oxalá, por ser criador do mundo físico e de tudo que o constitui, por ser, inclusive, o próprio criador da morte e por ter os mortos e os vivos sob seu comando, se relaciona também de maneira próxima com o mundo dos mortos. Sobre este assunto, ver Cruz (1995: 75-80).

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modo, o elemento dialético do cosmos (Bastide 1978: 182)5. *

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Nos candomblés de Belmonte, Exu toma parte das cerimônias religiosas apenas no momento inicial em que é oferecido o padê, de modo a assegurar a comunicação com os orixás e a evitar que os eguns invadam o ritual. Depois disso, ele não desce no terreiro, que fica sendo território dos orixás. Exu é zelado igual a um orixá, e por isso ele se torna um orixá. No entanto, ele não é zelado no quarto dos orixás, no quarto de santo, mas numa casa própria para ele, a casa de exu, que fica geralmente nos fundos do terreiro. Conforme explicou dona Rita Camuinganga, mãe de santo de uma das casas de candomblé de Belmonte: “Exu é zelado igual a um orixá. Zelando dele, ele é um orixá. No candomblé, ele é orixá. Nós, no candomblé, nós chamamos ele e botamos ele pra fora, não é isso? Ele só vem na hora do ritual dele. Na hora que canta para levar o padê, ele desce e leva. Mais nada. Exu dentro do salão aqui não brinca. Nunca brincou.”

Exu, portanto, não ocupa os mesmos espaços que os orixás. A ele se reservam espaços diferenciados nas casas de candomblé, mesmo que ele seja zelado como um orixá. O modo como Dona Rita Camuinganga procede é semelhante ao modo como na maior parte dos casos outros pais e mães de santo dos candomblés de Belmonte procedem. Exu entra e sai. Exu dentro do salão não tem espaço. Pelo menos não enquanto são os orixás que são invocados para ocupá-lo. No entanto, é possível que Exu venha brincar no terreiro, se assim ele quiser, ponderou dona Rita: “Tem a gira também, né? Quando querem fazer, a gente faz. Mas eu nunca fiz gira de exu. Nunca”. Até então, o que sei é que apenas seu Edir dava a festa de seu Zé Pilintra numa encruzilhada em frente a sua casa, no sábado de Aleluia, e dona Zezé dava a festa da sua moça, a Maria Rosa, no dia 2 de novembro. Cabe notar que ambas as datas são consideradas, no mínimo, 5

Citamos Bastide, que define Exu enquanto elemento dialético do cosmos, mas entendemos a noção de dialética tomando de empréstimo a proposição de Wagner (2010: 96): “uma tensão ou alternância entre duas concepções ou pontos de vista simultaneamente contraditórios e solidários entre si. Como um modo de pensar, uma dialética opera explorando contradições (…) contra uma base comum de similaridade”. A dialética, pois, consiste em movimento, em alternância.

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arriscadas para realização de toques de candomblé, pois são datas em que os “mortos estão soltos”: no sábado de aleluia, por se tratar de um período ainda próximo à quaresma; no 2 de novembro, por se tratar efetivamente do dia dos mortos. Foi Naiana quem me alertou para os perigos de ir a essas festas quando recebi o convite de dona Zezé para participar da festa da Maria Rosa, em 2010. Ela disse que a tia, assim como seu Edir, tinha “parte com os mortos” e que nessas festas só apareceria “coisa ruim”: “acho melhor você não ir, mas se quiser pagar para ver...”, aconselhou Naiana. Achei mais prudente “não pagar para ver”. Seu Edir, oriundo do Rio de Janeiro, foi feito numa casa de candomblé da nação Jeje Mahin. Durante alguns anos, manteve aberta uma casa de candomblé na cidade, mas por achar que não se deve viver do santo e por não concordar com o modo como se faz candomblé em Belmonte, resolveu fechá-la e passou a trabalhar apenas quando é procurado, geralmente para tirar o cão das pessoas, isto é, tirar eguns. Dona Zezé, irmã de sangue de dona Otília, recebeu os santos de dote e tinha a sua própria casa de candomblé, no bairro do Centro, mas mais para o lado do bairro da Biela, como é modo de dizer em Belmonte. Além de fazer a festa da moça, em homenagem a Maria Rosa, dona Zezé há muitos anos colocava o bloco “O cravo e a rosa” na rua no período do carnaval. Quando estava para vir embora de Belmonte, em agosto de 2011, Naiana disse que na casa de sua mãe, dona Otília, estavam se preparando para dar a primeira festa de exu. Este acontecimento se processava porque estavam aparecendo muitos exus para se desenvolver na casa e eles estavam querendo a festa. Até então, na casa de dona Otília, para além do momento ritual inicial, o padê, em que Exu é chamado para estabelecer a comunicação com os orixás, apenas no dia em que comemoram a festa do Caboclo Juremeira é que o exu seu Tranca Rua de dona Tita, uma das filhas mais antigas da casa, desce no salão para render homenagem ao Caboclo e, então, alguns poucos exus e exuas de outros filhos da casa se

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manifestam. Seu Tranca Rua vem na festa do Caboclo Juremeira, porque ele foi puxado pelo Caboclo e colocado no lugar dos vinte e um que possuíam dona Tita. Também na casa de Vanderson, que ainda não realizava toques abertos, estavam preparando a festa da sua legbara, da escrava da Oyá, com quem ele trabalha. Vanderson disse que daria a festa da sua mulher antes da viagem que faria para São Paulo, em outubro daquele ano. Da mesma maneira, assim que retornei de Belmonte, Gotinha, um grande amigo que estava frequentando a casa de Ujuraí, pai de santo que trabalha na linha da umbanda e do candomblé, me contou por telefone que seu pai tinha marcado a gira de exu, a primeira a ser realizada na casa. A realização das festas de exu que estavam em curso nas casas citadas, como tudo o que é novo, era matéria para debate: algumas pessoas consideravam que se tratava de um modismo, um processo de umbandização das casas, algo vindo “de fora”; outras consideravam que se tratava de uma vontade dos exus. Seja qual fosse o julgamento, essa transformação era entendida como algo admissível de ser processado por todos aqueles que tomavam parte dos candomblés de Belmonte. *

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Esta tese é feita justamente neste movimento: partindo não necessariamente de certezas, pegando o caminho de algumas dúvidas e das transformações anunciadas por meio dos encontros que tive com pessoas e seres outros. Recuperando nos escritos feitos durante o campo e na memória o que era matéria de controvérsia e o que não fazia ainda muito sentido para mim, procuro proceder a uma descrição dos candomblés de Belmonte que leve em consideração a criatividade das pessoas que, versando comigo sobre candomblé, e atentas às presenças de seres outros, me permitiram construir um entendimento parcial do que pude experienciar nos onze meses que estive em campo. Opero assim considerando que “cada

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nativo é também um ‘antropólogo’ com uma ‘hipótese de trabalho’ a respeito de seu próprio modo de vida.” (Wagner 1974: 120). No primeiro capítulo desta tese, portanto, apresento inicialmente os diferentes seres que habitam Belmonte: as pessoas, pretos-velhos, marujos, erês e caboclos. Exu também é ser específico, mas sobre o qual já me ocupei na Introdução. Além disso, faço uma breve reflexão sobre as versões que estes seres oferecem para a história e geografia da cidade de Belmonte. Por meio deles, a cidade deixa de ser narrada a partir de um ponto de vista oficial e impessoal e multiplica-se: ganham espaço as estórias dos espíritos que habitam a região e que trazem consigo as lembranças e gostos de outros tempos e a vivência das populações indígenas e negras que povoaram a cidade. No segundo capítulo, apresento uma reflexão baseada nas diferentes formas de se referir à percepção da presença desses seres outros que habitam o mundo dos candomblés de Belmonte. Eles podem se manifestar de diferentes formas e a intensidade dessas presenças é demarcada por aqueles que os sentem: virar, irradiar, aparecer e possuir são as categorias utilizadas para perceber a força dessas presenças; são as maneiras de perceber essas intensidades outras no mundo da matéria. Partindo de conversas com Naiana e apoiando-me nas proposições de Goldman (2005, 2012) e Anjos (2008, 2009), proponho que o trabalho no santo consiste num trabalho de captação e organização de forças que resulta na vida no santo. É este trabalho, inclusive, que possibilita também a criação e organização das casas de santo e que está na base da constituição das brincadeiras tradicionais da cidade: os bois duros e as brincadeiras e blocos de carnaval. No terceiro capítulo, apresento as linhas doutrinas com as quais se trabalha nos candomblés de Belmonte: a linha da umbanda e a linha do candomblé, que se ramificam em outras linhas doutrinas, como a linha espiritual, a linha da magia, a linha da angola e a linha

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do ketu. Em seguida, apresento alguns pais e mães de santo de Belmonte a partir das histórias de vida que me foram narradas e de alguns episódios vividos em seus candomblés. São eles: seu Raimundo das Flores, dona Rita Camuinganga, Cosme Talassidã e dona Otília. O objetivo é trazer à tona os conhecimentos e os procedimentos que eles mobilizam para fazer candomblé, os encontros e os rumos que seguiram na condução de suas casas. Cada um deles ingressou de modo particular na religião e cada um deles realiza o candomblé em sua casa conforme os preceitos que foi adquirindo de diferentes maneiras ao longo da vida: herdados, transmitidos por meio de sonhos, transmitidos por seus mensageiros e aprendidos com outras pessoas; em alguns casos, esses conhecimentos foram aprendidos também durante o processo (total ou parcial) de iniciação no candomblé. A relação deles com as demais pessoas que frequentam suas casas e, sobretudo, com seus mensageiros e santos é também determinante para as formas particulares como conduzem seus candomblés, sendo que ter o santo de dote, o santo de herança e/ou o santo raspado é, nesses casos, um fator decisivo para influenciar o modo como levam a vida no santo e conduzem os rituais e a organização de suas casas. No quarto capítulo, a partir de uma conversa com Naiana e seu Nilton, pontuo algumas diferenças nas formas de organização das casas e nas maneiras de iniciação da vida no santo dos que se orientam mais pela linha da umbanda e dos que se orientam mais pela linha do candomblé, considerando que essas linhas atravessam todas as casas que frequentei (à exceção da casa de seu Raimundo das Flores, que trabalha exclusivamente na linha da umbanda e na linha espiritual). Em seguida, a partir de um dilema vivido por Naiana, o da indeterminação de vir a ser ou não sucessora da casa de sua mãe, apresento as possibilidades abertas para ela ocupar esse lugar. A linhagem de sangue, a linhagem de santo, a linhagem espiritual e a convivência são as vias por meio das quais Naiana pode se tornar mãe de santo,

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mas apenas as que estão submetidas à vontade do Caboclo Juremeira, guia da sua mãe, lhe interessavam verdadeiramente. No quinto capítulo, a saída do bloco Netos de Gandhy por ocasião do ciclo de comemorações da padroeira de Belmonte, Nossa Senhora do Carmo, é descrita. O exercício é operado a partir de um olhar primeiramente fornecido por dona Zezé, que apresentou o calendário das brincadeiras a partir do calendário religioso das casas de santo: inicia-se em janeiro com a realização dos bois-duros, que, conforme observou, consistem numa homenagem aos boiadeiros e caboclos, entidades do candomblé. O ciclo de apresentação dos bois-duros pelas ruas da cidade se encerra em 20 de janeiro, dia de homenagem a Oxóssi, com apresentações de todos os bois e a subida do mastro de São Sebastião na praça em frente à igreja consagrada ao santo. Nesse caso, o objetivo é apresentar como o bloco Netos de Gandhy e as demais brincadeiras tradicionais são organizados obedecendo também a uma lógica de organização de forças que têm por objetivo, de um lado, evitar a aproximação de eguns (os mortos indiferenciados), e de outro, irradiar a força dos orixás e dos mensageiros por meio da homenagem realizada nas ruas da cidade. No último capítulo, descrevo o ritual de sacudimento que fiz poucas semanas antes de regressar do campo. O intuito é dar continuidade a reflexão sobre como o trabalho no santo consiste num esforço de captação e organização de forças, incluindo o afastamento de algumas. Além disso, o objetivo é proceder à descrição atenta às formas de perceber os afetos que envolvem essa experiência considerando que, por menos que possam ser entendidos, são sinais das relações e das afecções que se deram em função de estar metida nos candomblés, como dizem em Belmonte. Esses afetos se estenderam para além do período que passei no campo e afetaram também a escrita destas linhas. Esta tese resulta de um cruzamento singular em que, de um lado, procuro

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abordar os acontecimentos do campo a partir de uma perspectiva antropológica e, de outro, passo a reinterpretá-los a partir de um olhar de quem teve que começar a aprender a fazer o seu próprio trabalho de captação e organização das forças constituintes-constitutivas do mundo. Este cruzamento singular afeta de modo forte a escrita destas linhas. Realizei a pesquisa no período de setembro de 2010 a agosto de 2011. Todavia, só consegui me aproximar do material de campo para realizar a qualificação, marcada inicialmente para julho de 2012 e transferida para outubro do mesmo ano. Após a qualificação, novamente me afastei do material de campo e apenas a partir de meados e final de 2013 é que retomei a leitura e organização das gravações e das anotações do período em que vivi em Belmonte. Para essa ocasião, portanto, a escrita resulta de processo realizado num fôlego só: uma imersão profunda, mas de fôlego curto. O resultado é uma tese sucinta e que traz algumas das experiências vivenciadas no campo. Outras experiências, por falta de tempo e, em alguns casos, por precisar ainda amadurecer a apresentação dos acontecimentos, pretendo abordar em trabalhos futuros. Nesse sentido, cabe ainda observar que não me preocupei no momento em mudar o nome das pessoas, nem da cidade em que realizei a pesquisa de campo. Contudo, alguns acontecimentos narrados e determinadas informações e conversas que são matéria desta tese poderiam inevitavelmente comprometer muitas pessoas. Assim, ao menos por enquanto, achei melhor apresentar a tese, mas observar que a consulta só poderá ser efetuada de modo restrito, sendo preciso a solicitação de autorização prévia para leitura do material. Finalmente, cabe a observação de que esta tese e a pesquisa que a embasa se inserem no âmbito do projeto “Religiões de Matriz Africana no Brasil: Uma Perspectiva Transformacional”, coordenado pelo professor orientador Marcio Goldman. O objetivo

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central do projeto consiste em retomar a tentativa levada a cabo por Roger Bastide (1971) no sentido de construir um quadro sinótico, tal qual Serra (1995) definiu o empreendimento de Bastide, das religiões de matriz africana no Brasil. Levando em consideração que para Bastide a fatalidade da diáspora negra gerou uma situação peculiar na qual foi possível observar as readaptações das superestruturas em processos de dissolução das infraestruturas, os integrantes deste projeto se propuseram a realização de pesquisas e elaboração de teses etnográficas com a intenção de efetuar estudos por meio de determinados eixos transformacionais sobre os quais se assentam as diversas manifestações das religiões de matriz africana. A partir daí, essas religiões poderiam ser encaradas como transformações umas das outras, sem que se considere qualquer uma delas como a “forma modelo” prototípica a partir da qual as outras seriam moldadas (Goldman et alii, 2008: 2).

− A PESQUISA DE CAMPO

Certamente, podemos localizar geograficamente o lugar de realização da pesquisa na cidade de Belmonte, sul da Bahia. No entanto, esta localização não basta para termos delimitado o campo de uma pesquisa etnográfica. Do mesmo modo, não se trata de estabelecer delimitações sociais que se imprimem neste espaço, considerando que basta dizer que, situado na cidade de Belmonte, nosso escopo se configura a partir do contexto social e/ou cultural das casas de candomblé, pressupondo que tal contexto existe enquanto dados exteriores aos sujeitos e que os determina6.

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No Anexo 1, disponibilizo algumas informações sobre a localização e características socioeconômicas do município de Belmonte. Contudo, tais informações não são utilizadas para estabelecer uma relação de causalidade entre os eventos descritos na tese e o contexto social, cultural ou histórico em que se efetuam, a não ser que essa operação tenha sido feita in loco, o que, no caso, será indicado no texto.

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O território é “o espaço subjetivo vivido”, um sistema no seio do qual um sujeito se sente “em casa”. É, portanto, “o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (Rolnik & Guattari, 1986: 323). É esse território que define, pois, o campo desta pesquisa: menos do que unidades espaciais de análise, trata-se da descrição dos candomblés de Belmonte por meio dos encontros com pessoas que os levam para onde quer que se vá; que se inscreve no corpo, nos gestos, nas palavras, nos sonhos e nas casas que se irradia e se manifesta com as presenças dos orixás, dos caboclos, dos exus, dos marujos e pretos-velhos. Essas pessoas e seres, cabe enfatizar, não são elas próprias unidades totais, encerradas nelas mesmas, necessariamente coerentes. Ao propor uma descrição que tome por base a definição dos candomblés a partir da minha relação com algumas pessoas não tenho por objetivo transferir a “unidade de análise” para elas, considerando que seja possível defini-las e a partir daí encontrar um espelho, a “representação” das suas casas. Ao contrário, trata-se de reconhecer que elas se fazem tanto quanto fazem os seus candomblés: elas mesmas são territórios, atravessadas por fluxos e forças heterogêneas. Trata-se de reconhecer, tal qual Clarice Lispector propôs ao referir-se a si própria, que não se pode resumi-las simplesmente “porque não se pode resumir uma cadeira e duas maçãs”, não se pode somá-las. Assim, a descrição da trajetória dessas pessoas tem mais o objetivo de apresentar os encontros e os rumos que se seguiram no curso de suas vidas e que de alguma maneira afetaram o modo como fazem candomblé, em geral, assunto principal dos nossos encontros. Nesses encontros, certas vezes não se tratava apenas de estabelecer uma comunicação verbal. Outras formas de comunicação não verbais foram processadas, às vezes sem necessariamente haver minha compreensão do que se passava: sonhos, arrepios,

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pressentimentos, sensações e visões. Ao final da pesquisa tive que começar a levar a sério e a dar mais atenção à percepção de alguns desses “fenômenos”, considerando que eles estavam me comunicando algumas coisas. Assim, por exemplo, retornando ao episódio com João Caveira, apesar de já ter visto sua manifestação e as mudanças que ela ocasionava em Naiana, ainda não operava de modo a reparar como sua presença a afetava. Menos ainda me preocupava em atentar para os “sinais” que poderiam me ajudar a identificá-lo. Foi a partir de sua provocação e recorrendo a Naiana que passei a ficar mais atenta aos sinais que anunciavam sua chegada, que eram sutis, a meu ver: na risada larga dela, tentava perceber certa mudança no modo de sorrir; no gosto pelo cigarro, a atenção se voltava para o modo como o segurava; e prestava atenção aos locais onde nos encontrávamos por serem mais ou menos propícios para sua manifestação. A relação com Naiana nesse processo foi importante, assim como em outras ocasiões o diálogo com seu Celso do Gandhy e sua esposa Carmen Lúcia, ou com Cosme Talassidã, ou dona Rita Camuinganga, ou seu Raimundo das Flores, entre outros. Foram eles que operaram a mediação necessária para que eu pudesse não apenas conhecer o que desconhecia, como também para, às vezes, chamar atenção para aspectos que para mim passavam despercebidos. Não fosse isso, muito do que se passou durante o trabalho de campo teria se perdido como informação secundária. Do mesmo modo, os conselhos e passes da Vovó Maria Conga e do marujo Dom José, o trabalho realizado por Rei dos Índios, a conversa com Vovó Mariana e com Martim Pescador e as interações com João Caveira foram fundamentais nesse processo. Cabe pontuar que o procedimento de mediação a que me refiro se baseia no que Latour definiu como mais do que uma simples intermediação mais ou menos fiel do que se passa, e sim uma capacidade de traduzir aquilo que se transporta, uma capacidade de redefinição, de desdobramento, e também de traição (Latour, 1994:80). Assim, propõe o autor: “o sentido da

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palavra mediação difere do sentido de intermediário ou de mediador – definido como aquilo que difunde ou desloca um trabalho de produção ou de criação que dele escaparia” (Latour, 1994: 77). Tal qual propõe, mediação é também capacidade criativa, enfim, que torna possível criar “resultados provisórios e parciais sobre algo particular que supera ligeiramente nossas ações”. Com algumas das pessoas e seres que vivem em Belmonte tive mais contato, com outros menos, mas todos de algum modo me ajudaram a ajustar os sentidos para poder perceber o que se passava a minha volta. Cabe observar, portanto, que não se tratou apenas de obter informações por meio da realização de entrevistas, ainda que este tenha sido um instrumento de pesquisa muito útil. Parte do conhecimento adquirido durante o trabalho de campo se processou também quando estava menos preocupada com a pesquisa e mais enredada em situações de comunicação involuntária e desprovida de intencionalidade. O desafio é conseguir dar o mesmo “estatuto epistemológico” para ambas as situações, como propõe Favreet-Saada (2005). A sugestão da autora é “reabilitar a “velha sensibilidade”, propondo que se faça da “participação” um instrumento do conhecimento” (Favreet-Saada, 2005: 157). Nem observação participante – uma contradição em termos –, nem apenas observação – que reifica a separação sujeito e objeto –, a participação proporciona a possibilidade de experimentar por conta própria os efeitos reais de uma rede particular de comunicação humana. Não se trata, no entanto, de escolher ocupar um tal lugar nessa rede de comunicação com a finalidade de proceder a’ uma espécie de operação de conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido que se dê a esse termo (ver Favret-Saada, 2005: 158-9). Ao contrário, trata-se de reconhecer que “ocupar tal lugar (...) não me informa nada sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu próprio

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estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros” (idem: 159). Conforme proposto por Goldman (2003: 464), tal procedimento pode ser realizado sob o signo do conceito deleuziano de devir: “o movimento através do qual um sujeito sai de sua própria condição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição outra (…) que nos arranca não apenas de nós mesmos mas de toda identidade substancial possível. Trata-se, pois, de apoiar-se em diferenças não para reduzi-las à semelhança (seja absorvendo-as, seja absorvendo-se nelas) mas para diferir, simples e intransitivamente.” (idem: 465)

Considero que cabe aqui relembrar a proposição de Lévi-Strauss que observa que o que leva o etnógrafo a procurar por outra forma de vida não consiste na busca de uma forma humana privilegiada que possa ser cientificamente objetificada; da mesma maneira, não resulta na busca de uma identificação forçada do “eu” com o “outro” com vistas a proceder a um empreendimento científico intersubjetivista; tal procedimento consiste em buscar meios de constatação de que essa experiência outra é mais uma dentre tantas outras que se sucederam no curso da história e que se distribuem no espaço. Do encontro com essa diversidade interminável é que se pode “conhecer-se como um ‘ele’ antes de ousar pretender que é um ‘eu’” (1976: 47). Ou melhor, como afirmou em outro contexto, “É bem este o procedimento do etnógrafo de campo, pois – por mais escrupuloso e objetivo que ele queira ser – não é nunca ele mesmo, ou o outro, que encontra no final de sua pesquisa” (LéviStrauss, 1976: 16). O pouco do que pude conhecer sobre candomblé nesse período que vivi em Belmonte se deu por meio da realização de entrevistas e em conversas nos mais diferentes contextos. E também prestando atenção em conversas alheias, participando dos toques nas casas de candomblé, ajudando em algumas obrigações e me dedicando a ficar atenta aos sinais das presenças dos santos e seus mensageiros. Como Goldman sugeriu, o processo de aprendizagem no campo se assemelha muito ao processo de aprendizagem da iaô (a neófita no candomblé) que “cata 16

folha” para fazer sua síntese particular que nada mais é do que mais uma versão entre tantas outras versões: “alguém que deseja aprender os meandros do culto deve logo perder as esperanças de receber ensinamentos prontos e acabados de algum mestre; ao contrário, deve ir reunindo (“catando”) pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali (as “folhas”) com a esperança de que, em algum momento, uma síntese plausível se realizará” (Goldman, 2003: 455).

Do mesmo modo, propôs Cossard (2004: 145), é com o passar do tempo que o conhecimento no candomblé vai se entranhando na pessoa, posto que não se trata nunca de um ensino passado de modo sistemático e sim de uma vivência. A ação do tempo, nesses casos, é necessária. Conforme sentença comum de ouvir no meio do candomblé e que recorda a autora: “O Tempo não gosta do que se faz sem ele”. Certamente, o período de quase um ano de campo não é o suficiente para que esse conhecimento se processe dessa forma; contudo, todas as vivências nesse período processaram mudanças no modo como tive que passar a perceber o mundo a minha volta, e é a partir destas mudanças que construo uma versão sobre os candomblés de Belmonte. *

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Antes de chegar a Belmonte tinha o ideal de realizar a pesquisa em uma única casa de candomblé; muitos foram os motivos, no entanto, que fizeram com que o caminho da pesquisa fosse justamente o contrário. O principal deles teve a ver com minha escolha de manter as amizades que fiz com pessoas que tinham relações com diferentes casas de santo. Como não conhecia ninguém quando cheguei à cidade, tratei logo de me articular para conhecer todas as casas de candomblé que pude e acabei fazendo amizades em mais de uma delas, o que repercutiu no modo como fiz a pesquisa: menos preocupada em manter a ideia inicial, fiquei mais interessada em aprofundar a relação com as pessoas que conheci, em circular por diferentes casas e conviver com o candomblé não necessariamente no cotidiano

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de uma casa de santo, mas no cotidiano da vida das pessoas. Cardoso, em sua monografia sobre a macumba nos centros de umbanda dos subúrbios do Rio de Janeiro, observou que esse movimento, que também realizara em seu trabalho de campo, e que era chamado localmente de correr macumba, trazia certos perigos espirituais, conforme alertou-a certa vez uma pomba-gira. Todavia, Cardoso observou, esse movimento também abria a possibilidade de descrever a macumba como socialidade que ultrapassa os limites do ritual e do dia a dia, o passado e o presente, o aqui e o lá, considerando que ela não se restringe ao espaço dos terreiros e aos momentos rituais. “Ela é também outros momentos, lugares, pessoas, preenchidas com as presenças de espíritos, saturadas por uma sociabilidade e um imaginário enredados de meio-ditos e histórias escutadas pela metade” (Cardoso, 2004:12). O movimento de circulação pelas diferentes casas, contudo, na minha experiência de campo, teve período para começar e acabar. Assim, se logo no início da pesquisa procurei frequentar toques em todas as casas, o mais que pude, na medida em que o tempo foi passando, tive que escolher as casas que frequentava em função das amizades que havia feito, já que as fofocas passaram a fazer parte das conversas e, conjuntamente, a desconfiança por frequentar mais de uma casa começou a aumentar. No capítulo em que apresento as trajetórias no santo, em cada seção antes da descrição dos aspectos da vida de cada pai e mãe de santo, trago informações sobre como em geral se deu minha interação com essas pessoas e como percebia a disponibilidade de alguns deles em relação a minha presença em suas casas. Cabe pontuar, contudo, que ao final da pesquisa, apesar de poder frequentar todas as casas nos dias de festa, frequentava cotidianamente apenas a casa de dona Rita Camuinganga e os toques semanais na casa de seu Raimundo das Flores.

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Durante toda a pesquisa, mas especialmente no processo inicial, duas pessoas foram fundamentais para me pôr em relação com o pessoal dos terreiros: Ariane e seu Celso do Gandhy. Ariane foi meu primeiro contato em Belmonte, articulado pelo meu orientador que me pôs em relação com o artista e produtor cultural de Caravelas, Jaco Galdino, que conhecia Ariane por conta das reuniões dos fóruns de cultura do Estado da Bahia. Jaco e Ariane eram delegados de cultura de seus respectivos municípios e se conheceram nesses encontros. Jaco me forneceu o e-mail de Ariane e, após trocar algumas informações com ela, viajei para Belmonte no final de setembro de 2010, de onde regressei no final de agosto de 2011. Ariane veio a ser das maiores amigas que fiz em Belmonte. Ela pouco frequentava as casas de candomblé e dizia possuir certo medo de ir às festas e ver as pessoas manifestadas, apesar de já ter se consultado algumas vezes com a Vovó Maria Conga de dona Rita. Mesmo sem ser frequentadora das casas, ela tinha uma visão sobre a importância do candomblé para a cultura da cidade que era instigante e sobre a qual passávamos horas conversando. Ela afirmava não ter religião, apenas acreditar em Deus e, às vezes, acompanhava a irmã mais velha, Márcia, ao culto numa igreja evangélica neopentecostal, ao qual pude ir com elas algumas vezes. Ariane vivia com sua mãe, Anísia, e o irmão mais novo, Ademar, conhecido como Gotinha. Em cima de sua casa ficava a residência de sua irmã mais velha, com o marido, Fábio, e o filho, Fábio Filho, e ao lado residiam a mãe de Fábio, dona Dulce, e sua irmã Fabiana com o marido Nataniel e a filha Laisla. A proximidade fazia com que no cotidiano a convivência ultrapassasse os muros das casas. Em matéria de religião, à exceção de Ariane, Anísia e Gotinha, todos os demais eram evangélicos e frequentavam a mesma igreja neopentecostal “Deus é fiel”. Anísia e Ari, às vezes, a convite de Márcia, frequentavam os cultos na igreja, e do

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mesmo modo, a convite meu, foram em festas de candomblé na casa de dona Rita Camuinganga. Já Gotinha frequentava “sem compromisso” a casa de Ujuraí, pai de santo de uma casa localizada no bairro do Centro, próximo ao rio Jequitinhonha. Era Gotinha quem vez ou outra me contava notícias dos acontecimentos dessa casa, à qual fui apenas em algumas ocasiões, mais no período inicial da pesquisa. Foi por intermédio de Ariane que conheci dona Rita Camuinganga, mãe de santo de uma casa de candomblé no bairro da Ponta de Areia. Ari, como é chamada, é amiga de Luana, filha mais nova de dona Rita Camuinganga, e foi quem inicialmente me acompanhou e me introduziu no cotidiano dessa casa de santo. Luana diz preferir evitar se envolver com o candomblé, mas se consulta semanalmente com a Vovó Maria Conga, preta velha de dona Rita, e ajuda nas festas realizadas na casa. Foi Ariane também quem me apresentou ao seu Celso do Gandhy. Cabe pontuar que tanto seu Celso do Gandhy e Carmen Lúcia, como Ariane e sua família foram durante toda a pesquisa importantes referências para mim. Mesmo tendo alugado a casa da filha mais velha de dona Rita para residir, acabava raramente dormindo nela, optando quase sempre por dormir nas casas ou de seu Celso, quando estava pelo bairro da Biela, ou de Ariane, quando estava no bairro da Ponta de Areia. Quando dormia em minha casa, eu tinha a companhia de pelo menos uma das filhas de seu Celso, Lucilene ou Olívia, ou de Ariane. À exceção de dona Rita Camuinganga, seu Celso do Gandhy e sua esposa Carmen Lúcia me apresentaram a todos os pais e mães de santo de Belmonte que tinham casa aberta: dona Maria, dona Otília, Cosme Talassidã, seu Raimundo das Flores e Ujuraí. Foram eles também que me apresentaram à dona Marota, zeladora da única casa espírita em funcionamento em Belmonte, que também trabalhava na linha da umbanda. E foi no candomblé de dona Otília que conheci sua irmã biológica, dona Zezé, que também possui

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uma casa de santo que trabalha na linha da umbanda. Natural de Belmonte, seu Celso foi para Salvador por volta dos vinte anos de idade para trabalhar, acompanhando um lojista que vendia produtos têxteis em Belmonte. Na capital, casou-se e constituiu família com Ágata, que posteriormente tornou-se mãe de santo de uma casa de candomblé ketu localizado no subúrbio. Profissionalmente, seu Celso empregou-se na Refinaria de Mataripe, localizada no município de São Francisco do Conde, na região do Recôncavo Baiano, na década de 1960. Por conta da periculosidade da profissão, no final da década de 1980, seu Celso deu entrada em sua aposentadoria, já atuando como técnico em segurança do trabalho da empresa brasileira de petróleo e gás – Petrobrás e foi então que pôs-se em movimento para realizar o sonho de regressar a sua terra natal, desejoso de uma vida mais pacata. Assim, no início de 1990, retornou para Belmonte, tendo se separado da esposa, com quem deixou os filhos. Em Belmonte, conheceu Carmen Lúcia, com quem passou a morar e constituiu nova família. Celso e Carmen residiam na época em que realizei a pesquisa com os três filhos, Dió, Olivia e Lucilene, numa casa espaçosa na região limítrofe entre os bairros do Centro e da Biela. Desde que regressou, seu Celso procurou se envolver com atividades culturais, sociais e políticas da cidade, tendo também se candidatado a vereador por duas ocasiões, nas quais, contudo, não logrou sucesso. Com relação às atividades sociais e culturais que desenvolvia no período que residi em Belmonte, ele se ocupava da condução da Associação Cultural Beneficente Netos de Gandhy, que tinha como principais atividades a escolinha de futebol e o bloco homônimos. Sobre esse aspecto da vida de seu Celso há informações na dissertação de Levindo Pereira Júnior (2005), que acompanhou um dos períodos de sua campanha a vereador de Belmonte em pesquisa que resultou em sua etnografia sobre a “micropolítica da política” no

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município. A atuação de seu Celso a frente do bloco Netos de Gandhy também foi matéria do estudo do antropólogo norte-americano Michel Baran, “Race, color and culture: questioning categories and concepts in southern Bahia, Brazil”, no qual o autor dedica uma seção à análise da atuação do bloco no cenário político cultural da cidade, considerando-o o principal representante do ativismo do movimento negro em Belmonte, seu papel na divulgação e valorização da cultura afro-religiosa (ver Baran, 2007: 61-77)7. A escolinha do Gandhy consistia “no trabalho mais voltado para a área social”, e o bloco, “no trabalho mais voltado para a área cultural”, conforme definia seu Celso. No cotidiano, a escolinha dava dois treinos de futebol, um na parte da manhã e outro na parte da tarde, para um número variável de meninos com idades entre sete e treze anos. Além disso, seu Celso articulava-se com os donos de outras escolinhas da cidade para organização de campeonatos e torneios. Para participarem da escolinha, os meninos deveriam estar matriculados na escola e mostrar semestralmente o boletim para seu Celso acompanhar o andamento de seu desempenho escolar. Ao final do ano, realiza uma premiação dos que se destacaram não apenas como bons atletas nos campeonatos, mas também dos que tiveram boa conduta durante o ano e apresentaram as melhores notas. O objetivo, conforme explicou, é oferecer uma opção de diversão sadia para os meninos ao mesmo tempo em que lhes passa seus valores, incentivando-os a serem estudiosos e responsáveis. O bloco Netos de Gandhy desenvolve o trabalho da associação na parte cultural, realizando, desde 1982, apresentações para “homenagear os orixás e divulgar a cultura afro em Belmonte e no Brasil”. O bloco sai anualmente nas sextas-feiras de carnaval e por ocasião 7

Cabe observar que a passagem desses dois antropólogos pela cidade e a especial relação com seu Celso e sua família certamente afetaram o modo como estes me receberam: demonstrando extrema lucidez em relação aos aspectos do meu trabalho, me conduzindo com maestria pelos meandros dos fluxos afro-religiosos e culturais de Belmonte, como poderá ser percebido nas linhas que seguem. Cabe observar também que tanto Levindo quanto Michael foram generosos e me forneceram dicas e informações importantes sobre a cidade no período précampo.

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das comemorações da padroeira da cidade, Nossa Senhora do Carmo, e também aceita convites para realizar apresentações em eventos culturais promovidos na cidade ou fora dela. Foi na década de 1990 que seu Celso assumiu a presidência do Gandhy, mas desde 1989 passara a se envolver com as atividades do bloco, saindo como destaque de preto-velho nos dias de carnaval. Este assunto será matéria de reflexão no quinto capítulo da tese, mas já cabe observar que, desde essa época, para seu Celso e ao menos para parte das baianas que saem no bloco, as atividades do Netos de Gandhy, ainda que consistindo um “trabalho mais voltado para o lado cultural”, nunca deixaram de ser consideradas também um trabalho religioso, posto que consiste justamente numa forma de promover a cultura realizando uma homenagem aos orixás. No referido capítulo, me ocuparei em detalhar este aspecto da vida de seu Celso, bem como as atividades do Netos de Gandhy. Por hora, cabe proceder à descrição da cidade de Belmonte tal qual me foi apresentada por aqueles que fazem os candomblés.

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Capítulo 1: O MUNDO SUPERPOVOADO DE BELMONTE

Apresento a cidade Belmonte, conforme me apresentou vovó Mariana, preta-velha de Dona Marota, zeladora da única casa espírita da cidade que estava aberta na época em que realizei a pesquisa. Depois de lhe falar que observava que tinha muito preto-velho e caboclo trabalhando nas casas de santo de Belmonte, vovó explicou:

Aqui teve muita matança de gente. Era tudo aldeia que foram destruindo, matando homem, mulher, criança, velho, matando tudo. Até a natureza, os animais... Depois, vieram os negros e mataram também. Mataram e escravizaram. Por isso que essa terra tem carrego, porque tem muito sangue nela. Tem muito ódio. E por isso que tem tanto velho e caboclo trabalhando, que é para limpar esse lugar.

Vovó Mariana foi quem me falou pela primeira vez da história dessa região considerando os que foram mortos e escravizados, apontando que seu carrego, o carrego dos eguns, afeta a vida de quem vive nessa terra e é matéria de trabalho para os pretos-velhos e caboclos, que limpam o lugar. Egum é o espírito dos mortos. Do mesmo modo que Exu, não ocupa os mesmos espaços que os orixás. Estes são seres associados à origem e criação do mundo, são seres divinos. Egum, por sua vez, é o espírito dos ancestrais, ou os espíritos dos mortos, das almas desencarnadas8. Nos candomblés que seguem a tradição nagô, existe um ritual específico para cultuar os mortos, o culto dos Egungun. “O principal propósito do culto dos Egúgún é tornar os espíritos ancestrais visíveis, manipular o poder que emana deles e atuar como um veículo entre os vivos e os mortos. Ao mesmo tempo que preserva a continuidade entre a vida e a morte, o culto dos Egúngún também mantém estrito controle sobre a relação dos vivos com os mortos, distinguindo claramente o mundo dos vivos e dos mortos.” (Elbein dos Santos e Santos, 2004: 232.)

Em Belmonte, existem duas qualidades de eguns: os que trabalham para os orixás e os 8

Sobre esse assunto, ver Cruz, 1995: 70; Elbein dos Santos, 1977; Elbein dos Santos e Santos, 2004; Goldman, 1984: 123-124.

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que não aceitam sua condição de mortos e que oferecem grande perigo para os seres humanos. Não existem, no entanto, casas específicas que trabalham com o culto a Egungun. Existem rituais específicos dos eguns que trabalham para os orixás, rituais específicos para atrair espíritos errantes (eguns) e encaminhá-los e rituais específicos para tirar eguns de pessoas que estão possuídas por espíritos de mortos ou que estão sob sua influência maléfica. Destes últimos, rituais fechados, são poucos os filhos das casas que podem participar, apenas aqueles que estão preparados para esse tipo de trabalho: os médiuns de passagem, que têm guias que trabalham na linha espiritual, e os mensageiros dos orixás, que têm essa habilidade. Os eguns dos mortos indiferenciados são os espíritos que não aceitam o fato de estarem mortos, são os espíritos revoltados. Oferecem grande risco aos seres humanos, pois tendem a possuí-los para suprir os desejos de continuar usufruindo da vida da matéria. Esses eguns podem agir por eles mesmos ou podem ser escravizados por alguém que os alimenta em troca da realização de alguns trabalhos que, em geral, têm a ver com a feitura de feitiços. Os eguns que trabalham para os orixás são chamados de mensageiros dos orixás. Eles vêm na linha dos orixás de cabeça das pessoas, o que significa dizer que é o orixá dono da cabeça, ou orixá de frente, como também se diz, que puxa os seus mensageiros. Cada orixá tem sua própria linha de mensageiros. Esses mensageiros são os pretos-velhos e marujos que realizam trabalhos no mundo da matéria. Os eguns que trabalham para os orixás tiveram uma vida pregressa na terra, não necessariamente foram pessoas boas, mas, quando morreram, escolheram trabalhar para os orixás. As pessoas que frequentam as casas de santo recorrem a eles para realização de trabalhos terapêuticos e de limpeza espiritual, mas eles também podem agir para melhorar as condições financeiras e amorosas dos que os procuram. Dona Rita Camuinganga me contou que foi a Iansã, seu santo de cabeça, que colocou a

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Vovó Maria Conga como sua mensageira para trabalhar por ela: até então, com doze anos de idade e um ano que a Iansã tinha se manifestado pela primeira vez, era apenas Iansã e, por um curto período de tempo, Ogum que vinham trabalhar dando consultas. Como, no entanto, a Iansã não podia vir para ficar trabalhando, ela colocou a vovó em seu lugar. Mesmo depois de ter raspado o santo, isto é, ter sido feita no candomblé angola, dona Rita permaneceu recebendo a Vovó Maria Conga. Aliás, ela só aceitou raspar o santo após seu pai de santo assegurar que a Vovó continuaria vindo. É a Vovó que realiza os trabalhos da casa, que reza as pessoas e atende a clientela que a procura. Os filhos da casa também têm muito apego com a Vovó, observou dona Rita. Ela comemora, todo ano, próximo à data em que se manifestou pela primeira vez, no 7 de setembro, a festa da Vovó, em que não pode faltar cocada, mingau, doces, refrigerante, cerveja preta, a sidra e o acarajé, que é a comida da mãe dela, Iansã. Dona Rita também faz o bolo para cantarem parabéns e convida os filhos dos amigos, dos parentes~, e as crianças da vizinhança para participarem, porque isso alegra a Vovó. Dona Rita também recebe o marujo Dom José, que também já vinha antes de ela raspar o santo. Dom José costuma vir ao final das festas e obrigações da casa. E também comemoram a festa dedicada a elesempre no início do ano, com churrasco, mariscada e muita cerveja. Ele é festeiro, namorador e bebe muito. Cosme Talassidã é da mesma roça que dona Rita Camuinganga, isto é, da mesma família de santo. Tem Oxóssi de santo de cabeça, que puxou o preto-velho Rei do Congo para trabalhar na linha da umbanda dando consultas e passes. Assim como dona Rita, só aceitou raspar o santo quando o pai de santo assegurou que Rei do Congo continuaria vindo trabalhar. É Rei do Congo quem realiza os trabalhos da casa, quem faz as comidas rituais, as rezas, as mirongas, e é com ele que Cosme costuma atender os clientes que chegam a sua

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casa. Além do velho Rei do Congo, também recebe a vovó Anastácia e o marujo Martim Pescador, um marujo calmo que gosta de puxar chulas9 doces, bebe e é namorador, características que modificam completamente a natureza de Cosme, conforme ele mesmo observou. Já dona Marota, aparelho da vovó Mariana, vovó que contou a história que abre esta seção, também a recebeu de dote. Ao contrário de dona Rita, contudo, dona Marota não recebe orixá, pois essa não é a linha na qual ela trabalha, o que não significa dizer que não tenha orixá, tanto que a vovó Mariana realiza todo ano a feijoada de Ogum para homenageálo, e pode fazer a obrigação porque, apesar de não ser a linha da casa, ela (a vovó) vem na linha da umbanda. Dona Marota contou que foi já depois de casada e com os filhos criados que a vovó Mariana manifestou pela primeira vez. Ela vivia acometida por fortes dores de cabeça e nenhum remédio a aliviava. Uma vizinha recomendou que ela procurasse um “centro”, porque o problema poderia ser espiritual. Dona Marota era muito católica, fazia parte do coral da igreja e não achava bom que a vissem frequentando candomblés, por isso aproveitou que faria uma viagem para o Rio de Janeiro para procurar um “centro” fora da cidade onde reside. No centro de umbanda em que foi atendida, informaram-lhe que as dores de cabeça eram ocasionadas pela presença da vovó Mariana que queria vir trabalhar. Dona Marota afirmou que não teve escolha: numa sessão, a vovó Mariana veio e deu o recado. Voltou para Belmonte e começou a frequentar a casa de seu Raimundo das Flores, mas ainda assim um pouco contrariada, pois nunca gostou de candomblé. Naquela casa, a vovó Mariana foi desenvolvendo, ela vinha e dava passes. Dona Marota contou que com o correr da notícia, na época, ela foi discriminada pelo 9

Chulas ou pontos são os nomes dados aos cânticos puxados por entidades ou pelas pessoas durante as festas de candomblé.

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próprio sacerdote, principal representante da religião católica em Belmonte. Desde então, nunca mais voltou a igreja para assistir uma missa. Anos depois, recebeu o Caboclo Serra Negra que, já cabe avisar, não é um egum e passou a ser o seu “mentor espiritual”. Ele avisou a dona Marota que ela tinha que passar a trabalhar na linha do espiritismo, doutrina que segue atualmente e que, de acordo com ela, se distingue do candomblé por ser um trabalho que encaminha os eguns para a “evolução espiritual”. No candomblé, conforme considerou, o costume é manter os eguns como escravos. A partir de então, dona Marota começou a fazer sessões na sua própria casa, às terças e quintas-feiras, às 19h. Seu Serra Negra passou a restringir o trabalho da vovó Mariana para apenas um dia na semana, dia em que ela dá os passes e faz os trabalhos na linha da umbanda, observando apenas que não pode “bater tambor”. Além da feijoada do Ogum, também por conta de uma obrigação, vovó Mariana oferece todo ano o caruru das crianças10 na casa de dona Marota. Ele é realizado no mês de setembro, mês consagrado aos erês, às crianças. Por ser uma obrigação da vovó, dona Marota observou que, antes da chegada de seu Serra Negra, ela vinha dar o caruru, mas antes batia tambor para os orixás. Quando seu Serra Negra veio, vovó Mariana passou a oferecer o caruru das crianças fazendo o ingorossi, a reza para os orixás, apenas batendo palmas. Além de vovó Mariana e de seu Serra Negra, dona Marota recebe também a velha Teodora que, como explicou, é uma preta-velha que vem com pouquíssima frequência para fazer trabalhos de magia. 10

O caruru das crianças é uma cerimônia religiosa e festa de homenagem aos erês, onde é servido o prato ritual feito basicamente com quiabo, camarão seco, castanha e leite de coco. Por ocasião do ritual, o caruru pode ser acompanhado de frango, arroz, salada de feijão-fradinho, farofa, pipoca e doces, como cocada e balas. Quanto mais acompanhamentos, mais farto o caruru, mais as crianças vão se alegrar. O caruru é realizado em casas de candomblé e nas casas de pessoas que assumiram o compromisso ou herdaram a obrigação de um parente ou de uma preta velha ou preto velho que recebem. Outra forma de ter que assumir o compromisso de realizar o caruru das crianças é pegar uma porção em que se encontre um quiabo inteiro dentro. Antes de ser servido para os convidados, é obrigatório que sete crianças sentem à mesa (pano branco estendido no chão onde são coladas as comidas) e comam o prato ritual antes dos demais.

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É possível considerar que os pretos-velhos têm gostos e procedimentos rituais específicos que variam conforme a linha em que se apresentam e também conforme aspectos da trajetória de suas vidas que os singularizam e os definem enquanto seres únicos. Assim, por exemplo, a vovó Mariana de dona Marota realiza a feijoada de Ogum, assim como dá o caruru das crianças por ser uma obrigação dela, e não uma obrigação de dona Marota ou de seu Serra Negra. A vovó Maria Conga de Dona Rita Camuinganga também tem suas próprias obrigações e jeitos de conduzir os rituais. Tem também uma obrigação com os erês e todo ano dá o caruru das crianças, em que fazem o xirê 11 das crianças. É Damião, erê da sua irmã dona Lita, quem comanda a roda do xirê das crianças, enquanto vovó assiste e cuida do ritual. No xirê das crianças, os orixás não descem, são apenas homenageados. São os erês que baixam, mas mesmo assim vovó não os deixa ficar muito tempo por serem muito bagunceiros, como diz. Algumas crianças, filhos ou parentes dos filhos da casa, também podem participar da roda em homenagem aos orixás. Nesse xirê também não é utlizado o tambor, apenas batem palmas, porque, conforme vovó explicou, é “como faziam nos candomblés de antigamente”. Além dessa obrigação para as crianças, Dona Rita Camuinganga dá a festa da vovó Maria Conga todos os anos. É uma festa aberta na casa, normalmente realizada próximo à data em que vovó manifestou pela primeira vez. Participei dessa festa em 2010, nos dias 9 e 10 de outubro, e procedo à transcrição do registro efetuado em meu caderno de campo, em que tive o auxílio de Luana, filha de sangue de dona Rita, que, ao ouvi-lo, acrescentou alguns detalhes: 11

Xirê é a sequência de cânticos e toques rituais para homenagear e/ou chamar os orixás, que pode variar de casa para casa. Dona Rita Camuinganga informou a seguinte sequência de cantos e toques: Arrebate (toque de tambores executado para abrir a sessão); Exu; Pólvora ou Fundanga; Pemba; Incenso; Lemba Caranga (canto pra salvar o salão, para os antepassados); Ogum; Oxóssi; Tempo; Iansã; Xangô; Obaluaiê; Logunedé; Ossanha; Angorô e Oxumaré; Oxum; Yemanjá; Nanã; Oxalá; Caboclos e Marujos.

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A festa da vovó Maria Conga iniciou-se no sábado, por volta das 19:30h. Procederam ao xirê, cantando primeiramente para Exu, depois pólvora, pemba, Ogum... Cosme Talassidã chegou com algumas de suas filhas de santo quando já tocavam para Oxóssi, seu santo de cabeça. Chegou e foi saudado pelos ogãs, que rufaram os tambores. Quem estava batendo os tambores para dona Rita eram seu Nilton, Rogério e Agnaldo, este último “emprestado” da casa de Cosme. Após os cumprimentos, Dona Rita falou para Cosme: “pode tocar seu ketu aí” e Cosme passou a puxar o xirê. Porém, antes de “entrar nas águas”, isto é, começar a tocar para Oxumaré, Oxum, Nanã e Iemanjá, Dona Rita falou: “Vocês me deem licença, mas vou tocar para a minha mãe, para a dona do meu ilê”. Dito isto, pegou para puxar os pontos de Iansã. Depois de tocarem um tempo, a Iansã de Dona Rita veio, dançou um pouco e, em seguida, deu passagem para a vovó Maria Conga. Quando chegou, a vovó cumprimentou os presentes e começou a tirar os pontos de preto-velho. Logo, o preto-velho Rei do Congo de Cosme Talassidã e o velho Xangô de Rosalvo, filho da casa de dona Rita, desceram no salão. Os velhos saudaram a vovó e começaram a puxar pontos também. Após puxarem alguns pontos, a pedido da vovó, alguns dos filhos da casa estenderam um pano branco no centro do salão, onde dispuseram as comidas da festa: um tabuleiro com cuscuz amarelo, outro com cuscuz branco, outro com bolo de tapioca, outros com cocada e outras comidas. Havia também um mingau de trigo que é vovó quem prepara. Depois que os pretos-velhos abençoaram as comidas, elas foram sendo servidas para quem assistia a festa, enquanto os pretos-velhos puxavam os pontos e conversavam com aqueles que iam tomar a bênção. O acarajé que tinha sido preparado pela vovó durante o dia e que foi frito pelo velho Xangô de Rosalvo também foi oferecido nesse momento, e também distribuíram refrigerante. Depois, ainda ofereceram sorvete, doado por Luana, filha de sangue de dona Rita, que tem uma sorveteria. A festa da vovó Maria Conga se estendeu pela madrugada e terminou com a vovó puxando samba de roda e os pretos-velhos sambando no salão. Fui embora antes de acabar, por volta das 02h da manhã. No dia seguinte, às 14h, a festa continuou: novamente cantaram o xirê, mas desta vez ninguém incorporou. Apenas quando começaram a cantar para preto-velho é que novamente vovô Rei do Congo e o velho Xangô desceram. Depois de um tempo puxando pontos, a vovó, que estava desde o início conduzindo o ritual, pediu para trazerem o bolo da festa, que foi colocado sobre uma toalha branca no centro do salão. Junto com o bolo trouxeram os docinhos, cerveja preta, a sidra e refrigerantes. A vovó pediu para que colocassem as crianças ao redor do bolo e, após acender a vela, todos começamos a cantar parabéns. Em seguida, distribuíram o bolo, os docinhos e refrigerante aos convidados e, enquanto estávamos comendo, continuaram cantando pontos de preto-velho. Depois de um tempo, a vovó pediu para trazer o tabuleiro do velho 12, que consiste no prato ritual de pipoca e raspas de coco, a flor do velho, que é oferecido para Obaluaiê. Luana explicou que eles já dariam o tabuleiro logo no domingo para não precisar fazer outro toque na segunda-feira, dia em que normalmente fazem essa obrigação, como encerramento de todas as obrigações que dão na casa. Quando trouxeram o tabuleiro e o colocaram na mesa ritual, passaram a cantar pontos de 12

O tabuleiro é uma obrigação comum nas casas de candomblé de Belmonte. Todas as casas o realizam. Ele ocorre, na maioria dos casos, na segunda-feira posterior às festas realizadas e/ou obrigações do/as filho/as das casas. É o procedimento ritual de encerramento, finalizando as obrigações iniciadas com a homenagem aos orixás mais velhos: Obaluaiê, Nanã e Oxalá.

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Obaluaiê. Nesse momento, a vovó, que estava sentada, levantou-se e dançou no salão e, em seguida, Obaluaiê, que é o terceiro santo de cabeça de Dona Rita, manifestou. O preto-velho Rei do Congo e Xangô saudaram Obaluaiê e foram eles quem distribuíram a flor do velho para os presentes. Quando terminaram de distribuir, os velhos levantaram e retornaram para onde estavam sentados anteriormente. O velho Obaluaiê dançou no salão e depois caminhou para o quarto de santo onde deixou seu aparelho, Dona Rita, que retornou e deu continuidade ao ritual, realizando os pontos de Nanã e Oxalá. Quando começou a tocar para Oxalá, as filhas da casa trouxeram o alá 13 e, com cada uma segurando uma ponta ou pedaço do alá, deixando-o esticado acima da cabeça, dançaram levando-o aos quatro cantos do terreiro. Algumas filhas da casa e as filhas de Cosme que estavam dançando no salão, no processo, iam incorporando com seus orixás de cabeça e, desse modo, eram colocadas sob o alá. Depois de certo tempo, ao comando de dona Rita, as mulheres que não estavam incorporadas e que seguravam o alá foram dançando, conduzindo os orixás para a frente do quarto de santo onde estes deixaram os aparelhos. Terminado o toque, Dona Rita e os velhos puxaram pontos de samba de roda e os velhos sambaram no salão. Nesse momento, algumas pessoas já começaram a ir embora e a festa foi acabando com a despedida dos velhos Rei do Congo e Xangô. A festa da vovó Maria Conga ocorre, como falei, anualmente. Assim como ela, em todas as outras casas é costume celebrar a festa dos velhos e velhas conforme a data em que se apresentaram pela primeira vez. Não há um período especial para isso, como no caso das casas de umbanda do Rio de Janeiro, onde é costume celebrar as festas de preto-velho no mês de maio. Pelo contrário, se quiséssemos encontrar um padrão para configurar um calendário, diria mesmo que a maioria das festas dos velhos ocorre no segundo semestre do ano. Uma característica que observei em outras festas de pretos-velhos – como na da vovó Anastácia de Cosme Talassidã e da vovó Cambinda de dona Otília –, mas que não ocorre no caso da festa da vovó Maria Conga de Dona Rita, é a não utilização dos tambores. Apenas no ritual do xirê das crianças ela procede de modo a não utilizar os tambores, alegando que é para fazer o candomblé como era antigamente, com as pessoas batendo palmas ou tabuinhas14. 13

Oxalá é o pai dos orixás. Sua cor é o branco, porque nela todas as outras se confundem. O alá, o grande pano branco, é o emblema de Oxalá, que é o orixá do começo dos começos, elemento que deu origem às formas de existência. É embaixo do alá estendido que Oxalá abriga a vida e a morte. Dançar embaixo do alá significa reverência e que todos estamos sob a proteção de Oxalá (ver, por exemplo, Elbein dos Santos, 1977: 75/76). 14

As tabuinhas são instrumentos de percussão feitos com dois pedaços de madeira unidos por um barbante na extremidade. Elas são tocadas segurando-se uma madeira em cada mão e batendo uma contra a outra no ritmo das palmas. São semelhantes a alguns tipos de matracas.

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O gosto dos velhos e velhas, como já citamos, é sempre levado em consideração na feitura das suas festas de ano e nas obrigações que têm que realizar. Não é um gosto compartilhado por todos os seres da mesma categoria, quero dizer, não necessariamente em todas as festas de preto velho encontraremos os mesmos elementos rituais, apesar de haver algumas similaridades. A presença ou ausência dos atabaques é um desses elementos de variação que marcam o gosto e os modos distintos dos velhos e velhas de fazer candomblé. O acarajé que é servido na festa da Vovó Maria Conga de Dona Rita é outro elemento ritual que diferencia sua festa das demais: Vovó contou que ele é servido porque ela, assim como dona Rita, era filha de Iansã; além disso, ela foi vendedora de acarajé em sua vida passada, quando morava na Bahia (em Belmonte, chamam a capital do estado, Salvador, de Bahia). Contou ainda que foi ela quem ensinou a dona Rita o preparo do acarajé e de outras comidas: ela vinha, preparava as coisas e deixava na cabeça de dona Rita. Agora ela só vem para dar o tempero. O acarajé servido na festa da vovó Maria Conga tem a ver com a sua história de vida, que está relacionada a sua ligação com o orixá ao qual pertence e também ao qual pertence Dona Rita. Suas vidas estão ligadas e algumas das suas histórias e conhecimentos passaram a ser compartilhados. Vovó é uma manifestação que deixa rastros (Cardoso, 2004:195): sua presença traz consigo fluxos de seus gostos, seus conhecimentos e sua vida no passado. Em sua monografia, Cardoso, acompanhando os trabalhos dos espíritos nos centros de umbanda dos subúrbios do Rio de Janeiro, teve a possibilidade de ouvir desses seres diferentes estórias sobre lugares e eventos do passado, no que propôs que a presença dos espíritos “traz consigo ecos e sombras de outras presenças, sugestões de outros vestígios de sua passagem” (Cardoso, 2004:197). A presença dos espíritos é a presença da diferença, a autora observa. Os espíritos trazem suas memórias, histórias do tempo em que viveram em

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terra. Nesse sentido, o aparelho incorpora não apenas o espírito, mas a história de pessoas, de coisas, de tempos e de lugares do passado. Do mesmo modo, Lambeck (1996), ao refletir sobre a possessão na ilha de Mayote, entendendo a possessão como uma instância mediadora entre os espíritos e os humanos, propõe que as funções narrativas e performativas são centrais para os espíritos. É por meio delas que se estabelecem os canais de comunicação e interpretação de acontecimentos passados, pois os espíritos são “veículos da memória” e não apenas imagens congeladas do passado. Fora isso, Lambeck acrescenta, a relação entre espíritos e humanos não se restringe às relações de reciprocidade entre eles, mas também envolve o modo como os primeiros fornecem novos pontos de vista, dão conselhos, advertem os humanos. As interações entre espíritos e humanos, propõe o autor, podem trazer uma mudança do foco sobre determinados eventos e situações, fazendo surgir novas narrativas sobre as relações entre os humanos. *

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Se retornarmos à apresentação da cidade de Belmonte, conforme vovó Mariana contou, temos não só a informação de que os eguns agem no cotidiano da cidade e que essa ação é matéria de trabalho para os caboclos e pretos velhos. Também se trata de apresentar de maneira muito particular o passado dessa região, um passado que revela a presença das populações indígenas e negras que a habitaram e ainda a habitam. Belmonte está situada numa região atualmente denominada sul da Bahia, conforme critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou Costa do Descobrimento, conforme critérios turísticos e culturais da Bahiatursa15. Considerada o “berço da história e da cultura do Brasil”, a Costa do Descobrimento foi tombada como Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, em 1999. Ela é oficialmente assim chamada por ser considerada a primeira 15

Empresa de Turismo da Bahia S. A. – Bahiatursa, uma empresa de economia mista vinculada à Secretaria de Turismo, sendo responsável pela divulgação e promoção turística da Bahia no Brasil e no exterior, bem como pela administração das estruturas e serviços de receptivo no Estado. http://www.bahiatursa.ba.gov.br/

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região onde aportou a esquadra de Pedro Álvares Cabral e onde se iniciou o processo de exploração e povoamento das colônias portuguesas na América. A Vila Nova de Belmonte foi fundada em dezembro de 1726, consistindo na terceira povoação criada na antiga Capitania de Porto Seguro. Conforme nos informa Cancela, localizada na margem direita do rio Grande (atual rio Jequitinhonha), a vila foi criada para demarcar fronteiras: “de um lado, demarcava o alcance jurisdicional da Comarca de Porto Seguro, formalizando a fronteira político administrativa com a Comarca de Ilhéus; do outro, formava um importante ponto de apoio para a expansão portuguesa naquela rica região, impondo uma fronteira político-militar entre a sociedade colonial e os bravos índios dos sertões do rio Grande. Mas, antes de tudo, a Vila Nova de Belmonte foi criada como uma estratégia para “conservar” a utilidade de mais de cem índios Meniãs que habitavam aquelas paragens desde o século anterior.” (Cancela, 2012: 184).

Os Meniãs, subgrupo Kamakã, habitantes originários do território entre o rio Pardo e o rio de Contas, foram violentamente atacados por expedições escravistas dos paulistas durante a primeira metade do século XVII, sendo parte de sua população dizimada nesses conflitos. Os sobreviventes resolveram avançar sobre outros territórios, deslocando-se para o sul, em direção ao leito do atual rio Jequitinhonha, onde se estabeleceram. Considerados estratégicos para a política de povoamento da Cora Portuguesa na região, só após dois anos de negociações e conflitos foi possível proceder à fundação da Vila Nova de Belmonte, conservando “naquele importantíssimo sítio os “convenientíssimos” índios Meniãs” (Couceiro de Abreu apud Cancela, 2012: 192). Outra época que aparece em destaque nas diferentes narrativas sobre a cidade é o período em que Belmonte, juntamente com as cidades de Ilhéus, Itabuna e Canavieiras, produzia uma parcela significativa de cacau para a exportação, movimentando economicamente a região. Esse período durou mais de cem anos, iniciando em meados do século XIX e findando em 1990, tendo seu ápice nos anos de 1950. Nesse período, a cidade 34

começou a integrar um importante polo político e econômico por fazer parte da rota de produção e escoamento do cacau. Ocorreram migrações para a região: famílias de portugueses, alemães e italianos investiram em terras e na produção e exportação do fruto; a população negra recém-liberta também se deslocou para trabalhar nas fazendas de cacau e no porto da cidade. Sidney, dona da brincadeira Negras Africanas, contou que sua família – no caso, seus bisavós – e as de outras pessoas que residem no bairro da Ponta de Areia chegaram na cidade justamente em busca de trabalho nas fazendas de cacau da região: “com o fim da escravidão, muitos dos ex-escravos se deslocaram para o sul em busca de oportunidades de trabalho já que lá para cima não havia outras opções a não ser ficar na cangalha dos senhores”. Seu pai, o senhor Henrique Ernesto da Silva, estava muito idoso, mas contou que se lembrava do avô. Ele era banto e, de acordo com seu Henrique, se mudou para Belmonte para trabalhar numa fazenda em Taperoá na década de 1920. De acordo com Baran (2007: 17), no período do cacau houve um aumento expressivo da população belmontense, que saltou para quase o quíntuplo entre 1890 e 1940, chegando a 33.007 habitantes em 1950. Ele destacou igualmente que nessa época houve relativo aumento da população negra e parda e decréscimo da população branca, conforme dados do censo:

“a porcentagem da população que se auto-identificou como parda cresceu de menos de 50% em 1872 para 61% em 1950 e continuou a crescer, chegando a aproximadamente 80% em 2000. De 1872 a 1950 a proporção das pessoas categorizadas como brancas diminuiu significativamente de aproximadamente 31% para 19%. Também é interessante que Belmonte em 1940 possuía uma das menores porcentagens das pessoas classificadas como brancas (22.14%) dos municípios da região do cacau” (Baran, 2007: 18).

Baran observou ainda que, ao contrário do que se convencionou considerar na literatura sobre a economia do cacau, não foram os proprietários de terra e suas famílias quem trabalharam nas plantações, mas uma grande porcentagem de escravos e de ex-escravos que 35

consistiram na principal força de trabalho da indústria do cacau no período anterior e posterior à abolição: “Apesar do número de escravos ter caído quase pela metade na região das plantações de cana-de-açúcar na Bahia durante o curto período de 1864 a 1874, o número de escravos na região do cacau cresceu e chegou ao ápice nos anos de 1860 e 1870, demonstrando a importância da indústria do cacau” (idem: 16) 16.

A indústria do cacau permaneceu lucrativa até final do século XX, quando o aumento da competitividade no mercado conjugada com a diminuição da produção, em decorrência do desenvolvimento de uma doença causada pelo fungo Moniliophtora perniciosa nos cacaueiros (doença conhecida como vassoura-de-bruxa), desestabilizaram o sistema socioeconômico vigente e a proeminência política regional. Esse período histórico da cidade é descrito com certa nostalgia por algumas pessoas que rememoram a importância da região e a intensa movimentação econômica, política e cultural em Belmonte: a narrativa das decolagens cotidianas realizadas pelos donos das plantações de cacau no atualmente desativado aeroporto da cidade e as lembranças das festas realizadas no antigo clube América, no qual “gente de cor não entrava”, são registros dessa fase economicamente próspera e extremamente desigual. Como observou seu Celso em ocasião em que conversávamos sobre o assunto: atualmente, ao menos, não se observa tanto o contraste entre os extremamente ricos e os pobres de Belmonte. Há desigualdade, mas não é ostensiva como antigamente. O que o relato da vovó Mariana permite vislumbrar é justamente a presença desses outros que povoaram a região. Não apenas das populações indígenas, mas também das populações negras. A história da vovó deixa um fio que conduz até a presença dessas populações e que pode levar a descobrir as contribuições das mesmas no passado da cidade.

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A esse respeito Baran recomenda a leitura da obra do historiador João José Reis: “Slave rebellion in Brazil : the Muslim uprising of 1835 in Bahia” (1993).

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Um passado que tende a ser apagado pela história do “descobrimento” e do “desenvolvimento”. Do mesmo modo, a vovó informa que são os pretos velhos, espíritos dos negros africanos, e os caboclos, “espíritos” dos índios, que trabalham para limpar o carrego oriundo da exploração e aniquilação de parte dessas populações. Essa história não é apresentada, no entanto, com a pretensão de ser uma versão extraoficial da história da região. Ela é uma história contada a partir das lembranças da vovó e que também pode ser atualizada com a feitura e manutenção de determinados elementos rituais, como o acarajé da vovó Maria Conga que a liga a Iansã e também à capital, local de onde veio. Certo dia, conversando com Naiana justamente sobre o passado de Belmonte, Porto Seguro e a região, falando das aldeias que existiram e lastimando todo o processo de exploração das populações negras e indígenas e do apagamento da história e contribuição dessas populações em função da promoção de um discurso que exalta o “descobrimento”, ela comentou: Os orixás viveram e adquiriram poderes que quando morreram conseguiram se diferenciar e voltar. Os pretos velhos e caboclos também. Você acha que aqueles senhores todos que viveram e morreram nas senzalas foram assim? Eles têm que voltar pra trabalhar e para contar a história deles. Eu acho que é assim. Agora, é difícil você encontrar um guia que chegue e te explique direitinho de onde vem, que conte a sua história. Você pode até encontrar algum, mas é difícil. Eles falam mais por meio das chulas, só que não é fácil entender. É na linguagem deles. As chulas são os cânticos puxados pelos pretos velhos e caboclos. Um dos pontos que seu Boiadeiro de dona Maria puxa quando chega no salão para brincar é: “Caminhando pelo rio de Contas/ caminhando por aquela rua/ olha que beleza/ seu Boiadeiro no clarão da lua”. Seu Boiadeiro se anuncia dizendo que vem caminhando do rio de Contas no clarão da lua. Rio de Contas, vimos, era região originária dos índios Meniãs que posteriormente se deslocaram para a região de Belmonte onde se fixaram. A partir desta consideração e da explicação de Naiana, é possível entender que os 37

caboclos (e seu Boiadeiro é considerado um ser que vem na linha dos caboclos, portanto, um caboclo), ainda que não sejam considerados eguns – porque quando morreram, assim como os orixás, conseguiram se “diferenciar” –, têm também suas trajetórias possíveis de serem traçadas e que se atualizam junto com a presença dos mesmos. Contra uma única versão “oficial” e impessoal, Naiana me ofereceu histórias particulares, narradas pelos próprios pretos velhos e caboclos. Ela afirmou que não se trata de considerar que a história dos povos indígenas e das populações negras se perdeu. Pelo contrário, não se trata de considerar que existe uma única história. Os pretos velhos e caboclos contam outras histórias. Histórias que estão intrinsecamente ligadas com as suas vidas, as suas vivências e que para nós são de difícil entendimento, pois contadas na linguagem deles quando se apresentam e puxam suas chulas. Histórias que se atualizam em alimentos. Histórias que se atualizam sem precisar haver comunicação verbal. Atualizadas apenas com a presença destes seres. Tal qual Gonzalez sugeriu: tratar-se-á de entender a história oficial como consciência, “o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber”, e a(s) memória(s) “como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”. História e memória(s), estas duas como que travando um jogo dialético em que a “consciência exclui o que a memória inclui”. Sendo a consciência o lugar da rejeição, ela opera de modo a ocultar a memória impondo o que ela (a consciência) determina como verdade. Já a memória opera de modo a “falar através das mancadas do discurso da consciência” (1984: 226). Nesse jogo, vão se (re)criando as histórias. Não se trata, portanto, de pretender conferir uma versão outra para os acontecimentos do passado; trata-se de multiplicar as versões. Cardoso também propôs isso observando que durante sua pesquisa de campo as histórias de vida surgiam nos interstícios de uma história

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mais abrangente e despersonalizada (2004: 199). Essa multiplicação das versões não consiste apenas em passar a considerar que trata-se de muitos relatos; a multiplicação das versões se dá também na percepção dos diferentes modos por meio dos quais as histórias são transmitidas e atualizadas. Essas histórias se presentificam nas conversas com velhos e caboclos, nas chulas cantadas e nos elementos rituais trazidos por eles, bem como no próprio ritual em si. Elas também se inscrevem em determinados espaços, geralmente nas casas de candomblé e nas pessoas que dão caboclos, mas não apenas. Elas se inscrevem nas ruas e encruzilhadas, nos rios, nas matas e na praia. Locais onde são despachados os ebós (trabalhos) e onde são depositadas as oferendas. “Os lugares também possuem carregos próprios”, falou certa vez Naiana: As encruzilhadas, as matas. A gente passa por esses lugares e eles estão povoados. Dependendo de como a gente passa, a gente pode carregar a energia. Belmonte tem um passado muito pesado, de muito sofrimento, de mortes brutais e injustiça. Isso faz com que os espíritos sejam revoltados. Nem todos, mas muitos deles.

Ao invés de conceber o espaço marcado por representações de uma história e estética eurocêntrica, a paisagem da cidade, suas ruas, o rio, a mata, a praia, em suma, os territórios adquirem novos significados, porque estão povoados e imbuídos de energias particulares. A partir da releitura dos territórios da cidade, Naiana fornece uma cartografia espiritual (ver Cardoso, 2004: 202-204) que está intimamente vinculada com suas memórias particulares, práticas cotidianas e as relações com os espíritos. Também a vovó Maria Conga de dona Rita me apresentava novas significações à paisagem da cidade, imbuída de outras memórias e de outras presenças, quando, por vezes, eu ia a sua casa para ela me rezar. Muitas vezes me alertava que eu nunca deveria ir à praia sozinha, ou igualmente tomar banho de rio só. Sempre que quisesse, deveria ir acompanhada, porque era perigoso para mim, considerando que eu sou “das águas” e por isso “as águas 39

podem querer me levar”. Ser das águas significa ser da linha das águas, isto é, que meu santo de cabeça é dessa linha, regida por Iemanjá, Oxum e Oxumaré. Significa que pertenço a uma dessas orixás, que participo dessa energia e que desse modo tenho suscetibilidade a ser por elas afetada, até mesmo a ser por elas levada. A praia, território que é a própria Iemanjá, e o rio, território que é a própria Oxum, portanto, não são apenas locais de recreação; pertencem a essas divindades e afetam particularmente algumas pessoas que também pertencem a elas. Da mesma forma, Dona Rita, certo dia em que a entrevistei e conversávamos sobre o início da vida dela no santo, relatou a seguinte história, que permite, entre outras coisas, saber mais sobre os seres que reinam nas matas: Fui pra uma fazenda com mamãe mais as meninas, que naquela época papai tinha largado mamãe. Fui numa fazenda pegar feira 17, aí eu sonhei com a vovó do mato, que era Ossanha. Antigamente, a gente não sabia quem era Ossanha, né? Aí eu sonhei com a vovó do mato que é a Caipora. Aí eu disse assim: “ó mamãe, a gente vai apanhar essa feira, a vovó do mato me pediu um pedaço de fumo e uma fita verde pra eu botar num toco”. O toco que eu passei, eu sonhei, eu vi, né? Mamãe disse: “Que nada, isso é invocação! Não vai fazer nada.” “Então vamos nos perder” [falou Dona Rita]. “Que nada, não vamos perder nada! Isso é ilusão da sua cabeça!”. E fomos. Na ida, tudo bem. Na vinda, nós nos perdemos. Começou um cheiro de cabaça, uma flor amarela... Aí, começamos a nos perder: “o caminho é aqui, não é aí”. Porque filho não pode desobedecer mãe, aí fomos embora. Oxente! Nós entramos numa macelha (?) tão grande que espinho ganchou, um pocado de coisa. Nós saímos de lá da fazenda, do sítio, era onze horas da manhã, quando nós conseguimos sair de lá desse lugar já era quase uma hora da tarde. Eu pedi a Nossa Senhora d'Ajuda, eu disse: “Valei minha Nossa Senhora d'Ajuda, me tire daqui! Eu e minha mãe e essas meninas.”, porque era um pocado de menina que era pra fazer trabalho com a gente. Pra apanhar milho, feijão... Aí, quando eu cheguei no toco de novo, eu carregando duas abóboras, um saco de coisa na cabeça, que quando eu subi assim a ladeira, naquele negócio do animal passar, aí eu meti o pé, o pé entrou. Aí a abóbora caiu, rolou. Quando a abóbora rolou eu já não podia mais andar. Aí o que fez? Caiu um (…) no meio da passagem, aí eu cheguei. Mamãe cortou uma vara com o facão e me deu. Aí eu vim pulando igual uma Caipora; as meninas carregando as coisas. Quando eu passei no pau, eu passei engatinhando, aí fui. Era uma ladeira enorme, uma ladeira que parecia um morro. Aí elas desceram, mamãe me deixou lá numa casinha que tinha. Aí mamãe veio chamar meu cunhado que me botou no colo. Eu era tão pequena. E o pé inchado deste tamanho [fazendo sinal com as mãos]. Mamãe ficou um tempão sem ir na roça. Até hoje eu sinto esse pé aqui. Foi esse pé pra receber meus encantos. Eu sofri muito. Eu sofri. 17

“Fazer a feira”, dona Rita depois explicou, consistia em ir a uma fazenda para capinar, limpar a roça e em troca levar algumas verduras, frutas e/ou legumes para casa.

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O mato, as matas também estão povoados e têm donos: Ossanha e sua mensageira, a vovó Caipora, os habitam. Para passar pelo seu território sem apuros, a vovó do mato através do sonho se comunicou com Dona Rita e fez o seu pedido: um pedaço de fumo e uma fita verde depositados num toco. Dona Rita alertou sua mãe sobre o pedido, mas sua mãe não quis ouvi-la e por isso elas se perderam na mata. Dona Rita pontuou os elementos que a fizeram identificar a presença da vovó do mato e relacionar ao pedido do sonho: o cheiro da cabaça, a flor amarela, o toco. Como não pode dar o que Ossanha pediu, dona Rita e seus familiares se perderam na mata e foram enredadas nas folhas, o próprio domínio de Ossanha, senhor/senhora das folhas, de onde só saíram após súplica feita a Nossa Senhora d'Ajuda. Mesmo com a ajuda da santa, para sair do território da vovó do Mato, dona Rita tinha que fazer uma oferenda para a mensageira, que é também Ossanha, “senhora do segredo”. Dona Rita caiu e uma das abóboras que levava rolou; alimento ritual dos caboclos, a abóbora foi entregue aos domínios da mata; na queda, dona Rita teve o pé machucado. O modo como dona Rita saiu da mata, pulando numa perna, é igual ao modo como a Caipora se movimenta e também ao modo como Ossanha se apresenta: apenas numa das pernas, inclusive quando manifestado em seus filhos. A abóbora foi o preço pago por dona Rita ter passado pelo território da vovó do mato sem levar a oferenda; o pé machucado foi o que a levou a aprender os segredos do domínio de Ossanha, passando a ter acesso aos encantos, aos segredos que possibilitam curar: E aí eu fui, depois de dois meses que melhorou o pé (…). Quando eu cheguei, vim e cuidei do pé. Porque nesse tempo eu ainda não recebia a vovó. Só Iansã. Não tinha nada de guia. Não sabia nada! Não sabia nem rezar! (…) Eu sonhei pra botar o pé dentro de uma água morna e alho e fazer uma massagem. Foi isso que eu fiz. Aí melhorei, o pé desinchou. E aí fui aprendendo as coisas, muito por sonho. Histórias atravessadas por outras histórias. Espaços imbuídos de presenças e de 41

memórias. A relação com o orixá se presentifica na vida e no corpo de dona Rita, se presentifica nos domínios da natureza, confere significados, pistas para compreender os momentos em que passou a participar dos domínios dos orixás. Também os sonhos são territórios povoados. Territórios onde se dá a comunicação com os mensageiros e os orixás. Onde são transmitidos ensinamentos, onde são dados recados, feitos pedidos e cobranças e onde os guias podem se manifestar. Os sonhos também podem ser divinatórios, podem confirmar acontecimentos do presente ou do passado. O sonho é uma forma de estar em relação com os orixás e guias e também um canal de aprendizado importante ao longo da vida no santo. Quanto mais se conhece sobre a natureza dos orixás, seus rituais, suas peculiaridades e interdições, mais fácil conseguir interpretar as mensagens e estabelecer ligações com o que sucede na vida. O mato, as matas também estão povoados e têm donos: Ossanha e sua mensageira, a vovó Caipora, os habitam. Para passar pelo seu território sem apuros, a vovó do mato através do sonho se comunicou com Dona Rita e fez o seu pedido: um pedaço de fumo e uma fita verde depositados num toco. Dona Rita alertou sua mãe sobre o pedido, mas sua mãe não quis ouvi-la e por isso elas se perderam na mata. Dona Rita pontuou os elementos que a fizeram identificar a presença da vovó do mato e relacionar ao pedido do sonho: o cheiro da cabaça, a flor amarela, o toco. Como não pode dar o que Ossanha pediu, dona Rita e seus familiares se perderam na mata e foram enredadas nas folhas, o próprio domínio de Ossanha, senhor/senhora das folhas, de onde só saíram após súplica feita a Nossa Senhora d'Ajuda. Mesmo com a ajuda da santa, para sair do território da vovó do Mato, dona Rita tinha que fazer uma oferenda para a mensageira, que é também Ossanha, “senhora do segredo”. Dona Rita caiu e uma das abóboras que levava rolou; alimento ritual dos caboclos, a abóbora foi entregue aos domínios

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da mata; na queda, dona Rita teve o pé machucado. O modo como dona Rita saiu da mata, pulando numa perna, é igual ao modo como a Caipora se movimenta e também ao modo como Ossanha se apresenta: apenas numa das pernas, inclusive quando manifestado em seus filhos. A abóbora foi o preço pago por dona Rita ter passado pelo território da vovó do mato sem levar a oferenda; o pé machucado foi o que a levou a aprender os segredos do domínio de Ossanha, passando a ter acesso aos encantos, aos segredos que possibilitam curar: E aí eu fui, depois de dois meses que melhorou o pé (…). Quando eu cheguei, vim e cuidei do pé. Porque nesse tempo eu ainda não recebia a vovó. Só Iansã. Não tinha nada de guia. Não sabia nada! Não sabia nem rezar! (…) Eu sonhei pra botar o pé dentro de uma água morna e alho e fazer uma massagem. Foi isso que eu fiz. Aí melhorei, o pé desinchou. E aí fui aprendendo as coisas, muito por sonho. Histórias atravessadas por outras histórias. Espaços imbuídos de presenças e de memórias. A relação com o orixá se presentifica na vida e no corpo de dona Rita, se presentifica nos domínios da natureza, confere significados, pistas para compreender os momentos em que passou a participar dos domínios dos orixás. Também os sonhos são territórios povoados. Territórios onde se dá a comunicação com os mensageiros e os orixás. Onde são transmitidos ensinamentos, onde são dados recados, feitos pedidos e cobranças e onde os guias podem se manifestar. Os sonhos também podem ser divinatórios, podem confirmar acontecimentos do presente ou do passado. O sonho é uma forma de estar em relação com os orixás e guias e também um canal de aprendizado importante ao longo da vida no santo. Quanto mais se conhece sobre a natureza dos orixás, seus rituais, suas peculiaridades e interdições, mais fácil conseguir interpretar as mensagens e estabelecer ligações com o que sucede na vida.

- ERÊS 43

Os erês podem ser ou não eguns. Naiana, quando perguntei se os erês eram espíritos, primeiramente hesitou, mas depois afirmou que sim, que havia um “tipo de erê que são os espíritos das crianças mortas”. Mas, pontuou, também há o erê que nasce no processo da iniciação no candomblé: o erê que nasce com o orixá, uma espécie de criança do mesmo, que não é um espírito. O erê de Naiana nasceu quando ela foi raspada no santo, isto é, feita no candomblé; ele se chama Pedrinha e aparece muitas vezes para transmitir-lhe recados. Ele é como se fosse o filho do orixá, vem para transmitir os recados menos sérios do seu pai, explicou. Dona Rita Camuinganga também disse que há erês que são espíritos e que são os erês de quem não foi iniciado no candomblé, como Damião, o erê de sua irmã dona Lita. Já Fogueirinha, erê de dona Rita, nasceu com o orixá: é a criança da mãe dela. Quando a gente faz o santo, vem o erê pra tomar conta da gente. O erê toma banho, o erê come, o erê bebe, o erê ensina a dançar. Então todo tempo que tá na iniciação, tá no erê. Na hora de fazer os trabalhos, pra fazer a confirmação, o erê vai embora e o orixá vem. Então, é assim: primeiro, o erê dá passagem para o orixá e depois o orixá dá passagem para o erê. Assim, é possível definir do seguinte modo: os erês dos santos raspados, que vêm na linha do candomblé, não são espíritos. Eles nascem no período da iniciação, são um primeiro estado dos orixás no qual o neófito aprende as coisas da vida no/do santo. Depois da confirmação, da feitura do santo, esse estado do orixá no processo de aprendizagem dá passagem para a versão do orixá feita e se transforma em seu filho, uma espécie de versão mirim do mesmo, seu mensageiro para assuntos menos sérios. Assim, ao invés da confirmação operar somente a transformação da versão infantil do orixá para a versão feita, ela procede de modo a perenizar esse estado tornando-o uma forma particular. O erê que é o espírito de uma criança morta, ele não vem na linha do candomblé. Esse 44

erê não foi feito, não é a versão infantil do orixá, apesar de poder ser filho seu, já que todo o ser existente são manifestações particulares dos orixás, mensageiros dos mesmos. Esse erêespírito vem na linha da umbanda, que é a linha em que vêm os santos de dote, santos que não precisam ser feitos no candomblé. Nessa linha, os próprios santos puxam seus mensageiros que, ao morrerem, escolheram trabalhar para eles. Os espíritos dos erês, portanto, se diferenciaram dos demais espíritos dos mortos por terem escolhido trabalhar para os orixás.

- CABOCLOS Belmonte, sexta-feira, 12 de agosto de 2011: (…) Como parte final do ritual, depois que Rogério e Rosalvo retornaram da rua, Rei dos Índios orientou que eles tomassem banho com o mesmo banho de ervas com o qual todos já tínhamos nos banhado. Em seguida, Rei dos Índios falou para Rogério incensar todos os filhos e depois Rei dos Índios incensou-o. Depois dos procedimentos profiláticos, dona Nilsa e dona Raimunda se despediram e permanecemos Rogério, Rosalvo, Josi e eu. Rei dos Índios também estava em terra e ficou conversando conosco. Perguntei sobre os preparativos da festa dele que celebram naquele mês. Rei dos Índios disse que só faria a festa depois que dona Rita voltasse da viagem que faria no fim de semana seguinte. Disse ainda que não vai querer muita gente, nada muito grande, pois já houve muito gasto com a festa da mãe dele e que vai ter com a festa da velha Maria Conga e falou que já estava abastecido com a festa da mãe e que ele só vai querer que cada filho leve uma abóbora e uma fruta para a quitanda, a obrigação que fazem para Rei dos Índios. Ficamos conversando um pouco mais. Josi quis saber da viagem dela para o Rio. Rei dos Índios disse que estava tudo acertado para que ela e dona Rita fossem antes do final do ano. Depois de outros questionamentos, Rei dos Índios disse que já iria embora e puxou uma chula de despedida dançando pelo salão e dando um abraço em cada um de nós. Terminou a chula, ajoelhou na frente do quarto de santo, levantou-se. Quando se levantou, a cabeça de dona Rita fez um movimento rápido para trás, que normalmente indica que o guia deixou o aparelho. Dona Rita ficou um tempo em pé parada de olhos fechados e com a cabeça levemente inclinada para a frente.. Subitamente, parou o movimento sutil da cabeça e ergueu-a, emitindo logo em seguida um único, longo e agudo ruído. Parecia o de um pássaro. Depois abriu os olhos e saudou os presentes: “Salve a dona da casa, Salve meu Bom Jesus da Lapa! Boa noite para todos.” Por conta da saudação, achei que se tratava de seu Boiadeiro. Olhei para todos e perguntei pra Rogério que estava mais próximo se ele sabia quem era, já dando minha opinião. Ele fez que 45

não sabia e disse que achava que era um Boiadeiro também. Fosse, quem fosse, ficou pouco tempo: puxou duas ou três chulas. A de chegada dizia “não tem pássaro que voa, que minha flecha não derruba”. Dançou por todo o salão. Parou perto de onde veio. De pé, já de olhos fechados, voltou a palma da mão na direção em que estávamos e emitiu o mesmo som de quando chegou. Desceu a mão; mais uma vez a cabeça de dona Rita fez o rápido movimento para trás e em seguida o corpo dela curvou para frente, apoiando uma das mãos na coxa. Era vovó! Vovó deu boa noite pra gente e foi se dirigindo para a cadeira. Sentou-se e disse que ficou muito feliz porque Rei dos Índios deu passagem para Pedra Azul. Vovó contou que Pedra Azul já trabalhou muito com ela. Ele era um feiticeiro poderoso, mas agora o feitiço dele era para trazer energia positiva. Ele só vem pra isso agora. Rogério perguntou se ele era um Boiadeiro e a vovó explicou que ele é meio boiadeiro, meio índio, e que agora é quase orixá também e deu uma risada. Vovó perguntou se eu estava me sentindo bem e disse que era pra observar o período do resguardo, pra não vestir roupa escura e não ir a festas pelo menos por uma semana. E nos três primeiros dias não namorar e não comer carne. Depois, vovó se voltou para Josi e perguntou se estava tudo certo para a viagem. Josi disse que achava que sim. Perguntou se ela ia raspar mesmo e ela confirmou, ao que vovó disse: “tá certo”. Depois disse que não podia ficar muito tempo em terra por causa da obrigação da filha. Deu a bênção e foi embora. Esse trecho um pouco editado do meu caderno de campo relata o dia em que Pedra Azul manifestou em dona Rita. De acordo com ela, Pedra Azul já quase não vem mais. Ele vem muito raramente, de três em três anos para dançar e trazer a energia boa dele. Ele é quase um orixá, ela observou. Nesse dia, Rei dos Índios tinha vindo fazer um trabalho para mim, já que vovó não poderia vir, porque ainda não haviam completado os 21 dias da obrigação de vinte e um e vinte e cinco anos de dona Rita. Rei dos Índios, assim como a vovó Maria Conga, é mensageiro da Iansã. Ele é o seu puxa-folha e realiza trabalhos para ela. Mas, diferentemente da vovó, Rei dos Índios não é um egum e por isso ele pôde vir no período em que Dona Rita estava de resguardo. Terminado o ritual e já tendo realizado os procedimentos de limpeza dos participantes, Rei dos Índios deu passagem para Pedra Azul, que, conforme a vovó falou, é meio boiadeiro, meio índio e meio orixá. Mas por ser meio cada um desses, Pedra Azul é outro. Pedra Azul só vem agora dançar e trazer sua energia. Antes trabalhava com a vovó, sentença um tanto enigmática, mas que nos coloca diante do seguinte: os mensageiros dos

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orixás não são apenas puxados, eles também puxam alguns dos seus. Os caboclos, do mesmo modo que os pretos velhos, erês e marujos que escolheram trabalhar para os orixás, se diferenciaram dos espíritos dos mortos comuns. Tendo sido índios, boiadeiros, habitantes originários da região, eles também são mensageiros dos orixás, mas uma qualidade de mensageiro bem distinta: eles são geralmente chamados os puxa-folhas dos orixás, epíteto que revela o poder sobre o domínio das matas, da fauna e da flora, das folhas e de seus poderes. Os caboclos também podem ser chamados de catiços, que significa tratar-se de alguém indomável. Ainda que trabalhando para os orixás, em hipótese alguma são tidos como eguns e isso os distingue completamente dos pretos-velhos, erês que vêm na linha da umbanda e marujos. Eles também tiveram uma vida na terra, mas ao morrerem se diferenciaram inclusive dos demais mensageiros dos orixás. A linha da umbanda é também, por vezes, chamada de linha de caboclo, sendo este considerado o “candomblé que se fazia antigamente” e que por meio desta linha continua sendo feito hoje em dia. Nesta linha, os santos vêm de dote, ou seja, já vêm feitos, prontos para trabalhar. Assim, os orixás que se apresentam na linha de caboclo se manifestam como caboclos. Diz-se: “o Ogum que vem na linha de caboclo manifesta igual ao caboclo: ele vem trabalhando, dando passes e faz consultas. Ele puxa chulas e fala com as pessoas”. Mas os santos de dote que trabalham na linha de caboclo procedem de modo a colocar mensageiros para trabalhar no lugar deles; são os próprios orixás que puxam seus mensageiros. Pode ser o caso do orixá manifestar e logo em seguida puxar o mensageiro, ou pode ser o caso do orixá vir, trabalhar um pouco e depois puxar o mensageiro, como procedeu a Iansã de dona Rita que colocou a vovó como sua mensageira para trabalhar no lugar dela depois de a santa passar um ano trabalhando. Cabe observar que Ogum é tido como o único

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orixá que não costuma colocar mensageiro para trabalhar no lugar dele. De acordo com seu Raimundo das Flores é porque ele é o orixá que está mais perto da matéria. Alguns dos mensageiros dos santos também podem, em função dos seus trabalhos, do desenvolvimento deles, ter que puxar os puxa-folhas de outras pessoas. Geralmente, trata-se de uma operação que tem por objetivo restabelecer o equilíbrio da pessoa que pode estar sendo obsediada por um egum, ou pode estar sob forte influência do seu exu que, entre tantas outras coisas, é o próprio desequilíbrio. A esse procedimento costuma-se dizer que a pessoa foi feita na linha de umbanda. *

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Numa breve análise da literatura sobre candomblés de caboclo, o caboclo, apesar das diferentes conotações que adquire em cada obra analisada, é associado aos espíritos das populações originárias do novo continente para onde as populações oriundas do continente africano foram forçosamente trazidas no processo de escravização. De diferentes formas e não sem haver repressão, os africanos conseguiram desenvolver no novo solo conhecimentos e práticas que trouxeram consigo da África, formando importantes sistemas, dentre os quais os candomblés são uma expressão (ver, entre outros, Bastide, 1971). Os africanos na relação com os “donos da terra” conheceram a fauna e a flora local, os princípios que regem a natureza a sua volta, tiveram acesso aos conhecimentos locais sobre os elementos primordiais para fazer candomblé. Por estarem em relação, os caboclos passaram a participar também dos candomblés, sendo em alguns casos incorporados nos candomblés de nação africana e, em outros, manifestando-se num candomblé com seus próprios preceitos e fundamentos, denominado candomblé-de-caboclo. (sobre o assunto ver Ferreira, 1984: 65; Prandi et all, 2001: 121; Shapanan, 2001; Santos, 1995; Landes, 2002). O xicarangomo Almiro Miguel Ferreira, por ocasião do I Encontro de nações de

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candomblé, ao ser indagado se os caboclos são espíritos de índios que existiram no Brasil, narrou a seguinte história: “P. _ Caboclo são espíritos de índios que existiram no Brasil? A. _ Há pessoas que dizem que são. E eu vou relatar um certo caso, que aconteceu comigo, no Rio de Janeiro. (…) Eu fui com uns amigos nesta “casa” apreciar uma festa. Não queria ir, porque não sou umbandista, não conheço umbanda, também não critico. Chegou nessa “casa”, e ninguém me conhecia, um caboclo tupinambá. Lá, ele me disse: “Você me conhece?” Eu disse: _ Não. “Não sabe por onde eu passei?” _ Não. “Você se lembra quando seu avô teve um menino que caiu da jaqueira?” Realmente, teve isso lá em casa. O menino se chamava Rufino. “Por quem ele chamou?” Eu disse: _ Não vou dizer que foi o caboclo Tupinambá, porque não é certeza. E ele: “Pois fui eu quem estava lá sou eu que estou aqui”. Portanto, pode ser um espírito. Agora, não está em mim dizer que os espíritos dos índios são os caboclos. Seria querer saber de mais de mim. Eu só sei que existem os caboclos.” (Ferreira, 1984: 67)

Os caboclos podem ser espíritos, a depender da forma como se apresentam. Contudo, isso não basta para dizer que os espíritos dos índios são os caboclos. Em termos de definição, Almiro Ferreira apresenta o irredutível: “eu só sei que existem os caboclos.” Isso basta. Menos que considerar atribuir uma identidade ao caboclo, o xicarangomo opta por apresentar uma perspectiva que indique um campo de possíveis e que aponta para a multiplicidade deste ser. O caboclo, portanto, pode apresentar-se como espírito numa casa de umbanda do Rio de Janeiro. Nos “candomblés-de-caboclo” e “candomblés de nação”, contudo, pode não ser assim. De acordo com Almiro Ferreira, os procedimentos litúrgicos, os conhecimentos e os fundamentos específicos para trabalhar com os caboclos observam o seguinte: “caboclo não tem feitura, não “tem saída de muzenza”, não tem dijina. Caboclo não é feito, não vem com adjá; “se ele tá aí, ele pega”. Ele tem que ser doutrinado, para prestar sua missão, aqui, na terra. Pode levar dez anos, pode levar vinte, depois ele pode ir embora, e a pessoa não vê mais (idem: 61). O assentamento de caboclo é debaixo do pé de uma árvore e não no ronco, com o

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assentamento dos orixás. E mais: “caboclo não tem Exu, não quer conta com Exu. Nem nenhum Exu quer conta com caboclo. Exu é um negócio de lado. Caboclo não tem nada com isso.” (ibidem: 64). Se for o caso do caboclo ser trabalhado no “candomblé de nação africana”, é possível até que exista caboclo-orixá. Assim como é possível que na umbanda o Caboclo Tupinambá seja um espírito. Francelino Shapanan, em artigo sobre os candomblés de caboclo em São Paulo, traça as múltiplas formas com que o caboclo pode se apresentar considerando as diferentes tradições por meio das quais ele vem. Assim como Almiro Ferreira, ele observa que caboclo que trabalha na umbanda é diferente do que trabalha no candomblé e é diferente do que trabalha no tambor de mina, ainda que seja o mesmo. A diferença, portanto, não é uma questão de essência, mas uma manifestação em uma determinada doutrina, para usar o vocabulário do povo de santo de Belmonte. Quando compõem o panteão do tambor de mina como caboclo-encantado, avalia Shapanan, ele se apresenta como “ancestral de todos os caboclos”: “Embora se fale indistintamente de encantado e caboclo, há diferenças bem marcantes em suas maneiras e posturas, já que o encantado não seria o mesmo caboclo da umbanda e do terreiro de candomblé. O encantado tem uma postura muito própria. Na mina, ele é perfeitamente individualizado, tem sua família, tem seu mito próprio, ele tem uma descendência, ele tem uma história, enquanto na umbanda e no candomblé ele perdeu sua memória ancestral” (2001: 321).

Shapanan observa que, ao ser incorporado aos rituais de umbanda, o caboclo seria o mesmo, porém com concepções diferentes: o caboclo-encantado já existia e, depois de assumir várias formas, veio descendo para o Sul e aqui, em face das novas condições encontradas, tomou nova feição. De tal modo que: “Principalmente na umbanda, em que a presença kardecista é marcante, o caboclo se desencantou, ficou tão somente caboclo e tomou uma nova postura, mais submissa, com atitudes mais puras, mais próximas dos ideais cristãos de comportamento (pureza exigida, já que sua postura anterior era muito criticada),

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enquanto no Norte permaneceu como antes, sincretizado sim, mas sem copiar as virtudes ou querer imitar o comportamento dos santos católicos.” (idem: 320)

No que concerne aos rituais, Shapanan observa que os candomblés que tocam para os caboclos procedem mais ou menos do seguinte modo: realiza-se o xirê preliminar para os orixás, considerando que estes são “os donos da casa” e só depois é que se toca para os caboclos. Os caboclos não comparecem ao xirê dos orixás e estes também não se manifestam nos toques dos caboclos. “Há um respeito aos limites e às diferenças, cada um na sua hora, mas um respeitando e amando o outro.” (ibidem: 322) No II Encontro de Nações de Candomblé, a pergunta se o caboclo é um espírito torna a ser realizada pela plateia, no que o babalorixá Luiz Sérgio Barbosa, representante da Federação do Culto Afro-Brasileiro (FECAB), respondeu:

“A pergunta é muito boa e importante. O caboclo, ele desencarnado é um espírito. Mas você há de analisar que há caboclo serviçal e caboclo chefe. E nós não podemos, aqui, analisar, há quantos milênios existem os caboclos e a sua desencarnação. Então ele pode ser um caboclo espírito porque nós não vamos qualificar o caboclo como egum, e ele pode ser um caboclo deificado. Porque ele vem cá, incorpora, com o prodígio dele, faz o bem. Quantas pessoas são beneficiadas pelo caboclo? E o que ele diz é verdade. E vai trabalhar em benefício disso. Portanto, ele está chegando ao ponto de ser deificado e eu digo, ainda melhor: não está longe o dia em que caboclo vai ser raspado.” (II Encontro de Nações de Candomblé, 1997: 94)

Mais uma vez é afirmada a possibilidade de o caboclo ser um espírito sob determinada condição. Contudo, outras possibilidades também são apresentadas: ele pode ser um caboclo deificado e, nessa condição, pode até mesmo vir a ser raspado, submetendo-se ao procedimento ritual do candomblé de nação. Em seguida, perguntado se os caboclos poderiam ser os índios que viram encantados, o babalorixá procede novamente à explicação, explicitando que fala de uma determinada perspectiva e apresenta o caboclo em sua multiplicidade:

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“Na linha de caboclo nós não qualificamos como egum. Porque o egum tem muita conotação. A trajetória do egum é diferente dos ensinamentos, dos conhecimentos e da existência do caboclo. Eles são espíritos e podem ser muito evoluídos e, como eu já acabei de dizer, o deificado é o orixá, o deificado pode ser o caboclo, que vem na terra implantando o seu prodígio, cuidando das pessoas.”

Jocélio Teles dos Santos, em sua monografia sobre o caboclo nos candomblés da Bahia (1995), oferece uma análise mais detalhada sobre “a inserção do Caboclo no sistema religioso afro-baiano, na sua relação com os orixás – deuses trazidos da África no processo da escravidão” (1995: 9), propondo a hipótese segundo a qual “o processo de absorção de elementos “ameríndios” pela cultura religiosa afro-baiana seria guiado pela lógica interna do simbolismo religioso do candomblé” (idem: 27). Assim, ao proceder à descrição do seu levantamento sobre as definições de caboclo, observa também que eles não são definidos como eguns e se aproximam mais dos orixás do que dos eguns. Um “informante” propõe: “Os Caboclos e os orixás se consideram coisas vivas. Se for pensar que é egun vai se considerar todos os orixás. Não é o Caboclo uma coisa morta”. Contudo, ainda que exista tal aproximação, existe profunda distinção entre as duas entidades:

“O caboclo é visto como uma entidade mais movimentada, “firme, ligada ao chão, uma coisa que tem mais ação”. Por ser o orixá, ou inkice, como frisavam os pais de santo da nação angola, “o dono da cabeça, a energia que rege, que dirige seu corpo”, haveria um sentido de hierarquia entre eles, que se traduz na realização de trabalhos, ebós, com o fim de ajuda material” (Santos, ibidem: 62.).

A hierarquia a que se refere, contudo, não significa uma relação de subordinação. Significa que se trata de entidades distintas que atuam de modos diferentes: o que o orixá faz, o caboclo não faz e vice-versa, observa o autor. *

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Conforme Santos (1995: 80), os primeiros registros dos candomblés de caboclo datam da segunda metade do século XIX e foram feitos por Nina Rodrigues. Mas é Ruth Landes, em pesquisa realizada na década de 1930, que traz informações detalhadas sobre as distinções operadas por mães de santo de Salvador para definir os “candomblés africanos” e “os candomblés de caboclo”. Quando a antropóloga perguntou ao etnólogo Edson Carneiro, que a apresentou e conduziu nos candomblés de Salvador, sobre a “tradição cabocla”, este respondeu: “É um novo tipo de prática, que invoca espíritos de índios juntamente com os deuses africanos e os santos católicos. São templos que admitem homens nos sacerdócio e em geral têm uma disciplina frouxa” (Landes, 2002: 212). Carneiro, por sua vez, tinha grande amizade com Mãe Aninha, importante mãe de santo do candomblé de tradição nagô, que se destacava também na sociedade baiana na esfera política e intelectual, conhecida por seu espírito independente e de grande iniciativa nos posicionamentos políticos em favor da liberdade de culto de seu povo (Serra, 1995: 59). Quando Edson Carneiro e Ruth Landes encontraram-se pela primeira vez com Mãe Sabina, mãe de um dos candomblés de caboclo da cidade, o pesquisador não deixou de tocar em assunto melindroso – recorrendo ao adjetivo usado por Landes: após Sabina relatar com satisfação que o delegado que lhe conferiu a licença para realização da sua festa da Mãe d'Água havia dito que ela não parecia Mãe, Carneiro lhe disse: – Mas naturalmente que é. E perguntou: “– Quem a “fez”, dona? – Ninguém. O tom era cauteloso. – O senhor sabe que nós, as mães caboclas, não somos tocadas por mão humana. Quem me “fez” foi o espírito de um índio que veio a mim em sonho. Ele morreu há centenas de anos e é o meu anjo da guarda.” (Landes, 2002: 214)

O comentário de Edson Carneiro toca em assunto de fundamental importância do

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ponto de vista etnolitúrgico (Serrra, 1995: 43), que sintetizava na época a principal diferença entre os “candomblés africanos” e os “candomblés de caboclo”, qual seja: as diferentes lógicas da feitura, isto é, de iniciação no candomblé. Assim, no estudo de Landes, é possível perceber que, a despeito dos julgamentos mais duros em relação ao candomblé de Mãe Sabina, de modo algum as mães dos “candomblés africanos” estendem o julgamento a todas as outras mães dos “candomblés de caboclo”. A lembrar, por exemplo, de sua descrição sobre o que achavam do candomblé de Mãe Silvana, que afirma ser a primeira mãe de santo de Salvador que abandonou o culto nagô e instalou o culto caboclo, e Mãe Constância, que igualmente “foi treinada na ortodoxia iorubá”, o que lhe assegurava “uma sólida reputação”, conforme destacou Edson Carneiro (idem: 325), Landes resume assim as diferenças entre essas lógicas de feitura que são o ponto de controvérsia entre as mães de santo da época: “Uma mãe nagô deve passar, pelo menos, sete anos de estrênuo treinamento, antes que suas colegas sancionem sua ascensão ao cargo; em regra, passa muitos anos mais. Há também a tendência a que a mulher herde o cargo de uma parenta ou amiga íntima a que serviu como assistente. As mães caboclas, porém, sustentam o direito de funcionar sem haver prestado serviços anteriormente, e muitas vezes sem terem sido “feitas”. Fazem da fraqueza uma virtude, alegando que nenhum intermediário humano lhes pôs as mãos em confirmação, mas somente os próprios caboclos. Treinam noviças de modo vago, exigindo apenas sete dias de reclusão, impondo alguns tabus durante o resto do ano, e assim por diante.” (ibidem: 326)

Conforme apresentado, há, portanto, as “mães nagôs” feitas por meio de um ritual específico que as vincula “às colegas” (a família de santo), das quais dependem para ascender ao cargo de mãe de santo e das quais possivelmente herdarão esse cargo, após anos de treinamento e assistência. De outro, as “mães caboclas” que são feitas pelos próprios caboclos e que prescindem da obrigatoriedade de passar sete anos servindo em uma casa de santo para só então proceder à abertura da sua própria casa18. Essas diferentes lógicas de feitura ganharam contornos particulares numa discussão 18

Há ainda que se recuperar o comentário de Édson Carneiro que pontua que nos candomblés de caboclo era admitida a presença de homens como filhos e pais de santo. Esse ponto em especial será matéria de reflexões posteriores de Landes sobre a questão do gênero e sexualidade nos candomblés.

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propriamente antropológica sobre o assunto: “o dom e a iniciação”. Boyer (1996), por exemplo, com base nesse critério dividiu as religiões afro-brasileiras em dois universos: aquelas realizadas por pessoas que, assim como as “mães caboclas”, receberam os santos de dom; de outro, estariam os que se posicionam a favor da necessidade da “iniciação”. Não me estenderei muito no momento sobre o assunto, pois ele será abordado mais detidamente no próximo capítulo. Contudo, cabe destacar que, conforme observou Goldman (2005, 2012), para uma religião que se faz no entre (entre o Ser e o Não Ser), outra opção a considerar é que essas classificações servem como mapas de orientação para o trabalho de manipulação próprio dos que vivem no santo e que não necessariamente o dom prescinde da iniciação e vice-versa. Conforme Santos (1995: 80), os primeiros registros dos candomblés de caboclo datam da segunda metade do século XIX e foram feitos por Nina Rodrigues. Mas é Ruth Landes, em pesquisa realizada na década de 1930, que traz informações detalhadas sobre as distinções operadas por mães de santo de Salvador para definir os “candomblés africanos” e “os candomblés de caboclo”. Quando a antropóloga perguntou ao etnólogo Edson Carneiro, que a apresentou e conduziu nos candomblés de Salvador, sobre a “tradição cabocla”, este respondeu: “É um novo tipo de prática, que invoca espíritos de índios juntamente com os deuses africanos e os santos católicos. São templos que admitem homens nos sacerdócio e em geral têm uma disciplina frouxa” (Landes, 2002: 212). Carneiro, por sua vez, tinha grande amizade com Mãe Aninha, importante mãe de santo do candomblé de tradição nagô, que se destacava também na sociedade baiana na esfera política e intelectual, conhecida por seu espírito independente e de grande iniciativa nos posicionamentos políticos em favor da liberdade de culto de seu povo (Serra, 1995: 59).

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Quando Edson Carneiro e Ruth Landes encontraram-se pela primeira vez com Mãe Sabina, mãe de um dos candomblés de caboclo da cidade, o pesquisador não deixou de tocar em assunto melindroso – recorrendo ao adjetivo usado por Landes: após Sabina relatar com satisfação que o delegado que lhe conferiu a licença para realização da sua festa da Mãe d'Água havia dito que ela não parecia Mãe, Carneiro lhe disse: – Mas naturalmente que é. E perguntou: “– Quem a “fez”, dona? – Ninguém. O tom era cauteloso. – O senhor sabe que nós, as mães caboclas, não somos tocadas por mão humana. Quem me “fez” foi o espírito de um índio que veio a mim em sonho. Ele morreu há centenas de anos e é o meu anjo da guarda.” (Landes, 2002: 214)

O comentário de Edson Carneiro toca em assunto de fundamental importância do ponto de vista etnolitúrgico (Serrra, 1995: 43), que sintetizava na época a principal diferença entre os “candomblés africanos” e os “candomblés de caboclo”, qual seja: as diferentes lógicas da feitura, isto é, de iniciação no candomblé. Assim, no estudo de Landes, é possível perceber que, a despeito dos julgamentos mais duros em relação ao candomblé de Mãe Sabina, de modo algum as mães dos “candomblés africanos” estendem o julgamento a todas as outras mães dos “candomblés de caboclo”. A lembrar, por exemplo, de sua descrição sobre o que achavam do candomblé de Mãe Silvana, que afirma ser a primeira mãe de santo de Salvador que abandonou o culto nagô e instalou o culto caboclo, e Mãe Constância, que igualmente “foi treinada na ortodoxia iorubá”, o que lhe assegurava “uma sólida reputação”, conforme destacou Edson Carneiro (idem: 325), Landes resume assim as diferenças entre essas lógicas de feitura que são o ponto de controvérsia entre as mães de santo da época: “Uma mãe nagô deve passar, pelo menos, sete anos de estrênuo treinamento, antes que suas colegas sancionem sua ascensão ao cargo; em regra, passa muitos anos mais. Há também a tendência a que a mulher herde o cargo de uma parenta ou amiga íntima a que serviu como assistente. As mães caboclas, porém, sustentam o direito de funcionar sem haver prestado serviços anteriormente, e muitas vezes sem

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terem sido “feitas”. Fazem da fraqueza uma virtude, alegando que nenhum intermediário humano lhes pôs as mãos em confirmação, mas somente os próprios caboclos. Treinam noviças de modo vago, exigindo apenas sete dias de reclusão, impondo alguns tabus durante o resto do ano, e assim por diante.” (ibidem: 326)

Conforme apresentado, há, portanto, as “mães nagôs” feitas por meio de um ritual específico que as vincula “às colegas” (a família de santo), das quais dependem para ascender ao cargo de mãe de santo e das quais possivelmente herdarão esse cargo, após anos de treinamento e assistência. De outro, as “mães caboclas” que são feitas pelos próprios caboclos e que prescindem da obrigatoriedade de passar sete anos servindo em uma casa de santo para só então proceder à abertura da sua própria casa19. Essas diferentes lógicas de feitura ganharam contornos particulares numa discussão propriamente antropológica sobre o assunto: “o dom e a iniciação”. Boyer (1996), por exemplo, com base nesse critério dividiu as religiões afro-brasileiras em dois universos: aquelas realizadas por pessoas que, assim como as “mães caboclas”, receberam os santos de dom; de outro, estariam os que se posicionam a favor da necessidade da “iniciação”. Não me estenderei muito no momento sobre o assunto, pois ele será abordado mais detidamente no próximo capítulo. Contudo, cabe destacar que, conforme observou Goldman (2005, 2012), para uma religião que se faz no entre (entre o Ser e o Não Ser), outra opção a considerar é que essas classificações servem como mapas de orientação para o trabalho de manipulação próprio dos que vivem no santo e que não necessariamente o dom prescinde da iniciação e vice-versa.

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Há ainda que se recuperar o comentário de Édson Carneiro que pontua que nos candomblés de caboclo era admitida a presença de homens como filhos e pais de santo. Esse ponto em especial será matéria de reflexões posteriores de Landes sobre a questão do gênero e sexualidade nos candomblés.

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Capítulo 2: MANIFESTAÇÃO, IRRADIAÇÃO, APARIÇÃO E POSSESSÃO “Foi Zambi quem criou o mundo, só Zambi pode governar Foi Zambi quem criou as estrelas, que iluminam Oxóssi lá no Jurema.”

– Manifestação, s.f.: Ato ou efeito de manifestar; expressão pública de sentimentos ou opiniões coletivas (Do lat. Manifestatione). Dicionário brasileiro de língua portuguesa.

Manifestação era a categoria mais abrangente utilizada para indicar a presença dos seres outros no mundo da matéria. Assim, por exemplo, quando uma pessoa entrava em estado de transe, dizia-se: o orixá de X manifestou, ou X estava manifestada no orixá, ou ainda X manifestou no orixá. Nessas situações, também era possível dizer: os orixás se apresentam, tomam/vêm/chegam ou descem/baixam em terra ou no aparelho; a pessoa vira no, dá caboclo ou recebe o orixá. Manifestação também poderia servir para se referir a fenômenos particulares relacionados à percepção dos diferentes fluxos da intensidade da presença desses seres que são a irradiação e a aparição. A possessão também era uma manifestação de fluxo diferenciado, mas com a particularidade de que era operada exclusivamente pelos eguns; não existia possibilidade de estar possuído por orixás ou seus mensageiros. Assim, quando é o caso de a pessoa entrar em transe, o que ocorre é que o orixá toma o aparelho (pessoa) sem haver qualquer possibilidade de que este fique em estado de consciência ou semiconsciência. “Não dá para saber o que acontece. Quando o orixá vem, ele te toma toda/o”, era assim que respondiam a minha pergunta sobre o que se sente ao receber um orixá. Algumas sensações específicas, como calor ou frio, podem ser sentidas, mas não há controle, nem consciência do que se passa. É uma sensação de arrebatamento. Nesse caso, entende-se que o orixá manifesta na pessoa no modo mais pleno possível: ele vem para dançar

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e trazer sua energia “pura”. Desse modo, a manifestação da energia-orixá afetava não apenas quem a recebia, a matéria ou aparelho, mas também todos os que estavam no espaço ritual e o próprio espaço, todo o ambiente. A energia do orixá contagia e abastece tudo ao redor, e quanto mais perto dela, mais alimentado se é por ela: quem recebe o orixá se sente abastecido, quem abraça um orixá também se abastece. A manifestação do orixá leva o que há de ruim embora e reabastece a energia, é o que dizem. Contudo, se observava que os orixás são uma potência de tal magnitude que não é possível ocorrer sua manifestação plena no mundo da matéria. A manifestação nesses casos era a mais plena possível. O orixá é a “energia pura” que se apresenta em diferentes modulações e a sua presença no aparelho é uma dessas modulações: a Iansã de X não é igual à de Y. Uma vem de um jeito e outra vem de outro. Esta também é sentença recorrente que expressa justamente que essa energia pura é afetada pelo aparelho que ela ocupa. Goldman já observara isso em seus estudos sobre a possessão no candomblé, afirmando que: “os orixás encarnam nos homens e transmitem a eles alguma coisa de sua essência divina, ao mesmo tempo em que uma certa dose de humanidade lhes é insuflada pelos fiéis que concordam em recebê-los” (Goldman, 1987: 111). Com relação aos mensageiros dos orixás, como são chamados Exu, erê, o puxa-folha (caboclo), preto velho e marujo, eles quando vêm também deixam o aparelho em estado inconsciente ou semiconsciente. Eles vêm para trabalhar para os orixás e/ou transmitir seus recados e, por serem manifestações mais “próximas da matéria”, podem deixar alguns recados na memória de quem os recebe, além de transmitir ensinamentos e de trazer consigo os vestígios dos tempos, dos gostos e dos conhecimentos de quando eram matéria. Cardoso, em sua monografia sobre o trabalho com espíritos nos centros de umbanda

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dos subúrbios carioca, observou o seguinte: “A presença do 'espírito', da diferença, é então uma presença de des-orientação. Trabalhar com espíritos é um processo – não apenas um momento – em que quem trabalha com espíritos e o próprio 'espírito' são ambos transformados e transformadores” (Cardoso, 2004: 5.).

Alguns dos mensageiros dos orixás, dependendo da linha em que se apresentam, não são espíritos, mas em todos os casos são uma manifestação de desorientação estabelecida numa relação processual e de transformação com quem os recebe. A dimensão processual dessa manifestação se expressa no próprio modo de explicitá-la: O caboclo vem para trabalhar; o caboclo deixa o aparelho e a pessoa volta. Mas, para além do momento da manifestação, é com o passar do tempo que nuanças vão se processando nessa relação: a presença dos mensageiros passa a ser sentida constantemente e de diferentes modos, não apenas quando eles se apresentam. – Irradiação, s.f.: ato de irradiar; expansão; propagação. Dicionário brasileiro de língua portuguesa.

A manifestação dos orixás e de seus mensageiros também pode afetar a matéria de diferentes maneiras a depender da intensidade em que se dá: pode ser o caso de se estar irradiado no mensageiro ou no orixá. Para falar sobre esse fenômeno específico procedo ao relato de um episódio que ocorreu comigo no campo. Num fim de noite de março de 2011, me dirigi à casa de dona Otília com o objetivo de entrevistá-la. Estava ansiosa para o momento, pois dona Otília sempre foi muito reservada comigo. Quando já estávamos a sós e iniciaríamos a conversa, fomos interrompidas por um recado trazido por uma das filhas da casa que dizia que “a menina tinha morrido”. A menina era a filha de um senhor que reside no bairro do Centro e que não costuma frequentar a casa de dona Otília, nem outras casas de candomblé. Contudo, como a filha estava muito doente, correndo o risco de morrer, esse senhor tinha recorrido naquela semana aos trabalhos do

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Caboclo Juremeira, caboclo de dona Otília, para tentar salvá-la20. Após dar a notícia, a moça saiu e ficamos novamente a sós na sala. Dona Otília ficou um tempo em silêncio e imediatamente comecei a sentir uma vontade grande de chorar que logo se transformou num choro copioso. Não entendendo nada do que se passava, tentava controlar o choro e pedia desculpas a dona Otília, dizendo que não sabia o que estava acontecendo e justificando que talvez chorasse por conta da notícia triste, apesar de nem conhecer a menina. Dona Otília, a meu ver, permanecia impassível. Logo Naiana apareceu. Passou por nós atravessando a sala e, tendo observado a situação, voltou; rindo, perguntou se eu estava de dandá. Ainda tentando parar o choro e sem entender a pergunta, não tive condições de respondê-la. Naiana já andava em direção à cozinha e perguntou se eu queria um copo d'água. Ela trouxe o copo, bebi a água e com o tempo o choro foi diminuindo, até cessar. Como não me sentia em condições de proceder à entrevista e dona Otília não parecia mais disponível, Naiana esperou que me recuperasse e disse que me acompanharia até a porta; após assegurar-se de que eu estava me sentindo bem, ela me deixou ir embora. Pedalando de volta para a casa de seu Celso, ficava pensando no que para mim tinha sido uma situação completamente embaraçosa e absurda. O choro veio e se foi repentinamente. Simplesmente não conseguia entender o que se passara e, ainda mais, por conta disso tinha perdido a oportunidade de entrevistar dona Otília. No dia seguinte, ao narrar o que aconteceu para Carmen Lúcia, além de dar umas boas risadas, ela disse que o choro provavelmente era sinal de que eu estava sensível e me comovi

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Cabe dizer que a menina não faleceu. Dias depois, contaram na casa de Dona Otília que, naquela fatídica noite, levaram a menina às pressas e muito debilitada para o hospital de Eunápolis, cidade localizada a aproximadamente 150 quilômetros de Belmonte. A menina permaneceu no hospital e de lá retornou melhor. Posteriormente, Naiana me explicou que tinham feito feitiço para a menina e o trabalho realizado por Juremeira fora o de desfazer o feitiço. A piora do quadro de saúde com a consequente internação no hospital e o procedimento clínico realizado para salvá-la, a retirada de um conteúdo do seu ventre composto por bolos de cabelo, unha e “outras porcarias” que poderiam sugerir a semelhança com um feto mal formado, eram consequência do êxito do trabalho realizado pelo Caboclo Juremeira.

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com a história da moça, como quando vemos um filme e nos emocionamos com a história. Para mim essa explicação continuava não fazendo o menor sentido. À noite, tive a oportunidade de encontrar Naiana, e foi aí que pude externar a minha completa incompreensão do que se passou. Ela me explicou que estar de dandá é, literalmente, estar manifestada, ou, como ocorreu comigo na noite passada, estar irradiada na Oxum. Dandalunda é como se chama a Oxum na angola, continuou. Ela informou que, sendo a mãe dela da Oxum, naquele momento a presença da entidade estava muito forte e eu senti a irradiação dela, e por isso chorei. Para completar, Naiana perguntou-me se eu era da Oxum e eu disse que não sabia. Ela disse então que provavelmente eu deveria ter a Oxum, para ter manifestado daquele jeito. Por mais revolucionária que tivesse sido aquela explicação para mim no momento, ela pareceu tão ou mais plausível que a oferecida por Carmen Lúcia, e que foi a que inicialmente me ocorreu. *

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A irradiação consiste num fenômeno particular de manifestação, uma forma mais sutil, digamos assim, de sentir a agência dos orixás e mensageiros sobre o mundo da matéria. Nesses casos, pode--se dizer que se mantém o estado de consciência, ainda que eventos incontroláveis sucedam com o aparelho. Se virar no santo é a maneira mais plena possível de esses seres se apresentarem na matéria, a irradiação é como um estágio anterior: uma maneira de ser afetado pela presença desse outro que propaga seu raio de influência ao redor, sem, no entanto, ser tomado completamente por essa presença, como ocorre quando se está virado/a. Mas a pessoa que está irradiada pode virar no santo, a depender da intensidade dessa presença e da “abertura” de quem está irradiado. Mello (2010) também se deparou com o fenômeno da irradiação durante o período em que realizou pesquisa no município de Caravelas, extremo sul da Bahia. Vivendo o cotidiano

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do Movimento Cultural Arte Manha, ela foi apresentada às narrativas de situações diversas nas quais se havia processado o fenômeno em algo semelhante à situação descrita acima e propôs: “A irradiação aqui tratada se dá a partir do encontro entre um agente e uma determinada fonte de intensidade – que pode ser um acontecimento, um orixá, um sonho – capaz de provocar neste agente alterações relevantes – e bem reais – em suas qualidades. Fluxos de intensidade oriundos da fonte de irradiação atravessamno e afetam-no. Seja por reter parte desta força que o trespassa, seja porque esta força ativa algo pertencente ao próprio (ou por ambas as razões), o que se diz é que algo irradiou no agente ou que ele(a) está ‘irradiado(a)’.” (Mello, 2013: s/p)

A irradiação é espraiamento de forças, de afetos, mas são afetos que de algum modo já se faziam presentes, que já atravessavam a matéria. Ao entrar em contato com uma determinada “fonte de intensidade”, essa matéria manifesta essa força que já a atravessava de modo latente e que se conecta com o fluxo de intensidade que a faz despertar, digamos assim. Cabe lembrar que Naiana observou que eu deveria de algum modo ter Oxum para ter manifestado daquele jeito. Outra observação nesse sentido é importante: o que se propagou e me acertou em cheio foram os efeitos da forte presença da Oxum de dona Otília. Cada uma manifestou na Oxum de um modo. Eu chorei; dona Otília estava serena. Oxum não tem início nem fim; ela é “energia pura”, uma das forças que atravessam e constituem o mundo e pode vir a se manifestar de diferentes modos: nos rios e cachoeiras, no amarelo e em objetos dourados, na doçura, serenidade, no choro, num arquétipo mítico, etc. É uma força de muitas facetas, digamos assim. Não se trata, portanto, de uma força que se propaga e afeta a tudo e a todos de modo indiferenciado: essa força se singulariza nos espaços-instantes em que é retida, ou melhor, em que se manifesta. Mas há ainda um algo mais a considerar sobre o fenômeno da irradiação e que traz as especificidades do ponto de vista de quem, como é costume dizer em Belmonte, é “do santo” 63

ou “da religião”. Para falar sobre esse algo mais acho interessante narrar outro episódio em que vivenciei o fenômeno da irradiação. *

*

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Numa tarde, quando caminhava conversando com Naiana pela Rio-Mar em direção ao bar de seu Pedro, tivemos um estranho encontro com duas colegas de Naiana. Elas retornavam da praia e se dirigiam a um bar no meio do caminho da estrada, pelo qual já tínhamos passado. Naiana as cumprimentou e logo tratou de pedir um cigarro. Uma delas lhe cedeu o cigarro que fumava, dizendo que dividiria com a amiga o outro. Naiana pegou o cigarro e deu uma longa tragada. Depois ficou quieta olhando para as moças. A que cedeu o cigarro perguntou-lhe se ela não queria ir para o bar pelo qual passamos. Naiana deu outra tragada e sorrindo disse que não, que iria acompanhar “aquela moça ali”, referindo-se a mim. Deu mais uma tragada, devolveu o cigarro para a moça e pôs-se a andar. Segui caminhando com Naiana e perguntei quem eram as meninas. Sorrindo, disse apenas que eram umas colegas da Biela. Permaneceu andando calada e com um sorriso no rosto. Chegando perto do bar de seu Pedro, ela balançou rapidamente a cabeça e soprou fortemente pela boca; andando em direção ao bar, disse que precisava se sentar. Sentou-se e pediu uma água. Sentei também. Depois de um instante, ela perguntou se eu não tinha reparado nada. Respondi apenas que achava que ela estava estranha desde que encontrara as moças. Naiana então falou: “foi João que chegou junto de mim”. Perguntei como e ela disse que ela já estava sentindo a presença dele, mas que, ao passar pelo bar e encontrar as meninas, ele ficou mais perto. Perguntei se ela tinha incorporado e ela disse que não. Ela estava irradiada, só que foi mais forte. *

*

*

Naiana estava quase sempre na companhia dos seus mensageiros. Ela gostava muito

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deles e os trazia para perto, alimentando-os periodicamente no respectivo assentamento. Eles lhe traziam força e a deixavam alegre; faziam bem a ela, observava. Quando ela sentia que eles estavam afastados, verificava se estavam com comida e bebida; mas, às vezes, como no caso citado, eles podiam ficar próximos demais e essa proximidade despertava sua atenção. Em geral, ela procedia de modo a verificar se eles estavam com tudo certo no assentamento – bebidas, comidas e cigarros – a fim de evitar que eles viessem “usá-la” para se alimentar. Naiana ia assim procedendo, tentando encontrar uma relação de proximidade ideal com seus exus. Nem muito afastados, de modo que não pudesse sentir a presença deles, nem muito próximos, ao ponto que pudesse ser por eles usada. Essa operação era arriscada, pois uma aproximação demasiada de Exu pode trazer desequilíbrio para a vida, dado que ele é também, entre muitos, o desequilíbrio. O ideal era sentir sua irradiação, mas que ela não fosse forte demais. A irradiação não era assim apenas o fluxo da intensidade de uma presença e o que dela foi retido; era um estado que se desejava manter, um modo de viver para o qual era necessário mobilizar procedimentos e conhecimentos específicos. *

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No candomblé, o ritual de raspar o santo, chamado também de fazer o santo, é o mais importante procedimento de iniciação da pessoa. Consiste em raspar a cabeça (ori) do noviço (iaô) para plantar o axé do orixá de cabeça da pessoa. O corpo humano, sendo veículo de manifestação das divindades, é preparado para receber esses seres, mas a cabeça é o lugar mais sagrado, preparado para o orixá de cabeça vir. Além da cabeça, são preparados também (às vezes, em cerimônia que antecede o ritual de raspar o santo) os assentamentos, onde se encontram outros elementos sagrados que vinculam o orixá e a pessoa, como a pedra do santo e suas ferramentas. O assentamento e a cabeça são consagrados juntos, em ritual específico. Os

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assentamentos não são coisas mortas, não são a “representação” dos vínculos da pessoa com o orixá. Assim como as pessoas e os orixás, os assentamentos são vivos: são atravessados pela força dos orixás que comem e bebem e por isso têm que ser alimentados periodicamente por intermédio das oferendas e sacrifícios. Com o passar do tempo e a realização das obrigações rituais de um, três, cinco, sete, quatorze, vinte e um e, em alguns casos, vinte cinco anos, o vínculo do noviço com o orixá de cabeça e o seu enredo (ou carrego) de santo, isto é, os demais orixás que o constituem e com os quais está em relação, vai sendo firmado e ele e os seus santos vão se desenvolvendo no processo. Resumidamente, essa é a maneira como no candomblé se processa esse desenvolvimento e a pessoa vai ficando mais próxima do seu orixá com o passar do tempo (sobre esse assunto ver Bastide, 1970; Elbein dos Santos, 1977; Verger, 1981; Augrás, 1983; Goldman, 1984 e 1987; Binon Cossard, 1970 e 2004, entre outros). Conforme observou Cossard:

“Quanto mais antiga sua iniciação, mais a personalidade de seu orixá (isto é, a que ela possui em seu estado de transe) aumenta de importância. Continua corresponder ao arquétipo tradicional, mas adquire nuanças segundo cada indivíduo. Pouco a pouco, o orixá adquire o hábito de falar e com o tempo e a experiência desenvolvem-se os signos de um saber pessoal: dupla visão, profecia, língua secreta, conhecimentos de plantas, remédios etc. “Com o tempo o santo vai se desenvolvendo”, ao que se diz. Esta faculdade se desenvolve mais, ou menos, segundo os casos, mas a evolução se dá sempre sem que a iniciada tenha conhecimento dela, da mesma forma que a escolha de se tornar filha-de-santo deuse independentemente de sua vontade, sem que até mesmo tenha existido um esforço de sua parte para chegar lá.” (Cossard, 2004: 134)

O desenvolvimento e a aproximação com o orixá se dá com a passagem do tempo e sem que se tome conhecimento (pleno, acrescentaria eu) do processo. Além disso, não é apenas a pessoa que se transforma: o vínculo do orixá com a pessoa vai se fortalecendo de modo a afetá-la – ao passo que aumenta a importância da “personalidade do seu orixá” de

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cabeça – e a afetar também o orixá – que “adquire nuanças segundo cada indivíduo”. Esse processo tem a ver com o que Goldman (1984, 1987, 2005) propôs ser um processo de singularização que se desdobra a partir das obrigações de iniciação e vai sendo constituído ao longo da vida das pessoas. Goldman ainda acrescenta um fator importante à reflexão, observando que esse movimento de aparente continuidade operado por uma sequência de rituais não consiste num movimento que visa a unificar a pessoa “múltipla e folheada”, mas sim numa “solução de compromisso” da pessoa com o seu “carrego de santo” (1984: 187).

A iniciação no

candomblé e as obrigações do (com o) santo operam de modo a fortalecer a comunicação da pessoa com o orixá de cabeça e também com o “carrego de santo”, um coletivo de seres que com a feitura do santo é o constituinte-constitutivo da pessoa. Em Belmonte, esse coletivo de seres constituintes-constitutivos de cada pessoa é chamado enredo de santo, formado, no mínimo, pelo orixá de cabeça da pessoa, chamado também orixá de frente; pelo segundo santo ou adjuntó; e pelo terceiro santo; além disso, o orixá de cabeça puxa a sua linhagem de mensageiros: o puxa-folha, o preto-velho e o marujo. E mais: cada orixá da pessoa tem seu próprio exu, o mensageiro-escravo, que, no entanto, é comandado pelo Exu do orixá de cabeça. Esse Exu que comanda os demais exus é raspado e tem seu próprio assentamento; é tratado como um orixá. Assim, todo o processo de iniciação no candomblé se desenrola de modo que a pessoa vá se desenvolvendo na relação com o seu enredo de santo. O ideal é que esses seres estejam próximos e se desenvolvendo; as obrigações são procedimentos que visam a atingir esse fim. Há que se observar, no entanto, que a centralidade do processo se dá na relação com o orixá de cabeça da pessoa, que é quem puxa a linhagem de mensageiros. Conforme esta perspectiva, as pessoas são atravessadas por diferentes forças. Elas vão

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se fazendo na relação com as diferenças que as constituem, mas sem propriamente sintetizálas. Cada orixá e cada mensageiro possuem suas características, seus gostos, seus domínios, seu passado e seus conhecimentos. Cada um deles é um fluxo desejante, digamos assim, que quando se apresenta manifesta vontades singulares. Cada um deles se apresenta por meio do aparelho e com isso são afetados por ele também, conforme venho explicitando até aqui. Naiana, ao observar se os seus santos e Exu estão comendo, verifica se eles estão se desenvolvendo e se estão próximos; está zelando por seus santos, como usualmente se diz. Não alimentá-los pode afastá-los, e Exu, por ser mais “próximo da matéria”, por ser quem vem primeiro para estabelecer a comunicação das pessoas com os orixás, pode querer usar o aparelho para se saciar. Do mesmo modo, zelar apenas por Exu e descuidar das obrigações com os orixás e demais mensageiros pode aproximar em demasia essa força e afastar as outras, o que também costuma trazer problemas21. O ideal é não descuidar de nenhuma delas e observar as vontades particulares quando elas se manifestam: dos orixás, dos mensageiros e as próprias. No entanto, muitas vezes as vontades podem ser conflitivas, e é preciso saber proceder de modo a apaziguá-las, se não definitivamente, pelo menos nos momentos em que há “guerra” declarada. Conforme propôs Dos Anjos (2009), o trabalho primordial dos afro-religiosos consiste em desenvolver estratégias e procedimentos de infiltração e organização de forças (o próprio axé) no que está em estado bruto e caótico. Só desse modo é que se torna efetivamente sagrado aquilo que está virtualmente sagrado, afirma. A própria operação de feitura do santo é

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Em sua monografia com base na pesquisa realizada no terreiro de João da Gomeia, Binon Cossard também observou que: “Exatamente como o orixá Exu pode ser fixado em um suporte material, o que permite fazê-lo trabalhar à vontade, destinando-se-lhe oferendas apropriadas. Nesse caso, Exu não se encontra mais somente sob direção do orixá, mas também sob a do ser humano. Este deve mostrar-se muito prudente e cuidar para não fazer muitas oferendas a Exu sem fazê-las também ao orixá, de tempos em tempos. Caso contrário ocorreria um desequilíbrio e o orixá, ciumento dos favores concedidos ao seu servidor, poderia muito bem desinteressar-se de seu filho e não protegê-lo mais com a mesma solicitude. Exu poderia então agir como bem lhe aprouvesse, o que não deixaria de criar sérias perturbações na vida do interessado. (…) Aqueles que fazem Exu trabalhar devem tomar um cuidado particular com seu orixá” (Cossard, 2004: 151).

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um exemplo forte desse trabalho. Nos termos de Bastide (2006), seria o trabalho de “domesticar” o “sagrado selvagem”, o sagrado “instituinte”, pura potência, e torná-lo “instituído”. O instituinte sendo o ainda não instituído, posto que: “não se pode existir para o homem instituinte senão já – e desde o princípio – instituído”. Mas esse trabalho, é válido observar, não é propriamente um trabalho de estabelecimento da ordem em meio ao caos, ele se desenvolve com o propósito único e exclusivo de fazer a vida, posto que axé, força, é princípio vital, é vida. Nesse sentido, seria um trabalho de composição algo semelhante ao que o músico e teórico musical John Cage descreveu como sendo: “um jogo (...) que é uma afirmação da vida – não uma tentativa de trazer ordem no caos nem sugerir aperfeiçoamentos na criação, mas simplesmente um jeito de acordar para a vida” (Cage, 1973: 12). Essa forma de fazer a vida, de sacralizá-la, estabelecendo conexões e cortes, organizando forças, privilegia alguns princípios que Goldman (2005), em artigo particularmente inspirador, se deteve a explicitar e que, observou, derivam de uma ontologia particular: “Em termos mais compreensíveis para nós, essa ontologia poderia, talvez, ser resumida como uma espécie de monismo que postula a existência de uma única força. Essa força recebe o nome de axé e assemelha-se, claro, às bem conhecidas noções de mana, orenda e similares. Modulações do axé - em um processo simultâneo de concretização, diversificação e individualização - constituem tudo o que existe e pode existir no universo. As próprias divindades ou orixás, em primeiro lugar. Cada um deles não é mais que a encarnação de uma modulação específica de axé. Em seguida, os seres e coisas do mundo: pedras, plantas, animais, seres humanos - mas também cores, sabores, cheiros, dias, anos etc. "pertencem" a diferentes orixás, mas apenas na medida em que com eles compartilham dessa essência simultaneamente geral e individualizada. Em certo sentido, cada ser constitui, na verdade, uma espécie de cristalização ou molarização resultante de um movimento do axé, que de força geral e homogênea se diversifica e se concretiza ininterruptamente. Em uma linguagem mais diretamente religiosa, é possível, pois, afirmar que o axé flui a partir de uma fonte comum, fonte que pode ser Olorum ou Zambi, a divindade suprema que não recebe qualquer culto, ou Iroko (ou Tempo), a árvore sagrada de cuja seiva teriam se originado os orixás, ou outras, de acordo com distintas versões dos mitos. Esse fluxo de axé é, de alguma forma, cortado em

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diferentes pontos, constituindo, sobre determinado plano, o que se denomina orixás "gerais" (que existem em número finito) e, sobre outro, um sem número de orixás individuais, aos quais, em última instância, estão ligados todos os seres humanos”. (Goldman, 2005: ).

A descrição etnográfica que apresento tem por objetivo principal explicitar diferentes trajetórias de modulação do axé e organização dessa força-fluxo, procurando dar especial atenção ao modo como santos, mensageiros e pessoas se constituem nesse processo. A considerar que, nos candomblés de Belmonte, existem duas principais linhas, também chamadas doutrinas, para operar essa modulação e organizar essas forças e que elas são combinadas de diferentes maneiras, o material etnográfico contribui para essa reflexão em particular. Uma das linhas consiste na linha do candomblé em que manifestam os santos raspados, santos que passaram pelo principal procedimento ritual de iniciação no candomblé explicitado anteriormente. A outra linha é a linha da umbanda, também chamada linha dos caboclos, linha na qual trabalham os chamados santos de dote, santos que vieram de berço e que já vieram feitos, que pegam as pessoas e manifestam de pé. Esses santos se desenvolvem trabalhando, dando passes, realizando trabalhos e consultas, e também por meio da realização das obrigações de ano. Eles podem com o passar do tempo ter filhos, iniciando algumas pessoas. O procedimento de iniciação na linha da umbanda é efetuado, basicamente, por um pai ou mãe de santo ou santo de dote que puxa o santo da outra pessoa e, posteriormente, combina procedimentos da linha do candomblé, como o bori, procedimento de dar alimento à cabeça da pessoa, e a feitura do assentamento. A iniciação nessa linha ocorre, em geral, por ocasião de tratamentos espirituais realizados pelos santos de dote em pessoas acometidas por doenças, ou assediadas ou possuídas por eguns. À exceção deste último caso, em que é obrigatório realizar a iniciação, nos demais, os tratamentos não precisam resultar no ingresso 70

da pessoa na “vida no santo”. Isso é algo que varia de caso para caso. Barros e Teixeira, em um artigo com algumas interessantes observações sobre a noção de saúde e doença no candomblé, observaram que: “sendo o corpo humano e a pessoa vistos como veículos e detentores de axé, dá-se a necessidade de periodicamente serem cumpridos certos rituais que possibilitem a aquisição, intensificação e renovação desse princípio vital, responsável pelo equilíbrio ou saúde dos adeptos” (Barros e Teixeira, 2004: 118). Os autores levam em consideração o princípio de “corpo aberto” e “corpo fechado”, considerando que as doenças e a cura possuem um caráter essencialmente espiritual e que decorrem de certo número de fatores que possibilitam sua instalação no corpo humano, dentre os quais eles citam: as ações dos orixás sobre alguém escolhido para cumprir parcial ou totalmente a iniciação e a contaminação pelo contato com eguns (idem: 119-124). Estes fatores estão entre os principais motivadores para que se efetue a necessidade da iniciação da pessoa no candomblé em Belmonte, que se dá na grande maioria dos casos pela via da linha da umbanda. Essa iniciação, como citado, literalmente puxa o santo da pessoa de modo que ela possa ou cumprir com a “missão” de trabalhar no santo ou desenvolver sua força para evitar que seja assediada por eguns. Quando não, o ingresso se dá como consequência do trabalho no santo dos já citados santos de dote.

Cumpre observar, nesse sentido, que esta etnografia também apresenta alguns elementos etnográficos próprios da temática sobre o “dom e iniciação” no candomblé. Observo, contudo, que a separação entre a linha da umbanda e a linha do candomblé baseada na diferenciação dos que recebem os santos de dote e os que têm os santos raspados é mais um trampolim para saltar (como sugeriu Goldman, 2005) do que uma classificação estrita que apresentaria os que “estão seguros de sua ligação com o que é da ordem da aptidão pessoal e inata, enquanto

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outros se pronunciam a favor de uma boa e correta iniciação”. (Boyer, 1996: 8). Primeiramente, cumpre observar que o dualismo “dom e iniciação” não se sustenta em Belmonte, pois as diferentes manifestações dos santos de herança (que podem ser de sangue, de convivência e espiritual) confirmam o que Goldman sugeriu ser o caráter aparentemente triádico do modelo nativo: “dom-participação-iniciação” (2012: 279). Na linha da umbanda e na linha do candomblé é dada a possibilidade de esses santos manifestarem, observando apenas que se trata de santos com uma trajetória de desenvolvimento particular, que se singularizaram e que por isso não podem ser santos de cabeça de mais ninguém, nem numa linha, nem em outra. Essa observação é importante, pois aponta para o seguinte: o trabalho no santo consiste num trabalho, como descrito até aqui, de captação e modulação da força-axé que ao longo da vida vai ganhando corpo e densidade e pode passar a irradiar para os demais. Esse trabalho, é importante mais uma vez destacar, não consiste na construção de uma essência identitária, mas na construção de um território de fluxos-intensidades diversas, passíveis de serem percorridos, manifestados. Nos casos dos santos de herança, esse processo já foi constituído, diz-se, então, que já houve desenvolvimento e o que há é a transmissão de uma manifestação singular com suas orientações e conjunto de regras próprios. Há a transmissão de uma linha de força específica. Dessa maneira, conforme a descrição etnográfica explicitará mais detalhadamente, cumpre em primeiro lugar observar que, de modo algo diferente dos santos de herança, o que é da ordem do “dote” – no vocabulário conceitual o “dom” – precisa e deve ser desenvolvido e há diferentes maneiras para se efetuar isso, incluindo as possibilidades de iniciação já descritas. Do mesmo modo, os santos raspados não prescindem do desenvolvimento dos dons e de tudo o que é “da ordem da aptidão pessoal”. Tudo depende de como isso é feito, no

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sentido próprio que conferem ao termo aqueles que são do candomblé, ou seja, tudo depende de observar o trabalho ininterrupto de desenvolvimento das forças constituinte-constitutivas. Assim, trata-se menos de uma discussão sobre a ordem do que é o dom e o que é o feito, já que é difícil definir o que não pode ser feito (assim como é difícil definir o que, quando passa a ser feito, não é de algum modo a manifestação de uma aptidão). Trata-se mais da explicitação de trajetórias por meio das quais se processou o desenvolvimento no santo e por meio das quais se dá a manifestação dos mensageiros e orixás; trata-se também de pontuar algumas características das linhas-doutrinas que são elas próprias modulações de axé. Como observou Dos Anjos (2008: 78): “Espíritos são pontos de vista que encarnam corpos. A sacralização de determinadas dimensões da natureza está correlacionada a um processo de circulação de perspectivas por corpos. Da nação Jeje emanam divindades, batidas, pontos de vista, diferentes da nação Cambinda, mas ambos podem ser conjugados num mesmo terreiro em momentos diferentes.”

O trabalho e desenvolvimento no santo consistem em arranjar essas perspectivas (faixas de intensidade, linhas de força e linhas-doutrinas), zelando pelas singularidades herdadas e/ou recebidas de dote que encarnam os corpos, mas também experimentando a possibilidade de doutrinar corpos e seres que passam a manifestar novas perspectivas. No mais, outros temas também atravessam a tese, mas são fluxos menos intensos, digamos assim: como considerações sobre as formas de aprendizado no candomblé; sobre a lógica de organização e sucessão das casas por meio das diferentes linhas doutrinas; e sobre os efeitos da manifestação dessas linhas de força – mensageiros dos orixás – no mundo da matéria, assunto sobre o qual torno a falar a partir de agora.

- Aparição, s.f.: visão; manifestação súbita; fantasma; assombração. Dicionário brasileiro de língua

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portuguesa.

Além dos fenômenos de irradiação, também se processavam os fenômenos chamados aparições, que consistiam na materialização desses seres, na sua manifestação “visível a olho nu”, como se diz, no mundo da matéria. Josi, que é equede da Iansã de dona Rita Camuinganga, por exemplo, costumava ver de modo recorrente Dom José, o marujo de dona Rita por quem era apaixonada, na praia; ele também aparecia nos seus sonhos. Nos sonhos, era possível a interação entre eles, mas quando ele aparecia na praia era apenas de longe, para ela sentir a sua presença, dizia, porque de perto ele sumia. Recordo-me também do já citado episódio em que João Caveira se materializou por alguns segundos por meio de Naiana. Ao indagar se eu sabia quem ele era, ainda que em meio a muitas dúvidas, sabia que não era bem Naiana que vi me fazendo essa pergunta, ainda que duvidasse também do que tinha visto. João manifestou de um modo que consegui enxergá-lo ainda que instantaneamente. Nesse episódio, Naiana regressou se sentindo muito mal e observou que ele nunca havia se apresentado de um jeito tão forte. Ao entender as aparições como um processo de modulação de força, envolvendo simultaneamente a concretização, diversificação e singularização, é possível considerar que a aparição é também fenômeno de propagação que afeta quem está em relação, quem se conecta e é atravessado pela mesma: se a irradiação vem a ser uma forma mais sutil de propagação de força, a aparição consiste numa propagação de intensidade “forte”, como nos dois casos citados. As pessoas que estão numa relação/conexão “forte” com determinados fluxos são afetadas de tal modo que passam a enxergar suas manifestações a princípio invisíveis. Josi, conectada no fluxo-paixão-Dom José, via sua manifestação de longe de modo a sentir sua presença. Ao aproximar-se, contudo, ele desaparecia, indicativo de que a intensidade do fluxo 74

é tamanha que só pode processar-se à distância ou então nos sonhos, território em que se é de uma maneira muito singular. Eu, em conexão com o fluxo-Naiana-João, enxerguei a manifestação de João instantânea, manifestação que não durou dois segundos, mas foi suficientemente forte para ocasionar em Naiana grande mal estar. Dizia-se também que algumas pessoas possuíam um “dom” especial para ver essas manifestações. Algumas já nasceram com esse dom (ele veio de berço, costumavam dizer) outras foram adquirindo com o passar do tempo e a vida no santo. Se visitavam os lugares de mata, enxergavam caboclos fugidios espiando os que adentravam seu território; nas praias, viam marujos; e enxergavam também seres que acompanhavam outras pessoas. Esse dom, no entanto, era atribuído ao fato de a pessoa ter uma “comunicação muito forte” com o outro mundo, isto é, ela estava em relação intensa com esses outros seres, seja aqueles que desenvolveu, seja os que nasceram com ela. Assim, a pessoa deveria zelar para que essa comunicação forte não trouxesse distúrbios para sua vida, pois ela participava de um mundo que não era seu. Nesse caso, ela deveria se prevenir para que os mortos não viessem pegá-la.

- Possessão, s.f.: estado; domínio; estado de possessão; invasão demoníaca; posse diabólica; forma de delírio em que o paciente acredita estar habitado por ser sobrenatural. Dicionário brasileiro de língua portuguesa.

Por fim, a possessão. Em Belmonte, a palavra possessão servia exclusivamente para falar dos afetos ocasionados pela ação dos eguns na vida das pessoas, a ação dos mortos indiferenciados. São seres que só causam distúrbios no mundo da matéria, pois, desvitalizados, vagam pelo mundo procurando saciar seus desejos. Os eguns se aproximam das pessoas também por meio da conexão com um fluxo que as atravessa: quando não 75

alimenta o vínculo com os orixás e quando a pessoa se desvitaliza, os eguns se aproximam. A pessoa que está sob a influência dos eguns, inicialmente, apresenta sinais de cansaço e perturbações psíquicas ou físicas que podem ser resolvidas com trabalhos de limpeza espiritual. Quando se processa a possessão, a pessoa não tem controle sobre o fluxo maléfico que a atravessa e a possui. Ela se transforma completamente. Os relatos destacam uma súbita mudança de comportamento, em que a pessoa se torna extremamente antissocial e se isola do convívio das outras pessoas, tem atitudes que chocam os demais; pode haver mudanças físicas, como na entonação da voz ou deformação facial; há casos em que as pessoas passam a se comportar como animais, especialmente cães, entre outras coisas. Se as diferentes manifestações no orixá alimentam (abastecem) o ser humano, a possessão por eguns o consome e retira sua força. Os eguns são o polo negativo do sistema de modulação de força do candomblé, são os seres que não detêm essa força e que a sugam. Não há relação possível com egum a não ser a de subjugação da pessoa, quando possuída; ou subjugação do egum, quando escravizado. No mais, muito do fazer no candomblé de Belmonte envolvia também o trabalho de afastamento e expulsão dos eguns por meio dos procedimentos rituais de limpeza e despossessão. Entre os eguns, polo negativo, e os orixás, polo positivo, uma infinidade de seres outros, uns mais “próximos da matéria”, outros mais afastados. Assim, por meio das estratégias e procedimentos de aproximação e desenvolvimento dos orixás e mensageiros e de afastamento dos eguns, se processava o trabalho mais cotidiano de quem era “do santo”, combinando diferentes linhas/doutrinas nas quais se apresentavam esses seres e que são assunto do próximo capítulo.

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Capítulo 3: TRAJETÓRIAS DO SANTO “Caboclo não tem caminho para caminhar. Caminha por cima da folha, debaixo da folha, em todo lugar.” Okê Caboclo!

Durante o período em que realizei a pesquisa de campo em Belmonte, aos poucos fui entendendo que nas casas de candomblé se trabalhava, pelo menos, com duas principais linhas, também chamadas doutrinas: a linha do candomblé e a linha da umbanda. Essas linhas-doutrinas se ramificavam em outras linhas, como a linha da angola e a linha do ketu, no candomblé, e as linhas dos mensageiros, que também se ramificam na linha espiritual e na linha da magia, entre outras, na umbanda. Essas linhas-doutrinas indicavam uma espécie de conjunto de regras, de orientações transmissíveis e voltadas para um determinado fim com as quais se realizavam os trabalhos nas casas. Eram linhas de modulação das manifestações dos orixás. Os trabalhos nas casas poderiam ser realizados pelos pais e mães de santo e pelos mensageiros dos orixás e cada um poderia seguir uma doutrina diferente. Assim, por exemplo, dona Rita Camuinganga, na condução dos trabalhos da sua casa, seguia alguns procedimentos e orientações da doutrina do candomblé aprendidas após ter raspado o santo e se iniciado nessa doutrina; a Iansã de dona Rita, que antes manifestava na umbanda, passou a manifestar diferente na linha da angola. Pode-se dizer que a Iansã de dona Rita passou a manifestar a linha da angola. Todavia, os mensageiros da Iansã prosseguiram vindo e trabalhando na linha da umbanda: Vovó Maria Conga, principal mensageira da sua orixá, ela mesma uma singularização da Iansã, puxava os trabalhos na linha da umbanda na sua casa. Os orixás que se apresentavam conforme a doutrina do candomblé eram chamados de santos raspados, expressão que remete ao principal procedimento ritual de iniciação no candomblé, já explicitado na Introdução. Esses são santos que não vieram prontos, que, quando 77

manifestaram pela primeira vez, vieram deitados. Diz-se, nesses casos, que a pessoa bolou no santo, indicando que o santo veio, mas não teve força para se sustentar. Esses santos precisam desenvolver, e daí procede o ritual de iniciação no candomblé, com o ritual de raspar o santo e fazer o assentamento. Após a iniciação, em que se dá a aprendizagem no estado de erê, esses santos passam a vir de pé. Eles se manifestam apenas para trazer o axé, para trazer sua energia, e para dançar. Eles não falam, apenas soltam o ilá. São a manifestação dos orixás na angola. São os seus mensageiros, que trabalham e que transmitem recados por eles: Erê, Exu, o puxa-folha, o marujo e o preto velho. Destes, apenas Exu pode ser raspado e também tem seu assentamento, os demais são confirmados. A iniciação, portanto, não tem apenas o objetivo de condicionar a pessoa, mas também de condicionar o santo e fazê-lo se apresentar conforme perspectiva específica. Pode ser o caso também de santos de dote, que são os que já vêm prontos, isto é, que vêm de pé, manifestando sua energia e trabalhando, aceitarem vir na doutrina do candomblé. Esse foi o caso, por exemplo, da Iansã de dona Rita Camuinganga. Quando aceitam vir no candomblé, eles passam a manifestar essa doutrina, deixando de trabalhar e vindo apenas para dançar e trazer a sua energia. Para tanto, é preciso que passem pela iniciação no candomblé, momento importante de aprendizagem, mas não necessariamente é preciso realizar o ritual de raspar o santo; pode ser o caso de só ser dado o bori, o ritual que consiste em dar comida à cabeça, e de fazer o assentamento do santo. Nos casos em que não são raspados, contudo, algumas transformações não se processam, como, por exemplo, a definição da qualidade do orixá. Os orixás que se apresentavam conforme a doutrina da umbanda, também chamada linha de caboclo, eram os santos de dote, esses que pegam as pessoas, que vêm prontos, trabalhando, dando passes e realizando consultas. Era o caso também desses santos não 78

pegarem as pessoas, mas serem puxados por outros, esse procedimento correspondendo à iniciação na linha da umbanda. Com o passar do tempo, esses santos que se apresentam na linha da umbanda puxam a linhagem de mensageiros para trabalhar por eles22. Nesses casos, o trabalho nas casas é realizado conforme a doutrina dos mensageiros, os conjuntos de regras e orientações que eles trazem consigo e que vão se somando aos conhecimentos que vão sendo adquiridos com o desenvolvimento por meio do trabalho no santo. As linhas, portanto, também se referiam à linhagem na qual se manifestam os mensageiros, a linhagem puxada pelo orixá, identificando uma espécie de faixa de intensidade na qual os mensageiros se apresentavam. Desta maneira, por exemplo, um filho de Oxóssi tem sua linhagem de mensageiros puxados na faixa de intensidade deste orixá. Do mesmo modo, os mensageiros são eles mesmos linhas de trabalho específicas que se apresentam conforme linhas de trabalho: linha de caboclo, linha de pretos velhos, linha de erês, linha de marujos e linha de exus. Trata-se, no caso, da interseção, ou melhor, manifestação da faixa intensidade Oxóssi na linha de trabalho de preto velho, por exemplo. Além das linhas de trabalho dos mensageiros, a linha espiritual aparecia como uma derivação dentro da linha da umbanda: uma linha puxada por guias protetores que conhecem procedimentos específicos para lidar com eguns. Em algumas casas, essa linha era também chamada linha das almas. Não são todas as pessoas que manifestam guias que trabalham nessa linha; as que manifestam são chamadas médiuns de passagem. Os mensageiros que trabalham nessa linha procedem de modo a dar passagem para eguns com a finalidade ou de encaminhá-los para a “evolução espiritual” ou expulsá-los de pessoas que estão possuídas. Eles fazem isso de duas maneiras, principalmente: por meio das “sessões de mesa” e participando de rituais para “tirar o cão ruim” das pessoas. Os primeiros 22

Conforme afirma Seu Raimundo das Flores, apenas Ogum, por ser “mais próximo da matéria”, é orixá que pode seguir trabalhando na linha da umbanda sem necessariamente puxar mensageiros. Essa proposição ganha maior amplitude a se considerar a trajetória de dona Rita Camuinganga, que, conforme será elucidado mais a frente, teve Ogum puxado como mensageiro da Iansã para trabalhar no lugar dela.

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são rituais inspirados no espiritismo de Allan Kardec; os últimos são rituais que não necessariamente são conduzidos pelos guias protetores, mas apenas realizam um procedimento muito específico de servir de conduto (dar passagem) para expulsar o espírito maléfico de quem está possuído. Outra derivação da linha da umbanda era a linha da magia nas quais alguns mensageiros manifestavam com habilidade específica para fazer (e desfazer) feitiços. Essa linha aparecia também com força, mas foi a linha sobre a qual tive menos informações no período do campo. Também era o caso de haver santos de herança, que, assim como os guias protetores e os que trabalham com o lado da magia, não eram todas as pessoas que os recebiam. Os santos de herança são santos que vieram prontos, vieram feitos. São transmitidos por consanguinidade, ou por convivência e espiritualidade, como também dizem, e trabalham conforme a linha de trabalho na qual se apresentam: caboclos, pretos velhos, exus. A diferença dos santos de herança para os santos de dote é que os primeiros têm uma trajetória que pode ser identificada, pois permanecem na família, seja de sangue, seja de santo. É por isso, inclusive, que não podem ser o santo de cabeça das pessoas, porque já se desenvolveram com outras, ou seja, já se singularizaram. É por isso também que não podem ser raspados, posto que o ritual de raspar o santo cria um vínculo forte do orixá com o iniciado que dá início a um processo de singularização que já ocorreu com esses santos. Os santos de herança são santos que tiveram uma trajetória de singularização entre o não-ser e o ser (conforme Goldman, 2005), o que, cabe observar, não se processa exclusivamente por meio da iniciação no candomblé; quando se trata de virem na linha da umbanda, essa singularização se processa com o passar dos anos e o trabalho no santo. Esses santos, contudo, podem se manifestar na linha do candomblé após passar os primeiros anos de iniciação da pessoa, como foi o caso do Ogum de Ronda que Naiana manifestou, para 80

surpresa dela, de sua genitora e seu pai de santo, durante sua obrigação de sete anos, e que acreditam ser o Ogum de herança de sua avó materna, dona Vivi. Cumpre observar que os santos de herança manifestam e puxam um mensageiro para trabalhar por ele, como no caso de seu Raimundo das Flores, cujo Omulu, que recebeu de herança espiritual, puxou a velha Mariana para trabalhar. Todavia, os caboclos e exus podem vir como herança sem serem puxados por um santo de herança, isto é, sem haver a passagem de um orixá. Esse aspecto reforça a diferença desses seres em relação aos demais mensageiros, diferença, vale observar, que não é essencialista, mas que é de gradação de intensidade, a considerar que os caboclos e exus são linhas de força de manifestação dos orixás. As interdições com relação ao procedimento ritual de raspar o santo serviam tanto para orixás quanto para mensageiros: santo de herança não pode ser raspado. Mas os mensageiros podem ser os principais guias de trabalho da pessoa. *

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O trabalho na linha da umbanda era também chamado o “candomblé que se fazia antigamente”. Nessa linha, as pessoas iniciam a vida no santo (que veio de dote ou foi puxado) atendendo a parentes, vizinhos e amigos e zelando do santo, realizando as festas e obrigações necessárias, em geral, anuais, para comemorar o dia em que o santo veio pela primeira vez. O desenvolvimento no santo com o fortalecimento do vínculo pessoamensageiros-orixá se dá com o passar do tempo, com a vivência e o trabalho no santo. A aprendizagem também se dá nesse processo de desenvolvimento no santo. No início, os orixás e mensageiros vêm, tomam as pessoas e começam a trabalhar no santo e a realizar os rituais. Com o passar do tempo e o fortalecimento da relação pessoa-mensageiros-orixá, a pessoa também vai adquirindo um conhecimento que vai sendo deixado na memória, além de desenvolver conhecimentos próprios que podem ser obtidos frequentando os toques em outras casas, nas relações com outras pessoas ou em forma de revelações de dotes, heranças de 81

berço. Ainda que não esteja necessariamente inserida numa comunidade de santo específica, tudo se passa como o que Cossard descreveu como uma aprendizagem que não se dá de forma sistemática, mas algo que vem com o tempo, que se entranha lentamente na pessoa e dá corpo a um conhecimento ritual, uma doutrina: “através de um hábito lentamente adquirido, o saber incrusta-se no mais profundo do seu ser” (Cossard, 2004: 145/146). Esse saber, no entanto, não se processa apenas na direção do mensageiro que transmite o ensino para o aparelho; o mensageiro também adquire conhecimentos com o passar do tempo e o estreitamento do vínculo com a pessoa por meio do trabalho no santo. No início da década de 1960, as pessoas que tinham “casas abertas”, ou seja, que realizavam um culto mais coletivo, reunindo certo número de frequentadores fixos nas suas casas, na cidade e arredores, eram: dona Chiquinha, no bairro da Biela; seu Umbilino, na comunidade da Sepa; Gildásio, na avenida Rio-Mar, caminho para a praia; Calango Verde, no bairro da Ponta de Areia; Senhorazinha, no distrito de Santa Maria Eterna; dona Penha e Raimundo das Flores, no bairro do Centro. Todos eles trabalhavam na linha da umbanda e pelo menos seu Raimundo das Flores trabalhava também na linha espiritual. Realizavam toques abertos, atendendo quem chegasse na casa, e festas públicas. Alguns realizavam os toques com tambores, outros, apenas com palmas e tabuinhas, instrumento raramente encontrado nos candomblés no período em que realizei a pesquisa23. Havia também um número de pessoas que zelavam dos seus santos em casa, sem atender a clientes, apenas cuidando das obrigações. Alguns eram importantes rezadores, como Isaías Profeta, e também havia os que trabalhavam mais para o lado da magia, como seu Cristino e dona Vivi, genitores de dona Zezé e dona Otília. Das pessoas que tinham casa 23

Vi o instrumento sendo utilizado apenas na casa de Cosme Talassidã e na casa de dona Otília nas respectivas festas das pretas-velhas vovó Anastácia e vovó Maria Cambinda, observando o gosto das mesmas em fazer o “candomblé como era antigamente”.

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aberta na década de 1960, apenas seu Raimundo das Flores estava vivo no período da pesquisa de campo, e a filha de seu Umbelino, Bené, deu continuidade ao trabalho do pai na comunidade da Sepa. Além deles, o Caboclo Juremeira, que na época manifestava em dona Vivi, passou de herança para dona Otília e era o principal mensageiro de sua casa, tendo inclusive filhos iniciados na umbanda por ele. Em meados da década de 1970, mais precisamente em 1976, passou-se a trabalhar também com a doutrina do candomblé, ou dos santos raspados. Nesse ano, o pai de santo Valmir Matalandê raspou o santo de dona Rita Camuinganga e dona Erenita. Ambas já tinham santos de dote e dona Rita já era na época importante mãe de santo da cidade. Após algumas ponderações, ela se submeteu ao ritual e a partir daí originou-se uma das linhagens – a primeira, de acordo com as informações no âmbito desta pesquisa – da doutrina do candomblé angola em Belmonte. Valmir Matalandê, nasceu em Belmonte em 1945 e foi ainda jovem para o Rio de Janeiro. Na época, já tinha dado caboclo, mas foi no Rio de Janeiro que teve contato com a linha da angola e foi iniciado no axé Bate-Folha Cassarungongo em 1961, numa casa na cidade de São Gonçalo. Por ter parentes em Belmonte, ele retornava periodicamente para a cidade, onde participava das festas em algumas casas de santo. Foi numa dessas visitas que dona Rita conheceu o Oxóssi de Matalandê e, posteriormente, Matalandê, que lhe apresentou a doutrina dos santos raspados24. Iniciou oito filhos de santo oriundos de Belmonte: dona Rita Camuinganga e dona Erenita foram iniciadas no ano de 1976, mas não no mesmo barco; a filha de Erenita, Adilson, que é alabé25 do candomblé de dona Maria, Cajimundo, já falecido, e Muzalambê foram 24

As informações sobre a vida dos falecidos pais de santo Valmir Matalandê e Muzalambê foram fornecidas por dona Rita Camuinganga, Cosme Talassidã, Kitala Zambelê e Adílson em entrevistas e conversas realizadas no período de campo. 25

Segundo Adilson, o alabé é o “mestre de sala” do candomblé: é ele quem anima o ritual, quem puxa as chulas e quem entende dos atabaques. Para ser alabé tem que saber muito fundamento.

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iniciados em 1979. Muzalambê passou a viver com Matalandê no Rio de Janeiro, tornando-se com o passar do tempo pai pequeno da sua casa. Na década de 1980, Matalandê iniciou Kitala Zambelê, que também ficou residindo com ele no Rio de Janeiro. Por ocasião do falecimento de Matalandê, em 1991, foi Muzalambê quem se tornou seu sucessor no abassá em São Gonçalo e, após os procedimentos rituais necessários, conhecidos por tirar a mão de nvumbi, a mão de morto, ele virou pai de santo de dona Rita e dona Erenita. Em 1995, Muzalambê raspou o santo de Cosme Talassidã, que já havia dado o bori para Oxumaré em 1988 com Matalandê, quando passou a fazer parte da mesma roça de santo de dona Rita. A partir de então, Cosme, que antes trabalhava apenas na linha da umbanda e na linha espiritual, passou a trabalhar também na linha do candomblé. Muzalambê faleceu em 2010, e foi Kitala Zambelê do Oxóssi quem se tornou pai de santo de dona Rita Camuinganga, de dona Erenita e de Cosme Talassidã. Kitala, na época da pesquisa, era pai pequeno do Abassá Kajá Mogungoale D'lê, localizado também na cidade de São Gonçalo, no bairro do Rocha, Rio de Janeiro. Em 2011, Kitala deu a obrigação de vinte e um e vinte e cinco anos de dona Rita e dona Erenita e de quatorze anos de Cosme. Como Kitala realizou suas obrigações de ano no preceito do candomblé ketu, dona Rita, dona Erenita e Cosme tiveram que deitar nas águas do ketu, o que significa dizer que tiveram que aprender os preceitos do ketu, quando tornaram-se filhos de santo de Kitala. Tanto Cosme quanto dona Rita informaram que os preceitos do ketu só são usados porque necessários, como quando Kitala realiza um trabalho ou comparece a alguma festa na casa deles e eles têm que tocar no ketu. A santa de dona Rita e o Oxóssi de Cosme também aprenderam a dançar diferente, no toque do ketu, com aguidavi, as varetas utilizadas para tocar os atabaques. Também no ano de 2011, dona Otília entrou na doutrina do ketu, após dar as obrigações de ano com Jaques, pai de santo de uma casa de candomblé ketu na cidade de 84

Itagimirim. Vinte e dois anos antes, porém, ela havia ingressado na doutrina da angola. Mas, como explicou sua filha de sangue e mãe pequena da casa, Naiana, dona Otília não carregava nome de roça, mas o nome do Caboclo Juremeira, que recebeu de herança de sua genitora, dona Vivi. Quando estava para vir embora de Belmonte, em meados de agosto de 2011, anunciaram a realização de giras de exu em três casas de candomblé: na casa de dona Otília; na casa de Vanderson, filho de santo de dona Otília, que trabalhava ainda com a casa fechada, isto é, realizando toques só com a presença de parentes e convidados; e na casa de Ujuraí. As giras de exu eram uma novidade nessas casas e, ao menos na casa de dona Otília, ocorreria porque estava sendo puxada uma linhagem forte de exu na casa. *

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Binon Cossard, em sua monografia sobre o candomblé de rito angola de João da Gomeia (1970), observa um movimento algo parecido com o que me foi relatado sobre os candomblés de Belmonte a partir da década de 1970: no período em que viveu no terreiro desse pai de santo, Binon Cossard observou que outros pais e mães de santo da região que trabalhavam em centros de umbanda e “macumba” apareciam na Gomeia com o objetivo de ser iniciados no rito angola. Os motivos que os levavam para a Gomeia eram muitos, mas ela relata que a busca por conhecimento era fator preponderante26. Conforme observou, durante o processo, a iniciação e o fato de terem que ingressar no

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Binon Cossard oferece um caminho interessante para pensarmos sobre as relações na época estabelecidas entre pais e mães de santo do sudeste com os pais e mães de santo da Bahia e no continente africano. Ela observa que são justamente as relações em direção à África que orientam essas pessoas: desde que cessou o tráfico de escravos entre a África e o Brasil, observa a autora, os africanos e seus descendentes libertos se esforçaram por manter os vínculos que os unem à pátria mãe, alguns retornando de modo definitivo, outros realizando viagens a fim de restabelecer contato e conhecer os costumes ancestrais (1970: 291). Assim, ela nos oferece outra via para se pensar sobre esse processo em termos inventivos, considerando que a despeito de um empreendimento colonial-escravagista com sistemáticas tentativas de destruição das relações de parentesco, de pertencimento, da organização social e cosmológica das populações africanas, essas pessoas das mais diferentes formas sempre se reportaram à África para (re)construir seus territórios existenciais.

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quadro hierárquico da Gomeia não era propriamente um problema, mas o fato de terem que abandonar os caboclos com os quais trabalhavam, sim. Ela avaliou que os preceitos do candomblé angola, diferentemente do rito nagô, apareciam como uma alternativa para esses pais de santo, pois permitiam que os caboclos continuassem vindo trabalhar. Com o passar do tempo, Binon Cossard notava:

“Na medida em que tomam posse da antiguidade e que aprofundam seus conhecimentos, elas reintroduzem em seus próprios centros as cantigas, os ritmos, as técnicas rituais – bori, sacudimento, sacrifícios – que aprenderam no candomblé. Elas encaminham ao seu pai de santo os casos mais difíceis de serem resolvidos e lhe demandam a iniciação dos seus próprios filhos de santo, enquanto desempenham elas mesmas o papel de mãe pequena.” (1970: 289)

Em alguns casos, Binon Cossard observou que pouco a pouco os centros de umbanda dos pais que haviam passado pelo ritual de iniciação se transformavam em “verdadeiros candomblés”. Em outros casos, mudanças eram efetuadas, mas não de modo a “salvar a totalidade da tradição africana, (…) apenas a conservar uma parte de seu tesouro cultural” (idem: 289). A observação de Binon Cossard é interessante, independente da maior ênfase que dá aos aspectos que sinalizam uma maior ou menor preservação do “patrimônio cultural africano”, pois a autora sinaliza que tudo depende de como cada pai e mãe de santo incorpora os conhecimentos adquiridos e opera transformações em suas casas. Esta observação restitui a autonomia dos pais e mães de santo no âmbito de suas casas, autonomia que pode ser compreendida nos termos do que Barbosa Neto (2012) definiu como sendo o motor politeísta das religiões de matriz africana, entendendo o politeísmo para além de sua referência mais usual (a existência de uma pluralidade de deuses e espíritos):

“Digamos que o politeísmo, nesse caso, concerne tanto à diversidade desses últimos [os espíritos] quanto à multiplicidade interna a cada um deles e também, de um modo mais amplo, a todas as formas existentes, dentre as quais, por exemplo, a casa [de religião] e o corpo de cada pessoa ligada a ela. Todas essas formas são, a seu modo, politeístas.” (Barbosa Neto, 2012: 2)

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Desta perspectiva, Barbosa Neto propõe que o “estilo ritual” de cada casa é o resultado de um conjunto complexo de cruzamentos em que tomam parte a história ritual dos próprios pais e mães de santo, a vida pessoal e social de cada um e a agência dos seres sobrenaturais, e procede então à etnografia de três casas de religião afro-brasileira na cidade de Pelotas, considerando assim que “a denominação litúrgica das casas não necessariamente permite, por si só, qualquer operação de dedução do sistema ritual e cosmológico das mesmas” (2012: 16). Da mesma forma, não se deduz uma casa de outra apenas pelo fato de ambas compartilharem um mesmo etnônimo ou “categoria etnolitúrgica”. Dos Anjos (2006), em sua etnografia sobre o processo de remoção da Vila Mirim, localizada em Porto Alegre, ao apresentar o universo religioso dos terreiros da Vila que trabalham na linha cruzada, também opera com a noção de cruzamento para analisar o trabalho em três linhas nos terreiros: o Batuque ou Nação (culto aos orixás), a Umbanda ou linha dos caboclos, e a Gira, linha dos exus. Cada uma dessas linhas, observa, é trabalhada de modo independente, sendo os rituais e cerimônias realizados em espaços e tempos diferentes. Conforme analisa, a encruzilhada, o cruzamento de ruas, de caminhos, é uma percepção espaço-temporal a partir da qual a pessoa de religião organiza o agenciamento de sua subjetividade: ao perceber os empreendimentos da vida como caminhos, ela faz da vida um território. Assim, propõe o autor, a encruzilhada é onde as diferenças se cruzam sem se fundirem; na encruzilhada as diferenças subsistem. Nessa perspectiva, complementa, as diferenças são vivenciadas como gradientes de intensidade e não como essencialidades. Contra uma lógica da assimilação, ou uma lógica do sincretismo, uma lógica da simultaneidade e da organização de forças, que envolve a realização de cortes de fluxo e o estabelecimento de conexões. É nessa orientação que procedo à descrição de um recorte da trajetória de duas mães e dois pais de santo de Belmonte: seu Raimundo das Flores, dona Rita Camuinganga, Cosme Talassidã e dona Otília. O objetivo é apresentar como estas pessoas, 87

que são elas mesmas cruzamentos atravessados por fluxos de força singulares, foram se “compondo” e “compondo” suas casas de santo, desenvolvendo estratégias e procedimentos de infiltração e organização de forças, se constituindo em relação com outros fluxos de força igualmente vivos e desejantes que, por vezes, apontavam os limites para a experimentação humana.

3.1 SEU RAIMUNDO DAS FLORES – ILÊ DE OBALUAIÊ

Na manhã do dia primeiro de agosto, visitei seu Raimundo das Flores, atendendo ao recado trazido pelo filho de seu Celso, Dió, na noite anterior. Quando cheguei, seu Raimundo disse que acabara de arriar as obrigações de Tempo e que dali até o dia nove faria a novena para São Lourenço. Lembrou também que naquela noite começaria a dar os tabuleiros de Obaluaiê e explicou que essa é uma tradição da velha Maria Conga: dar o tabuleiro todas as segundas-feiras de agosto. O tabuleiro começaria às 19h e eu e seu Celso estávamos convidados. Cheguei à casa de seu Raimundo um pouco antes do horário marcado para o tabuleiro, por volta das 18:30h. Fui na companhia de seu Celso do Gandhy que, contou, há muito tempo não prestigiava o candomblé naquela casa. Seu Raimundo estava “concentrado” no quarto de santo e foi Rosinha quem nos atendeu. Ainda não havia chegado ninguém. Fiquei conversando com seu Celso e aos poucos foram chegando as mulheres que frequentam a casa: dona Diva, dona Raimunda, que também costuma ir nas festas na casa de dona Rita, e outras. Todas ficavam surpresas de encontrar seu Celso e iam cumprimentá-lo, algumas, cabe observar, costumavam sair com ele no Netos de Gandhy. Val, sobrinho de seu Raimundo, e Fávio Ursulano chegaram juntos já quase na hora marcada para iniciar o tabuleiro. Eles se dirigiram direto ao quarto de santo e depois 88

regressaram trazendo uma pesada cadeira de madeira. A velha Mariana veio logo atrás, andando de modo lento e muito curvada, trazendo um terço numa das mãos e apoiando-se na bengala. O tabuleiro começou pontualmente às 19h. A velha Mariana sentou-se com a ajuda de Val, deu boa noite a todos e disse que começaria com as rezas dela para depois fazer o ingorossi de misericórdia. Com o terço nas mãos, iniciou a reza: puxava um pai-nosso e uma ave-maria para cada conta menor, incluindo uma salve–rainha, e “entregando os mistérios” nas contas maiores. Foram cinco os mistérios: primeiro a Jesus, depois a Maria do Carmo, em seguida, São Roque e São Lázaro, São Sebastião e, por último, o Caboclo 7 Flechas e o Caboclo Juremeira. Depois de rezar o terço, a velha Mariana pediu que rezássemos a prece de Cáritas 27. O caboclo de dona Diva e o caboclo de Rosinha manifestaram logo assim que terminamos a oração e ajoelharam na frente da velha Mariana, que fez uma prece para os guias protetores e solicitou que rezássemos mais uma vez o pai-nosso. Finda a oração, ela falou “Bendito São Roque”, e os demais responderam em coro: “Guiai Maria, guiai Jesus” e prosseguiu: Velha Mariana: _ Bendito São Roque, Coro: _ Guiai Maria, guiai Jesus. Velha Mariana: _ Bendito São Roque. Coro: _ Guiai o sol e a luz. Velha Mariana: _ Bendito São Roque, Coro: _ Guiai os irmãos de luz. Depois disso, pediu para os guias darem passe nos presentes. Eles se posicionaram 27

“Deus nosso Pai, que Sois todo poder e bondade, dai força àqueles que passam pela provação, dai luz àqueles que procuram a verdade, e ponde no coração do homem a compaixão e a caridade. Deus, dai ao viajante a estrela Guia, ao aflito a consolação, ao doente o repouso. Pai, dai ao culpado o arrependimento, ao espírito, a verdade, à criança o guia, ao órfão, o pai. Que a vossa bondade se estenda sobre tudo que criaste. Piedade, Senhor, para aqueles que não Vos conhecem, e esperança para aqueles que sofrem. Que a Vossa bondade permita aos espíritos consoladores derramarem por toda a parte a paz, a esperança e a fé. Deus, um raio, uma faísca do Vosso divino amor pode abrasar a Terra, deixai-nos beber na fonte dessa bondade fecunda e infinita, e todas as lagrimas secarão, todas as dores acalmar-se-ão. Um só coração, um só pensamento subirá até Vós, como um grito de reconhecimento e de amor. Como Moisés sobre a montanha, nós Vos esperamos com os braços abertos. Oh! bondade, Oh! Poder, Oh! beleza, Oh! perfeição, queremos de alguma sorte merecer Vossa misericórdia. Deus, Dai-nos a força no progresso de subir até Vós, Dai-nos a caridade pura, Dai-nos a fé e a razão, Dai-nos a simplicidade que fará de nossas almas O espelho onde refletirá um dia a Vossa Santíssima imagem.”

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próximo à porta de entrada da casa, de costas para a mesma. Formamos duas filas: uns foram receber o passe do caboclo de dona Diva e outros do caboclo de Rosinha. Val providenciou as folhagens e eles procediam de modo a passar as folhas pelo corpo da pessoa observando uma ordem estrita: primeiro, a pessoa de frente, passavam as folhas com um movimento vigoroso começando pelos ombros e braços, passando pelo tronco, pernas e pés; em seguida, pediam para virar de costas e passavam as folhas observando o mesmo movimento de cima para baixo e sempre empurrando em direção ao chão e à porta. Davam fortes batidas com as folhas no chão. Em algumas pessoas se demoravam um pouco mais. Por fim, pediam para a pessoa se virar novamente de frente e lhe diziam algo. O caboclo de dona Diva, depois do passe, me disse: “Deus lhe pague a caridade. Que as 7 linhas das águas te protejam e que Oxóssi abra teus caminhos”. Depois de receber o passe, as pessoas retornavam aos respectivos lugares. Quando todos haviam recebido o passe, a velha Mariana disse que os guias já haviam prestado a caridade e que podiam se retirar e anunciou que iria também, pois tinha que deixar Maria Conga fazer o ingorossi dela. Os caboclos de dona Diva e Rosinha passaram rapidamente rondando o salão e cumprimentando a todos; o caboclo de dona Diva foi até a porta da frente, enquanto o de Rosinha foi em direção a velha Mariana, diante da qual se ajoelhou, depois levantou-se e foi para a frente do altar dos santos; enquanto o caboclo de dona Diva regressava e cumprimentava a velha Mariana, o corpo de Rosinha fez um brusco movimento para trás. Rosinha já estava voltando, quando o caboclo de dona Diva girou rapidamente no centro do salão, um dos dedos em riste apontado para o chão e dando um grito: “ÊÊÊÊÊÊÊI!”. Nesse momento, senti um arrepio fortíssimo e seu Celso comentou que o caboclo de dona Diva era muito forte. Quando o caboclo parou de girar, o corpo de dona Diva fez três movimentos fortes para trás. Foi amparada por Val, que a conduziu até um banco próximo e a ajudou a se sentar. A velha Mariana se despediu: “Fiquem com Jesus e a Virgem Maria e que São Roque 90

não deixe faltar nada na vida de vocês”. Permaneceu sentada, fechou os olhos e levou uma das mãos até a testa, e assim permaneceu, quieta. Não percebi nenhum sinal de que a velha Mariana tinha ido embora quando a velha Maria Conga chegou saudando a todos, dando boa noite aos filhos. Se a velha Mariana mantinha o tom baixo da voz e certa sisudez no modo como conduzia o ritual, a velha Maria Conga tinha sorriso largo e gostava de conversar. Assim que chegou, tratou de pedir para Val buscar seu cachimbo, observando que “a outra não gosta”, sorrindo marotamente. Quando Val voltou, a velha Maria Conga disse: “esse aí gosta de contar o que eu faço. Já falei que cada um tem os seus mistérios!”. Val sorriu e falou: “que isso, minha vó!”. A velha pediu: “coloque o fumo aqui no meu cachimbo!”. Enquanto Val atendia a solicitação, ela se virou para seu Celso e disse: “Deus abençoa, meu filho. Há quanto tempo! O senhor tem passado bem?”. Seu Celso se levantou e, andando em direção à velha, disse: “A bênção, minha velha. Está tudo bem, graças a Deus!”. Chegando nela, curvou-se para beijar-lhe a mão e teve a mão beijada. Ela disse: “Que meu pai Oxóssi lhe abençoe!” e perguntou: “Gostou da rezalhada, meu filho?” e não esperou que seu Celso respondesse, soltando logo uma risada. Também era muito diferente a postura corporal de cada uma: a velha Mariana aparentava uma fragilidade corporal grande que se expressava na postura curvada e encolhida, movimentos contidos, e no andar extremamente vagaroso; já a velha Maria Conga sentava-se mais espalhada na cadeira e tinha um andar um pouco mais ágil, apesar de caminhar apoiando as mãos nas coxas e aparentando ser bem forte. Val entregou o cachimbo aceso para a velha Maria Conga, que cachimbou um pouco e disse que antes de começar a obrigação ela queria que fôssemos todos saudar a bandeira de Tempo, pois era o Tempo de Omulu e Obaluaiê. Seguimos todos para o quintal nos fundos da casa e ficamos esperando. A velha Maria Conga caminhou até o pé da bandeira e depois gritou 91

para que Val fosse para lá, dizendo: “cê tá esperando o quê, meu filho?”. Val foi e fez o sinal para formarmos uma fila logo atrás e um por um nos dirigimos até o pé da bandeira e fizemos a saudação. Na minha vez, a velha disse que era para bater paô para Tempo. Imitei os demais: com as mãos estendidas em direção ao pé da bandeira, bati palmas de modo ritmado: três palmas e um pequeno intervalo; três palmas e um pequeno intervalo; três palmas e mais um pequeno intervalo. Ergui-me. Enquanto eu batia paô, a velha Maria Conga dizia que era para pedir misericórdia a Tempo. Antes de me retirar, ela disse que era para regressar na casa durante a semana para falar com o filho dela. Ia deixar na cabeça dele um trabalho para mim. Era para me ajudar com os meus trabalhos. Após todos termos saudado Tempo, a velha disse que era para regressarmos para o salão e que os médiuns colocassem a saia, porque eles iam fazer um ingorossi de misericórdia e começar o tabuleiro. Retornamos e nos sentamos. À medida que os médiuns iam chegando, iam pedindo a bênção para a velha Maria Conga e sentavam-se no chão de modo a formar uma roda. A velha começou o ingorossi puxando pontos para Omulu, Nanã, Obaluaiê, e acompanhávamos cantando e batendo palmas. Em seguida, cantou para Ogum, e nesse momento todos os médiuns se levantaram e continuaram cantando, batendo palmas e dançando em roda, e foi então que Ogum pegou dona Diva. O Ogum de dona Diva cumprimentou a vovó e puxou uma chula: “donde vem Ogum Marinho/ vem das ondas do mar/ trago a fé de Deus na frente/ ô vence, ô vencerá”. Puxou outras chulas e, enquanto dançava e cantava, ia conversando ou apenas cumprimentando com um abraço os presentes. Em certo momento, ele parou em minha frente, ficou por um momento calado e depois falou: “Se cuida. Vá devagar nas coisas”, e me deu um abraço. Ogum brincou um pouco mais no salão, como é o modo de dizer em Belmonte, até o momento em que a velha Maria Conga se levantou da cadeira e disse que era hora de dar o 92

tabuleiro. A velha pediu para Val e Rosinha trazerem o tabuleiro e colocá-lo no meio da roda, e dançando pelo salão foi cantando: “bambaraci, bambaraci, bambaraci na senzala mameto”. Depois puxou: “botei meu joelho em terra/ para pedir pelos filhos de Deus/ Baluaiê tenha paciência/ socorrei pelo amor de Deus”. Nesse momento, Obaluaiê pegou dona Diva. Ele veio deitado, com as mãos fechadas, a perna encolhida, tremendo e emitindo um som gutural. Era assustador. As médiuns pegaram um tecido branco rendado para cobri-lo. A velha Maria pegou um pouco da flor do velho e jogou sobre Obaluaiê, que estremeceu e fez um barulho mais forte. A velha Maria Conga prosseguiu jogando a flor em direção a todos os presentes e se dirigiu até a porta de entrada. Abriram a porta e ela jogou a flor do velho para o lado de fora. Enquanto ia jogando a flor do velho, puxava chula e dançava pelo salão: “que flor bonita a do meu babá/ aê, aê, aê, Obaluaiê”. Depois, a velha Maria cantou para Obaluaiê subir: “Omulu já veio/ Omulu já vai/ deixar seus filhos em paz”. Obaluaiê subiu e vó Maria pegou um copo d'água, dizendo que era hora de cantar para a corrente das águas, e fez um círculo com a água no meio de onde os médiuns dançavam em roda sobre o qual depois jogou alfazema. Nesse momento, cantou para Oxum, Iemanjá e Nanã, mas nenhum dos orixás manifestou. Depois da corrente das águas, cantou para Oxalá e, em seguida, distribuiu a flor do velho para os que estavam presentes. Pediu às médiuns que fossem recolhendo as flores que jogou no terreiro e puxou: “apanha folha, por folha, cata mirô.” O tabuleiro acabou às 21h. Vó Maria avisou que toda segundafeira do mês terá a flor do velho, porque a casa é o Ilê de Obaluaiê. Ao me despedir, ela avisou que era para eu voltar na quinta-feira para ver as coisas do meu trabalho. *

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Conheci seu Raimundo das Flores por intermédio de seu Celso do Gandhy já em maio de 2011. Até então, ele estava passando um período na casa que possui em Canavieiras, 93

município vizinho a Belmonte, distante a aproximadamente 1 hora e meia de barco. Costuma passar metade do ano nessa cidade, o outro período residindo em Belmonte. Seu Raimundo das Flores é natural de Belmonte. Reside sozinho, mas, na cidade, tem a companhia constante de Rosinha, que cuida dos afazeres em sua casa: cozinha e o ajuda também nas tarefas do santo. Ele conta que se casou muito novo e teve dois filhos com a esposa, de quem se separou. Um dos filhos reside no Rio de Janeiro; a mais nova, no município de Itabuna, na Bahia. Seu Raimundo iniciou a vida no santo já casado e após ter tido o primeiro filho. A vida no santo, analisa, foi um dos fatores que influenciaram a separação, pois a esposa não aceitava os compromissos que ele tinha. Conta que recebeu a velha Mariana, chefe espiritual da sua casa, de herança espiritual da rezadeira Anaíza, logo após seu falecimento. Ele teve muitos problemas de saúde durante a infância ao ponto de considerarem que não sobreviveria. Uma amiga de sua mãe aconselhou-a na ocasião a levá-lo para ser tratado por dona Anaíza. Seu Raimundo conta que era muito criança, e a única recordação que tem era de dormir nos bancos de madeira acompanhando a mãe durante o que – ele imagina – eram os trabalhos espirituais na casa de dona Anaíza. Durante a adolescência e juventude, não frequentou os toques ou festas de candomblé, tampouco manteve contato com dona Anaíza. Sua família era muito católica e ele seguiu a religião. Contudo, após o falecimento de dona Anaíza, com a idade de dezenove anos seu Raimundo recebeu a velha Mariana. Conta que uma semana antes da velha pegá-lo, ele começou a sentir fortes dores no corpo: dores agudas nas articulações e muito cansaço, ao ponto de andar se arrastando. Começou a ter também muitos sonhos e, em alguns, recorda que via uma senhora que considera ser dona Anaíza. No dia em que a velha Mariana veio, ele estava na porta de casa, tinha acabado de retornar do trabalho por conta das dores que sentia. O primeiro que o pegou, disse, foi Obaluaiê e, em seguida, veio a velha Mariana. Foi em sonho que a velha se apresentou: contou que antes de trabalhar na parte espiritual, fora 94

sacerdote da igreja, por isso, ela mandou construir a Capela de São Roque localizada ao lado da casa de seu Raimundo. A Capela foi construída há mais de trinta anos. Na época, seu Raimundo estava se separando da esposa e ela exigiu o terreno. A velha Mariana disse que se ele entregasse a causa para São Roque, ele ficaria com o terreno e assim foi feito. De posse do terreno, a velha falou que seu Raimundo teria que erguer a capela para o santo. Também em função do vínculo da velha com o santo, seu Raimundo teve que começar a dar a Penitência de São Roque anualmente no dia 16 de agosto: a Penitência consiste em sair em procissão com a imagem de São Roque, partindo da capela em direção à avenida Rio-Mar e retornando pela avenida Treze de Maio. Com a chegada na capela, é feito o ingorossi de misericórdia, que obedece à sequência ritual do xirê, com a particularidade de que iniciam cantando para Ogum (não para Exu) e que não realizam toques de tambor; em seguida, distribuem o caruru e, por fim, cantam para Obaluaiê e distribuem a flor do velho e pães para os presentes. Conforme seu Raimundo contou, a velha Mariana faz isso para poder desenvolver o lado espiritual da casa. Na Penitência de São Roque de 2011, além das pessoas que estavam frequentando a casa de seu Raimundo – Rosinha, o sobrinho de seu Raimundo, Val, dona Diva, dona Raimunda e Flávio Ursulano – também estiveram presentes dona Zezé; dona Rita Camuinganga com o pessoal da sua casa: Josi, Madá e as filhas e Biguinha; Ujuraí com o filho, a esposa e os pais: Bráz e Ana. Dona Rita explicou que o povo do candomblé costuma ir na procissão por ser uma tradição pelo lado das almas. No ano de 2011, contudo, houve uma surpresa: além do povo do candomblé, o frei de Belmonte participou da Penitência e, ao chegar na capela, pediu a seu Raimundo permissão para realizar a leitura de um trecho da bíblia e, em seguida, pôs-se a comentá-la. Conforme seu Raimundo observou posteriormente, esta foi a primeira vez que um sacerdote da igreja participou da Penitência, e ele estava muito satisfeito com o acontecimento que significava a força da obrigação que dera. 95

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Com o passar do tempo da vida no santo, seu Raimundo desenvolveu outros guias: a velha Maria Conga, o Caboclo 7 Flechas, o marinheiro Elias e a cigana egípcia Marrakasha. Todos estes trabalham na linha da umbanda. Mas, explicou, a velha Mariana cuida do trabalho na parte espiritual e a velha Maria Conga cuida do trabalho na parte da umbanda. Apesar de Obaluaiê ter passado primeiro na cabeça de seu Raimundo, é Oxóssi que é o dono da sua cabeça. Obaluaiê passou primeiro, explicou seu Raimundo, por conta da herança que recebeu de dona Anaíza, que era do Obaluaiê. Mas, observou, santo de herança não pode ser santo de cabeça: assim, o dono de sua cabeça, mesmo manifestando depois, é Oxóssi, o segundo santo é Obaluaiê e o terceiro santo é Oxum. Oxóssi foi quem puxou o Caboclo 7 Flechas, a preta velha Maria Conga e o marinheiro. A cigana Marrakasha veio numa sessão de mesa e a velha Mariana deixou-a ficar. Foi a cigana quem salvou a vida de uma sobrinha de seu Raimundo: ela avisou sobre o nascimento prematuro da menina e disse que trabalharia para que não ocorresse nada de mal, mas disse que a menina teria que se chamar Iguajara. Assim foi feito. Apesar de seu Raimundo ter erê, ele manifestou poucas vezes. Já exu, ele também tem, mas não pode desenvolver por conta da velha Mariana que trabalha na linha espiritual. Conforme explicou, a velha Mariana não deixa puxar para esse lado: “Ela não deixa nem nunca deixou desenvolver exu e se vem alguém que precisa desenvolver, ela manda para outra casa.” Apesar disso, seu Raimundo observa que por conta da velha Maria Conga, que vem na linha da umbanda, ela teve que deixar assentar Exu na casa. É também por conta da velha Maria Conga que ele tem a bandeira de Tempo, mas, observa, a velha Mariana nunca deixou a velha Maria Conga bater tambor, nem no dia das obrigações dela: “a velha Mariana deixa fazer o ingorossi, mas é só batendo palmas.” Quando está em Belmonte, seu Raimundo das Flores dá os toques às segundas e 96

quartas-feiras, às 19h. Duas vezes ao mês, ele faz a sessão de mesa que é o trabalho na linha espiritual: vovó Mariana vem e conduz os trabalhos. Os médiuns de passagem sentam-se na mesa e vovó Mariana faz as preces, por meio de orações, da concentração do corpo de médiuns e de outras preparações rituais, e os “espíritos errantes”, “espíritos dos mortos” são “atraídos” para se manifestarem nos médiuns e serem “encaminhados”.

3.2 DONA RITA CAMUINGANGA – ABASSÁ DA IANSÃ

A casa de dona Rita Camuinganga está localizada no bairro da Ponta de Areia; dona Rita trabalha com a Vovó Maria Conga, que normalmente atende os clientes e zela dos filhos. Vovó Maria Conga não conversava muito sobre as histórias do tempo em que era matéria, preferindo saber o que se passava na vida dos que iam se consultar. Das poucas informações que me contou, disse que fora uma mulher “pra frente”: que tinha vindo da África e fora vendedora de acarajé na Bahia, que é como chamam a capital Salvador. Contou também que, assim como seu aparelho, ela não teve sorte no amor, o que atribui ao fato de serem filhas de Iansã: “toda filha de Iansã é assim, não tem sorte no amor”. As conversas sobre seu passado surgiam inesperadamente, por ocasião de algum acontecimento, não adiantava forçar: como no dia em que seu Pedra Azul, um caboclo que raramente vem em terra, desceu; logo em seguida, vovó veio e contou aos presentes que eles trabalharam juntos, e que ele fora um grande feiticeiro no passado. De resto, o bom mesmo era chegar e contar o que se passava na nossa vida, na vida dos amigos e parentes. Vovó gostava de ouvir histórias e de aconselhar as pessoas. Geralmente, ela vinha segunda e quarta-feira, assim que o sol baixava, por volta das 18:30h, 19h. Sempre havia alguém para ir se consultar ou para ser rezado por ela. Depois de um tempo, também passei a me consultar quase semanalmente: ia com a filha mais nova de dona Rita, Luana, que levava sua filha 97

caçula, Izabelly. Nas consultas, Vovó sempre dizia que eu devia me cuidar, pois eu gostava de festas e de bebida e isso atraía “más companhias”. Ela também observava que tinha muito mau olhado em cima de mim e que era para observar minhas amizades. Com os galhos de arruda, no quarto de santo, batia as folhas na minha cabeça, nos meus braços, pernas e pés e depois mandava me virar de costas e fazia o mesmo procedimento da cabeça aos pés, murmurando uma reza em voz baixa. Quando tornava a me virar, ela falava para acender uma vela para o anjo da guarda próximo à fonte da Oxum e que rezasse pedindo proteção e que meus trabalhos fossem concretizados. Era quase toda semana o mesmo procedimento. Vez ou outra, Vovó também dizia que eu devia evitar ir à praia e ao rio sozinha, pois as águas poderiam me levar. Do mesmo modo, aconselhava-me a frequentar as outras casas de candomblé acompanhada: que fosse com alguém da casa de dona Rita ou com alguém da família de seu Celso do Gandhy, o próprio seu Celso ou suas filhas ou esposa. Ela dizia que isso seria bom para minha proteção. Sempre havia alguém para se consultar com a Vovó: se não fossem os próprios filhos da casa, era algum parente ou vizinho. Luana também ia semanalmente conversar com ela e sempre levava a filha mais nova para rezar, Izabelly, na época com três para quatro anos, que já conversava com a Vovó “igual gente grande”, como dizia Luana. Ela, aliás, tinha uma sensibilidade impressionante: por mais de uma vez Izabelly me surpreendeu ao dizer para a Vovó coisas que pensei em contar na consulta, mas que por um motivo ou por outro desisti. Numa das vezes, pensei em contar que estava tendo vertigens e sensações de febre diariamente, sempre no mesmo horário, mas no momento da consulta desisti de narrar o fato. Foi Izabelly quem contou para a Vovó que eu estava com febre, o que me fez narrar as sensações que andava sentindo e que, posteriormente, resultaram nos trabalhos de limpeza que realizei na casa de dona Rita. 98

Anderson, o filho mais velho de Luana, na época com oito anos, já não ia com tanta frequência visitar a Vovó, apenas quando ela solicitava. Já seu enteado, aos doze, agia justamente ao contrário: pedia para acompanhá-la nas festas de candomblé na casa de dona Rita e dizia que o sonho dele era ser pai de santo, o que gerava um imbróglio com a família da mãe do menino, que era evangélica. A filha mais velha de dona Rita, Cínthia, havia se mudado, no início de 2010, para Vitória, capital do Espírito Santo. Foi acompanhar o marido que recebeu uma proposta de emprego e levou os dois filhos. Cínthia ligava semanalmente para a mãe e também para conversar com Vovó. Conforme contou Luana, tanto ela quanto a irmã ajudavam a mãe como podiam nas festas do candomblé e também tinham muito apego à Vovó, contudo, nenhuma das duas queria ter envolvimento com a vida no santo, pois consideram ser uma vida de muita responsabilidade. Luana contou que a própria dona Rita não queria isso para elas e que, quando elas eram mais novas, fez um trabalho para não deixar os santos delas virem. Ela não sabia explicar o trabalho, mas sabia que não queria ter a mesma vida da mãe, de compromisso com o santo, e que não se importava de não dar caboclo, porque a mãe e a Vovó já cuidavam dela. Luana observava também que já tinha pedido a dona Rita que fizesse o mesmo trabalho para não deixar o santo da Izabelly vir. *

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Enquanto esperava para ser consultada, ou depois de ser consultada, ficava conversando com o pessoal da casa de dona Rita: Josi, que na época era equede suspensa da Iansã e morava com dona Rita; Madá e as filhas Talia e Dudinha, e Biguinha, irmão de Madá, que aos nove anos de idade dizia que seria o pai pequeno da casa. Todos eram vizinhos de dona Rita. Vez ou outra, aparecia também Barriga, irmão de Madá e Biguinha, Rogério, ogã levantado da casa, Rosalvo, dona Nilsa e Naiara, filhos da casa. Se fosse o caso de atender algum cliente de outra cidade, em geral, as pessoas ligavam para dona Rita para marcar a 99

consulta. Na maioria dos casos, como disse, era com a Vovó que as pessoas se consultavam, mas, se fosse necessário, a moça, que é a cigana, Rainha das 7 Encruzilhadas, ou o marujo Dom José também poderiam se apresentar. Cheguei a conhecer e a conversar muito com Dom José, mas nunca conheci a moça, que de acordo com dona Rita vem muito pouco: ela é jovem e muito bonita, gosta de jogar tarô para os clientes, mas só vem nos casos em que é para fazer trabalhos pesados. Foi em uma entrevista realizada quase um mês antes de retornar de Belmonte que dona Rita detalhou como começou a vida no santo. Foi com onze anos de idade que sua Iansã veio e um ano depois ela puxou a Vovó Maria Conga como mensageira para trabalhar por ela. Antes, contudo, a Oxum, seu segundo santo de cabeça, se manifestou num candomblé que foi assistir escondida de seus pais, Canuto e dona Nidinha, na Coréia, localidade no caminho para Camacan. A Oxum manifestou, mas não firmou, ao contrário da Iansã que já veio pronta: – Foi muito criança. Sempre tive fanatismo. Só que eu comecei a receber meus guias na Coréia, um lugar que é perto de Camacan... – E como foi? – A primeira vez, quando cantou para Oxum, eu comecei a chorar, não parava. Aí comecei a rodar, rodar, rodar e aí corri para a casa dos moços. A mãe pequena me chamou e falou assim: “menina, saia daí!”. Eu não via nada. Aí quando me botaram no salão, vinha aquela coisa assim, eu me aprumava, mas não aguentava. Chorava, chorava, chorava. Depois foi embora. Também eu não bolei. Eu, não. A Iansã veio em outro candomblé que dona Rita foi assistir escondida dos pais pouco tempo depois. Seus pais não frequentavam candomblé, embora sua avó materna tenha um Ogum que veio de dote e que se apresentava na linha de caboclo, ou seja, dava consultas e passes. A manifestação da Iansã foi diferente: a Oxum veio chorando, a Iansã veio explosiva, quente. Ela já veio dançando e soltou o ilá. Diferentemente da Oxum, ela já veio pronta. Pouco tempo depois, um pai de santo da região quis levar dona Rita para a roça dele para raspá-la, mas por ela ser ainda muito jovem, seu pai não permitiu. 100

Nesse dia eu comprei uma vela, acendi. Não sabia rezar nada. Peguei rosa, botei dentro do prato, botei perfume e acendi a vela. Eu tinha o quê? Onze anos. Aí fui para o candomblé. Chegou lá, cantou para os orixás. Quando cantou para Iansã, aí já foi diferente. A manifestação já foi muito diferente. A Oxum, eu chorei. A Iansã, saía fogo. A cabeça parece que ia crescendo, a testa esquentou. Eu fiquei assim, explosiva, assim. Quando eu subi, que era assim de degrau. Os atabaques eram muito grandes, aí a gente sentava assim nas arquibancadas. Aí eu dei um pulo. Quando eu pulei pro chão, aí eu não vi mais nada. Eu só vi a mãe de santo de Ilhéus: “minha mãe, solte seu ilá”. Só as palavras que eu ouvi: “minha mãe, solte seu ilá”. Só. Eu lá sabia o que era ilá? E daí que ela soltou o ilá. E daí, pronto. Daí que começou. Já chegou pronta, já chegou dançando. Já espalhando o que ela quer. Daí o boato correu que eu tava recebendo. Um pai de santo, Antônio de Amargar, que já mufô [morreu] também, baiano, aí queria raspar, queria fazer meu santo. Papai não deixou porque eu era uma criança, né? Depois ele veio e falou assim: “eu levo ela lá pra roça e vou fazer ela.” Aí que papai não deixou. Dona Rita passou a frequentar algumas casas de candomblé e num dos toques que foi assistir, uma de suas irmãs, Lurdinha, a acompanhou para ver se a santa dela se manifestava mesmo para contar para a mãe delas. Contudo, ao invés de ver a santa da irmã, a Oxum de Lurdinha veio quando a irmã se manifestou na Iansã. Lurdinha, contudo, não quis seguir a vida no santo. Quando está em Belmonte, ela frequenta as festas na casa da irmã, mas como não gosta de receber santo, ela nunca quis se desenvolver, observou dona Rita. Sua irmã mais velha, dona Lita, também recebeu santo de dote, mas foi bem depois dela, contou. Quando sua família voltou a residir em Belmonte, dona Rita começou a frequentar os toques na casa de dona Chiquinha, que ficava no bairro da Biela. Ali, apesar de os toques serem de tambor, eles trabalhavam na linha da umbanda, o que quer dizer que os santos que trabalhavam eram de dote. Dona Rita frequentava os toques na casa de dona Chiquinha e sempre manifestava, ao ponto de algumas pessoas começarem a dizer que era fingimento, que ela “dava caboclo de mania”. Mesmo assim muitas pessoas iam para o candomblé só para vêla dando caboclo, lembra. Dona Rita contou que aprendeu com dona Chiquinha a rezar de olhado, rezar de tudo. A Vovó ensinou algumas rezas também e a ler no copo d'água. Ela só não aprendeu a rezar do vento. Com o tempo, foi seu próprio santo que a afastou da casa de dona Chiquinha, sem 101

haver aborrecimento, conforme explicou. Foi aí que ela começou a trabalhar em sua própria casa. Como trabalhava na umbanda, sua Iansã dava consulta como caboclo: conversava e fazia trabalhos para as pessoas. Com o passar do tempo, a Iansã avisou que não poderia continuar trabalhando e foi aí que ela botou, primeiramente, Ogum, que poderia vir trabalhar, e depois puxou a Vovó Maria Conga como mensageira para trabalhar por ela: Comecei dentro do quarto. Aí o povo sentava tudo na cama. Enchia. Iansã vinha, dava consulta, falava, fazia de tudo, porque santo de umbanda, né? Aí o povo estava gostando. Depois, quando chegou um ano, ela virou e falou que não podia ficar dando consulta, porque ela tinha que ir. Aí botou Ogum. Aí Ogum veio, que Ogum trabalhava. Aí continuei a vida. Ogum vinha, ela vinha, mas o povo só queria ela pra falar as coisas, falava tudo. E a casa enchia. Aí depois ela veio e falou que ia ter uma mensageira que ia trabalhar por ela. Que ela ia puxar e ela não ia trabalhar. Aí botou Vovó. Quando botou Vovó, primeiro eu dei uma febre muito alta e uma dor no pé... Vim do colégio assim umas 11 horas da manhã... Era marcha de 7 de setembro. Naquela época eu usava aquelas fardas, aquelas saias assim. Eu estava por ali por Dinah, onde é hoje a assistência social. Eu me lembro como hoje, aí eu vim pelo beco do estádio, tinha uma mulher que trabalhava na padaria. Cheguei em casa, fiquei com uma febre muito alta. Quando foi de noite, a Vovó me pegou. É ela que trabalha até hoje. Iansã, Ogum e a Vovó Maria Conga vieram de berço, ou de dote, como também costumam dizer em Belmonte. Esses santos trabalham na linha da umbanda. Diz-se também que quando os santos se apresentam deste modo, eles já vêm prontos e prescindem da feitura por meio do ritual de raspar o santo. No caso de dona Rita, foi a Iansã quem se manifestou como sua orixá de cabeça e veio trabalhando inicialmente. Com o passar do tempo, ela colocou o Ogum para vir trabalhar e, em seguida, puxou a Vovó Maria Conga como mensageira. A Oxum, que se manifestou primeiro, contudo, não estava pronta. Nos casos em que se trabalha com santos de dote, como é o caso de quem trabalha na linha da umbanda, para se manter uma casa, ter pessoas que trabalhem nela com um fluxo geralmente variável e realizar toques, não é necessário observar os preceitos do candomblé das obrigações e do tempo de iniciação, observou dona Rita. É um desenvolvimento do próprio guia, completou. 102

É o próprio guia que possui o conhecimento e vai realizando os procedimentos rituais e trabalhos necessários. Pouco a pouco o guia pode ir transmitindo para o aparelho parte do seu conhecimento. Vovó me ensinou a fazer caruru, me ensinou a fazer abará, acarajé, vatapá, mingau, tudo. Eu não sabia fazer nada. – E como é isso? – Ela descia, fazia. As outras ajudavam ela. E ela preparava tudo. Estava tudo ali já feito, ela ia e dava o tempero. Foi ela que foi minha professora, que eu não tive mãe de santo. Já vem de berço. E a Iansã também. Todos eles vieram de berço. Depois eu fui e raspei o santo. Foi desse modo que dona Rita aprendeu a preparar as comidas rituais, a realizar as rezas e a fazer os trabalhos. A Vovó vinha e deixava as coisas na cabeça dela; vovó Maria Conga foi sua principal “professora” até raspar o santo. O episódio narrado na Introdução, em que dona Rita aprendeu os segredos das folhas e começou a participar do mundo de Ossanha, é outra forma entre as diferentes maneiras como esse conhecimento vai sendo adquirido com o passar do tempo. Foi no ano de 1976, aos dezessete anos, que dona Rita foi para o Rio de Janeiro para realizar sua iniciação no candomblé angola no Abassá de Valmir Matalandê, axé Bate-Folha Cassarungongo, localizado na cidade de São Gonçalo. Na época, ela já tinha as duas filhas que deixou com a mãe para cuidar; do marido, separou-se logo após retornar do Rio de Janeiro. Dona Rita passou dois meses e sete dias no roncó e mais três meses de resguardo com o quelê no pescoço. Sua iniciação foi num barco de três iaôs: ela, Jair Kafumeci, do Obaluaiê, que era do Rio de Janeiro e foi o dofono do barco, isto é, quem puxou o barco, o primeiro a ser iniciado, e outro rapaz que era do sul, filho de Oxalá, cujo nome ela não lembra. O pai pequeno foi Cipokan, também do Oxóssi, assim como seu pai de santo. Antes de raspar o santo, contudo, dona Rita ponderou em relação aos preceitos que teria que seguir e recebeu recados de seus orixás: primeiro, optou por realizar a iniciação só após ter a certeza de que poderia continuar trabalhando com a Vovó, o que foi assegurado pelo 103

seu pai de santo, que afirmou que na linha da angola não tira santo de dote. Em seguida, recebeu o recado da Iansã de que a santa dela não era de raspar, mas, se ela quisesse, poderia raspar; contudo, se assim procedesse, a Iansã não viria mais trabalhar, viria apenas para dançar e trazer a energia da sua presença, e que a dança e o ilá iriam mudar. Por fim, o Ogum avisou a dona Rita que, se ela raspasse, ele não viria mais. E assim foi. Dois motivos a levaram a optar por raspar o santo: o primeiro, disse que foi por boniteza: a primeira vez que ela viu o Oxóssi de Matalandê, que viria a ser seu pai de santo, ela disse que achou lindo e ficou admirada. Ele dançava muito bem e se trajava lindamente. Mas foi ao aprofundar a amizade com Matalandê que ela foi se convencendo de que entrar para o candomblé contribuiria para sua evolução no santo, para aumentar sua força, ajudandoa a adquirir mais conhecimento para lidar com as demandas da vida no santo que eram muitas, e, observou, se não tivesse entrado para o candomblé, ela poderia não ter aguentado a vida no santo. Dona Rita contou que, quando retornou para Belmonte, Matalandê fez uma festa de saída de iaô na casa dela. O barracão estava cheio porque as pessoas tinham muita curiosidade, já que nunca tinham visto alguém raspado, mas quando ela apareceu no salão para dançar, houve quem saísse correndo de medo, estranhando a pintura, a vestimenta, tudo. Muitos disseram que ela parecia uma assombração. Ainda pela época em que fiz o campo, dona Rita e Cosme observaram que existia em Belmonte certa desconfiança do povo do candomblé em relação aos santos raspados. As pessoas desconheciam o procedimento, dizendo que o santo perde a força. Cosme afirmou que era comum nas outras casas dizerem que os filhos de santo dele eram “o povo dos raspados”, em tom de reprovação, mas ele observava que raspava apenas o santo que pede para raspar. O santo que bola, que não vem pronto. Já dona Rita não raspa o santo mesmo tendo recebido a “mão de corte”, isto é, 104

recebido a navalha e o direito de realizar o ritual. Procede assim porque sua santa não é de raspar, explicou. Ela realiza os rituais de limpeza de corpo, faz sacudimento e dá o bori, o ritual de dar alimento à cabeça que geralmente antecede a feitura do santo no candomblé. Se o santo pedir, dona Rita faz o assentamento também. Mas, se for o caso de ter um filho cujo santo seja de raspar, ela o entrega para seu pai de santo realizar o ritual. Antes, contudo, tenta fazer o santo da pessoa desenvolver para não precisar raspar. Madá, por exemplo, estava desenvolvendo no santo. Ela tinha feito a limpeza de corpo e dado o tabuleiro com dona Rita e participava das festas e obrigações na casa, mas ainda não dava caboclo, apenas tomava barravento, expressão que indica que o santo balança a pessoa, mas não pega. Nas festas, Madá ficava ajudando na cozinha e ia pouco na roda para evitar ficar tomando barravento e, principalmente, para evitar bolar no santo; já nos toques fechados, ela ia para a roda para poder desenvolver. Dona Rita disse que fazia isso para poder dar o bori de Madá e firmar o santo, sem precisar raspar. Biguinha, irmão de Madá, na época com nove anos, estava no mesmo processo: participei do tabuleiro de Biguinha em meados de 2011. No final de 2012, quando liguei para conversar com dona Rita, ela contou que Biguinha tinha dado caboclo e que ela tinha feito o bori dele: confirmou para Vunge, Iansã e Ogum. Madá, no entanto, ainda estava desenvolvendo. Assim, dos filhos que na época frequentavam mais assiduamente a casa de dona Rita, todos sem exceção tinham santos de dote e tinham feito algum procedimento de limpeza espiritual e dado o bori com dona Rita. Era o caso, por exemplo, de Rosalvo, que recebe o velho Xangô, que é o mensageiro de Xangô que vem na linha da umbanda. Rosalvo costumava atender as pessoas em sua casa com o velho Xangô. Na casa de dona Rita, o velho Xangô vinha nas festas da vovó e nos tabuleiros para brincar e dar o passe e também vinha para ajudá-la e à vovó em alguns trabalhos. Já os santos de dote dos filhos, quando havia 105

toque, vinham brincar no salão, dançar e trazer o axé, mas não podiam dar consultas nem puxar chulas, porque têm que respeitar a linha da casa. *

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Quando o santo é feito, a gente evolui mais. É um passo à frente... Pra ter mais força, pra conhecer, pra ensinar. Isso é como se fosse o professor, e a gente tem a formatura. E quando a gente é de umbanda, é de dote, uns fazem e outros não querem, não aceitam. Eu tomei obrigação de sete, o deká, e também os quatorze anos. Já tenho trinta e cinco anos de iniciada, mas agora que vou dar a obrigação de vinte e um e vinte e cinco e aí vai encerrar a minha obrigação. Depois disso, continuo trabalhando e continuo dando as minhas festinhas. A analogia é precisa: a evolução se dá por meio da passagem do tempo e há rituais que marcam o processo, que são como se fossem as formaturas para os estudantes. Conforme explicou, é, sobretudo, por meio da relação com o pai de santo que o conhecimento e a doutrina da angola foram sendo adquiridos e as obrigações de ano marcaram os diferentes estágios do processo. A iniciação no candomblé requer o aprendizado de alguns procedimentos litúrgicos diferentes, de cantos, da língua. Muita coisa se aprende, quando está no estado de erê, na iniciação. O resto se aprende convivendo e ajudando o pai de santo. Mas o conhecimento por intermédio dos sonhos também continua se processando. Quando fui jogar búzios com dona Rita, ela me contou como aprendeu a jogá-los: o aprendizado se deu quando ela já era feita, por meio de um sonho que teve: “Quem me deu esses búzios foi um sonho que eu tive, uma mulher que me deu esses búzios. Aí eu comecei a jogar e comecei a descobrir. Depois eu confirmei com o meu zelador, mas eu já sabia jogar.” Perguntei se ela teria aprendido a jogar se não tivesse sido iniciada no candomblé e ela considerou que sim, porque veio em sonho, não foi um conhecimento passado pelo seu pai de santo. Conforme dona Rita explicou, a diferença que se processa no orixá ao entrar na linha do candomblé é que, ao raspar o santo, ele é doutrinado a vir diferente. Ele evolui mais, pois recebe outro tratamento, é assentado. Ele ajoelha para o pai e aprende a se comportar. O ilá e 106

a dança mudam e ele não fala mais, quem fala por ele é o puxa-folha, ou o erê, ou o exu. Já quando não é raspado, o orixá fala e canta; o ilá e a dança dele são iguais ao local de onde ele vem. Existe, sem dúvida, da parte de dona Rita, uma maior ênfase no aspecto doutrinário do processo de aprendizagem: há ensinamentos passados como que de modo professoral do pai de santo para a iniciada e para o santo, assim como havia uma relação também nos moldes professorais com a vovó antes da iniciação. Contudo, essa analogia explica apenas em parte o processo, pois, com a vivência no santo, dona Rita também foi tendo acesso a conhecimentos transmitidos por meio de sonhos e durante a realização de trabalhos, e mesmo a ousadia de resolver raspar o santo deve ser levada em consideração no seu processo de desenvolvimento – evolução, como diz – no santo. Nesse sentido, cabe atentar para a observação de Goldman, de que: “nenhuma forma de aprendizagem em uma religião desse tipo pode significar apreensão passiva, mas apenas uma vivência que modifica todos os elementos do processo, seja a matéria que é transformada na medida em que é "transmitida" e "assimilada", sejam os agentes envolvidos no sistema, que, como vimos, vão se transformando ao longo do tempo.” (2005:).

O que ocorre é que depois da iniciação a Iansã nasceu de novo, explicou dona Rita. Mas por “nascer de novo” ela quer dizer que, apesar de já estar pronta, teve que aprender a vir numa nova doutrina. No caso, observou: o santo quando, é de berço, já está pronto, mas a iniciação o faz evoluir: a Iansã não dá mais consulta, nem fala, e o ilá mudou. Agora ela vem com um preceito que sai com fogo na cabeça, porque é da qualidade da Iansã de dona Rita, a Iansã de Matamba. No candomblé, observou dona Rita, faz a qualidade do santo, procedimento que não ocorre na umbanda. As qualidades do santo são as diferenças que existem do mesmo orixá: “assim como não há uma pessoa igual a outra, mesmo quando tem o mesmo nome, não há orixá igual ao outro”, explicou dona Rita. A qualidade serve pra marcar essa diferença, é como se fosse o 107

sobrenome. Outra diferença importante é que mesmo havendo duas pessoas da mesma qualidade da Iansã, por exemplo, a Iansã delas não vai ser a mesma: cada pessoa tem o seu próprio orixá, porque cada pessoa é diferente da outra. Depois dos sete anos de santo, a Oxum de dona Rita, que é seu adjuntó, seu segundo santo de cabeça, veio; só depois de muito tempo ainda, veio Obaluaiê, que é seu terceiro santo. Cada um deles é uma manifestação, ela observa: “a Iansã é fogo. Oxum é água. Cada um deles eu sinto. E Obaluaiê é o velho, eu sinto uma coisa dentro... é o velho mesmo. Iansã vem do lado direito, a Oxum vem do lado esquerdo e Obaluaiê vem atrás, que ele é o meu cajado”. Ela acha que se não tivesse raspado, a Oxum e Obaluaiê poderiam não ter se manifestado, mas pondera que isso depende deles e de sua mãe Iansã. Mas Ogum, como tinha avisado, não veio depois que ela raspou o santo. Acha que isso pode ter ocorrido porque ele era santo de herança da sua avó materna, que tinha um Ogum que vinha na doutrina da umbanda. Santo de herança já é santo feito, já tem um desenvolvimento. Ele não aceita ser raspado, observou. Seu puxa-folha é Rei dos Índios, foi a Iansã quem o puxou como mensageiro. Ele é o caboclo de dona Rita e se apresenta como filho da Iansã. Rei dos Índios é temido pelos filhos de dona Rita por ser considerado muito rígido e sério. Vovó Maria Conga e Dom José são eguns mensageiros da Iansã: Vovó Maria Conga se apresenta como filha da Iansã e o marujo Dom José se apresenta como filho de Matalandê, mas dona Rita disse que é “por consideração”. Certa vez, Josi me segredou que Dona Rita também recebe o velho Teodoro, que é um velho que só vem para “fazer feitiço brabo”. No entanto, não tive como confirmar a informação com a própria, que oportunamente não o apresentou como um de seus guias. E há também o caboclo Pedra Azul, que se apresentou após um trabalho na casa. Por ocasião, dona 108

Rita disse que ele é um caboclo que só se apresenta poucas vezes e não vem mais para trabalhar, ele vem pelo lado da vovó, contou. Com a iniciação no candomblé, nasceu a erê Fogueirinha, que é a criança da orixá Iansã e por meio da qual se deu o processo de aprendizagem no período de iniciação. Ela vinha muito logo após o ritual e até dar a obrigação dos sete anos, mas depois que deu a obrigação já não vem mais. Já a sua legba, a sua moça não nasceu na iniciação. Ela já veio com o orixá de dote, porque todo orixá tem sua legba, seu escravo. Então, não precisa raspar para ter exu. A diferença é que, com a iniciação, na linha do candomblé, tem o Exu que é raspado e assentado. Assim, ele é zelado como um orixá e tem as obrigações que são destinadas a ele, tem que fazer o corte sempre que tem obrigação na casa. Mas, observou, Exu não vem para brincar no salão. A Vovó continua se apresentando normalmente. Só quando dona Rita está de resguardo por conta de alguma obrigação é que não deve receber a Vovó nem o marujo por eles serem eguns. Os conhecimentos transmitidos pela Vovó não cessaram após dona Rita ter raspado o santo: quando ela tem que deixar algo em sua cabeça, ela deixa. Mas há conhecimentos que só a Vovó possui e que não passa para ela: a Vovó sabe ver o futuro no copo d'água, coisa que dona Rita não sabe fazer, por exemplo. Do mesmo modo, alguns dos conhecimentos adquiridos por dona Rita ao entrar na linha do candomblé foram aprendidos pela Vovó, por exemplo, alguns procedimentos de limpeza espiritual, como o sacudimento. Conforme contou, vovó aprendeu isso na doutrina do candomblé; antes ela fazia diferente, fazia do jeito dela: “Ela que chegava, cuidava, mas não tinha muito assim... uma evolução como tem hoje”.

3.3 COSME TALASSIDÃ E O ABASSÁ D’ILÊ DO OXÓSSI

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“Saudade não é hoje/ saudade não é agora/ saudade é amanhã/ quando o barco for embora”. Até hoje escuto Martim Pescador cantando a doce cantiga quando estávamos chegando perto da casa de Ariane. Era quase meia-noite e eu estava exausta e calada. Queria apenas chegar em casa. A cantiga veio para amansar meus pensamentos e definitivamente amoleceu meu coração. Estava de pé desde as seis horas da manhã por conta da saída do Netos de Gandhy para a apresentação cultural do projeto de Alberto Rocha 28; em seguida, fui à festa do Caboclo Boiadeiro de Dona Maria, que começou às 15 e se estendeu até quase 22 horas. A festa terminou com a vinda dos marujos, e foi aí que Martim Pescador pegou Cosme. Depois de brincar no salão, Martim Pescador se despediu do marujo de Dona Maria e disse que ia deixar suas filhas em casa, me chamando para ir com ele também. Fomos caminhando pelas ruas da cidade de um extremo, no bairro da Biela, ao outro, no bairro da Ponta de Areia. Martim, com o andar caracteristicamente mareado dos marujos, puxava algumas chulas no trajeto. A cerveja que carregara acabou no caminho, e ele marotamente se convidava para entrar na casa de uma ou outra filha, que o mandavam ir para casa, observando que já estávamos todas cansadas. O marujo foi deixando as mulheres durante o trajeto e, quando restávamos apenas eu e Maria Machado, ele passou para visitar duas senhoras que estavam acamadas. Martim Pescador batia palmas na frente da casa das senhoras e esperava. Estava tarde para fazer visitas, mas em ambas as casas, assim que o avistaram do lado de fora, abriram o portão para ele entrar.

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O “projeto de Alberto Rocha” era como em geral o pessoal dos blocos e das brincadeiras, “o pessoal da cultura” de Belmonte, se referia ao projeto “Arte Popular em Movimento – Na palma do cidadão”, que faz parte de uma articulação dos diferentes grupos e movimentos culturais da região do sul da Bahia que formam a Rede Cultural Bahia ao Extremo, e que, em Belmonte, é pessoalizada na figura do professor, compositor, músico e então secretário de educação Alberto Rocha. Por meio de recursos financeiros de edital público da Secretaria Estadual de Cultura, eles promoveram em Belmonte, nos dias 05, 06 e 07 de agosto, o “Arrastão Cultural de Belmonte”, que, entre outras atividades, foi finalizado com o cortejo dos blocos e apresentação na Praça 13 de maio, mais conhecida como “praça dos gringos”, em referência ao período em que as famílias de imigrantes europeus se mudaram para a cidade para administrar fazendas de cacau. Mais informações sobre o projeto em: www.napalmadocidadao.blogspot.com (acesso em

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Na primeira casa, foi um rapaz que atendeu. Martim Pescador apertou-lhe a mão e disse que ia entrar para ver sua velha. O rapaz disse que ela o esperava. Martim Pescador fez sinal para entrarmos e, enquanto ele seguia para o que provavelmente era o quarto da senhora, ficamos aguardando na pequena sala ao lado. O rapaz ligou a televisão, nos convidou a sentar e nos ofereceu um copo d’água. Eu estava constrangida por invadir sua casa, aceitei por educação a água e fiquei olhando perdidamente na direção do aparelho televisor. Maria permaneceu igualmente com o olhar voltado para o aparelho. Da sala, dava para ouvir o que Martim conversava com a senhora. Ele voltou depois de certo tempo e disse para o rapaz que a velha estava bem, e que só restava aguardar que ela fizesse a passagem. O rapaz fez que sim com a cabeça e agradeceu a visita. Disse que ela deveria estar feliz, pois sempre teve muita fé em Martim. Martim Pescador disse que sabia disso. Saímos da casa e seguimos pela rua em que reside Cosme, que também é a rua em que Maria Machado mora. Foi quando Martim comunicou que visitaríamos outra senhora acamada e, depois, eles me deixariam em casa, que ficava a seis ou sete quadras de distância da casa deles. Maria Machado não tinha escolha e seguiu conosco. Na segunda casa, mais uma vez, parecia que Martim era esperado. Ele bateu palmas e logo uma senhora veio e abriu o portão, cumprimentou o marujo e abriu caminho para ele entrar, se posicionando em seguida na frente do portão. Ficamos aguardando na rua. Nessa casa a espera foi mais demorada. Enquanto aguardávamos, a senhora perguntou se tinha tido candomblé na casa de Cosme, e Maria Machado disse que fora a festa do Boiadeiro de dona Maria, na Biela. A senhora disse que andava afastada, mas que tinha que dar a obrigação do santo dela. Maria não fez comentário algum e permanecemos caladas aguardando. Martim Pescador retornou. Apenas deu boa noite para a senhora no portão e seguimos caminho. Martim falou que para uns a passagem era mais fácil, para outros, mais difícil. 111

“Quem faz o bem não tem o que temer”, sentenciou. Estávamos chegando próximo à casa de Ariane. Martim cantou a doce cantiga e, em seguida, falou: “Candomblé é isso, minha filha”, e disse que eu teria muita história para contar de Belmonte e que não era para esquecê-lo. Como poderia? *

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Conheci Cosme Talassidã por intermédio de Carmen Lúcia, numa tarde em meados de outubro de 2010. Após descansarmos do almoço e de seu Celso ter saído para treinar os meninos da escolinha de futebol, Carmen me acompanhou, naquela tarde ensolarada, até a casa de Cosme. Cosme nos recebeu muito bem, como, depois vim a perceber, é característica sua. Perguntou por seu Celso e pelos filhos do casal e nos convidou a entrar, nos conduzindo por um caminho ao lado de sua casa que levava ao barracão. Lá estavam algumas de suas filhas de santo que ajudavam nos trabalhos da casa. Ele explicou que estava com duas filhas recolhidas, dando a obrigação de três e cinco anos: Leonildes, da Iemanjá Ogunté, e d’Aajuda, da Iansã de Igabalé. Maria Machado e sua irmã de sangue Leidiran, que é equede da casa, também estavam no barracão, auxiliando Cosme nos trabalhos. Cosme pediu para nos sentarmos e solicitou a Maria que trouxesse água e café. Então disse para Carmen: “Há quanto tempo que não vejo seu Celso. Vocês não vêm mais na minha casa, não?” Carmen brincou dizendo que estava lá visitando ele e em seguida justificou dizendo que não apareciam mais nas festas porque andavam muito ocupados, que seu Celso labutava todo o dia com a escolinha e que eles já quase não saíam mais. Depois emendou dizendo que o motivo da visita era me apresentar: “uma pesquisadora do Rio de Janeiro, amiga de Levindo, que veio para a cidade continuar a pesquisa dele”. O modo como Carmen me apresentou despertou uma curiosidade em mim. Levindo vem a ser um colega do PPGAS que efetuou pesquisa de campo na cidade, mas não era um 112

colega próximo, e Carmen sabia disso. No mestrado, ele acompanhou mais de perto a rotina de seu Celso e Carmen Lúcia e a do professor Alberto Rocha e sua família durante a campanha de ambos por ocasião da candidatura a vereador da cidade. Essa pesquisa resultou na dissertação “A micropolítica da ‘Política’. Um estudo em torno das eleições municipais em Belmonte, sul da Bahia”. Posteriormente, Levindo voltou sua pesquisa para o universo afroreligioso da cidade e, pelo que pude perceber, teve uma maior proximidade com a casa de Cosme Talassidã, com quem fez grande amizade, ao que deve ter ocorrido a Carmen pôr-me em relação a Levindo para mediar minha entrada na casa de Cosme, associação que não foi feita em nenhuma outra casa em que ela me introduziu. Dona Rita Camuinganga e dona Otília também se lembravam de Levindo. Na casa delas, contudo, a associação se deu mais no período inicial da pesquisa. Já Cosme demonstrou maior disponibilidade pelo fato de me apresentarem como amiga de Levindo e como a pessoa que foi dar continuidade ao trabalho dele. Cosme obviamente quis saber notícias do amigo, dizendo que ele passava muitas tardes conversando com o vovô Rei do Congo e que tinha participado de festas e trabalhos na casa, tendo feito amizade com todos. Como troquei emails com Levindo pouco antes de viajar, podia dizer que ele estava bem e que havia mandado um abraço para Cosme e para uma de suas filhas, d’Ajuda. Cosme ficou contente com a informação e assim pudemos seguir conversa. Desde esse dia Cosme sempre demonstrou disponibilidade para minhas perguntas e minha presença em sua casa. No entanto, com o passar do tempo, por ter me envolvido mais com o pessoal da casa de dona Rita Camuinganga, sua irmã de santo, acabei tendo uma relação mais cordial com Cosme: frequentando todas as festas para as quais ele me convidava, mas sem me envolver tanto no cotidiano de sua casa. Cosme é um tipo esguio, com os cabelos grisalhos, simpático e com ar jovial. Generoso e falante, falava com extrema rapidez, o que me deixava em apuros para entendê-lo. 113

Quando o encontrava, precisava de uns minutos para conseguir entrar na sua velocidade, não havia jeito. Ele trabalhava como inspetor do colégio estadual, e vivia sozinho em uma casa, onde, aos fundos, estava o seu barracão, no bairro da Ponta de Areia, na região limítrofe com o bairro do São Benedito. Desde o nosso primeiro encontro, Cosme definiu a diferença do seu candomblé em relação às outras casas da cidade: ele, ao contrário dos demais, raspa o santo. Mas só o santo que pede para raspar, observou. Nessa mesma conversa, ele relatou alguns episódios que surgiram novamente por ocasião da entrevista que realizei já mais para o período final do campo, e na qual me baseio para apresentá-lo. *

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Cosme nasceu em 1969, no município de Itamaraju, distante aproximadamente 220 quilômetros de Belmonte. Caçula de Maria de Lurdes e Valdelério, Cosme contou que, apesar das dificuldades financeiras da família, guarda boas lembranças da infância e das brincadeiras com a irmã Leidiran e as amigas: ele queria ser ator e brincava de fazer apresentações para elas, elaborava peças e imitava os cantores da rádio. Uma brincadeira da qual recorda muito é a de candomblé: ele colocava as meninas na roda e imitava dona Dezinha, mãe de santo da casa de umbanda em que sua mãe era mãe-pequena. Cosme e a irmã contaram como era a brincadeira: Cosme colocava as meninas para dançar em roda, sentava na cadeira e começava a puxar as chulas e as meninas iam dançando, cantando e batendo palmas; as que não sabiam dançar, ele ensinava e ensinava como dar caboclo e como era que desvirava também. A família se mudou para Belmonte na década de 1980. Com 17 anos, Cosme deu caboclo a primeira vez. Ogum de Ronda pegou ele no candomblé de Bené, filha do finado Umbilino rezador, que morava na Sepa, uma comunidade próxima da cidade. Logo depois veio Oxóssi, seu santo de cabeça. Cosme frequentava o candomblé com a irmã mais velha, Iara, que na época já recebia o marujo Dom Manuel Alves Dias de Alencar. Cosme conta que 114

iniciou a vida no santo com Bené e que lá recebia de tudo: exu, exua, marujo, caboclo. Em Belmonte, ele trabalhava também com Omulu na mesa branca do tio Oto, que trabalhava na linha do espiritismo na época. Conforme explicou: “Na umbanda a gente é igual a uma ponte. Eu atravessava não sei quantas aldeias”, o que significa dizer que recebia guias de outras linhagens que não apenas a puxada pelo seu santo de cabeça. O Oxóssi de Cosme puxou primeiro o preto velho Rei do Congo para vir trabalhar na linha da umbanda dando consultas e passes. Depois veio Gentio das Matas, que é o puxafolha de seu pai, a velha Anastácia, que vem trabalhando na linha espiritual, e o Caboclo Preto, que vem muito pouco: é um caboclo que vem bruto, um índio selvagem, que fala pouco. E tinha também o caboclo Rei Apanaiá, que recebeu de herança de sangue da mãe. Nesse período, Cosme frequentou durante um tempo o candomblé de seu Raimundo das Flores e ia às festas das outras casas, como a casa de dona Rita, onde conheceu Matalandê. Cosme contou que, na época em que conheceu Matalandê, em 1988, Oxumaré manifestou querendo a sua cabeça, acontecimento muito comum dado o enredo29 muito forte que esse santo tem com Oxóssi, conforme explicou. Isso ocorre, segundo Cosme, porque Oxóssi, desobedecendo uma determinação de Olorum, saiu para caçar em dia proibido e, sem 29

No candomblé tem muito enredo, Cosme costumava dizer. Ele citou outra história de uma filha sua que é de Iemanjá Ogunté: “Iemanjá é uma iabá, uma santa mulher. Uma mulher bonita, mais madura que Oxum, que tem uma beleza jovial. Iemanjá não, já tem uma beleza madura. É mais consciente, mais segura. Não é à toa que chamam ela de rainha do mar. E ela é considerada calma também, mas dependendo do enredo pode não ser bem assim. A Iemanjá Ogunté é uma Iemanjá guerreira, que foi para guerra lutar com Ogum enquanto as outras fugiam. É por isso que ela vem numa mão com o abebe, que é aquele espelho que pega ela e pega Oxum também, e na outra ela vem com uma espada. É o enredo dela com Ogum. Candomblé é feito de enredo, minha criança”. Enredo era uma palavra muito usada por Cosme e pelo povo do candomblé em geral para se referir 1) às histórias dos orixás e as relações entre eles e 2) como essas histórias e relações poderiam agir na vida de seus filhos. Essas relações se manifestam nos elementos rituais, nas vestimentas dos santos, ou na comida ritual – dizse, por exemplo, que há um tipo de Oxóssi que come com Ogum, que é o Oxóssi que foi morar com Ogum e aprendeu a caçar com ele. Saber o enredo de santo da pessoa também é indicativo dos traços psicológicos da mesma: uma Iemanjá Ogunté não é calma como uma outra Iemanjá, como no caso citado por Cosme. O enredo de santo também ajuda a entender as relações de afinidade ou animosidade entre os filhos: filhos de Oxóssi e Ogum costuma se dar bem; já Oxumaré e Oxóssi não, por exemplo. Flacksman (2012) apresentou interessante reflexão sobre o conceito a partir de suas pesquisas no o Ilê iyá Omim Axé Yamassê, observando que “Enredar, nesse caso, significa não somente envolver-se numa trama, numa estória, num roteiro. Ter enredo é, em última instância, ter uma relação; ou ainda, um complexo de relações.” Especificamente, ela observou que o enredo de santo pode se manifestar também em enredos de sangue, traçando um imbricamento singular entre a família de santo e a família de sangue.

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saber, matou Oxumaré, a cobra. Para se vingar, Oxumaré costuma vir roubar os filhos de Oxóssi. É comum também os filhos desses santos não se darem muito bem, constatou. Já Ogum e Oxóssi, que são irmãos, sempre têm uma grande amizade e admiração um pelo outro. Cosme estava sendo disputado por Oxumaré, que vinha para se vingar por Oxóssi tê-la matado. O enredo entre os orixás se atualizava na disputa pela cabeça de Cosme, o que o colocava numa situação de desequilíbrio: “é como se quisessem tomar o lugar do teu pai, aquela pessoa que te ensinou tudo, te deu tudo na vida. É horrível. A gente se sente perdido.” A solução para apaziguar Oxumaré foi Matalandê quem apontou: ele deu o bori, isto é, realizou o ritual de dar alimento à cabeça, que antecede o ritual de raspar o santo, para Oxumaré. Oxumaré “comeu na cabeça de Cosme” e se acalmou. Mas, por conta do enredo com Oxumaré, Cosme periodicamente tinha que realizar obrigações para aquele que veio a se tornar o seu segundo santo de cabeça quando ele raspou o santo, em 1995. Cosme observa que foi o enredo com Oxumaré que o levou para a roça de Matalandê e que resultou na sua entrada para o candomblé. Antes, contudo, Cosme passou sete anos trabalhando na linha da umbanda: em 1989, depois de ter dado o bori para Oxumaré, Cosme abriu seu próprio terreiro, no bairro da Ponta de Areia, onde prosseguiu trabalhando com o vovô Rei do Congo, que é quem normalmente faz os trabalhos da linha da umbanda. Em 1995, sete anos depois de ter dado o bori, Oxumaré entrou novamente em guerra com seu pai. Matalandê havia falecido e Muzalambê foi quem apresentou a solução dessa vez: raspar o santo, o que confirmaria quem comandava sua cabeça e encerraria a disputa entre os orixás. Antes de raspar o santo, contudo, Cosme quis saber se vovô Rei do Congo e os demais mensageiros continuariam vindo, e Muzalambê confirmou que, na angola, eles não tiram os guias de dote. Rei Apanaiá, como era santo de herança, não se apresentou mais depois que Cosme raspou o santo. 116

Quando fez o santo no candomblé, Oxóssi confirmou como santo de cabeça de Cosme. Oxumaré veio como segundo santo, e Oxum como terceiro. Oxóssi, observou Cosme, reinou durante sete anos em sua cabeça, e, depois desse período, Oxumaré manifestou exigindo o seu reinado: “dos sete aos 14, quem rege é o segundo santo, e, dos 14 aos 21, é o terceiro”. Reger, no entanto, é modo de dizer, observou Cosme, porque o santo de cabeça dele, o seu pai, quem puxa a sua força, como disse, nunca vai deixar de ser Oxóssi, que, inclusive, não deixa de ser alimentado. O que acontece é que, com o passar do tempo, os outros santos passam a se desenvolver também. Todavia, Cosme disse que, durante a obrigação da iniciação, ele se comprometeu com Oxumaré a entregar o seu balaio 30 durante sete anos consecutivos e, após a troca da regência dos santos, ele passaria a entregar, então, o balaio para sua mãe Oxum. Foi em 1999, após dar a obrigação de três anos, que Cosme raspou sua primeira iaô: Valdeci, de Nanã, que estava afastada da casa desde 2003, quando se mudou para Curiti, uma comunidade próxima ao balneário de Santo André, localizado no município de Santa Cruz Cabrália, a aproximadamente 40 quilômetros de Belmonte. Em 2005, Cosme raspou o segundo barco de três iaôs: Leo, do Omulu, d’Ajuda da Iansã de Igbalé, e Leonildes, da Iemanjá Ogunté, que deram a obrigação de três e cinco anos em 2011. No barco também estava sua irmã de sangue Leidiran, que foi a primeira equede raspada de Belmonte. A equede, contudo, não precisa dar obrigação de ano, observou Cosme, ela raspa apenas para confirmar o santo. Quando perguntei se equede manifestava também, Cosme respondeu que o santo é feito para não vir. Em 2009, Cosme raspou o terceiro barco: Iara, de Oxóssi, que também é sua irmã de sangue, dona Nisinha, e Marcelo, do Obaluaiê. Também fez parte do barco Tony, marido de 30

Obrigação que consiste na entrega de oferendas arrumadas em um balaio e entregues no mar ou no rio. Realizada para Iemanjá, Oxum e Oxumaré.

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Leonildes, que foi feito como ogã. Em 2011, Cosme fez Agnaldo e Inã, seu sobrinho, filho de Leidiran, ogãs. Mas em 2010 ele já havia realizou o ritual de tirar a mão de nvumbi de Muzalambê, tornando-se filho de Kitala Zambelê. *

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Cosme, contudo, não tinha apenas filhos que eram raspados no santo. Maria d’Ajuda, filha de Iansã, mas não a d’Ajuda da Iansã de Igbalé, é filha de santo de Cosme há 20 anos. Conforme Cosme contou e ela confirmou, d’Ajuda foi a primeira que começou a chamar Cosme de pai na casa de santo, mesmo antes de ele começar a raspar o santo. Antes, ele era chamado de padrinho, disse d’Ajuda. Natural de Belmonte, d’Ajuda residiu em Canavieiras por 20 anos acompanhando o marido, com quem se casou aos 13. Ela estava de mudança para Salvador quando foi visitar a mãe, indo em sua companhia a um toque na casa de Cosme. No toque, d’Aajuda conheceu Martim Pescador, por quem se apaixonou. Mas foi a cantiga “Amor de marinheiro”, cantada por ele, que a fez se apaixonar primeiro. É igualmente apaixonante ouvir d’Ajuda cantando: “O amor de marinheiro é amor de meia hora quando dá de madrugada, marinheiro vai embora. O mar batia, a areia rolava, eu sozinho na praia, triste a suspirava. Tarde da noite, no bordo do meu navio, esperando a meia-noite, por ali ela passava” Foi a paixão por Martim que a fez se envolver com o candomblé e decidir ficar em Belmonte, afirmou d’Ajuda. Ela, contudo, não sabia que Martim era um guia; até então era evangélica, o primeiro marido não gostava de candomblé, e ela não conhecia nada sobre guias, apesar de ter tido uma vivência durante a infância na casa da mãe de sangue e de Iemanjá ter “passado pela cabeça dela” numa mesa de erê, também quando criança, na casa de sua avó. 118

Foi com o passar do tempo, frequentando a casa de Cosme, se envolvendo com os guias, que ela foi ganhando maior entendimento sobre as coisas. No processo, adquiriu também uma grande amizade com a preta velha de Cosme, a vovó Anastácia, com quem se responsabilizou a dar a obrigação todos os anos. Para d’Ajuda, foi o amor que ela adquiriu pelos guias de Cosme ‒ e pelo próprio Cosme conforme os anos se passaram ‒ que a fez entrar no candomblé e que até hoje a faz ali continuar, e não o envolvimento com o candomblé. Ao entrar, primeiro ela fez uma limpeza de corpo, e ficou frequentando os toques na casa de Cosme. Quatro anos depois, deu bori para Iansã e permaneceu frequentando a casa. Às vezes, ia também às festas na casa de dona Otília, e mais recentemente chegou a frequentar os toques na casa de Ujuraí, mas sem perder o vínculo com Cosme. Nesse período, d’Ajuda foi desenvolvendo no santo. Apesar de Iemanjá ter manifestado primeiro quando criança, no jogo de búzios Cosme viu que é Iansã quem aparece de frente ‒ por isso o bori foi para Iansã ‒, e é somente Iansã quem manifesta agora, disse d’Ajuda. Pelo fato de que ela estava grávida do segundo marido quando deu o bori, sua filha Dandara Monagungalê já nasceu feita. A Iansã puxou o velho Catumbaiá e o caboclo Ubirajara para trabalhar, e com o passar do tempo, veio também o velho que trabalha na mesa branca, que é o velho Anastácio, irmão da vovó Anastácia de Cosme. Quando perguntei se foi Cosme quem puxou os guias, d’Ajuda afirmou taxativa que não, que os guias vieram de dote. E complementou com orgulho, dizendo que sua família tem tradição no santo: ela era neta da falecida dona Chiquinha, que tinha “casa aberta” na Biela. Conta d’Ajuda que chegou a se recolher para raspar o santo, mas fugiu da camarinha. Ela disse que não sabe avaliar o que foi que aconteceu, pois ela queria muito raspar o santo, mas na hora sentiu medo, teve quizila, não sabe dizer exatamente o que foi que a fez fugir. 119

Brinquei com ela dizendo que foi o santo que a tirou de lá, porque não era para ela raspar. Ela riu e disse que Cosme até hoje a chama de iaô fujona.

3.4 DONA OTÍLIA E A CASA DO CABOCLO JUREMEIRA A casa de dona Otília está localizada no bairro da Biela, conhecido como o bairro dos pescadores. Logo nos primeiros meses da pesquisa, frequentei quase cotidianamente a casa de dona Otília, pois fiz muita amizade com sua filha de sangue mais nova, Naiana. Nessa época, dona Otília estava fora da cidade, na casa de uma filha que reside em Niterói, no Rio de Janeiro, se recuperando de uma operação que realizara. Seu marido, seu Zé Grande, passava a semana na roça que eles possuíam, no caminho para o Barro Preto, e retornava aos finais de semana para casa. Babado e Teca, sobrinhos de dona Otília e seu Zé Grande, também residiam a essa época na casa. Teca, na época com 16 anos, tinha ido morar com os tios ainda criança, e Babado, com 20, tinha ido no final de 2009. Teca participava das festas de candomblé na casa de dona Otília, mas dizia não querer ter compromisso com nada disso. Observava que a vida no santo pede muita responsabilidade e que ela não queria isso para a vida. Gostava apenas das festas, e não perdia nenhuma. Babado era muito quieto e não ficava conosco nas conversas em frente ao portão. Auxiliava o tio na roça, ou, quando não, ajudava Naiana com o trabalho da casa: eram os dois quem normalmente despachavam as obrigações, iam apanhar folha, comprar os animais para os cortes, etc. Babado entrou para a casa de santo e é filho de Oxóssi e Oxum. Ele participava do toque e dava caboclo como os demais filhos. Foi Carmen Lúcia quem me apresentou para Naiana. Fomos numa quarta-feira à tarde a sua casa, aproveitando que Carmen Lúcia queria se informar sobre o valor do jogo de búzios para um vizinho. Quando chegamos, Carmen Lúcia me apresentou, perguntou o que queria e me deixou por lá para começar minha pesquisa. Naiana estava na casa de Pedrinha, a loja na 120

frente de sua casa onde vende produtos religiosos, como banhos, imagens de santo, sabão da costa, ervas, incenso, etc. A casa leva o nome do seu erê, com o qual Naiana tem grande apego. Na ocasião, estavam com ela Fumaça, seu primo e filho da casa, e seu Nilton, ogã que toca nos candomblés de dona Otília e dona Rita. Já nesse encontro, Naiana me contou como sua mãe começou a trabalhar no santo, tendo recebido o Caboclo Juremeira de herança de sangue da mãe ‒ história esta narrada muitas outras vezes, quando, então, ela ia acrescentando alguns detalhes. Era comum Naiana estar acompanhada de algum filho da casa ou amigo; quando a pessoa conhecia a história de dona Otília, como dona Domingas e dona Tita, ou mesmo seu Nilton, eles costumavam participar da conversa corroborando a versão de Naiana ou precisando alguma informação. Quando não, Naiana dizia que era bom eles conhecerem a história de Dona Otília e do pai deles. Em dezembro de 2010, dona Otília retornou do Rio de Janeiro. Ela não queria deixar de dar o caruru da Iansã, homenagem que faz anualmente para a santa, e aproveitou também para dar o caruru das crianças, normalmente realizado ao longo do mês de setembro e início de outubro. Nesse período, tive oportunidade de ser apresentada a ela e prossegui frequentando a casa como de costume, aparecendo quase todos os dias, geralmente no fim da tarde, para ficar proseando na frente do portão ou na casa de Pedrinha com Naiana e quem mais estivesse. Tentei algumas vezes realizar uma entrevista ou marcar uma conversa com dona Otília, mas ela não se mostrava muito aberta para isso e, nas poucas oportunidades que tive, sempre acontecia algo para atrapalhar o andamento da conversa que já não era muito fácil de ser estabelecida. Com o passar do tempo, apesar de ir estreitando minha relação com Naiana, Teca e alguns dos filhos da casa, fui informada por Naiana de que a mãe dela estava ficando 121

incomodada com a minha presença quase cotidiana na casa. Naiana disse que dona Otília havia pedido para que eu não frequentasse mais a casa a não ser por ocasião das festas, quando a casa estava aberta para todo mundo. Ela estava constrangida por ter que me dar o recado, e disse que tinha certeza de que a decisão da mãe havia sido influenciada por fofoca de algumas pessoas que estavam com inveja da nossa amizade. Naiana acrescentou ainda que sua mãe não entendia o meu trabalho e que o fato de eu ficar circulando pelas casas contribuiu para que ela ficasse mais desconfiada de mim. No entanto, observou Naiana, era certo que haviam feito a cabeça de sua mãe contra mim, e ela já tinha descoberto quem era. Mesmo não podendo frequentar cotidianamente a casa de dona Otília, mantive a amizade com Naiana. Muitas das vezes marcávamos de ver filmes na minha casa. Eram sempre filmes de terror em que o principal tema era a possessão: “Possuídos”; “O Exorcista”; “O exorcismo de Emily Rose”; “O ritual”; “Espíritos”; “Espíritos II”; “Stigmata”; “Evocando espíritos”, e muitos outros. Também frequentávamos muito o bar de Geo, na beira do rio, ou o bar de seu Pedro, na praia. Algumas vezes, passávamos na casa de Fumaça ou marcávamos de ir às festas na Amendoeira, uma casa de shows na Biela onde realizavam festas de arrocha, um estilo musical regional. Naiana também me auxiliava marcando entrevistas com algumas das filhas da casa. Até a época de ir embora, mantive minha amizade com Naiana e fui a quase todas as festas na casa de dona Otília. Na festa de 2011 do Caboclo Juremeira, contudo, não compareci. A festa foi realizada no sábado, dia 13 de agosto, mesmo dia em que houve a saída de obrigação de três e cinco anos de Leo, filho de santo de Cosme Talassidã. Optei por acompanhar dona Rita Camuinganga e suas filhas de santo na festa de Cosme e não ir à festa do Caboclo Juremeira, pois já havia me comprometido anteriormente com Cosme em realizar a filmagem da festa. 122

Essa escolha fez com que Naiana ficasse chateada, dizendo que eu havia escolhido “o meu lado”. Para amenizar, disse que tentaria ver se era possível passar na festa do Caboclo Juremeira também, mesmo sabendo que não conseguiria. Naquele momento, fiquei surpresa com a reação de Naiana, e não tive o que dizer além do que já havia dito: que já tinha me comprometido com Cosme, que me avisara da festa semanas antes. Somente depois de um tempo consegui reavaliar a reação de Naiana por ter mantido minha decisão de ir à festa de Cosme. Na época, o pessoal da casa de dona Otília, incluindo Naiana, estava chateado com Kitala Zambelê, pai de santo de dona Rita e Cosme. Se é certo que nunca houve proximidade entre dona Otília e eles, também é certo que nunca houve inimizade declarada, ao menos para mim. Um raramente mencionava os outros e vice-versa. No entanto, naquela semana, contaram para dona Otília que dona Tita, uma de suas filhas de santo mais antigas, levou a filha mais velha para fazer um trabalho com Kitala na casa de dona Deuzuíta, que vem a ser tia de Kitala e quem o hospeda em Belmonte. Vanderson, que é sobrinho de sangue de Cosme e filho de dona Otília, e Teca viram quando dona Tita e Kitala entraram na casa de dona Deuzuíta levando a moça, e logo trataram de contar para dona Otília. Naiana disse que, quando a mãe soube, ficou muito chateada. Dona Tita havia se afastado da casa havia algum tempo sem falar nada para ninguém, mas elas não pensavam que ela iria se “bandear” para o lado deles, explicou Naiana. Não sei como ficou o enredo da história após isso, mas sei que dona Tita não foi à festa do Caboclo Juremeira, nem à festa na casa de Cosme. Porque não fui à festa do Caboclo Juremeira, Naiana passou uns dias me evitando, mas com a proximidade do meu retorno para o Rio de Janeiro, ela acabou cedendo e pudemos conversar. Na semana que antecedeu minha viagem, adoeci, e por isso não tivemos como nos encontrar, mas ela chegou a me visitar na casa de seu Celso, onde fiquei me recuperando, e 123

dois dias antes de viajar conseguimos nos encontrar no bar de seu Pedro. Nesses encontros, Naiana contou os novos planos: queria morar um tempo em Ilhéus, onde tinha alguns amigos, apenas para experimentar viver em outra cidade um tempo, longe da família e das obrigações. Mas seria algo temporário, avaliava, pois não tinha como deixar a mãe e as coisas do santo por muito tempo. Essa era sua obrigação, sentenciou. *

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Dona Otília é filha de dona Eponina, conhecida também como dona Vivi, e seu Cristino, ambos já falecidos, e irmã de dona Zezé, que também possui uma casa de candomblé, no bairro do Centro. Dona Vivi e seu Cristino eram conhecidos como poderosos feiticeiros, de acordo com seu Nilton. Dona Vivi trabalhava com o Caboclo Juremeira mais para o lado da magia. Ainda quando dona Otília era criança, seu Cristino se separou de dona Vivi, indo viver com a jovem que trabalhava na casa deles e deixando dona Vivi sem nada. Com a separação, dona Vivi e as filhas passaram por um período de muita dificuldade: dona Vivi teve que começar a trabalhar para sustentar as filhas. Naiana conta que dona Otília se recorda com muito pesar dessa época: a mãe, a irmã e ela iam diariamente na matança, local onde matavam os bois, pois dona Vivi passou a labutar com fato, e elas aproveitavam para pegar os pedaços de carne que sobravam. Enquanto isso, o avô dava mordomia para a outra mulher e os filhos dela. Dona Vivi, sem aceitar o que estava acontecendo, quis se vingar do marido e recorreu ao Caboclo Juremeira, que, no entanto, se recusou a fazer o trabalho. Naiana conta que, desde que o marido a abandonara, a avó começou a ter problemas com bebida e isso foi afastando ela do santo. Quando o Caboclo Juremeira se recusou a fazer o trabalho, dona Vivi se aborreceu e, primeiro, se desfez das coisas do santo, jogando tudo na água. Depois, no dia em que era para fazer a obrigação de ano do Caboclo, ela, em vez de fazer tudo direito, só ofereceu uma banana para o Caboclo. Foi aí que o Caboclo Juremeira desceu e disse: “Você 124

me deu a banana, agora tu vai comer a casca”. Esta foi a última vez que Juremeira veio em dona Vivi. Depois disso, conta Naiana, a avó endoidou. Dona Vivi ainda era viva quando o Caboclo Juremeira veio a primeira vez em dona Otília, mas ela já não estava sã. Dona Otília tinha, na época, 19 anos, e já era casada com seu Zé Grande. Eles residiam na Ilha das Cobras, um povoado numa ilha bem próxima à cidade de Belmonte. Naiana conta que primeiro manifestou o Oxóssi de dona Otília e depois é que veio o Caboclo Juremeira. Dona Otília raramente ia às festas de candomblé, pois o marido não gostava. No entanto, no dia 26 de julho, por insistência da irmã, que, ao contrário de dona Otília, sempre frequentou os toques de candomblé, ela aceitou ir a uma festa de um candomblé na Biela, e foi lá que o Caboclo manifestou a primeira vez. Antes, porém, de receber o Caboclo Juremeira, quando dona Otília tinha seis anos de idade, o Oxóssi veio, conforme conta Naiana. O pai dela, no entanto, não deixou que dona Otília desenvolvesse no santo, e Naiana não sabe avaliar o motivo, mas considera que isso quebrou um pouco a força da mãe, que poderia ter se desenvolvido há muito mais tempo. Conforme Naiana explicou, dona Otília já veio marcada para seguir a vida no santo, pois ela chorou na barriga da mãe e tem a marca de uma estrela na testa. Apesar de dona Otília ter herdado o Caboclo de herança da mãe, ele não deu a mão de feitiço para ela, observou Naiana. “Ele veio e avisou mainha que, por conta da vó, ele não ia dar a mão de feitiço para ela; ele só ia vir para rezar as pessoas”. Foram muitos anos que o Caboclo Juremeira ficou vindo apenas para rezar as pessoas, contam as mulheres que acompanham dona Otília há mais tempo. “No início era só a reza. As pessoas chegavam com o cão ruim e o Caboclo tirava só com um dente de alho e fumo. Com o tempo é que começou a juntar os filhos e começou a tocar. Foi um desenvolvimento do próprio Caboclo”, contou certa noite dona Domingas. “Tirar o cão ruim” significa despossuir as pessoas que estão possuídas por eguns. Esse 125

é um dos principais trabalhos da casa e a via de entrada para muitos filhos. Nesses casos, o Caboclo Juremeira pode trabalhar com rezas e outros procedimentos e, a depender da situação, pode ser preciso trabalhar com médiuns de passagem, para efetuar a passagem do egum para o médium que tem guia protetor com habilidade de expulsá-lo. Após o ritual, o caboclo Juremeira puxa o santo da pessoa, e dona Otília dá o bori e faz o assentamento do santo. Dona Domingas e Naiana observaram que o desenvolvimento do Caboclo se deu com o passar dos anos em que ele foi trabalhando no santo: primeiro ele veio só rezando, depois veio na umbanda e depois veio na angola, disse dona Domingas. Dona Otília se desenvolveu no processo também, mas, no início, quem trabalhava mesmo era o Caboclo, e por isso os filhos mais antigos da Casa são filhos de Juremeira, e só chamam dona Otília de mãe por consideração, observou Naiana. A primeira filha da casa foi dona América, que faleceu em 2006, ano em que Naiana completou sete anos de santo e acabou assumindo o cargo por ela deixado, o de mãe-pequena. Em seguida, veio dona Domingas, que fez 29 anos de santo em 2011. Dona Domingas entrou na casa por causa da filha mais velha, que aos seis anos de idade quase morreu. Tudo começou com um fiapo de casca de banana que a menina comeu, contou dona Domingas. Ela levou a filha para os médicos, mas a menina não melhorava de jeito nenhum. Quando ela estava quase morta, dona Domingas, desesperada, levou a menina para seu Juremeira rezar. Juremeira rezou a menina durante sete dias e sete noites, e todos os dias a menina desmaiava. No oitavo dia, o Xangô da menina manifestou e ela melhorou. Juremeira, no entanto, suspendeu o santo para ele vir na idade certa. Todos os outros filhos de dona Domingas tiveram problemas de saúde, e por isso tiveram que entrar na religião, assim como ela própria acabou entrando. Quando dona Domingas entrou, já havia outras mulheres frequentando a casa e o 126

Caboclo começou a trabalhar na umbanda. Naiana, no entanto, observou que o que eles chamam de umbanda não é a umbanda atual, cuja doutrina estamos habituados no sul; ela observa que, quando eles dizem que são de umbanda, eles se referem ao jeito de fazer de antigamente: Quando esse pessoal mais velho diz que é de umbanda, eles querem dizer que é raiz, que é aquele jeito de fazer que eles aprenderam antigamente. Não é essa umbanda atual. São duas umbandas que tem: essa que surgiu agora e aquela antiga, do jeito que faziam antigamente. Então, quando a gente fala que é da umbanda, a gente quer dizer que é de dote, que tudo que mainha aprendeu foi com o Caboclo Juremeira. Conforme Naiana falou certa vez: “nós não temos teoria, nós temos sabedoria. Tudo vem da prática.” É a passagem do tempo que permite o desenvolvimento no santo; a vivência e o trabalho no santo são os meios privilegiados para adquirir conhecimentos e para desenvolver os que vieram de dote. Assim como dona Rita Camuinganga, Naiana define que o trabalho na linha da umbanda consiste no trabalho com os santos de dote. O Caboclo Juremeira é quem transmite conhecimento e quem ensina a dona Otília o que ela sabe. Contudo, como nasceu com sinais de que tinha a missão de trabalhar no santo, há também conhecimentos que foram revelados com o desenvolvimento no santo, um conhecimento que veio também de dote com dona Otília e que foi sendo desenvolvido, como a visão para ver os búzios e para ver no copo d’água. *

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Sete anos depois que dona Domingas entrou para a casa de dona Otília, dona Otília entrou na linha do candomblé angola. Ela foi para a angola, explicou Naiana, porque teve que levar dona Tita, que estava “com os 21”, “com o cão”. Naiana conta que o Caboclo Juremeira tirou “os 21” e puxou seu Tranca Rua para pôr no lugar. O problema é que dona Otília não tinha assentamento, e por isso teve que levar dona Tita para raspar o santo: “Daí, ela foi levar dona Tita para raspar e o pai de santo veio com aquela conversa de que ela 127

precisava fazer uma limpeza, e precisava mesmo, e acabou que ela ficou também.” Dona Otília fez os trabalhos de limpeza e foi iniciada no ritual da angola, mas, ao contrário de dona Tita, não raspou o santo: o Caboclo Juremeira manifestou durante as obrigações e alertou o pai de santo de que o santo dela não era de raspar. De acordo com Naiana, o pai de santo entendeu que, se colocasse a mão na cabeça de dona Otília, arrumaria problema para ele, por causa da força do santo dela e do Caboclo Juremeira. Assim, Naiana explicou, para iniciar na angola, dona Otília teve que dar a filha dela, dona Tita, em seu lugar para o pai de santo fazer. Ele raspou o santo de dona Tita no lugar de dona Otília. O pai de santo puxou como santo de frente de dona Tita Oxóssi, que é o mesmo orixá de cabeça de dona Otília. Foi desse modo que dona Otília foi feita na angola, mas não foi raspada: ela aprendeu os fundamentos e recebeu “a mão de corte”, mas, assim como dona Rita Camuinganga, ela não raspa, ela apenas boriza os filhos. Naiana disse que a única mudança que houve nas festas quando passou da linha da umbanda para a angola foi que, antes, nas festas do Caboclo Juremeira, todos os caboclos filhos de Juremeira sentavam e comiam abóbora e tomavam a jurema preparada por ele: “Meu pai Juremeira fazia a jurema na hora. Os filhos traziam as galinhas para agradar e daí meu pai cortava tudo na hora e preparava jurema para o povo. A única coisa que mudou quando mainha entrou pra angola foi isso. O pai dela achou por bem não fazer mais assim.” Desde que entraram para a angola, a jurema é preparada um dia antes, e os filhos de Juremeira são chamados para tomar a bebida ritual. É Naiana e Queque, sua irmã do meio, que cortam para Juremeira preparar a jurema. A jurema, contou Naiana, leva muita coisa: “leva aquele pozinho da jurema que a gente vê nas lojas, leva sangue, leva algumas folhas. Cada caboclo sabe fazer a jurema do seu jeito.” Além disso, a mãe passou a dar o bori e a ter o assentamento dos filhos. Naiana disse que não sabe como dona Otília puxa o orixá de uma pessoa, apesar de auxiliá-la no ritual. Ela 128

observou que esse não é um aprendizado transmissível desse modo, mas que é algo que vem com o tempo, com a pessoa desenvolvendo no santo. Ela sabe o procedimento todo, mas não sabe como o orixá vem, como a mãe consegue puxá-lo. “E ela puxa mesmo, porque é uma pessoa completamente diferente quando vem o orixá. E também não sei como ela descobre de que orixá é. Ela joga os búzios e vê.” Na festa de Ogum, observou Naiana, havia muitos Oguns de Ronda e outros Oguns: “É tudo um Ogum, sendo que o Ogum Marinho tem o domínio dele no mar, já o Ogum de Ronda tem outro domínio. Todos são um só e tem domínios diferentes.” Por ser um orixá, complementou, ele pode pegar em mais de uma pessoa ao mesmo tempo e pode ser raspado ou de dote, tanto faz. Por isso, costumam dizer que “o orixá que passa na minha cabeça também passa na tua”, para dizer que somos todos iguais, afirmou Naiana. Como cada orixá tem seu exu, seu erê, eles também se multiplicam. É por isso que pode ter mais de uma pessoa com o erê Pedrinha, sendo que precisa ser da mesma qualidade de Xangô. O erê, o exu e o caboclo nascem do orixá. Por isso, antes da iniciação, é preciso ver qual é a falange, a linhagem do orixá, porque é ele que puxa. Já o marujo, explicou, é da mesma falange do exu, mas exu vem para abrir e o marujo vem para fechar. Os pretos velhos, os caboclos e marujos não se multiplicam porque eles têm uma trajetória particular. Conforme explicou, a vovó Cambinda de dona Otília é uma só mesmo que exista outra vovó Cambinda. É como se encontrasse com outra pessoa com o nome igual. Ela tem o mesmo nome que você, mas é uma outra pessoa. Assim, complementou, Juremeira tem a trajetória dele. Quando ele vem, a gente já conhece, já sabe o que ele vai contar, já sabe da história dele. Os mensageiros vão se desenvolvendo com o passar do tempo. Os santos também vão se desenvolvendo, assim como Exu. Quando é assentado, é possível ver que eles estão comendo, estão bebendo. É assim que Naiana percebe que eles estão se desenvolvendo e se 129

estão próximos. Quando ela percebe que eles estão afastados, que não estão vindo irradiar a força deles, ela procura dar uma obrigação, dar um agrado para o santo. Já dona Otília, Naiana observou, por ter muitos anos de santo, muita vivência, vivia irradiada o tempo todo, ou no orixá, ou no Caboclo Juremeira: “Mainha não fica mais cem por cento pura. Ela está irradiada o tempo todo. É só chegar perto dela que a gente sente.” *

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Dona Otília já não é mais filha de santo do pai que a iniciou na linha da angola. Ela saiu da casa do antigo pai de santo por discordar de algumas posturas dele. Em 2011, dona Otília tornou-se filha de Jaques, que é pai de santo de uma casa de candomblé ketu localizada no município de Itagimirim, há aproximadamente 110 quilômetros de distância de Belmonte. Naiana disse que dona Otília entrou no ketu mais porque tinha que dar a obrigação de 45 anos de santo (sendo 23 na linha da angola). Como Jaques e Valdirinei, que é pai-pequeno da casa de Jaques, sempre iam às festas na casa de dona Otília, ela acabou fazendo amizade com eles e pediu para darem a obrigação dela de ano. Porém, observa Naiana, “apesar de mainha ter feito a obrigação no ketu, ela não é do ketu, ela é da angola”. Quando perguntei para Naiana qual a diferença do ketu para a angola, ela disse que as doutrinas de cada um são diferentes. No ketu, o santo vem totalmente diferente: ele aprende a dançar de um determinado jeito e ele só dança acompanhado. É como se, na angola, o santo viesse do jeito que ele é mesmo ‒ ele dança sozinho, ele pode falar. Já na umbanda, ele é mais “puro”, ele vem igual como é no lugar de onde ele vem mesmo: ele conversa, ele brinca, ele dança. Conforme exposto por Naiana, a manifestação em cada doutrina opera uma transformação que não é propriamente uma mudança de natureza, o ser é o mesmo, mas o que muda é a sua manifestação: da umbanda ao ketu, passando pela angola, o que manifesta é a singularização da faixa-intensidade (orixá) numa linha doutrina que o modula de maneira 130

específica. Nas rodas de xirê, de modo muito geral, o ritual procedia primeiro realizando o toque para Exu, saudando o salão, os orixás, e depois passava para os caboclos. Era dona Otília quem conduzia o ritual, e os santos dos filhos manifestavam e dançavam mas não puxavam chulas. O toque era realizado até entrar nas águas, e depois de um intervalo tocavam para caboclo ou preto velho a depender da obrigação. Nesses casos, era seu Juremeira ou vovó Cambinda quem manifestava para realizar o candomblé. Somente na segunda-feira realizavam o tabuleiro para finalizar a obrigação tocando para os mais velhos: Omulu, Obaluaiê, Nanã e Oxalá. Sobre a família de santo, Naiana falou que é somente a da casa da mãe dela que conta, e que dona Otília nunca fez questão de carregar nome de roça nenhuma ‒ o nome que ela carrega é de Juremeira, afirmou. A linhagem da família de santo, importante para identificar o axé da casa e para pôr em relação pais, filhos, irmãos, conforme dona Rita Camuinganga e Cosme Talassidã se apresentam, é posta de lado. O que opera é a linhagem da herança por meio da identificação da trajetória do Caboclo Juremeira, que passou de dona Vivi para dona Otília, e ainda há expectativas de que ele seja transmitido de dona Otília para uma de suas filhas de sangue. *

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Foi no sábado dia 13 de agosto, dia da festa do Caboclo Juremeira, que encontrei com Naiana rapidamente no bar de Geo e ela me contou como, no dia anterior, se deram os preparativos da jurema, bebida ritual do Caboclo, e se desenrolou o toque, uma das formas de se referir à cerimônia religiosa. Pela manhã, disse ela, levantaram a bandeira de Tempo na casa, e em seguida começaram a fazer os cortes para Juremeira preparar a jurema. Os filhos foram chegando trazendo as abóboras do Caboclo. O toque começou cedo, às 13 horas. O Caboclo Juremeira já estava em terra desde o momento em que veio preparar a jurema. 131

Quando ele começou a puxar os pontos, os cantos rituais, Naiana disse que todos os filhos viraram, inclusive ela. Eles vieram para beber a jurema do pai, explicou. Depois do ritual da jurema, eles começaram o corte para Exu e para os santos, e Vanderson, filho da casa, virou na bombogira dele. Naiana observou que achava que Juremeira iria “espantar” a bombogira de Vanderson, pois dona Tita estava afastada da casa e por isso não tinha por que “chamar os exus para brincar”. Contudo, para sua surpresa, o Caboclo avisou que naquele momento a casa ia virar. Juremeira deu passagem para a bombogira de dona Otília. Quando ela veio, puxou a chula, o cântico ritual, “ela é a bombogira, rainha do cabaré” e quase todos os filhos viraram no exu, até uns que nunca tinham manifestado. Naiana disse que sentiu também que quase ia, mas segurou porque dona Otília estava virada e alguém tinha que tomar conta do candomblé: “meu pai Juremeira segura o candomblé, mas exu gosta de bagunça, tem que ter alguém para olhar.” De acordo com Naiana, o Seu Zé de Fumaça, o santo de herança do seu primo, veio e sambou a noite toda com a bombogira de dona Otília. Naiana disse que era ele quem estava puxando essa linha forte de exu que estava entrando na casa. Disse ainda que havia tanta bombogira bonita que a de Vanderson, que estava toda paramentada, chegou a se encolher. Ao final do toque, que, contou, durou até o amanhecer, a bombogira de dona Otília anunciou que a festa dela teria que ser feita ainda naquele ano. Naiana observou que as mais velhas no santo deveriam reclamar da gira, porque, de acordo com Naiana, há muito preconceito com exu, pois as pessoas acham que é o Diabo, por causa das confusões que alguns pais de santo fazem. Contudo, ela observou que Exu é “pau mandado”, que ele só faz o que o orixá manda. 3.5 Filho de Exu “Só podia ser tu mesmo, filho de Exu!”, Naiana exclamava e saía rindo após Fumaça emitir um de seus comentários mordazes, feito sempre ao pé do ouvido e despertando 132

curiosidade em saber quem era o alvo de sua língua ferina. Naiana, ignorando a orientação da mãe, sempre revelava a herança do primo, que, a seu ver, não tinha como ser escondida: estava visível para quem quisesse ver que Cristóvão Andrade, o Fumaça, era filho de Exu. A risada, a postura, o gosto por intrigas e mesmo a irradiação constante eram sinais que identificavam a herança de Fumaça. Fumaça é primo de segundo grau de Naiana, casado com Cristina e pai de Ícaro, na época com dois anos. Ele dava aulas no grupo de capoeira Raízes de Zumbi, em Belmonte, mas resolveu deixar o grupo para o irmão Badaró e se dedicar exclusivamente ao ofício de tatuador. Sua mãe, Honorina Andrade, é filha do falecido Antônio Andrade, irmão do também já falecido seu Cristino, pai de dona Otília e dona Zezé. Conta Honorina que foi na década de 1920 que a família de seu pai veio de Canavieiras para residir em Belmonte. Fumaça ingressou no terreiro de dona Otília em 2010: durante a obrigação de Juremeira, antes da festa, quando foi pegar uma abóbora para a obrigação, ele virou no seu Zé. Antes, contudo, Naiana disse que ele já tinha rodado todos os candomblés de Belmonte: “Cristóvão todo mundo tentou puxar, mas parece que estava esperando mainha pôr a mão, porque tem a história de ser da família, essas coisas. E o seu Zé é da jurema; o Boiadeiro também é da jurema... tá tudo na linhagem certinho. Tá tudo na aldeia de meu pai Juremeira.” Apesar de ter frequentado diferentes casas, foi somente na casa de dona Otília que seu Zé manifestou. Pesou, na avaliação de Naiana e também na de Fumaça, o fato de ele ser da família de sangue de dona Otília, assim como o fato de ter um guia de herança, seu Zé, e um caboclo, Boiadeiro, da linhagem de Juremeira: esses são sinais que a posteriori apareceram como indícios de que o santo estava procurando a pessoa certa para se desenvolver. Assim, em julho de 2011, dona Otília puxou o santo de Fumaça: ela puxou o Xangô, que tem exu Marabô de escravo. Seu erê, Rochinha, também veio junto. O caboclo Boiadeiro só deu indícios de que estava por vir: “Mainha puxou o Xangô, e veio Rochinha também e 133

parece que o caboclo dele, seu Boiadeiro, que é da linhagem, vai vir também. Se ele tiver força é capaz de vir na festa de meu pai”, disse Naiana, que ainda avaliou: “Fumaça já saiu com o pacote todo: já manifestou todos os santos e ainda tem o seu Zé de herança.” Fumaça recebeu seu Zé de herança do pai. Após o falecimento do marido, Honorina permaneceu zelando do guia, e ainda quando criança Fumaça começou a sonhar com um homem de chapéu branco. Honorina já sabia que Fumaça viria a manifestar seu Zé: durante a gestação de Fumaça, seu Zé manifestou no marido e disse a ela que veio apenas para dizer que o menino que ela esperava era filho dele. Todavia, por ser ainda uma criança quando começou a revelar os sonhos para a mãe, Honorina levou-o para ser rezado por seu Inácio Profeta, poderoso rezador da cidade na época. Seu Inácio Profeta rezou Fumaça e conseguiu segurar seu Zé. Fumaça cresceu sabendo da herança que tinha, e desde jovem aprendeu a conviver com a presença que sente irradiada nele o tempo todo. Honorina ensinou Fumaça a zelar de seu Zé, e ele foi prosseguindo desse modo até o dia em que seu Zé manifestou na obrigação de Juremeira. Para Fumaça, esse foi o sinal decisivo de que deveria entrar para a casa da tia, interpretando a manifestação como o consentimento de seu Zé. Desde que entrou para a casa de dona Otília, Fumaça observou que se sente melhor, se sente mais “alinhado”: ele andou um período sem saber o que fazer depois que se desgostou com a capoeira, mas se encontrou no ofício de tatuador. A esposa, o filho, a casa e o estúdio de tatuagem montado são enumerados como sinais do seu alinhamento. Ele observa ainda que ter puxado o orixá e a possibilidade do caboclo vir é uma coisa boa para o seu desenvolvimento: Fumaça sente a irradiação de seu Zé o tempo todo, seu sorriso e sua presença. Após entrar para a casa e ter puxado o seu santo de cabeça, no entanto, ele já sente a presença constante do orixá, avaliando que essa presença de seu pai Xangô também trará coisas boas para a sua vida. 134

Capítulo 4: CASAS DE SANTO

“Na sua aldeia, lá na Jurema, não se faz nada sem ordem suprema.”

Certa tarde, conversando com seu Nilton e Naiana na casa de Pedrinha, puxei novamente conversa tentando entender, de modo um tanto equivocado, as diferenças entre quem tinha o santo raspado e quem tinha o santo de dote. Naiana foi enfática dizendo que não havia diferença, pois “o santo que pega em raspado também pega em não raspado e muitas vezes o não raspado tem mais força que o raspado”. Mas a questão, continuou Naiana, é que há muito pai de santo que, por inveja, para quebrar a força do filho, acaba enganando, dizendo que o santo raspado é melhor. Para exemplificar, Naiana recordou a história da mãe, que, por ocasião das obrigações para iniciar na linha da angola, manifestou no Caboclo Juremeira, quem alertou ao pai de santo que o santo de dona Otília não era de raspar. O santo de dona Otília não precisa “curvar para pai de santo nenhum”, observou. De acordo com Naiana, o fato do pai de santo ter optado por não raspar o santo demonstra a força do pai de santo, mas, sobretudo, a força do santo de sua mãe. Dona Otília já veio com santo de dote, o santo pronto ou santo feito, também como é costume dizer, e, mesmo antes de nascer, deu o sinal de que viria com a missão de trabalhar no santo: dona Otília chorou na barriga da mãe, conforme contam, e tem na testa uma marca de nascença em forma de estrela. Aos seis anos de idade, ela manifestou no Oxóssi, mas seu Cristino, seu pai, não deixou que o santo dela se desenvolvesse naquela época. De acordo com Naiana, isso quebrou “um pouco” a força de sua mãe, pois ela poderia ter começado a se desenvolver no santo há mais tempo. Dona Otília só começou a trabalhar no santo com dezenove anos, após receber de 135

herança de sangue o Caboclo Juremeira, caboclo que veio de sua genitora, dona Vivi. Oxóssi manifestou primeiro e deu passagem para o Caboclo Juremeira, que veio continuar seu trabalho. A partir de então, dona Otília pôde começar a cumprir sua missão e a desenvolver no santo. Não é Oxóssi, contudo, que é o santo de cabeça de dona Otília, é Oxum. Mas, de acordo com Naiana, Oxóssi deve ter manifestado na frente por conta dessa herança de dona Otília, que puxou primeiro esse santo. Foi por meio do trabalho no santo que ela, o Caboclo Juremeira e seus santos – Oxum e Oxóssi – se desenvolveram, num cruzamento singular dessas forças que, com o passar do tempo, foram se “afinando” cada vez mais: dona Otília vive irradiada o tempo todo por elas, como faz questão de dizer Naiana e como pude também sentir. Dona Otília tem força. A trajetória do trabalho e desenvolvimento no santo é explicitada: o Caboclo Juremeira primeiro veio “rezando” as pessoas e depois começou a reunir filhos e a promover toques na casa, trabalhando na linha da umbanda; o trabalho para “tirar os 21” de dona Tita levou dona Otília para o desenvolvimento na linha da angola, no qual passou, entre outras coisas, a dar o bori e fazer os assentamentos dos orixás e de Exu; e vinte e três anos depois, para dar a obrigação de ano, dona Otília “deitou nas águas do ketu”, isto é, aprendeu a doutrina do ketu. Essa trajetória trouxe mudanças para a vida de dona Otília e para seus santos, que passaram a se apresentar de um modo diferente: dona Otília teve revelações dos saberes que herdou de dote, como a visão para ler nos búzios e no copo d’água, e outros saberes que, aos poucos, foram passados pelo Caboclo e aprendidos com o trabalho no santo. Alguns novos procedimentos rituais foram incorporados à casa: procedimentos de limpeza de corpo, o bori e a feitura do assentamento, por exemplo, que, conforme Naiana explicou, tanto permitem ver que os santos estão se desenvolvendo, como também torná-los mais próximos. Outros procedimentos tiveram que ser modificados, como a obrigação do Caboclo Juremeira e os 136

santos que passaram a manifestar na angola: ele agora dança diferente, noutros ritmos e fala pouco. O santo pronto de dona Otília pôde se desenvolver mais, e os demais mensageiros puxados na linhagem da Oxum seguem trabalhando nas suas linhas: a preta-velha e a exua, dando continuidade ao trabalho na linha da umbanda. Além disso, o Caboclo Juremeira avisou que estava vindo uma linhagem forte de exu para trabalhar na casa. Dona Otília se desenvolveu no santo e o Caboclo Juremeira, que já possuía uma trajetória de trabalho no santo, passou a vir trabalhar também em outras linhas. Diferentes linhas-doutrinas passaram a se manifestar de modo a formar um território de fluxos-intensidades por meio dos quais dona Otília e sua casa foram se singularizando.Entretanto, na trajetória no santo de dona Otília, nem todos os procedimentos de todas as linhas puderam ser manipulados: a iniciação no candomblé, na linha da angola, prescindiu o ritual de raspar o santo. Foi o Caboclo Juremeira, o caboclo que recebeu de herança de sangue, quem manifestou para dar o recado. O ritual quebraria a força; e o santo de dona Otília não precisava “curvar para pai de santo algum”. Essas duas sentenças têm de ser examinadas separadamente, do mesmo modo que Naiana as apresentou. Uma primeira pergunta a fazer é: como o ritual poderia quebrar a força do santo de dona Otília? À luz das trajetórias de dona Rita Camuinganga, Cosme Talassidã e da própria Naiana, é possível compreender que, se dona Otília procedesse o ritual de raspar o santo, o Caboclo Juremeira não viria mais. “Santo de herança não é santo de raspar”, eis um limite apontado para o trabalho de organização de forças nos candomblés de Belmonte. Mas, como também é regra nos candomblés, a depender do caso, quebrar essa força pode ser importante para se desenvolver. Assim sendo, dona Rita Camuinganga, sete anos após Iansã ter puxado Ogum para trabalhar, raspou o santo avaliando que seria melhor para o seu desenvolvimento. Ogum deixou de vir após o procedimento ritual, o que faz com que 137

dona Rita considere ser ele um santo de herança; Cosme Talassidã, após nove anos trabalhando na linha da umbanda e manifestando Rei Apanaiá, santo de herança que recebeu de sua mãe, também raspou o santo e deixou de recebê-lo. A própria dona Otília teve sua força um pouco quebrada, de acordo com Naiana, quando o pai dela não deixou o Oxóssi de dote se desenvolver na ocasião em que se manifestou pela primeira vez. Por outro lado, caso efetuasse o procedimento ritual de raspar o santo naquela época, dona Otília perderia o desenvolvimento alcançado durante os 22 anos de trabalho no santo com o Caboclo Juremeira. A considerar que, com o passar do tempo, o vínculo que vai sendo criado entre pessoa-mensageiro-orixá é um vínculo de força da ordem do constituinte-constitutivo, é possível imaginar que, assim, dona Otília perderia também uma parte fundamental de quem ela é. Todavia, não é somente a diferença do tempo de trabalho no santo que fica em evidência quando se põe essas trajetórias em relação: cumpre notar que nem Rei Apanaiá, nem Ogum eram os principais mensageiros com os quais Cosme Talassidã e dona Rita Camuinganga trabalhavam. Cada caso é um caso. Cada um em sua trajetória teve não apenas de trabalhar de modo a captar e modular determinadas forças, mas também a quebrar outras para se desenvolver no santo. O trabalho no santo envolve, pois, não apenas o estabelecimento de conexões, mas também a realização de cortes. “Santo de herança não é santo de raspar”. Essa orientação, contudo, não equivale a dizer que santo de herança não manifesta na linha do candomblé. Naiana passou a receber Ogum de Ronda, que pode ser de herança de sangue de sua avó: o santo manifestou quando ela estava recolhida, durante o segundo dia de obrigação de sete anos de iniciada; nem seu pai de santo, nem dona Otília esperavam sua manifestação. Ogum de Ronda veio compor com o enredo de santo de Naiana. Mas há mais: além de não ser santo de raspar, santo de herança não pode ser santo de 138

frente, no caso de vir pela linha da umbanda, conforme elucida seu Raimundo das Flores. Sua trajetória no santo iniciou com a manifestação de Obaluaiê, que veio como herança espiritual da rezadeira Anaíza. Obaluaiê puxou a velha Mariana, que trabalha na linha espiritual. Por meio do desenvolvimento no santo, o Oxóssi, santo de frente de seu Raimundo, manifestou e puxou sua linhagem de mensageiros, dentre os quais veio a velha Maria Conga, que trabalha na umbanda. A mensageira do santo de frente de seu Raimundo das Flores vive uma guerra particular, digamos assim, com vovó Mariana, que toma a frente na condução dos trabalhos na casa de seu Raimundo e não deixa desenvolver plenamente (ou quebra um pouco a força da) a linha da umbanda. A linhagem de exu, por exemplo, não desenvolve na casa de seu Raimundo das Flores. *

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Retornando à conversa com Naiana e seu Nilton. Naiana destacou outro ponto a ser considerado: o santo de dona Otília não precisava “curvar para pai de santo nenhum”. Essa expressão remete inicialmente à ideia de que o santo (não só dona Otília) ingressaria numa rede específica de relações de uma família de santo do candomblé, que é estabelecida não apenas entre humanos, mas inclui também os não-humanos, como elucida Cossard em seu artigo “A filha-de-Santo” (2004). Nesse contexto, a expressão “curvar para o pai de santo” certamente nos direciona para a vertente hierárquica das relações estabelecidas entre os membros da comunidade de santo (ver Lima, 2004; Cossard, 2004); vertente forte, mas que não é a única. A descrição de Cossard permite compreender que a iniciação no candomblé cria um vínculo forte entre os que fazem parte do mesmo barco de iaô 31, como também entre todos da mesma família de santo. Esse vínculo não é apenas um vínculo social por meio do qual a iaô aprende como se portar no seio da comunidade religiosa e passa a pertencer a um novo 31

As iniciações, em geral, são feitas em grupos que são chamados de barcos.

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coletivo; ele é também um vínculo espiritual no qual todos da mesma família passam a partilhar do mesmo axé de diferentes modos: A iniciação e as diversas obrigações, que retornam a intervalos precisos, permitem à força sagrada, ao axé, de se transmitir à filha-de-santo. § O axé lhe é comunicado de várias maneiras: − passa diretamente do pai-de-santo a cada iniciada, por ocasião das diferentes obrigações; − comunica-se também de uma filha de santo à outra, seguindo a ordem de iniciação; − transmite-se também de modo global de “barco” a “barco”, pois o “barco” forma um todo, no interior do qual cada membro é solidário com os demais. O erro de uma iniciada diminui a força de todo o “barco”, bem como a das iniciadas que virão em seguida. Por outro lado, esse erro não prejudica em nada a força das iniciadas mais antigas. (Cossard, 2004: 151).

Ainda conforme a argumentação de Cossard, por meio de um complexo e sutil sistema de filiação entre os orixás do mesmo tipo, a tendência é reforçar as ligações em toda a comunidade ao nível do barco32, nível em que, ainda que se obedeça estritamente as relações hierárquicas, são criados fortes vínculos de companheirismo e espirituais entre seus membros (idem: 144). Especificamente sobre a rede de relações entre não-humanos, Cossard descreve como: (...) estabelece-se uma filiação entre os orixás do mesmo tipo, à medida que eles aparecem na sucessão dos “barcos”. Considera-se que o orixá provoca a vinda de um outro do mesmo tipo. Diz-se então que “ele o chama” e que “esse sistema muito sutil permite conservar uma estrutura extremamente precisa, que reforça as relações já existentes ao nível do “barco”. Graças a este fato (…) A comunidade forma um todo indivisível. (Cossard, 2004: 152-3).

Assim, as relações hierárquicas são atravessadas por relações de reciprocidade e solidariedade, que servem ao princípio de manter a “coesão da comunidade de santo” e fazer circular o axé em todas as direções; desse modo, alimenta-se a todos e à própria força pela sua circulação (idem: 153). Portanto, de uma perspectiva mais sociológica, a família de santo opera de modo a 32

Ver também Lima, 2004: 91-100.

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compor um circuito específico de captação, circulação e troca de axé, que se alimenta e alimenta a todos que dela fazem parte. Todos (só) são em relação. Conforme Goldman, tratase de uma máquina social catalizadora e distribuidora de força (2012: 279). O trabalho de organização de forças que ora se dava na relação pessoa-mensageiro-orixá aumenta de escopo, estabelecendo conexões com outros seres. Cossard descreve com detalhes as diferentes formas de como se dá essa circulação de axé por meio do convívio entre os integrantes de uma mesma família de santo. Todavia, é Goldman quem explicita como não é apenas pelo convívio, mas também pelo procedimento ritual da iniciação, que o pai ou a mãe de santo opera de modo a estabelecer a conexão do/a neófito/a com essa força. Observando que: “‘Participar’ não é apenas ‘conviver’, mas também entrar em relação, material ou não, com aquilo que constitui o ritual. (…) a ‘transmissão por participação”’ diz respeito tanto ao que se aprende enquanto membro de um terreiro quanto ao que se recebe na iniciação propriamente dita” (Goldman, 2012: 279). Prossegue: Juana Elbein dos Santos (1977:37-43) demonstrou que essa força única e múltipla tem um modo de circulação fundamental: o “sangue”. Palavra que, entretanto, não significa exatamente nesse contexto o que poderíamos imaginar. Pois esse sangue não é apenas o que nós mesmos chamamos de sangue: ele pode ser vermelho, branco e preto e ele se distribui entre os reinos animal, vegetal e mineral, gerando assim nove possibilidades das quais nós só retemos uma: “o ‘sangue’ vermelho […] do reino animal: corrimento menstrual, sangue humano ou animal” (Elbein dos Santos 1977:41). § Ora, isso só pode significar que o sangue que recebo dos meus antepassados, aquele que recebo na iniciação e aquele que flui na convivência cotidiana — seja o das plantas e o dos animais consagrados ao longo dos anos no terreiro, seja o dos alimentos que compartilho nas refeições coletivas, seja simplesmente o das pessoas, divindades e espíritos com quem convivo — são, de certo ponto de vista, uma única e mesma coisa. (idem).

Diante dessa perspectiva, dizer que o santo de dona Otília não precisa “curvar para pai de santo nenhum” significa dizer que o santo de dona Otília prescinde direcionar-se, ou melhor, tomar parte desta complexa máquina social e ritual catalizadora e distribuidora de força, ao menos por princípio. É interessante dar continuidade ao argumento de Naiana e seu Nilton para trazer mais detalhes sobre o assunto. 141

Após narrar o episódio da iniciação de sua mãe e relembrar a trajetória de dona Otília no santo, Naiana apresentou sua visão sobre o que sucedera com dona Rita Camuinganga: a enganaram e quebraram sua força ao rasparem o santo dela, pois dona Rita, assim como dona Otília, tinha o santo de dote e, complementou, ela também recebera a Vovó Maria Conga para trabalhar, não foi preciso que ninguém puxasse. Isso ocorreu quando dona Rita tinha 12 anos, observou. Seu Nilton complementou dizendo que dona Rita foi a maior mãe de santo de Belmonte: ela era uma criança quando começou a trabalhar no santo. O problema de dona Rita começou quando ela foi para o Rio e voltou raspada. Quebraram a força dela. Muitas vezes para ser melhor do que o filho, o pai de santo faz isso.. Hoje, não a consideram uma mãe com tanta força, ela não tem mais tantos filhos e os seus candomblés não ficam cheios como ficavam. Foi isso também o que aconteceu com dona Maria, que recebeu o Caboclo Boiadeiro de dote, observou Naiana. Ele era um caboclo que tinha muita força, trabalhava na linha da umbanda, muitas pessoas iam procurá-lo, mas depois que dona Maria voltou do Rio, onde ela raspou, ele não foi mais o mesmo. Dona Maria não tem filho de santo nenhum e depende dos filhos dos outros para fazer candomblé na sua casa. A diferença, observou Naiana, é que ninguém enganou dona Maria, foi ela quem quis ir para o Rio de Janeiro e que ficou atrás de pai de santo para raspá-la. A perda dos filhos de santo é um sinal da perda da força das mães de santo. A quebra da força dos santos foi operada por pais de santo que, sabendo que os santos não eram de raspar, influenciaram-nas ainda assim a raspar o santo. Os santos não eram somente santos de dote; eles eram santos que já trabalhavam, que já tinham um desenvolvimento, possuíam filhos. Naiana e seu Nilton, ao analisarem as trajetórias das outras duas mães de santo, não apontaram que tenha se tratado apenas de raspar os santos que vieram de dote, que já tinham 142

puxado seus mensageiros, mas sim de quebrar forças que já estavam no curso do seu desenvolvimento, e que, sobretudo, já formavam circuitos próprios de captação e circulação de axé, e, ao se vincularem a outras, acabaram sendo quebradas, conforme eles observaram. Nesse sentido, é importante notar que, diferentemente de dona Rita Camuinganga e Cosme Talassidã, dona Otília não faz questão de carregar nome de roça de santo nenhum, apenas o do Caboclo Juremeira, como disse Naiana. Dona Otília procede de modo a conservar a trajetória de desenvolvimento do Caboclo, pontuando os momentos em que passou a participar da linha da umbanda, da linha da angola e da linha do ketu, mas não se apresenta vinculada a uma família de axé específica. Os pais de santo aparecem tão somente como pais de santo, com seus nomes próprios e destituídos de dijinas33, sendo assim a vinculação dada pela linha-doutrina com a qual trabalham. De outro modo, dona Rita Camuinganga e Cosme Talassidã apresentam-se como da mesma família de axé, nomeiam os respectivos pais de santo, destacam que fazem parte da mesma roça e que em suas trajetórias optaram por se manter sempre no mesmo axé: com o falecimento do pai de santo Matalandê, tornarem-se filhos do irmão de santo Muzalambê; por ocasião da morte de Muzalambê, optaram por se tornar filhos de Kitala Zambelê, também iniciado por Matalandê. De acordo com dona Rita, é melhor manter-se na mesma família para evitar perder axé. *

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É interessante observar que Naiana também recebeu o santo de dote, mas, diferente de dona Otília, o santo de Naiana foi raspado. Quando em outra ocasião lhe perguntei se o procedimento não tinha quebrado a sua força, ela considerou que, de certo modo, sim, mas que era diferente: o santo veio de dote, já veio pronto, mas, além de não ter se desenvolvido ainda, aceitou se desenvolver nessa linha. E prosseguiu estabelecendo comparação com o 33

Novo nome dado ao que procede ao ritual completo de iniciação.

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caso de sua mãe: o santo de dona Otília já tinha se desenvolvido sem pai de santo algum “colocar a mão”. Se colocassem a mão na cabeça de dona Otília, o santo perderia a força para vir na angola, ela teria que começar a desenvolver tudo de novo, explicou Naiana. Como já mencionado, a alternativa trilhada por dona Otília-Juremeira-Oxóssi para não quebrar a força foi iniciar na linha da angola, mas sem raspar.34 Conforme Naiana expôs, receber o santo de dote não exclui em absoluto a possibilidade da iniciação completa ou parcial na linha do candomblé. Pelo contrário, esse pode ser um caminho trilhado, a considerar o desenvolvimento no santo e a sua aceitação. Fatores como o tempo de trabalho no santo, receber santo de herança e o fato de possuir filhos de santo também são levados em consideração, pois, como destacou, a depender de como se ingressa numa família de santo, pode ser o caso de ocorrer uma quebra da força. Entretanto, há ainda algo a mais a se considerar na argumentação de Naiana: ela informa que ainda não havia se desenvolvido no santo, nem manifestado um santo de herança e, contudo, não deixou de considerar que de certo modo quebrou a força ao raspar o santo. Como se processa então a quebra da força por meio do procedimento ritual de raspar o santo? Ao olhar com mais cuidado para a trajetória de dona Rita Camuinganga e Cosme Talassidã, é possível encontrar algumas respostas para essa questão e ao mesmo tempo retomar a ideia de que quebrar a força também é parte do trabalho de (im)plantação e organização da força (axé); a depender do caso, quebrar a força pode ser uma estratégia para desenvolvê-la e/ou uma estratégia para prolongar a vida. Cosme Talassidã ingressou no candomblé justamente para apaziguar a guerra de orixás 34

Naiana destaca que, além do santo vir de dote, o tempo de trabalho no santo é um dos principais demarcadores para levar em consideração a força do santo. Mas isso não significa dizer que estes são os únicos fatores: desenvolver a força no santo depende da vida que a pessoa leva. Se, por exemplo, ela não zela dos seus santos como deveria, não os alimenta, não dá as obrigações, alguém com menos tempo no santo pode ter mais força que ela. Naiana observa também que é importante manter segredo sobre suas forças: contar os conhecimentos que são adquiridos ou divulgar o que o santo faz também é uma forma de quebrar a força.

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pela sua cabeça, e lá não apenas definiu quem era seu santo de frente como também a regência dos demais orixás que compõem seu enredo de santo: Oxóssi se confirmou como dono de sua cabeça e passou a manifestar na angola; Oxumaré passou a reinar em seguida. Mesmo com essa definição, Cosme teve de assumir a obrigação com Oxumaré de dar o balaio pelo menos durante sete anos consecutivos após raspar o santo. Todavia, houve um procedimento de distribuição e “fixação” de fluxos-intensidades em uma corrente que, ainda que não “domesticada”, é, como diz o nome, assentada. Assim, o ritual de raspar o santo não apenas cria um vínculo forte da/o iniciada/o com seu orixá de cabeça e com a família de axé, mas também com todo o enredo de santo, o adjuntó e o terceiro santo, e, além disso, com uma série não humana, mas igualmente viva que vai sendo modulada com o passar dos anos: os assentamentos (Goldman, 1984, 1987, 2005; Cossard, 2004; Dos Anjos, 2008, 2009). Considerando que o orixá é uma força que se singulariza nos espaços-momentos em que é “retido”, o trabalho de plantar e distribuir o axé do orixá no ori (cabeça), no otá (pedra sagrada do orixá) e nos instrumentos sagrados que formam os assentamentos consiste em formar uma corrente que pode ser alimentada e que visa ao desenvolvimento no santo, desenvolvimento este que resulta do trabalho com uma multiplicidade de linhas de força. Dona Rita recebeu a Iansã de dote e começou a trabalhar na linha da umbanda com a vovó Maria Conga com 12 anos de idade. Tinha muitos filhos e muitos clientes, conforme contam os que acompanharam esse período de sua vida. Sete anos depois, contudo, considerou entrar na linha do candomblé inicialmente por achar bonita a manifestação do santo nessa linha, conforme pontuou; em seguida, por considerar que adquiriria mais conhecimentos para lidar com as demandas da vida no santo. Demanda, no vocabulário do candomblé, é, entre tantas coisas, guerra de feitiço. Os feitiços são, grosso modo, “coisas feitas” que operam de modo a tirar a força de seus 145

destinatários para diferentes fins e de diferentes modos. Em geral, pessoas que vivem uma guerra de feitiço estão vulneráveis e dispendem energia (força) se protegendo de sucessivos ataques. Assim, a iniciação no candomblé de dona Rita também se processou para lidar com as demandas da vida no santo que estavam tirando sua força. Foi desse modo que, sete anos depois de receber a Iansã de dote, dona Rita passou pelo procedimento ritual de raspar o santo e, a partir daí, adquiriu conhecimentos para lidar com as demandas, se vinculando, então, a uma família de axé própria, partilhando sua força e participando da força da nova família. A Iansã, antes da obrigação, avisou a dona Rita que não era santa de raspar, mas, se dona Rita quisesse, ela poderia fazer isso. Contanto, a Iansã viria diferente. A narrativa de dona Rita é elucidativa: a Iansã nasceu de novo e manifestou como uma criança (erê) durante o período de iniciação para aprender a vir na nova doutrina. Para isso, dona Rita passou dois meses e sete dias virada na erê Fogueirinha. Goldman (2012) faz uma interessante consideração, de ordem estritamente antropológica, sobre as interpretações correntes do “modelo da feitura de cabeça”, observando que: Costuma-se mesmo insistir, e muito, sobre a dimensão de morte e renascimento desse processo iniciatório, sem se prestar a devida atenção ao fato de que, ainda que essa associação seja indubitavelmente verdadeira, ela não resolve nenhum problema, pois, afinal, tudo dependeria ainda das concepções nativas acerca dessa morte e desse renascimento, concepções que, como sabemos, pouco têm a ver com nossas ideias a respeito de fins e começos absolutos. (Goldman, 2012: 280).

Os santos de herança e os mensageiros dos orixás são eles mesmos provas “vivas” de que a morte não é exatamente o término de uma existência, mas sim sua transformação. 35 Os santos de herança (de sangue e de convivência), como já mencionado, são santos que têm 35

Nesse sentido, o artigo de Machado (2013) sobre o ritual do eru no Batuque Nação Oyó/RS fornece uma detalhada descrição etnográfica de como a morte também é um (des)feito no candomblé e opera não apenas de forma a quebrar os laços que uniam o egum à vida na terra, como também cria condições, o (re)faz, para que ele ingresse num novo mundo.

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uma trajetória particular que é possível de ser identificada. Eles já se desenvolveram, se singularizaram e por isso não podem se desenvolver na cabeça de outras pessoas. Isso quando se trata da faixa-intensidade-orixá, pois os mensageiros dos orixás podem ser puxados como as principais linhas de trabalho de uma pessoa e assim darem continuidade ao seu desenvolvimento, como elucida a trajetória do Caboclo Juremeira e da vovó Mariana de seu Raimundo das Flores. Nesse sentido, cumpre observar, portanto, que, ao nascer de novo, certamente a Iansã não morrera em termos absolutos; menos ainda dona Rita Camuinganga. Tratou-se de quebrar a força da Iansã para operar uma transformação singular. Entendendo que se trata de uma ontologia que é no entre que se processa a vida nos extremos do Ser e do Não-Ser (dos vivos e mortos), cabe considerar que o que ocorre no procedimento ritual de raspar o santo é uma transformação existencial (e não exclusivamente simbólica, como é costume denominar): um vínculo forte é firmado com uma multiplicidade de forças constituintes-constitutivas e, a partir de então, se é, ser ocupado por faixas-intensidade divinas, mas que devem ser alimentadas e desenvolvidas continuamente. Esse ser singular não é um estado, ele somente é na medida em que se faz, em que alimenta e desenvolve sua força. Assim, para retomar a transformação processada com a Iansã de dona Rita por meio do ritual de raspar o santo: ela passou a manifestar diferente, a manifestar na angola; todavia, sua linha de trabalho, a vovó Maria Conga, permanece e é alimentada ‒ uma manifestação de Iansã na linha de força dos pretos-velhos. Como os demais orixás, Iansã é uma das faixas-intensidade que atravessa o mundo e se singulariza nos espaços-instantes em que se manifesta. Ao pegar dona Rita, Iansã se singulariza; ao puxar sua mensageira Vovó Maria Conga, trata-se igualmente de uma singularização dessa passagem: numa interseção pessoa-mensageiro-orixá. Quando a Iansã passou a manifestar na linha da angola, dona Rita observou que ela veio 147

doutrinada, dançando diferente, deixou de trabalhar e falar, passou a ajoelhar para o pai de santo. Iansã passou a manifestar-se angola, poderia dizer, esta linha-doutrina é ela mesma uma modulação da faixa-intensidade Iansã. Outra observação é importante: o procedimento ritual de raspar o santo possibilita a feitura da qualidade do orixá ‒ um processo de singularização específico que na linha da umbanda não ocorre. É interessante pôr em relação as diferentes falas de dona Rita e Naiana sobre o assunto:

DONA RITA CAMUINGANGA

NAIANA

No candomblé, faz a qualidade do santo, Na festa de Ogum, havia muitos Oguns de Ronda e procedimento que não ocorre na umbanda. As outros Oguns: é tudo um Ogum, sendo que o Ogum qualidades do santo são as diferenças que existem do Marinho tem o domínio dele no mar, já o Ogum de mesmo orixá: assim como não há uma pessoa igual a Ronda tem outro domínio. Todos são um só e tem outra, mesmo quando tem o mesmo nome, não há domínios diferentes. Por ser um orixá, ele pode pegar orixá igual ao outro. A qualidade serve pra marcar em mais de uma pessoa ao mesmo tempo e pode ser essa diferença, é como se fosse o sobrenome. Outra raspado ou de dote, tanto faz. Por isso, costumam diferença importante é que mesmo havendo duas dizer que “o orixá que passa na minha cabeça pessoas da mesma qualidade da Iansã, a Iansã delas também passa na tua”, para dizer que somos todos não vai ser a mesma: cada pessoa tem o seu próprio iguais. orixá, porque cada pessoa é diferente da outra.

Ambas destacaram que os orixás manifestam de diferentes maneiras, que são faixas de intensidade que atravessam pessoas, domínios, que se multiplicam e se singularizam, como venho apontando. Dona Rita, contudo, enfatizou os processos de singularização: orixá genérico-qualidade-pessoa, enquanto Naiana enfatizou que se trata do mesmo orixá, independente dos domínios que essa faixa intensidade se manifesta: qualidade, natureza e pessoas. Essas nuances na argumentação são, a meu ver, centrais para pontuar o aspecto diferenciador da modulação de força que se processa por meio do desenvolvimento no santo na linha do candomblé e o que se processa por meio da linha da umbanda. De um lado, há todo um procedimento ritual que opera de modo a distribuir e fixar a multiplicidade de faixas 148

de intensidade, os orixás, para que eles passem a manifestar nos seres humanos e, com o passar do tempo, se estendam para uma série não humana, os assentamentos. A centralidade do processo se dá nas faixas intensidade-orixás: eles são plantados na cabeça e nos assentamentos, e os mensageiros se alimentam por meio deles. De outro, a centralidade do processo se dá na relação com os mensageiros dos orixás e por meio do trabalho no santo. Os orixás (santos de dote) manifestam e puxam seus mensageiros para trabalhar. São as linhas de força (linhas de trabalho) nas quais as faixasintensidade se manifestam que se singularizam e conduzem os procedimentos rituais, cada linha de força modulando a seu modo essa faixa. É por meio das festas, obrigações rituais anuais e, sobretudo, pelo trabalho no santo que mensageiros e orixás vão se desenvolvendo. São essas as linhas de orientação (linhas doutrinas) por meio das quais vão se efetuando a captação e a modulação da força-axé nos candomblés de Belmonte, trabalho que ao longo da vida pode ir ganhando densidade, ao ponto de passar a irradiar ao redor. Em ambos os casos, é importante observar, o procedimento está ancorado numa filosofia em que “o eu torna-se residual e múltiplo, desterritorializando todas as identidades precariamente constituídas numa multiplicidade de passagens” (Dos Anjos, 2008: 85). Ou conforme Vallado: “a filosofia africana do existir está no pensamento de que nada acontece dissociado de outro fato: Penso, sou a consequência do meio, ou: Existo porque o outro existe.” (2006: 143). Trata-se de aprender a dar passagem para forças que se singularizam, perspectivas outras, e de manipular os procedimentos das linhas-doutrinas de modo a constituir esse território (interior) de elaboração de forças que se projeta para o exterior. Tornarei à trajetória de dona Rita para explicitar melhor a proposição. Durante os preparativos para a saída da obrigação de 21 e 25 anos de dona Rita, a Oxum manifestou e deu o recado: não queria que realizassem as obrigações dela junto com as obrigações da Iansã; dona Rita teria que fazer uma festa apenas para a Oxum. Em outro dia, 149

contando a história, dona Rita observou que a Oxum dela sempre teve quizila 36 com a Iansã, mas ela tinha que atender as duas santas, pois a Oxum, depois de sua mãe Iansã e da Vovó, tinha dado muita coisa para ela ao longo da vida. O ritual firmou não apenas a Iansã, mas seu segundo e terceiro santo, e distribuiu a presença dos orixás e de Exu nos assentamentos. A santa de cabeça passou a ser alimentada periodicamente e também Oxum e Obaluaiê puderam se desenvolver. Dona Rita passou a compor com mais forças que a alimentam e são alimentadas por ela. Mas essa composição não é estável, ela é viva e desejante. O procedimento de raspar o santo apenas forneceu novas orientações para dar continuidade ao trabalho de captação e organização de forças. Sentir a proximidade da presença dos orixás e mensageiros, estar por eles irradiada, é trabalho delicado e baseado em manipulações e procedimentos específicos. Com o tempo, é possível adquirir certa maestria, mas cumpre observar que o axé é coisa viva: o axé da família de santo é também suscetível às demandas; é preciso zelar de uma Oxum inquizilada; os assentamentos comem e bebem e é preciso cuidar para que não se alimente demais uns e menos outros. A depender dos casos, essa máquina pessoal pode começar a formar também uma máquina social de captação e distribuição de força.

4.1 NOTAS SOBRE A INICIAÇÃO Era sábado, dia 23 de julho, tarde que antecedia a saída da obrigação de ano de dona Rita Camuinganga, e estávamos no barracão envoltos com os preparativos da festa. Dona Rita me chamou e pediu que eu enfiasse as contas da guia de Rogério, ogã suspenso da Iansã, para ela fechar depois. Durante a semana, eles iriam aproveitar a presença de Kitala para fazer uma obrigação para Rogério. Aproveitei para perguntar para ela quantos orixás uma pessoa poderia 36

Quizila é um conjunto de interdições que regulam a vida da iniciada; é aquilo que não é bom, que não convém (ver, por exemplo, Cossard, 2004: 138; Augrás, 2004). Quizila também serve para expressar as indisposições, os ciúmes entre as pessoas e entre os orixás. É muito comum ouvir dizer, por exemplo, quando uma pessoa está de mau humor ou indisposta com outra, que ela está inquizilada ou “de quizila com”.

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ter. Ela disse que, geralmente, há o santo dono da cabeça, que é o pai, que cuida do filho; esse santo tem o auxílio do segundo santo, que chama adjuntó, ou colo, e do terceiro santo; em seguida, há o puxa-folha, que é o caboclo; o marujo; o preto-velho e o erê, todos eles puxados pelo orixá de cabeça, vêm na sua linha. Além disso, toda pessoa possui também o exu escravo de cada orixá. Quando perguntei se era assim com todo mundo ou só com quem tinha iniciado, ela respondeu que a iniciação ajudava a desenvolver os santos da pessoa. Se a pessoa já tem o santo de dote, como era o caso dela, a iniciação ajuda o santo a evoluir, e observou que seus orixás se desenvolveram mais depois da iniciação: a Oxum e o Obaluaiê poderiam não se desenvolver, porque não estavam prontos como a Iansã, mas acabaram se desenvolvendo. Dona Rita me mostrou que tem na mão traços que formam uma cruz: esse é o sinal da missão dela, do trabalho na vida de santo. Mas observou que esse trabalho tem tempo para acabar. Depois da obrigação de 21 e 25 anos, ela continuará a dar as festas dos seus santos, mas pretende não trabalhar mais. Perguntei se todo mundo que trabalha no santo já tinha o destino marcado e ela observou que nem todo mundo tem a missão de trabalhar no santo. Há pessoas que querem raspar para colocar o santo para trabalhar, mas há os casos em que não é preciso, pois o santo já vem pronto. Há também aquelas que podem ficar apenas zelando do orixá sem compromisso, fazer as obrigações para evoluir no santo, mas que não precisam trabalhar. E também há, ainda, a vontade dos orixás. Tudo depende da vida da pessoa, conforme ela observou. Dona Rita disse que minha pesquisa podia ser uma via que os meus santos encontraram de me levar para a religião para desenvolver esse lado; contudo, essa não precisava ser a minha missão. E complementou dizendo ainda que não gosta de puxar o guia das pessoas para trabalhar, pois acha que a vida no santo é muito difícil, exige muito compromisso e muita obrigação. Mas quando o santo quer vir, ele vem. 151

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Como se sabe, se há algo com que todos parecem concordar é que ninguém se inicia no candomblé ‘porque quer’, mas porque sua iniciação é exigida pelo seu orixá. Por outro lado, creio que meus amigos também considerariam muito estranha, ou ao menos duvidosa, a possibilidade de existir alguém cujos dons sejam tão fortes que dispensariam qualquer iniciação. Em suma, a relação entre dom e iniciação não é nem da ordem da oposição, nem da redundância, nem da causalidade direta. (Goldman, 2012:282).

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O rito da iniciação constitui o primeiro e decisivo momento da integração das pessoas no candomblé e estabelece uma relação permanente que é a própria essência da organização social do grupo. A iniciação, em suas várias formas, além dos aspectos psicológicos que envolve, por ser o meio pelo qual as pessoas se identificam com seus orixás, provê, ainda, o mecanismo da agregação no grupo em que se poderá, eventualmente, atingir a completa participação nas hierarquias dirigentes. § Sempre que a vontade dos orixás se exprime com a ordem da feitura do santo numa determinada pessoa, esta deve submeter-se aos primeiros ritos integratórios, que é a lavagem das contas, o que faz da pessoa um noviço, na linguagem de santo, um abiã ou aspirante. O abiã usará as contas do seu orixá lavadas pela mãe-de-santo do terreiro, e participará dos trabalhos da casa, onde aprende o comportamento ritual que mais tarde lhe será mais estritamente imposto. Nesse processo de socialização religiosa, os abiãs podem permanecer por tempo indeterminado, a depender da “vontade do santo” (…). Muitas vezes o abiã continua longos anos ou toda a sua vida sem maiores compromissos rituais com o terreiro em que lavou suas contas e seu orixá “se contenta” com essa primeira e única obrigação. (Lima, 2004: 91. Grifos do autor).

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“Tudo depende da vida da pessoa; mas quando o santo quer vir, ele vem”. Especificamente com relação aos procedimentos de iniciação nos candomblés de Belmonte, é inevitável não notar que entre o dote e a iniciação completa existe um grande número de possibilidades de ser iniciado na vida no santo. Muitas vezes, a centralidade que se confere ao ritual de raspar o santo ofusca todos os demais procedimentos menores que são igualmente procedimentos de iniciação (feitura) da vida no santo e preparatórios para este ápice da vinculação das pessoas aos orixás e ao axé da casa. Os primeiros ritos integratórios, como descrito por Lima (2004), têm uma função de 152

socialização importante, mas é auspicioso notar que já se estabelece uma vinculação por meio da lavagem do colar de contas com o axé da casa. A pessoa passa a carregar consigo esse axé, do qual participa mais ou menos, a depender da frequência e envolvimento com os assuntos da casa. Durante o período de campo, foi na casa de dona Rita Camuinganga (e de um modo bem particular também na casa de seu Celso do Gandhy) que pude experienciar essa inserção iniciatória da vida no santo. Trata-se de um caminho a trilhar que não necessariamente precisa resultar no procedimento ritual de raspar o santo. A bem das vezes, em Belmonte, este procedimento ritual é uma exceção. Venho me baseando até aqui em uma concepção ontológica própria dos coletivos de religiões de matriz africana que propõe uma possibilidade de existência variável, tal qual Goldman (2005: 116) definiu: “entre os humanos não-iniciados, que tangenciam o Não-Ser, e o Ser pleno e quase intangível dos orixás uma continuidade é não apenas pensada, mas construída no processo de iniciação, caminho a ser percorrido pelos que, ingressando no culto, passam pelos rituais e aceitam as obrigações”. Tudo o que existe no mundo são modulações de força (axé) que se manifesta em faixas de intensidades específicas (orixás). Essas faixas de intensidade, por sua vez, manifestam em todos os seres e coisas existentes no mundo: elementos da natureza, tipos psicológicos, cores, sabores, materiais, etc.37 Também manifestam em linhas de força (mensageiros) específicas que vêm para trabalhar no mundo; e em linhas-doutrinas em que encarnam perspectivas (orientações e conjunto de regras) da angola, do ketu, e da umbanda (ou linha de caboclos). Enquanto pessoa (aparelho, ou matéria) o vir a ser nesse mundo depende de um trabalho contínuo de modulação dessas faixas de intensidade de modo a conseguir (im)plantá-

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Um importante estudo descrevendo detalhadamente formas de classificação do pensamento afro-religioso brasileiro foi apresentado por Lépine em sua tese “Contribuição ao estudo do sistema de classificação dos tipos psicológicos no candomblé ketu de Salvador” (1978).

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las e organizá-las em si mesmo. A vida no santo é uma vida de trabalho, pois o ser não é estável e só existe na medida em que vai sendo feito. As linhas-doutrinas oferecem orientações gerais para esse trabalho no santo. Por meio de combinatórias singulares, de manipulações específicas, as pessoas vão aprendendo a viver no santo (o que é em toda a sua amplitude aprender a viver). Nesse processo, estar inserido numa família de santo, ou simplesmente começar a frequentar uma casa de santo, é uma oportunidade ímpar para compor com forças que contribuam para a existência, bem como aprender os fundamentos das linhas-doutrinas para iniciar a vida no santo. Conhecimento que, como já explicitado, em nada se assemelha a um aprendizado de conteúdo sistematizado e transmitido de maneira professoral. É um conhecimento adquirido ao longo da vida e que se entranha, se imiscui com a pessoa. Nas casas de candomblé que frequentei em Belmonte, foi possível observar pelo menos três principais percursos de iniciação da vida no santo, todos tendo por base a ideia de que se trata de desenvolver uma força que já existe de alguma forma, mesmo antes de ser feita. Como explicou dona Rita, essas forças (santos) não necessariamente manifestam em todos, nem necessariamente o trabalho no santo é uma “missão” para todos. Existem diferentes formas de zelar do santo e desenvolvê-lo. É possível considerar que uma primeira vertente da feitura do santo, da iniciação, deriva da ideia de que os santos de dote e santos de herança se manifestam e pegam as pessoas para trabalhar; assim, as pessoas tornam-se aparelhos dos mensageiros dos santos e passam a se desenvolver no santo para cumprir uma “missão”. Os santos já são prontos, mas vêm para desenvolver (n)as linhas de força e (n)as pessoas. Assim, o aparelho inicia a vida no santo dando passes e consultas, zelando das obrigações com o santo. Não necessariamente a pessoa abre uma casa de santo. Ela pode apenas trabalhar em casa com parentes e amigos próximos, e, às vezes, nem isso: ela apenas recebe o santo, mas não o 154

desenvolve, não zela dele. Uma amiga, por exemplo, tinha um caboclo que queria vir e ela não frequentava os toques e casas de candomblé por isso, porque não queria desenvolvê-lo. O caboclo vinha para transmitir recados para ela ou para alguém conhecido; ela não tinha muito controle sobre os momentos ou situações nas quais ele poderia vir, mas também não tinha o interesse de desenvolver esse lado e considerava que, do jeito que estava, estava bom para ela. A iniciação na linha da umbanda: o procedimento é efetuado por um pai ou mãe de santo ou um santo de dote, que se responsabiliza por puxar o santo da outra pessoa. Muitas vezes, a iniciação se dá em função da realização de tratamentos espirituais, observando que os distúrbios de ordem física, psíquica e/ou emocional são efeitos ou das ações dos orixás sobre alguém escolhido para cumprir a missão de trabalhar no santo, ou resultado da contaminação pelo contato com eguns. Mas há os casos também das pessoas que entram “por amor”: aos orixás, ou a um guia específico, ou por gostarem do candomblé. Mesmo nesses casos observa-se que não é à toa que a pessoa entra para o candomblé, e que o “encantamento” inicial é um chamado do santo para o seu desenvolvimento. Esses fatores aparecem como um dos principais motivadores para que se efetue a necessidade da iniciação da pessoa no candomblé em Belmonte. Essa iniciação, como citado, literalmente puxa o santo da pessoa, de modo que ela possa cumprir com a “missão” de trabalhar no santo, ou se desenvolver no santo apenas zelando dele. Antes, porém, de puxar o santo, é normal que a pessoa passe por alguns rituais específicos que já são de algum modo uma forma de se iniciar e se desenvolver no santo. Cumpre observar que existem variações: esta não é uma sequência rígida e, a depender dos casos, as pessoas podem prescindir de alguns procedimentos, ou vir a realizá-los apenas posteriormente, depois de já ter se tornado um membro da casa. 155

− rituais de limpeza e purificação: inicialmente, as pessoas podem se consultar com guias específicos ou frequentar toques nas casas de candomblé apenas para receber passes ou serem rezadas. Esse era um trabalho muito comum realizado pela vovó Maria Conga de dona Rita, que atendia semanalmente um número variado de pessoas. A depender dos casos, essas consultas podem se desdobrar num procedimento ritual mais específico, a limpeza de corpo, no qual a pessoa passa por uma sequência ritual que pode compreender: banhos de descarrego e banhos propiciatórios de boa saúde e melhora na vida material (os banhos de folhas, abôs e amacis); beberagens e defumações; podendo também, às vezes, ser preciso efetuar um ebó (oferenda) para algum orixá. Esse ritual poderia ser realizado apenas pela mãe ou pai de santo com auxílio de algum filho da casa. Em casos mais graves, é efetuado o “sacudimento”: procedimento ritual que envolve um número maior de pessoas do terreiro e que, de acordo com Barros e Teixeira, é concebido como “meio eficaz de promover uma mudança de estado, isto é, retirar os males, a poluição ou sujeira através da purificação do corpo, afastando os possíveis elementos responsáveis pela instalação da desordem, propiciadores do “corpo aberto”, assim controlando os distúrbios de doença ou desequilíbrio” (2004: 131). Esse ritual inclui os procedimentos da limpeza de corpo supracitados e mais alguns outros de maior complexidade que descreverei mais à frente. Cumpre, por ora, observar que ele já vincula a pessoa ao axé da casa e a alguns dos filhos que participam da obrigação, posto que, na sua realização, a pessoa ganha padrinhos e madrinhas de santo que serão importantes para o seu desenvolvimento no santo e, inclusive, para ajudá-la a realizar os demais procedimentos rituais de iniciação. Se for o caso de permanecer frequentando a casa, participando dos toques e obrigações, ela passa a ser convidada a “colocar saia”, isto é, trajar-se ritualmente para 156

participar das obrigações e a integrar a roda do xirê. Nos toques internos, participar do xirê, compor a roda de filhos de santo, é uma forma de desenvolver no santo, de puxálo, como se diz.

− tabuleiro de Omulu/Obaluaiê: após realizar procedimentos de limpeza de corpo, é esperado que a pessoa realize o tabuleiro para Omulu, que é considerado um ebó de saúde. Omulu é o orixá da doença e da cura e, nesse sentido, trata-se efetivamente de agradar o orixá de modo a manter o corpo são. Todavia, Omulu tem também um forte vínculo com a linha das almas, a linha espiritual, e suas obrigações também têm o objetivo de zelar desse lado.38 Neste procedimento em especial, os padrinhos e madrinhas contribuem com doações de itens para a lista do neófito, que, além de incluir os elementos rituais primordiais para preparação da oferenda, o milho de pipoca e as raspas de coco, da flor do velho, incluem também itens para o padé de exu, e para os pretos velhos, que manifestam no ritual. Pode ser o caso de duas ou mais pessoas se juntarem para realizar o ritual.

− lavagem de contas: a lavagem de contas ocorre após a pessoa dar o tabuleiro de Omulu. Espera-se que esse procedimento não demore muito para ser realizado, pois as contas, também chamadas de guias, fortalecem o vínculo da pessoa com o axé da casa e com os seus próprios santos, sendo assim um forte protetor espiritual. De acordo com Lima, “os colares que os filhos-de-santo usam, com as cores simbólicas de seus orixás, só devem ser chamados de contas depois de lavados. Para isto, são sacrificados 38

De acordo com Silva (2004: 179), Obaluaiê quer dizer literalmente “Rei de todos os espíritos do mundo”. Omulu, sua versão mais velha, é a divindade da vida e da morte, vinculada aos cemitérios, à putrefação; é a “imagem arquetípica do divino no humano, do espírito na matéria, Obatalá + Nanã, Obaluaiê é uma imagem do arquétipo do espírito humano. Rei, por que presente em cada ser humano, preside o seu desenvolvimento espiritual, reintegrando posteriormente aquela manifestação individualizada a uma somatória de todas as contribuições individuais ao longo dos séculos da existência humana.”

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animais – em certos casos – e depois de lavados com infusões de folhas também próprias de cada orixá, e, por último, com sabão-da-costa ou oxé. Ter contas levadas no pescoço já é um sinal do compromisso que liga a pessoa ao candomblé, através de cerimônias como o bori, o assentamento do santo, ou até mesmo um simples banhode-folha” (2004: 91, nota 26).

− bori: o ritual de dar de comer à cabeça. A pessoa pode demorar para dar o bori e pode ser o caso de efetuá-lo somente em função da cobrança do santo. Ela participa das obrigações da casa, pode prosseguir realizando limpezas de corpo, dando tabuleiros, sem necessariamente precisar realizar o ritual. Contudo, é desejável que realize o procedimento, considerando que se trata de estabelecer um compromisso mais forte com seu orixá de cabeça e com a família de santo. O bori pode ser de água ou de sangue, mas, na maioria dos casos, pelo que pude saber, realizam o bori de sangue. Dona Rita realizava o bori de água, que consiste em oferecer à cabeça um obi e uma quartinha d’água. Se o santo pedia, ela fazia também o bori de sangue, oferecendo à cabeça alimentos consagrados ao orixá de cabeça, sangue de animais sacrificados e o obi. Nesse ritual, todos os outros procedimentos rituais são realizados, como limpeza de corpo, lavagem de contas, e a obrigação finaliza com o tabuleiro. A presença de outros filhos-de-santo da casa é importante para que o axé dos filhos circule por meio da participação no ritual39. Nesses casos, o santo já manifesta na pessoa e ela já pode ter algum mensageiro trabalhando.

− Por fim, o assentamento. O assentamento consiste num ritual mais elaborado e, na casa de dona Rita Camuinganga, não eram todos os filhos que possuíam 39

Verger (1981) oferece descrição mais detalhada deste ritual.

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assentamentos dos santos, apenas aqueles para quem o santo pedia. Alguns dos filhos mais velhos tinham os assentamentos em suas próprias casas. O assentamento é a série não humana que vincula a pessoa e o orixá: nele encontram-se a pedra do orixá e as suas ferramentas, que são consagradas com a cabeça da pessoa. Todos os procedimentos citados anteriormente são efetuados: limpeza de corpo, lavagem de contas, bori e, após o término da obrigação, a pessoa dá o tabuleiro de Omulu. A feitura do assentamento prevê um período de recolhimento que pode ser de três dias na casa de santo e o resguardo total por sete dias. Inclusive, cumpre observar que todos os rituais acima citados necessitam que se cumpra o resguardo de um, três ou sete dias, a depender dos casos. Não cumprir o resguardo é perigoso, pois, além de pôr a perder o trabalho realizado, abre espaço para que eguns se aproximem, dado que a pessoa foi preparada para estar em contado com os santos, mas os afastou.

Cosme Talassidã era o único que realizava o ritual de raspar o santo na época da pesquisa. Não pude saber detalhes, mas há descrições sobre o procedimento em Verger (1981); Lima (2004) e Mukalê (2011). Pude, contudo, participar da cerimônia que sucede a iniciação, a saída do barco, e também do ritual que ocorre sete dias depois, chamado quitanda, ou panã. Esse é um ritual no qual a pessoa aprende novamente a fazer as coisas da vida da matéria, conforme explicou Cosme. Era o panã de Roxa, filha de santo de Cosme. É uma obrigação simples, em que só o pessoal da casa e os parentes de Roxa participaram. Não é um toque. Roxa estava virada na erê, sentada na esteira, e Cosme dava orientações para ela de como varrer o chão, passar a roupa, cozinhar, lavar a louça. Por ser a erê, o desenrolar das atividades tinha certa comicidade. O ápice do ritual consiste na quitanda: a erê recebeu um tabuleiro cheio de frutas que tinha que vender para os que estavam presentes. Além do tabuleiro, a erê recebeu uma vareta para 159

afastar aqueles que, em vez de comprar as frutas, tentavam furtá-las.

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Os procedimentos de iniciação do candomblé (limpeza de corpo, o bori e o assentamento) passaram a ser efetuados a partir da década de 1970, como já exposto. O trajeto apresentado até a feitura do assentamento vigorava como percurso da iniciação na casa de dona Rita Camuinganga. Madá, por exemplo, estava desenvolvendo no santo. Ela tinha feito a limpeza de corpo e dado o tabuleiro de Omulu, as primeiras obrigações que vinculam a pessoa à casa. No entanto, Madá ainda não manifestava; por isso, nas festas, fora instruída a não ficar muito nas rodas, para evitar tomar barravento ou bolar no santo. Já nos rituais privados, Madá ia para a roda para poder desenvolver. Dona Rita procedia desse modo para Madá firmar no santo e ela fazer o bori sem precisar raspar. Esse era um caminho a percorrer para a iniciação na vida do santo, integrando a pessoa à família de axé. Todavia, como pontuei, não necessariamente todos passavam por todas as etapas. Além disso, nem todos que realizavam alguns dos procedimentos rituais citados eram tidos como filhos da casa (ou do pai e mãe de santo), apesar de terem consideração, participarem das obrigações, ajudarem nos trabalhos e serem frequentadores assíduos. Dona Raimunda, que frequenta a casa de dona Rita e trabalhava no santo há mais tempo do que ela, nunca tinha dado um bori, por exemplo. Ela também não tinha assentamento. O santo nunca cobrou e ela nunca quis fazer. Dona Raimunda apenas realizava de tempos em tempos a limpeza de corpo com dona Rita e dava todo ano o tabuleiro do Velho, por conta da preta velha com que ela trabalha, que vem na linha espiritual e que, inclusive, ela desenvolvia na casa de seu Raimundo das Flores. Trata-se, portanto, em todos os percursos de iniciação, de um trabalho de feitura que 160

modula matérias vivas, forças, em que uns as manifestam mais doutrinadas, outros tendo que doutriná-las progressivamente com o passar dos anos. Para complementar essa reflexão, cabe fazer um breve desvio para pensar sobre a iniciação dos ogãs e equedes, que seria outro percurso de iniciação.

4.2 Ogãs e equedes O único ogã que conheci em Belmonte que utilizava o termo ogã “confirmado” era seu Nilton dos Santos. Com 63 anos na época da pesquisa, seu Nilton é natural de Belmonte e desde os 15 já tocava nos candomblés da cidade, mas sem firmar compromisso com uma casa específica. Seu Nilton acompanhou dona Rita no início da “vida na seita”, como diz. Por ocasião da pesquisa, as duas únicas casas nas quais tocava eram a casa da própria dona Rita e a casa de dona Otília, locais onde ele se sentia bem e onde considerava que se fazia candomblé de verdade. Ainda jovem, seu Nilton foi residir na cidade de Pinheiral, no Rio de Janeiro, onde começou a frequentar o Ilê de Oxóssi do babalorixá Ronaldo de Oxalá, e se tornou um dos ogãs da casa, mas sem ser suspenso, ou confirmado. Lá, ele observou, “cresceu na seita” e “pegou gosto pelo candomblé” de tal modo que, quando tem que tocar na linha da umbanda, ele já não toca com emoção, faz mais pela consideração que tem por dona Rita e dona Otília. Ainda no Rio de Janeiro, durante uma festa na cidade de Barra do Piraí, enquanto tocava atabaque, se apaixonou pela Obá de Aparecida Ecoloyá, e disse que, a partir de então, desenvolvera um vínculo forte com a santa e que por isso se considerava ogã de Obá. Assim, todo o restante do período em que viveu no Rio de Janeiro passou a tocar para ela nos candomblés. Todavia, seu Nilton observa, nunca fez obrigação nenhuma, nem nunca passou um ramo de folha no corpo, se definindo, assim, como “ogã cru”, em meio a risos. Nos demais casos, os ogãs ou eram chamados ogãs suspensos ou ogãs raspados. Era 161

essa a forma adotada também para as equedes: suspensas e raspadas. Os ogãs e equedes suspensos eram os que passaram por um primeiro “estágio da iniciação”, similar ao que descreveu Goldman (2012: 281): numa festa não necessariamente com o objetivo de proceder o ritual, um dos orixás escolhe a pessoa e caminha com ela pelo barracão, depois a faz sentarse numa cadeira que é suspensa. Esse era o caso de Rogério, ogã da Iansã de dona Rita, e de Welinton, ogã do Oxóssi de Cosme. As equedes suspensas eram Jaqueline, equede do Oxóssi de dona Otília, e Josi, equede da Iansã de dona Rita, que estava, na época, com viagem marcada para raspar na casa de Kitala Zambelê, no Rio de Janeiro. Já os ogãs raspados ou ogãs feitos, ou equedes raspadas, eram os que procediam a um ritual próximo ao da iniciação. A diferença, de acordo com Josi, é que o orixá, em vez de passar pela cabeça deles, passaria pela cabeça de dona Rita. Leidiran, equede raspada de Cosme, disse que a diferença está no fato de que ela não recebe santo e de que não precisa dar as obrigações de ano, como as iaôs. Os ogãs feitos eram todos da casa de Cosme: Tony, Agnaldo e Inã. Por fim, na casa de dona Maria, o seu companheiro Adílson era também alabé de sua casa. O alabé é definido na literatura como pertencente ao corpo de ogãs da casa (por exemplo, Lima, 2004: 122), mas Adílson fora iniciado como filho de santo de Matalandê no ano de 1979. Os ogãs e equedes raspados são feitos mas não viram no santo: eles cumprem cargos rituais em que é importante que não entrem em transe (tocam atabaques, cuidam dos orixás durante as festas, entre outros). Leidiran disse que sempre teve a vida no santo, mas, ao contrário do irmão, ela nunca virou. Chegou a ser mãe pequena na casa de dona Rita, inclusive, mas depois resolveu entrar para a casa do irmão de sangue e fez parte do segundo barco de iaô de Cosme, em 2005. Ela contou que somente nova teve vontade de receber o orixá, mas a vontade passou; e disse também que sempre sentiu a presença da mãe dela, 162

Oxum, sem nunca ter precisado fazer ritual nenhum. A iniciação foi só para confirmar o compromisso dela com o santo. Josi é do Ogum Xoroquê. Desde nova, ela frequentava os candomblés com sua mãe, dona Nisinha, e sua irmã, Leonildes, que são filhas de santo de Cosme Talassidã, mas diferentemente da mãe e da irmã, Josi nunca virou no santo. Apesar da mãe e da irmã frequentarem a casa de Cosme, Josi conta que sempre preferiu a casa de dona Rita, porque tinha as meninas da idade dela: Luana, Cínthia, Dulcinéia, Madá. Em Cosme, observou, sempre teve mais gente velha. Além disso, Josi, aos 11 anos, já era apaixonada por Dom José, o marujo de dona Rita. Justamente na época em que Josi teve um problema e precisou fazer uma limpeza de corpo. Ela queria fazer com dona Rita, mas a irmã a enganou dizendo que, se ela fizesse o trabalho com dona Rita, ela não poderia mais “namorar” Dom José. Conforme disse, como não sabia de nada, ela acreditou e fez a limpeza com Cosme. Todavia, Josi continuou frequentando mais a casa de dona Rita do que a casa de Cosme. Quando Cosme quis levantá-la como equede da casa, ela saiu de lá e resolveu entrar para a casa de dona Rita. Desde então, Josi mora com dona Rita. Com o passar do tempo, Josi fez uma limpeza de corpo e, numa das festas da vovó, a Iansã veio e a levantou como equede. Josi, na época, tinha decidido raspar, porque achava que uma equede raspada tinha mais valor do que uma equede suspensa, apesar de ter mais obrigação também. Josi veio para o Rio de Janeiro em setembro de 2011 para raspar o santo na casa de Kitala Zambelê e eu estive presente na festa de saída, realizada no dia 02 de outubro. Josi recebeu a dijina Baraguncilê, mas foi dona Rita quem respondeu por ela na saída. Ela foi raspada no mesmo barco que Ia Uncialadegie e Ia lumagunjerê. No dia da festa da saída do barco, também foi a saída da obrigação de um ano de Inguegueremin, e a saída de sete anos e entrega de deká de Vuro Ginguelê, Kajá Mogungoalê e Mutalanguangue. Josi estava muito bonita e feliz no momento da saída. Ela se apresentou sozinha 163

conduzindo a Iansã de Matamba de dona Rita, que saiu com três roupas diferentes: a primeira vez ela veio no preceito do ketu, nação40 em que Josi foi raspada; nas outras duas, ela saiu na angola. Pude me encontrar com Josi antes de ela regressar a Belmonte. Ela sentia falta dos longos cabelos, mas já tinha comprado uma peruca para não mangarem dela quando voltasse para casa. Ela disse também que não imaginava que seria tão difícil raspar o santo e que pediu muito à mãe Iansã para aguentar. Tanto Josi quanto Leidiran rasparam o santo, mas o procedimento não as fez virar no santo; elas apenas confirmaram o santo. Leidiran disse que a diferença ao ser feita equede é que, além de não receber o santo, ela também não precisa fazer as obrigações de ano que as iaôs fazem. Josi, ao contrário, deu a obrigação de um ano em Belmonte. Cada caso é um caso. Não tive como saber detalhes do procedimento dessa feitura em que o santo não vem. De acordo com Goldman (2012: 282), trata-se de uma iniciação de confirmação “passando por uma sequência ritual semelhante, mas com algumas importantes diferenças daquela empregada na feitura da cabeça propriamente dita”. Sem se referir propriamente à iniciação dos ogãs e equedes, na literatura, Mãe Hilsa Mukalê, por exemplo, conta que, por ocasião do período em que sua mãe faleceu e ela teve que assumir o terreiro, ela soube que a avó fez uma obrigação para suspender sua santa, de modo que ela pudesse auxiliar, como mãe pequena da casa, a sua mãe, que viraria nos inquices e caboclos, e ela pudesse tomar conta de tudo: “Se ela e eu virássemos no santo juntas, não tinha quem tomasse conta da casa. E minha própria santa passava pela minha mãe: ela recebia minha santa no meu lugar” (Mukalê, 2011: 72). Esse relato é algo próximo ao que Josi vivencia com dona Rita: o santo dela passa pela cabeça de dona Rita. Lima, em nota, observa que um filho de santo de uma tradicional casa de ketu de Salvador que foi colaborador em suas pesquisas o informou que o assentamento ou “sentamento” do 40

Somente no Rio de Janeiro, ouvi referirem-se ao candomblé ketu e ao candomblé angola como nação.

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santo consiste numa forma de agregação ao grupo de candomblé que cria uma nova categoria de participação, a dos filhos que têm o santo assentado: “Essas pessoas se submetem às mesmas obrigações dos que fazem o santo, exceto aos ritos que propiciam o transe. Portanto, as pessoas de santo assentado são ‘filhos-de-santo que não recebem santo.’” (Lima, 2004: 92, nota 27). Essas descrições são interessantes na medida em que reforçam o princípio de que tudo é feito e, mais, tudo o que é feito está mais ou menos dado: seu Nilton nunca passou por procedimento ritual de iniciação, nunca foi feito, mas é ogã “cru” de Obá; Leidiran não recebe a Oxum, mas sempre sentiu sua presença – ela fez a iniciação para confirmar seu compromisso; Josi procedeu à feitura do santo, mas de modo que ele passe por dona Rita. Cabe notar, contudo, que, mesmo nessas casas onde havia ogãs suspensos ou confirmados, era necessário contar com mais tocadores. Esses tocadores que não são vinculados a uma casa específica são chamados cambones, mesmo termo que designa os tocadores de tambor nas brincadeiras culturais. Eles não têm vínculo “sério” com as casas, assim como os ogãs têm, mas fazem parte do corpo de tocadores que sempre aparecem nas festas. Caso, por exemplo, de Hiago, filho de sangue de Sidney (dona da brincadeira As Negras Africanas). Além de tocar para a mãe, Hiago tocava na casa de dona Otília, de quem era sobrinho por parte de pai (o pai de Hiago foi um dos filhos gerados no segundo casamento de seu Cristino). Os cambones poderiam virar ou não no santo. Não parecia haver uma regra estrita em relação a isso; mais uma vez, era algo que dependia da casa. Na casa de dona Otília, por exemplo, foi onde mais vi acontecer de, durante um toque, o cambone pedir licença do atabaque e em seguida entrar na roda do xirê, porque o caboclo o pegou. Poucas vezes vi isso ocorrer em Cosme, e nunca vi nos toques realizados na casa de dona Rita. De acordo com Nengo, irmão de Carmen Lúcia, que é dono (junto com o pai, seu 165

Donha) da brincadeira Negros Mirins e de um boi duro, o Boi Bandido, e que também é cambone no Netos de Gandhy e costuma tocar na casa de dona Otília, o ideal é que o cambone não vire, porque ele está na casa para tocar o candomblé. “Imagina se os cambones todos virarem? Quem é que vai tocar os tambores?”, me perguntou. Contudo, ele observou que pode ser que o caboclo “chegue junto”. Nesse caso, o ideal é o cambone pedir para outro assumir o lugar e sair um pouco da “vibração”: ele vai para fora do terreiro, pega um ar. Ainda assim, Nengo observou, tem vezes que não tem jeito e o caboclo pega mesmo, mas na maioria das vezes dá para sentir ele chegando. Nengo disse que sente seu caboclo por perto quando está tocando, mas que nunca virou. Ele já fez um trabalho de limpeza com dona Otília e, desde que assumiu o compromisso de pôr a brincadeira do boi duro na rua, ele sente que o caboclo ficou mais perto, mas é como uma forma de proteção; o caboclo é como se fosse um protetor dele.

4.3 FORMAS DE ORGANIZAÇÃO

Dona Rita Camuinganga não dá tanto destaque para a descendência de sua casa, de sua linhagem. Muito pelo contrário, ela afirma que não quer deixar nada para ninguém, nem a casa, nem o santo, pois a vida no santo é uma vida de muita obrigação e muita demanda. Do mesmo modo, dona Rita não deseja passar santo de herança para suas filhas e neta, e, por isso, cuidava para que Luana e Cínthia não precisassem cumprir a missão de trabalhar no santo. Dona Rita também não atribuía cargos em seu candomblé, à exceção de Josi, que era equede da Iansã e fazia as vezes de mãe pequena da casa, e de Rogério, o ogã da Iansã. Ela não raspava o santo e, assim, a lógica de organização do barco de iaô, ancorada no princípio de senioridade (Lima, 2004: 100), não era a base em que se dava a organização social da sua casa. Pelo menos não de modo estrito como observado em Cosme Talassidã, sobre o qual 166

falarei mais adiante. Com a realização das obrigações, dona Rita atribuía padrinhos e madrinhas aos respectivos filhos de santo, como, por exemplo, por ocasião do ritual de sacudimento que realizei em sua casa, ela observou que, a partir de então, Rogério, o ogã da casa, era meu padrinho, e dona Nilsa, minha madrinha, devendo eu passar a pedir a bênção a eles. Josi observou “brincando” que eu deveria começar a dar dobale41 para dona Rita e ensinou como se procedia. Há assim a formação de um vínculo de compadrio entre os seus filhos que não deixa de se expressar em sua forma hierárquica, de modo que, “em tese”, eu deveria pedir a bênção para meus padrinhos e dar dobale para dona Rita; mas essas relações no cotidiano da casa eram aparentemente vividas de modo mais horizontal. Mesmo Madá e Biguinha, que estavam desenvolvendo no santo na época, não davam dobale para dona Rita. Eles pediam a bênção como geralmente se pede a um mais velho nos candomblés. Os “filhos mais velhos da casa”, todavia, tinham maior permissividade, digamos assim, para infringir certas regras que eram impensáveis para quem estava desenvolvendo no santo: por exemplo, dona Raimunda, que era mais velha no santo que dona Rita, frequentava a casa, ajudava nos trabalhos, integrava a roda do xirê, mas também frequentava toda semana os toques na casa de seu Raimundo das Flores porque tinha que desenvolver o lado espiritual. Mesmo considerando que Madá pudesse ter que desenvolver esse lado também, é possível considerar que seria muito mais delicado para ela tomar decisão semelhante. As hierarquias de mando (Lima, 2004: 103-126) podem ser observadas na existência dos cargos de equede e ogã: Josi e Rogério receberam esses títulos. Josi também desempenhava funções de mãe-pequena da casa, pois era quem organizava as coisas mais práticas da casa de dona Rita, como as compras, organização das roupas, distribuição das tarefas, agendamento 41

Saudação das iniciadas à mãe ou ao pai de santo, deitando de bruços no chão.

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de consultas, etc. Rosalvo era quem ajudava dona Rita com as folhas e, junto com Rogério, cuidava dos despachos que precisavam ser realizados. Os sacrifícios eram feitos, em geral, em dia de obrigação e, até onde pude saber, era Kitala Zambelê quem os realizava. Nas obrigações que acompanhei, a cozinha ficava sob a responsabilidade de dona Nilsa e a filha Dulcinéia. Iara, iabassê42 de Cosme Talassidã, ajudou também na preparação das comidas do santo por ocasião da obrigação de ano de dona Rita. Nessa obrigação, Madá se ocupou de cuidar das roupas com dona Raimunda: passar as saias e batas não só de dona Rita e Josi, como de todos os filhos da casa. Ainda por ocasião dessa obrigação, ficamos Naiara, Biguinha e eu (necessariamente nessa ordem) com a tarefa de arrumar o salão: varrêlo e enfeitá-lo. Além disso, parentes e amigos de dona Rita ajudaram de algum modo, em geral as pessoas que se consultavam com a Vovó e já faziam parte do cotidiano da casa: Luana, sua filha de sangue, deu o sorvete e os refrigerantes; Barriga, irmão de Madá e Biguinha, auxiliou Josi comprando os itens que faltavam ao longo do dia; e as irmãs de dona Rita – dona Lita, Lurdinha e Neide – contribuíram com os refrigerantes e alguns itens da lista da obrigação. Já na casa de Cosme Talassidã, ele fez questão de me apresentar suas filhas de santo indicando a ordem da feitura e apontando as dofonas, a primeira no barco de iaô, de cada barco.43 Era mais visível que o seu candomblé se estruturava fortemente por meio do princípio de senioridade: as filhas mais novas no santo tinham que dar dobale nos rituais e obrigações da casa, pediam a bênção para as mais velhas, etc. Da mesma maneira, Cosme atribuía “cargos de mando” , como a iabassé, sua irmã Iara, a equede e também iaquequerê (mãe-pequena) Leidiran, os ogãs da casa, e sua sarapebé, Maria Machado, que é quem leva 42

De acordo com Lima: “é a encarregada de importante setor da comida sacrificial e das oferendas. Ela é quem se encarrega, com suas imediatas, de elaboração e distribuição de ritual das comidas oferecidas aos santos e, por isso, deve ser pessoa de grande experiência e equilíbrio” (2004: 108). 43

Os nomes da estratificação do barco são: 1) dofono; 2) dofonitinha; 3) fomo; 4) fomutinha; 5) gamo; 6) gamotinha; 7) domo; 8) domutinha; 9) vito; 10) vitutinha (Lima, 2004: 97).

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seus recados. Todavia, Cosme também tinha filhas da linha da umbanda e elas não pediam a bênção para uma filha raspada. Elas pediam a bênção para Cosme e nunca as vi dando dobale, nem nas festas em que as filhas raspadas faziam as filas para fazer a saudação ritual. De acordo com D’ajuda, havia certa “ciumeira” na casa de Cosme: algumas filhas raspadas, às vezes, diziam a Cosme que as outras da linha da umbanda deveriam pedir a bênção a elas e deveriam dar dobale para Cosme, mas as da linha da umbanda tinham mais tempo no santo e não aceitavam. Segundo ele, Cosme sabe que não é só porque se tem santo raspado que se é melhor; para ele, ter tempo no santo é mais importante do que ser raspado. Nunca conversei com Cosme sobre a sucessão de sua casa, pois isso não aparecia como uma questão premente para ele. Por fim, procedo à descrição da organização na casa de dona Otília, apontando já algumas questões que se anunciam em relação à sucessão de sua casa. *

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Na tarde de domingo do dia 13 de junho de 2011, participei da feijoada para Ogum na casa de dona Otília. Após procederem a todo o xirê, Queque, uma das filhas de sangue de dona Otília, e Jaqueline, equede da casa, se encarregaram de servir a feijoada para os convidados. Como o ritual já havia acabado, ao lado do barracão, um grupo liderado por Naiana e alguns cambones começou a puxar um samba e a cantar chulas. Certo momento, Naiana, que estava injuriada com sua irmã Queque por considerar que ela estava influenciando a mãe a tomar algumas decisões que a contrariavam, puxou a chula: “Na sua casa cada um é rei, na sua aldeia cada um é rei, no seu quintal cada um é rei”. Nesse momento, houve uma troca de olhares entre algumas das filhas e logo em seguida Teca apareceu para avisar Naiana que dona Otília havia pedido para encerrar a brincadeira. Naiana vez ou outra discordava das decisões da mãe na condução das atividades do candomblé, mas sempre se resignou a respeitá-la, observando que ela era mais velha e já tinha 169

muita vivência no santo. A influência da irmã, contudo, não era vista sempre de modo positivo: Naiana considerava que ela não tinha o direito de se intrometer nas atividades do candomblé, pois, apesar de feita, ela não labutava na religião. Queque, assim como Naiana, havia recebido seu santo de dote, o que significa dizer que o orixá, quando se manifestou, veio pronto, já veio de pé, falando. Queque tinha 13 anos, estava lavando roupa no tanque quando a Iansã dela manifestou, conforme contou Naiana. Depois, a Iansã colocou a moça dela, a exua, para trabalhar. Foi o caboclo Juremeira quem cuidou de Queque e puxou o caboclo dela, porque na época ela vivia arrumando confusão e era preciso acalmá-la. De acordo com Naiana, Queque não se envolve muito com o candomblé no dia a dia, mas quando há festas, ajuda a mãe se responsabilizando pela feitura das comidas. Ela também auxilia Naiana e dona Otília com os cortes (os sacrifícios) nos dias de obrigação. Xangô pegou Naiana quando ela tinha 17 anos. Ela estava passando por um período muito difícil na vida, de indecisões e conflitos com a família. Além disso, desde criança, Naiana tinha problemas de saúde, a maioria respiratórios, que se intensificaram nesse período. Naiana contou que, depois de uma discussão que teve com os pais em que havia decidido sair de casa, ela foi para o quarto de santo passando muito mal e ajoelhou na pedra de seu pai Xangô; foi quando, então, ele se manifestou pela primeira vez. Apesar do santo de Naiana ter vindo pronto, ela disse que dona Otília achou por bem raspá-lo. Assim, Naiana e a mãe foram, dois anos depois que o Xangô de Naiana veio, em 2001, para a cidade de Bertioga, em São Paulo, para realizar a iniciação de Naiana no candomblé angola. Cabe observar que, na época em que Naiana recebeu o santo, dona Otília também trabalhava na doutrina da angola, diferente de quando Queque recebeu o santo, quando dona Otília trabalhava apenas na linha da umbanda. Dona Otília conheceu o pai de santo de Naiana, Roberval de Ogum, por intermédio do 170

pai de santo que a fez no rito angola. Roberval passou a fazer obrigações com dona Otília, e ela o convidou para ser pai de santo de Naiana. Naiana e a mãe passaram mais de um mês em São Paulo para a feitura. Naiana foi raspada para Xangô, Omulu e Oxum. Em 2006, na obrigação de sete anos, o pai de santo de Naiana veio a Belmonte. Quando Naiana estava na maianga, no segundo dia de obrigação, Ogum de Ronda se apresentou. Conforme lembra, eles tiveram que correr para arrumar as roupas para a saída do Ogum, pois ninguém esperava que ele se apresentasse. Naiana não tem certeza, mas acha que o Ogum dela é de herança da avó materna, dona Vivi. Apesar de dona Otília nunca ter tirado a dúvida de Naiana, ela disse já ter ouvido a mãe comentar com a tia, dona Zezé, que achava o Ogum de Naiana muito parecido com o de dona Vivi, apesar de dona Zezé também ter Ogum. Para Naiana, é quase certo que seu Ogum seja santo de herança, pois observa que na família dela há muitos casos assim: ela citou o caso do Caboclo Juremeira, que passou da avó dona Vivi para dona Otília; o caso de Cristóvão, seu primo de segundo grau, que recebeu de herança seu Zé, que era guia do pai dele; e o caso de uma prima que ingressara recentemente para a casa de dona Otília e, durante os trabalhos, manifestou Ogum de Ronda e Oxumaré de herança do pai. Sua prima, inclusive, não queria que cortasse para Oxumaré, observou Naiana, pois ela não gosta da manifestação desse orixá, que vem rastejando como uma cobra. Ela pediu para dona Otília assentar todos os santos, mas deixar Oxumaré de fora. Durante as obrigações, contudo, o santo do pai veio para dar uma lição na filha: a deixou transfigurada, com o rosto inchado e a boca torta. Por conhecer os preceitos, dona Otília já havia cortado e assentado todos eles, e foi por isso que elas conseguiram encaminhar o trabalho. Não fosse assim, era capaz de Oxumaré vir para matar a moça, observou Naiana. *

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Naiana e Queque, ambas filhas de sangue de dona Otília, foram feitas no santo, mas 171

cada uma de um modo diferente: o santo de Naiana veio de dote e foi raspado: doutrinado no candomblé angola; o santo de Queque também veio de dote, mas foi doutrinado na umbanda. Foi o Caboclo Juremeira quem cuidou de Queque, quem puxou o seu caboclo. Já Naiana foi feita por outro pai de santo. Todavia, ela aventa a possibilidade de ter recebido o santo de herança da avó materna: Ogum de Ronda. Tanto Naiana quanto Queque auxiliam diretamente a mãe a tocar os afazeres do candomblé numa casa em que se optou por não dar cargos para as filhas: à exceção de Naiana, que é mãe-pequena da casa, e Jaqueline, que foi levantada equede do Oxóssi de dona Otília, todos os filhos ajudam como podem, observa Naiana. Ela e a mãe decidiram que procederiam desse modo após darem o cargo de equede para Jaqueline e observarem que as outras mulheres mais velhas no santo, que sempre ajudaram na roda, deixaram de ajudar, muitas por ciúmes, considerou. Naiana também observara que o fato de ela ter sido levantada mãe-pequena da casa despertou ciúmes, especialmente dos irmãos de sangue. Naiana já era madrinha da casa e, depois que dona América (que era a filha mais velha da casa e quem desempenhava esta função) morreu, começou a conversa para torná-la mãe-pequena. Na época, dona Tita estava afastada, e Naiana deitou por causa da obrigação de sete anos. Foi quando resolveram aproveitar a saída da obrigação e levantá-la como mãe-pequena da casa: Mãe-pequena é isso, o nome mesmo está dizendo: mãe-pequena vai virar mãe grande da casa. A ideia é que vou ficar no lugar de mainha, mas eu não quero, não. Não quero essa obrigação. Eu sei que essa é a minha missão, mas enquanto eu puder ir adiando... Depois de levantada como mãe-pequena, Naiana contou que continuou realizando as mesmas atividades que realizava antes de receber o cargo: “Sou eu quem vou pegar as folhas quando precisa, sou eu quem cozinho. No salão, sou eu que puxo com os meninos e ajudo 172

Jaqueline. Só não faço o trabalho de mainha, mas ajudo. Continua a mesma coisa, só que agora tenho cargo”. Os irmãos de sangue que já tinham ciúmes ficaram ainda mais enciumados após Naiana receber o cargo. A possibilidade de ela assumir o candomblé da mãe os deixa incomodados, observa. De acordo com Naiana, os irmãos não entendem que “o cargo é por merecimento, não por favorecimento, e que, para a casa, é bom que fique tudo em família”. Pondera, no entanto, dizendo que pode até ser que ela não venha a suceder a mãe, tudo depende da vontade do Caboclo Juremeira. A seu favor, além de ser filha de sangue de dona Otília, o que abre a possibilidade de receber o Caboclo de herança de sangue, o fato de trabalhar no santo com a mãe deixa em aberto também a possibilidade de receber o Caboclo de herança de convivência. Nesse sentido, ela avalia que tem mais possibilidade de receber o Caboclo de herança do que os irmãos. Essas possibilidades, contudo, estão submetidas à vontade do Caboclo Juremeira. Tendo sido feita também no candomblé angola, Naiana tem sua própria família de santo. Ela já recebeu o deká e, em junho de 2011, seu pai de santo passou uma curta temporada em Belmonte, quando, então, deu para ela a “mão de corte”, o que significa dizer que, a partir daquela data. Naiana poderia ela própria raspar o santo, ou seja, ter seus próprios filhos de santo por meio da iniciação no candomblé e abrir sua própria casa. Ainda que não fosse sua preferência, Naiana não descartava essa hipótese, especialmente quando vivenciava períodos de tensão com a mãe.

4.4 LINHAGEM DE SANGUE, LINHAGEM DE SANTO, LINHAGEM ESPIRITUAL E CONVIVÊNCIA

No dia da festa da vovó Maria Cambinda de dona Otília, Naiana contou que ficou 173

preocupada com a possibilidade da vovó passar por sua mãe, pois a vovó vem bem curvada e dona Otília ainda não estava totalmente recuperada da operação que realizara no ano anterior. Ao comentar isso com Maria Célia, a esposa de seu pai de santo, ela observou o seguinte: se dona Otília quisesse, ao sentir a presença da vovó, poderia se concentrar para fazê-la passar por Naiana. Era preciso apenas que dona Otília se concentrasse para fazer a passagem, e que o fato de Naiana ser filha de sangue de dona Otília ajudava nesse processo. Não necessariamente o guia ficaria passando sempre, observou, mas poderia acontecer no caso de uma necessidade, assim como poderia ser o caso de ele ficar para sempre. Naiana contou com admiração a descoberta, dizendo que não imaginava que isso era possível. Perguntei a ela se era esse o procedimento, então, para transmitir o santo de herança e ela observou que deveria ser. Depois ponderou dizendo que devia obedecer a vontade do santo também. De todo modo, o fato de ser filha de sangue de dona Otília deixa em aberto a possibilidade de Naiana receber de herança de sangue os guias da mãe; bem como o fato de ela labutar no santo com a mãe deixa em aberto a possibilidade de ela receber os guias também por conta da convivência. Os santos de herança de sangue são os santos que passam de pais para filhos, ou avós para netos, que se mantêm numa mesma família de sangue. Na família de Naiana é comum que isso ocorra. Os santos de herança de convivência, ou herança espiritual, são santos transmitidos por conta da convivência. Não há necessariamente parentesco de sangue para que o santo seja transmitido. Este foi o caso de seu Raimundo das Flores, que recebeu o santo de herança espiritual: ele não chegou exatamente a conviver no santo com dona Anaíza, nem era seu parente. Apenas foi levado, quando criança, por sua mãe à casa da senhora para fazer um tratamento espiritual na tentativa de salvar-lhe a vida. 174

Quando dona Anaíza morreu, seu Raimundo recebeu de herança o Omulu que puxou a velha Mariana de dona Anaíza para trabalhar. Conforme Goldman observa: “‘Participar’ não é apenas ‘conviver’, mas também entrar em relação, material ou não, com aquilo que constitui o ritual” (2012: 277). Não há detalhes desse aparentemente curto período de convívio de seu Raimundo das Flores com dona Anaíza, mas certamente o que se processou foi uma forte ligação que os manteve em relação mesmo após a morte da senhora. *

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Além da descoberta de que sua mãe poderia se concentrar para passar os guias por ela, Naiana contou que foi também no dia da festa da vovó Cambinda que o caboclo de Vanderson se apresentou como filho do Caboclo Juremeira. Naiana observou que todos reconheceram que era o caboclo de Mario Sérgio, pai de santo que faleceu no início de 2010, e que teve o caboclo puxado pelo Caboclo Juremeira. Numa conversa com Vanderson, ele me disse que o seu catiço, o puxa-folha, demorou para vir. Oyá puxou primeiro a sua legba para trabalhar, e foi o caboclo Juremeira quem puxou o seu caboclo. Ele não podia afirmar que o puxa-folha dele foi herança de Mário Sérgio, mas observou que “dizem por aí que ele é igualzinho e dona Otília confirmou que ele é da aldeia de Juremeira e que foi Juremeira quem puxou a folha”. Vanderson recebeu o santo de dote ainda criança, quando participava de uma mesa de erê. Conforme narrou, ele estava sentado na mesa e começou a sentir uns arrepios e a chorar. Ele disse que as duas senhoras que estavam dando o caruru tentaram segurar, mas não adiantou, ele virou no erê. A avó de Vanderson fez, naquela época, um trabalho para amarrar o santo, porque ele era uma criança ainda. Vanderson tem grande orgulho de dizer que nasceu e se criou dentro do candomblé: a avó e a mãe possuem santo de dote, dão as obrigações delas, os tabuleiros, mas nunca tiveram casa aberta. Vanderson é sobrinho de Cosme Talassidã, e foi lá que ele começou a frequentar 175

os primeiros toques. Mas a manifestação do orixá só veio muito tempo depois, num candomblé na casa de dona Otília, no caruru oferecido anualmente para Iansã. Nessa época, Vanderson tinha muita amizade com Mário Sérgio e passou a frequentar a casa dele, a ajudar nas obrigações. Lá, aprendeu muita folha, disse, que é expressão usada para o conhecimento que vai sendo “catado” no cotidiano do terreiro. Mário Sérgio tinha uma casa de candomblé na Ponta de Areia, relativamente próxima à casa de Cosme, mas mais para o lado do São Benedito, bairro mais novo da cidade. Vanderson disse que tinha uma grande admiração por Mário Sérgio e que eles eram muito amigos; contudo, a mãe dele sempre foi dona Otília. “Dizem que é o santo quem escolhe onde a gente vai se desenvolver”. Depois da morte de Mário Sérgio, em 2010, o Caboclo Juremeira puxou o caboclo de Vanderson, que, por convivência, pode ser de herança de Mário Sérgio. Mas também pode ser que ele tenha vindo porque é da aldeia de Juremeira. *

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“É o santo quem escolhe onde a gente vai se desenvolver”. É possível perceber uma ressonância entre a história do caboclo de Vanderson; a história de seu Zé, guia de herança de sangue de Fumaça, que também é da aldeia de Juremeira; e a história de Pedra Azul, caboclo de dona Rita Camuinganga que vem pelo lado da vovó: no primeiro caso, há a possibilidade da herança de convivência; no segundo, trata-se de uma herança de sangue; mas, nos três casos, foca-se na linhagem espiritual do santo, quero dizer, uma linhagem puxada a partir da linha de força (das linhas de trabalho) dos orixás: os caboclos e pretos velhos, em especial. Pedra Azul, caboclo de dona Rita Camuinganga, veio pelo lado da vovó Maria Conga, mensageira que a Iansã de dona Rita puxou para trabalhar. Foi a linha de trabalho da Iansã quem trouxe essa herança para dona Rita Camuinganga. Além da faixa-intensidade Iansã puxar seus mensageiros, a linha de trabalho da vovó também pode puxar um dos seus. 176

Vanderson não é parente de sangue de dona Otília 44; também não conviveu (tanto) no santo com ela: ele frequentava a casa do tio, Cosme Talassidã, e de Mário Sérgio, seu amigo. Pode ser que a convivência de Vanderson com Mário Sérgio tenha sido disparadora da herança que recebeu. Mas não é apenas isso: Vanderson manifestou a primeira vez na casa de dona Otília. Após o falecimento de Mário Sérgio, o puxa-folha de Vanderson veio puxado por Juremeira, que, por sua vez, foi quem puxou o caboclo de Mário Sérgio. Estão todos na mesma aldeia. Já o seu Zé de Fumaça veio de herança de sangue do pai (a bem da verdade, seu Zé disse literalmente que Fumaça era seu filho), mas foi apenas na casa da tia, dona Otília, que Fumaça pôde desenvolver no santo. Mais: seu Zé é da jurema; seu Boiadeiro, caboclo de Fumaça puxado por Juremeira, também é da jurema. Estão todos na linhagem de Juremeira. Estão todos na jurema. Na casa de dona Otília, diferente das outras casas, não se carrega nome de roça de santo alguma, como disse Naiana. Dona Otília não se vincula às famílias de santo dos pais que a iniciaram na angola e no ketu. Dona Otília carrega o nome de Juremeira, conserva a trajetória do Caboclo, que veio de herança da mãe. É Juremeira quem puxa os caboclos dos filhos da casa. Juremeira faz da casa a sua aldeia. É por meio da linha de trabalho do orixá que vai sendo formado o corpo de filhos da casa. É Juremeira quem puxa sua linhagem de caboclos e guias para trabalhar. Assim, não é apenas a faixa-intensidade do orixá quem puxa seus mensageiros. As linhas de trabalho também puxam a sua própria linhagem. Era isso que estava sendo vivenciado na casa de dona Otília com a chegada de seu Zé de Fumaça. Parente de dona Otília e vindo na linhagem de Juremeira, ele estava puxando uma forte falange de exus para 44

Ao menos, não se reconhece esse parentesco de modo direto. É costume dizer que, na Biela, todo mundo é parente. Essa proposição não é apenas uma brincadeira. De fato, existe uma intrincada rede de relações de parentesco de primeiro e segundo graus (mais perceptível neste bairro, mas com extensões para a Ponta de Areia), a partir da qual acaba se chegando à conclusão de que, no fim (ou desde o começo), todo mundo é parente de todo mundo.

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trabalhar. *

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Dona Otília, na sua trajetória de desenvolvimento no santo, recebeu de herança de sangue de sua genitora o Caboclo Juremeira, caboclo puxado pelo seu santo de dote, Oxóssi. A faixa-intensidade Oxóssi, odé, caboclo das matas, rei de ketu, se desenvolve por meio do trabalho no santo de Juremeira e de dona Otília. Dona Otília, na sua trajetória de desenvolvimento no santo, passa pela doutrina da umbanda, pela doutrina da angola e pela doutrina do ketu. Essa passagem, contudo, deve ser entendida na lógica própria do candomblé: não se trata de uma sucessão de estágios de evolução; consiste em aprender a maestria de dar passagem, de manifestar o Outro, fluxo constituinte-constitutivo. Assim, em sua trajetória, o Oxóssi de dona Otília manifesta as três linhas-doutrinas com as quais se trabalha nos candomblés de Belmonte: a umbanda, a angola e o ketu. Essas linhas doutrinas passam a coexistir: é a faixa-intensidade Oxóssi que vem do ketu, que vem da angola e que vem na linha de caboclos. Flacksman (2012), a partir de pesquisa etnográfica no Ilê Iyá Omim Axé Yamassê, o tradicional terreiro de tradição ketu de Salvador, desenvolve uma interessante reflexão sobre os cruzamentos singulares entre família de sangue e família de santo a partir de uma recorrência de casos em que a linhagem de sangue e a linhagem de santo se tornam uma só e não duas superpostas, observação que se diferencia das investigações de Vivaldo Lima (2004: 80). Flacksman afirma a existência de um “parentesco ontogenético onde o santo – ou, em última instância, o axé – se transmite pelo sangue, onde a família de santo e a família de sangue podem estar imbricadas, e não contíguas e de forma alguma excludentes” (2012:10). Analisando algumas situações em que se dava essa formação de um parentesco ontogenético, a autora leva em consideração o que sempre lhe diziam sobre a chegada de 178

novos filhos de santo para aquela casa em especial, mas que também servia para explicar o ingresso de qualquer pessoa em quaisquer casas de santo, inclusive de outras nações. A diziam: “‘Ninguém chega aqui por acaso (…) ‘Se você veio parar aqui, é porque aqui é a sua Casa’.” E prossegue a reflexão:

Isso condiz com o que me disse certa vez um amigo de Salvador: “a gente sempre acaba na Casa da nossa família. Se você roda, roda e acaba numa casa jeje, é porque a sua família, lá nos primórdios, vem do Daomé. A gente sabe que o ser humano veio da África. Então todo mundo só está achando o caminho de volta pra casa”. Achar o caminho de volta pra casa significa, em última instância, reconhecer o parentesco que há entre a pessoa e o orixá. Sendo o Orixá um ancestral divinizado, como me explicaram inúmeras vezes, intrinsecamente ligado à terra onde viveu enquanto humano, a volta pra casa, representada aqui como uma Casa de candomblé da nação a qual pertence o local, simboliza esse reencontro, essa reconstrução dos laços de parentesco há muito desfeitos. (Flacksman, 2012:7).

Em Belmonte, esse parentesco ontogenético parece ser característico da família de Naiana e dona Otília. Suspeita-se de que Naiana recebera de herança de sangue o santo da avó e, apesar de ter sua própria família de santo, Naiana define que sua casa de santo é a casa de sua mãe; dona Otília também recebeu o Caboclo da mãe; Fumaça é filho de seu Zé; e há ainda a história da prima que recebeu do pai Ogum e Oxumaré. Todos eles se encontram na aldeia de Juremeira. Como explicitado no decorrer do texto e pontuado por Goldman, os três tipos de sangue (o axé, a força) trocados na vivência numa casa de santo passam a correr por todos que dela fazem parte (Goldman, 2012:279). O principal procedimento ritual de iniciação no candomblé – raspar o santo –, como explicitado, é o procedimento que estabelece o vínculo de participação da pessoa em uma família de axé. Nela é plantado não só o axé do orixá pessoal, mas também o axé da casa-família a qual o neófito ingressa. Esta casa vincula-se a uma roça de axé outra e, por meio da manutenção dos vínculos de parentesco e de sua linhagem, cada pai ou mãe de santo está diretamente vinculado à África: a Angola, à Nigéria, 179

ao Daomé. O procedimento ritual de iniciação na linha da umbanda, no entanto, opera de outro modo. O santo da pessoa se desenvolve no convívio, participando dos rituais e obrigações. Existe também uma troca de axé entre os que integram a mesma casa, mas, a princípio, não se procede de modo a plantar o axé do orixá pessoal na cabeça da pessoa; é a cabeça da pessoa que é alimentada em rituais periódicos. Do mesmo modo, não se procede, a princípio, de modo a plantar o axé da casa de santo. Na umbanda, o santo da pessoa é puxado a partir da linhagem do “chefe espiritual” da casa. Nesse sentido, como procede dona Otília, não se carrega o nome da roça de santo. O que se carrega é a trajetória e o nome do Caboclo Juremeira. É Juremeira, linha de trabalho da faixa-intensidade de Oxóssi, quem puxa sua linhagem de caboclos que integram sua casa, que formam sua aldeia. Nesse sentido, inclusive, é importante recordar o que Naiana informou: os filhos da casa são filhos de Juremeira, e chamam dona Otília de mãe por consideração. Assim, a iniciação da vida no santo por meio da linha-doutrina da umbanda, a linha de trabalho dos caboclos, procede de modo a reconstituir suas aldeias em concomitância (ou antes de) proceder “a reconstrução de laços de parentesco há muito tempo desfeitos” que os conduzem além-mar.

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Capítulo 5: NETOS DE GANDHY “O Gandhy é beleza, oh, que beleza O Gandhy é beleza, oh, que beleza!”

5.1 PREPARAÇÃO Na quinta-feira, dia 13 de julho, Vanderson passou, um pouco antes da hora do almoço, na casa de seu Celso do Gandhy com o objetivo de combinar com ele algumas coisas sobre a sua participação no cortejo que seria realizado pelo Netos de Gandhy para homenagear a padroeira da cidade, Nossa Senhora do Carmo, no sábado pela manhã. Essa homenagem, que é realizada há quase 20 anos, consistia em sair com o bloco pelas ruas de Belmonte cantando e dançando músicas em homenagem aos orixás até chegar em frente à igreja da padroeira, promover a lavagem das escadarias e, em seguida, proceder à entrega do balaio para Oxum, pois o dia de Nossa Senhora do Carmo é também o dia de homenagear a Oxum. Seria a primeira vez que Vanderson participaria do bloco levando algumas mulheres em sua companhia. Essas mulheres eram as que estavam o auxiliando nos trabalhos em sua casa, que ainda não funcionava realizando toques abertos. Vanderson foi informar a seu Celso o número estimado de mulheres que o acompanharia: 30, sendo que parte delas sairia na companhia de Naiana, filha de dona Otília, representando esta mãe de santo. Eles sairiam da casa de Vanderson e encontrariam o cortejo do Netos de Gandhy no caminho, em frente à casa de dona Otília, na Biela, onde fariam uma apresentação. Depois, seguiriam todos juntos o trajeto tradicionalmente realizado pelo Gandhy: passariam em frente à Igreja de São Francisco de Assis, na Biela, seguiriam em direção a Igreja de São Sebastião, no centro, onde fariam outra apresentação, e se deslocariam até a Igreja de Nossa Senhora do Carmo e São Pedro, a igreja matriz, para efetuar o ritual de lavagem da escadaria e a entrega 181

do balaio. Por fim, regressariam em direção a casa de seu Celso do Gandhy, onde finalizariam o cortejo com uma comemoração. Vanderson, além de combinar o ponto de encontro no trajeto, aproveitou para avisar que vestiria uma das moças com a roupa da Oxum para sair com os demais destaques e, além disso, aproveitou para pedir a seu Celso que alguns dos cambones do Gandhy acompanhassem o seu pessoal desde a sua casa até encontrar o bloco. Seu Celso concordou em ceder dois cambones para acompanhar Vanderson ‒ seu sobrinho Pinho e Hiago, sobrinho de dona Otília ‒, e aproveitou para solicitar o auxílio de Vanderson para puxar os cânticos. Vanderson concordou em auxiliá-lo apenas quando chegassem na igreja matriz, no momento da lavagem e entrega do balaio, de modo que ao longo do trajeto continuaria sendo Nengo, cunhado de seu Celso, quem puxaria os cantos. No dia anterior, seu Celso já havia confirmado a participação do pai de santo Cosme Talassidã e da mãe de santo dona Maria como destaques do Netos de Gandhy, quando também, além de comunicar a Vanderson, aproveitou para convidá-lo a saír de destaques como Naiana. Seria a primeira vez que todos eles acompanhariam o cortejo do Netos de Gandhy enquanto representantes das casas de santo da cidade. Vanderson observou que o que estava ocorrendo era muito bom e que essa união era necessária para o povo do axé, que as casas deveriam se unir mais para homenagear os orixás. *

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O bloco Netos de Gandhy é, conforme exposto na Introdução, um bloco que promove apresentações culturais e presta homenagem aos orixás, divulgando a cultura afro-brasileira na cidade de Belmonte. Desde o início da década de 1990, é presidido por Celso Santos de Souza, conhecido como seu Celso do Gandhy. Ao longo do ano, o Netos de Gandhy realiza, pelo menos, duas apresentações: por ocasião da abertura do carnaval da cidade, na noite de sexta-feira, e para homenagear a padroeira de Belmonte, Nossa Senhora do Carmo, próximo 182

ao dia consagrado à santa, 16 de julho. A criação do bloco Netos de Gandhy, que no início se chamava Bloco das Almas, credita-se a um grupo de mulheres que residia na Biela: dona Esterlita e sua mãe, Ana Ursulano, dona Áurea, dona Neném e Juranice. De acordo com Adílson, que chegou a ser o vice-presidente do Netos de Gandhy durante o início de 2000, e também de acordo com Flávio Ursulano, neto de Ana Ursulano, o bloco foi criado por essas mulheres juntamente com o pai de santo Valmir Matalandê no final da década de 1970. O objetivo do bloco era fazer uma brincadeira de carnaval inspirada na cultura dos terreiros, com as pessoas vestidas de almas e de baianas. A vestimenta das que saíam de almas era simples: lençóis brancos, ao que davam o nome de “mortalha”, e “pirulitos” 45 na cabeça. Já as baianas utilizavam vestimenta similar as que as mulheres usam nas festas de candomblé: saias brancas rodadas, blusas brancas rendadas, pano da costa e torço brancos. Desde essa época, já saía entre os destaques a baiana do tabuleiro, que continha a flor do velho ‒ a oferenda para Omulu ‒ para ser distribuída para o público que assistia à apresentação do bloco. As músicas tocadas eram músicas de carnaval e também os sambas de roda e as chulas dos pretos velhos. Os instrumentos que acompanhavam o bloco eram instrumentos percussivos: atabaques, tabuinhas e agogô. Seu Celso, no entanto, explicou que este bloco criado por dona Esterlita e os parentes de Ursulano foi inspirado, na verdade, numa atividade realizada pelo já falecido pai de santo Gildásio, que possuía uma casa de santo na avenida Rio-Mar, no caminho para a praia. De acordo com seu Celso, o pai de santo, no início da década de 1960, passou a realizar uma entrega (oferenda) para os moços, os exus, na sexta-feira de carnaval. Ele saía acompanhado de suas filhas de santo e cambones tocando e cantando músicas de candomblé. Algumas

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Conforme Honorina e Carmen Lúcia, os pirulitos eram cartolinas ou papelões enrolados em formato de cone que os foliões desenhavam rostos e enfiavam na cabeça, preservando assim sua identidade.

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pessoas gostaram e passaram a acompanhá-lo, vestindo-se com roupas brancas ou lençóis brancos. Com o passar do tempo, a entrega virou uma brincadeira tradicional que abre o carnaval belmontense. Na década de 1980, os parentes de Ursulano assumiram a brincadeira, que passou a sair, primeiro, da porta do cemitério, em função da conexão com as almas, mas, depois de um tempo, resolveram passar a sair da frente da casa de um dos integrantes, à rua Tamandaré, no bairro da Biela. Foi nesse período que mudaram o nome do bloco para Netos de Gandhy, em homenagem ao bloco Filhos de Gandhy46, criado em Salvador um ano após o assassinato do líder indiano Mahatma Gandhi. Quando regressou para a cidade de Belmonte, no final da década de 1980, seu Celso se envolveu diretamente com as atividades do bloco, sendo convidado, inicialmente, a sair como destaque de preto velho, puxando o bloco. Posteriormente, em 1992, seu Celso foi convidado a assumir o bloco, mudando o nome do mesmo para Netos de Gandhy e formando a Associação Beneficente Cultural Netos de Gandhy, que passou também a ter uma atuação na área social, com o trabalho da Escolinha de Futebol Netos de Gandhy. Conforme explicou seu Celso, ele foi convidado a assumir a presidência do bloco em função da experiência que possuía com o trabalho na promoção da cultura afro-brasileira: na época em que residiu em Salvador, seu Celso foi integrante do bloco Filhos de Gandhy e também chegou a assumir a presidência de uma escola de samba do bairro em que residia, no Cabula. Além disso, seu Celso avaliou que era importante possuir conhecimentos sobre o candomblé, as músicas e os rituais, para dar continuidade à brincadeira. Este conhecimento seu Celso adquiriu principalmente no convívio com sua ex-esposa, que foi filha de santo durante anos de uma importante casa de candomblé ketu de Salvador e, posteriormente, abriu 46

O afoxé Filhos de Gandhy foi fundado por estivadores portuários da cidade de Salvador no ano de 1949. Constituído exclusivamente por homens e inspirado nos princípios de não violência e paz de Mahatma Gandhi, o bloco traz a tradição da religião africana ritmada pelo agogô nos seus cânticos de ijexá na língua iorubá. Informações em: http://www.filhosdegandhy.com.br/historia.php (acesso em 10 de dezembro de 2013).

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sua própria casa de candomblé. De todo modo, desde criança, seu Celso já possuía um vínculo forte com o candomblé. Numa noite, quando retornávamos de uma sessão na casa de seu Raimundo das Flores, seu Celso contou que, quando tinha 12 anos, sua mãe passou para ele a obrigação que ele herdou com Omulu, seu santo de cabeça. Ela, então, o ensinou a fazer e a oferecer a flor do velho toda primeira e última segundas-feiras do mês. Ele deveria fazer o prato ritual e distribuir para as pessoas, desejando boa saúde a elas. Até aquela época, era ela quem realizava a obrigação para seu Celso. Seu Celso não disse por quais motivos ele herdou essa obrigação, mas algumas hipóteses podem ser levantadas, a considerar que Omulu é divindade da saúde e das doenças e que é também responsável por reger os ciclos da transformação da vida e da morte: Omulu é a divindade que se apresenta como um velho e todo um clima de morte, decomposição, caveiras e cemitérios o envolve (Silva, 2004:174). As obrigações para Omulu, os tabuleiros, têm o objetivo, em geral, de restabelecer a saúde e o equilíbrio de quem os oferece. É possível considerar que, para se manter são, desde muito novo seu Celso pode ter precisado assumir o compromisso com seu santo de cabeça. Assim, desde que recebeu a obrigação de sua mãe, seu Celso realiza o trabalho; mas quando assumiu a brincadeira do Netos de Gandhy, ele já não oferecia mais a flor do velho mensalmente, passando a cumprir a obrigação apenas por ocasião das saídas do bloco. Ele observou que, naquela época, o santo já não o cobrava tanto. Foi no ano de 2003 ‒ quando seu Celso raspou o santo e os assentou, assim como assentou seu Exu em sua casa ‒, que seu Celso pôde começar a zelar de Omulu e dos demais santos do seu enredo, oferecendo periodicamente as comidas rituais nos assentamentos. Seu Celso foi feito como ogã e, por isso, o santo não desce na sua cabeça, embora ele já não descesse mesmo antes do ritual, conforme explicou. 185

Quando assumiu o Netos de Gandhy, seu Celso efetuou algumas mudanças importantes que passaram a definir o bloco mais propriamente como uma brincadeira feita na linha do candomblé, e não como uma brincadeira da linha de caboclos, conforme definem as brincadeiras tradicionais em Belmonte.47 As principais mudanças estéticas foram em relação às personagens dos destaques, as vestimentas dos componentes e a composição do grupo, bem como os cânticos e ritmos que passaram a ser puxados. Se antes a brincadeira era feita por pessoas vestidas de almas e baianas, puxadas por um preto velho e tendo como destaque a baiana que carregava o tabuleiro com a flor do velho, quando seu Celso tomou posse do bloco, ele foi organizado do seguinte modo: as baianas em duas fileiras, e os destaques no centro do bloco. Os destaques são as pessoas fantasiadas dos orixás homenageados no ano e a baiana com o tabuleiro. Após as fileiras de baianas, vêm os integrantes vestidos com abadás do bloco, com o torço e os colares de contas azuis e brancas. Por fim, fechando o bloco estão os cambones com os instrumentos de percussão ‒ os tambores e agogô ‒ e o puxador dos cânticos no carro de som. As músicas cantadas passaram a ser cânticos rituais de candomblé e músicas famosas com temática afro-religiosa, procurando seguir durante o trajeto o ordenamento que é cantado num xirê.48 O ritmo das músicas é executado no toque ijexá, ritmo diferente das demais brincadeiras de Belmonte, que em geral são tocadas no ritmo cabula (ou samba, como também chamam) e barravento. Ritualmente, seu Celso passou a efetuar o corte (sacrifício) para Exu para garantir a segurança dos participantes, de modo que a brincadeira ocorra tranquilamente, sem confusão. É o moço quem evita que pessoas mal intencionadas se aproximem, bem como impede que os 47

O Netos de Gandhy é a única brincadeira da linha do candomblé. O boi duro, Rompe Brasa, Negros Africanos, Negras Africanas, Negros Mirins, Nagôs Africanas e os cordões de caboclos são brincadeiras da linha de caboclos. 48

Conforme Nengo explicou, a ordem das músicas que cantaria por ocasião da lavagem seria a seguinte: Exu enan (Exu); Fala Lori (Ogum); Cata cata Ogum mejê; Lua branca (Oxóssi); Águas de caiá (Iemanjá); Ô menina, ô menina (Oxum); Nhenhém chorodô (Oxum); Sinhá vanju (Iansã); Ela joga de bó (Iansã); Ewe ô solubajé izô; Estrela d’Alva; O Gandhy é beleza; Ojaí vamos embora; Pai ojou; Adijaê; Saudação do caboclo; Minha zaguna doce é; Eu fui ao Gantois; Xô xô xô, ê coruja; Ôfilala ê ô.

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eguns encostem nos participantes. Seu Celso aproveita para alimentar seus orixás de cabeça, assegurando que a brincadeira se fortaleça também em seu aspecto religioso. Antes, com dona Esterlita e demais, a tradição de efetuar a entrega para Exu não era mantida; seu Celso considera que esta falta enfraquecia a brincadeira. Depois que ele passou a fazer o corte, a brincadeira cresceu e passou a ter um número maior de participantes. Além disso, seu Celso observou que foi a partir de então que o bloco passou a ter um maior reconhecimento na cidade e fora dela, atraindo um público que não se restringe aos que frequentam os candomblés de Belmonte. Quando perguntei a Carmen Lúcia se ela achava que a brincadeira do Netos de Gandhy tinha um viés religioso, ela pensou durante um tempo e depois respondeu que sim, porque tinha o corte. Se não tivesse o corte, não era religioso; mas como tem, é um ritual, ela respondeu. *

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Na manhã de sexta-feira, dia 14 de julho, Iara, iabassé de Cosme Talassidã, chegou à casa de seu Celso do Gandhy para auxiliar Carmen Lúcia no corte para Exu e no preparo das comidas dos orixás de seu Celso. Foi sacrificado um animal de duas patas (um galo). As comidas preparadas por Iara e Carmen foram: o doburu, para Omulu, o axoxô, para Oxóssi, e o ipeté, para Oxum. Seu Celso também ofereceu o padê para Exu. Pela manhã, antes do sol sair, seu Celso tirou as folhas para fazer o amaci: capimaruanda, tioiô e aroeira, que macerou durante a parte da manhã. Com o amaci pronto, seu Celso banhou o tabuleiro e, depois, solicitou a Carmen que o preparasse, forrando com tecido branco e, em seguida, colocasse a flor do velho. Ao longo do dia, algumas das baianas do Gandhy apareceram para pegar um pouco do amaci preparado por seu Celso: dona Raimunda, dona d’Ajuda, dona Maria. Outras também aproveitaram para deixar suas contas para seu Celso lavar com o banho de folhas que preparou. Quelé foi uma delas. 187

Quelé é filha de Nanã e sai no Netos de Gandhy como baiana desde que seu Celso assumiu a brincadeira. No ano em que eu acompanhei a saída do bloco, contudo, Quelé saiu como destaque, trajada com a vestimenta de sua santa de cabeça. motivo que a fez redobrar ainda mais os cuidados na sua preparação, observando que não se tratava de uma brincadeira qualquer, mas de uma homenagem aos orixás. Conforme Quelé disse, ao sair no Gandhy, elas “estão fazendo obrigação, não estão fazendo luxo”: O santo não gosta que se brinque com as coisas dele. Nós chamamos de brincadeira, como um modo de dizer, mas é tudo muito sério. Você está acompanhando toda a preparação de seu Celso para que, no ritual, ocorra tudo bem. A gente está levando o candomblé para a rua e o cuidado tem que ser geral. Seu Celso prepara o amaci e deixa pra todo mundo pegar. Eu venho aqui e pego, peço para ele lavar minhas contas. Amanhã de manhã eu tomo meu banho de folha, tomo meu banho de alfazema, coloco meu contraegum e, chegando aqui, ponho as minhas contas. Durante o ritual, eu não bebo. Eu brinco, porque tem que ter alegria, orixá é alegria. Mas é uma brincadeira que não é bagunça. Algumas mulheres saem da brincadeira dizendo que não vão mais participar, porque ficam sentindo dor disso e dor daquilo depois da brincadeira, e dizem que a culpa é de seu Celso que não sabe proteger a brincadeira. Mas, se você for ver, essas mulheres não passam aqui pra pegar um banho de folha, não colocam suas contas, não põem um contraegum... Aí depois vêm dizer que a culpa é de seu Celso. Cada um tem que fazer a sua parte para que a brincadeira saia bonita. Honorina, que também sai no Netos de Gandhy desde que seu Celso o assumiu, do mesmo modo apareceu para pegar o banho de folha preparado por seu Celso. Ela costumava sair como baiana e, durante alguns anos, saiu como o destaque da baiana do tabuleiro, mas depois passou a tarefa para Norley, que, segundo Honorina, tem uma obrigação com o lado das almas. Naquele ano, Honorina também sairia como destaque, vestindo as roupas de sua santa de cabeça: Iansã. Assim como Quelé, ela observou que era importante se preparar para a brincadeira, pois se tratava de uma homenagem para os orixás, mas que era feita na rua e, por isso, tinha que haver uma preparação maior do que quando se vai a um candomblé. De acordo com Honorina, na rua, os eguns se aproximam mais. Ela observou que seu Celso toma as 188

precauções dele para segurar o bloco, e que ele, Dézinha (tia de Carmen Lúcia), dona da brincadeira Nagôs Africanas, e Daco (primo de Carmen Lúcia), dono do Negros Africanos, faziam “cultura com fundamento”, mas que era preciso que cada um cuidasse também das suas obrigações para não ter problema depois. Honorina disse que, além de tomar o banho de folha, sai com as contas, os contraeguns e mais alguns “apetrechos” que só quem é do santo conhece. No dia, ela observou, era para eu reparar em seus olhos. Seria a primeira vez em que ela sairia de Iansã e ela deveria estar irradiada na santa. Ao longo do dia, Indaiá, Juciara, Daiane, Lucilene e eu continuamos auxiliando Carmen Lúcia na confecção dos abebês (espelhos) da Oxum para distribuir às baianas, ideia sugerida por Indaiá a seu Celso por se tratar de uma homenagem à Oxum. Auxiliamos também com a tarefa de passar os abadás dos cambones e convidados, e as roupas de alguns destaques: dona Quelé, destaque de Nanã, Honorina, destaque de Iansã, e Norley, destaque da baiana do tabuleiro. As demais baianas já viriam trajadas de casa, mas Daiane, destaque da Oxum, Juciara, destaque da Euá, e Indaiá, destaque da Iemanjá, se arrumariam na casa de seu Celso, com a ajuda de Carmen Lúcia. Lucilene, Carmen Lúcia e eu vestiríamos os abadás. Cumpre notar que, nesse ano, o Netos de Gandhy só colocou as iabás (orixás femininos) como destaques, pois foram elas que regeram o ano de 2011. No final do dia, depois de muito trabalho e muita movimentação na casa, dona Diva, vizinha e comadre de seu Celso, apareceu para fazer uma visita a ele e a Carmen Lúcia. Ela disse que não poderia sair no Gandhy naquele ano, pois tinha que ficar cuidando da mãe, que estava em sua casa, adoentada. Todavia, dona Diva aparecera para fazer a corrente: ela disse que era importante manter a tradição e que seu Celso tinha a missão de divulgar a cultura dos orixás; que não era fácil segurar o bloco durante tanto tempo, mas que ela pedia a Deus e aos 189

orixás darem força para ele continuar na missão. Seu Celso, que, apesar do cansaço, ficou visivelmente feliz com a visita de dona Diva, deu um pouco do amaci para a comadre. Depois que ela foi embora, Carmen Lúcia observou, embora fizesse anos que dona Diva não saía no Gandhy porque estava cuidando da mãe, ela sempre fazia questão de passar em sua casa no dia anterior à saída do bloco para dar uma força. O dia começou cedo e acabou igualmente cedo: por volta das 22 horas já estávamos exaustos. Seu Celso recomendou que fôssemos dormir, pois no dia seguinte deveríamos “estar de pé com as galinhas”: ele havia combinado com as baianas e os cambones para chegarem a partir das 7:30 horas, pois o bloco sairia às dez horas. Ele disse que era para eu pegar um pouco do amaci para me banhar antes de dormir.

5.2 SAÍDA Carmen Lúcia nos acordou por volta das seis horas. Para variar, Lucilene conseguiu me convencer a levantar da cama primeiro, e ficou dormindo um pouco mais enquanto eu tomava banho. Não adiantou muito porque logo em seguida seu Celso soltou fogos no quintal. Quando saí do banho, Carmen disse que meu abadá já estava separado, mas que era para colocá-lo mais perto do horário da saída do bloco porque ficaria muito quente durante o dia. Quando todos já tinham tomado banho, sentamos para o café da manhã. Seu Celso realizou uma oração agradecendo por mais um ano e pediu a Oxum abundância de riqueza e amor em nossas vidas e nas nossas famílias. Pontualmente às 7:30 h, um grupo de baianas da Ponta de Areia chegou à casa de seu Celso: dona Damiana, Larissa, Pedrina, Mirian e Railda. Todas são da mesma família: Bonfim dos Santos, que é também a família de Indaiá. Em seguida, foram chegando mais baianas e os destaques: dona Antônia, Gilvânia, dona Erotildes, dona d’Ajuda, dona Maria José, dona 190

Raimunda, dona Maria de Ivo e Marilza. Algumas baianas trouxeram quartinhas para colocar a água do amaci para a lavagem das escadas. Lucilene e eu distribuímos os abebés. Norley, a baiana do tabuleiro, chegou com Honorina. A meu ver, Honorina e Quelé tinham as roupas mais bonitas. Aproximei-me para falar com Honorina e ela estava estranhamente monossilábica. Daiane, Juciara e Indaiá foram as últimas a chegar, mas ainda não passava das 8:30 horas. Os cambones também foram chegando aos poucos: Nengo, Weliton, Ediney, Soleny e Dió, este último, filho de seu Celso. Soleny, sobrinha de Carmen Lúcia, era a única mulher que era cambone nas brincadeiras de Belmonte. Ela tocava para seu Celso e também nas brincadeiras do avô, seu Donha, e do tio, Nengo: o boi duro e os Negros Mirins. Pinho e Hiago também passaram na casa de seu Celso para pegar os tambores e depois seguiram para a casa de Vanderson. Às dez horas, já estávamos todos organizados na rua em frente à casa de seu Celso. Dona Maria e Cosme Talassidã chegaram por volta desse horário, pouco antes da saída do bloco. Seu Celso formou duas fileiras com as baianas e no meio colocou os destaques: primeiro, vinha Iansã, que, conforme explicou, deveria andar um pouco à frente do cortejo, pois “Iansã é Ogum de saias”, devendo, assim, ir abrindo os caminhos. Em seguida, seu Celso colocou Nanã e a baiana do tabuleiro, observando que as duas deveriam andar sempre juntas. Logo atrás, Euá e, em seguida, Oxum e Iemanjá, que deveriam caminhar próximas uma da outra também. Por fim, seu Celso posicionou Cosme Talassidã e dona Maria, dizendo que ambos poderiam, a qualquer momento, se aproximar do microfone para fazer uma saudação ou cantar. Seguindo as filas das baianas, vieram as pessoas que estavam trajadas com os abadás: Lucilene, eu, Odair (vizinho de seu Celso) e Percival e a esposa, casal de amigos de seu Celso e Carmen Lúcia. Os cambones vinham atrás fechando o bloco junto com o carro de som e o carrinho de água. 191

Seu Celso e Carmen Lúcia estavam trajados com os abadás, mas eles caminhavam no meio do bloco, atentos ao andamento e organização da brincadeira. Antes de sairmos, seu Celso puxou três vezes o seu característico cumprimento: Adjaiô! Ao qual respondíamos: Etô!49 Em seguida, Percival soltou os fogos e Nengo puxou o ponto de abertura: Exu enan. Colocamo-nos em movimento e seguimos o trajeto que é realizado pelo cortejo por ocasião da homenagem à padroeira da cidade. Em frente à casa de dona Otília, paramos e fizemos a primeira apresentação. Teca estava na janela e chamou dona Otília, que foi com seu Zé Grande, Queque, dona Domingas, seu Nilton e Babado para a frente do portão. As apresentações do Netos de Gandhy se dão quando o bloco está parado. As baianas formam uma roda, no meio da qual, os destaques, um a um, dançam e as baianas vão girando ao redor. As pessoas com abadás e os cambones ficam em volta, dançando e cantando. Seu Celso e Carmen Lúcia circulam, observando e animando a brincadeira.50 As baianas nesse momento jogaram a água do amaci em quem estava por perto. Algumas saíram da roda e foram tomar a bênção de dona Otília. Não sei quanto tempo durou essa apresentação, mas seu Celso, depois de algum tempo, disse que poderíamos seguir e que encontraríamos com o pessoal de Vanderson no caminho. Encontramos com Vanderson já nas proximidades da Igreja de São Francisco de Assis, ainda na Biela. Ele estava acompanhado de umas 12 baianas, incluindo Naiana e as filhas da casa de dona Otília. Seu Celso cumprimentou Naiana e Vanderson e falou para se integrarem ao cortejo. Vanderson e Naiana cumprimentaram a todos, e Vanderson disse que viria com o “seu

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Conforme seu Celso explicou, “Adjaiô” quer dizer “Paz para todos”. É uma saudação formal de boas-vindas, usada quando se recebe alguém. A resposta à saudação é “Etô”, que é uma confirmação da saudação, algo semelhante a “que assim seja”. 50

Para a saída do bloco no carnaval, durante quase dois meses que antecedem a festa, toda sexta-feira à noite, seu Celso realiza os ensaios do bloco em frente a sua casa; já na ocasião da lavagem e entrega do balaio, não há ensaios. As demais brincadeiras tradicionais de carnaval (Negros Mirins, Nagôs Africanas, Negros Africanos e Negras Africanas) também promovem ensaios de uma a duas vezes por semana, pelo menos um mês antes do carnaval.

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pessoal” logo atrás das baianas de seu Celso. Junto a Vanderson estavam os dois rapazes que levavam o balaio e que o colocaram no carro de som. Seguimos o trajeto e paramos brevemente na Igreja de de São Francisco. Seu Celso disse que não precisaríamos fazer uma apresentação em frente a esta igreja, pois já havíamos nos apresentado na casa de dona Otília. Seguimos o cortejo em direção a Igreja de São Sebastião, no bairro do Centro, onde fizemos mais uma apresentação. Depois, fomos em direção à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, a igreja matriz, onde fizemos mais uma apresentação. As baianas usaram o amaci que estava nas quartinhas e lavaram as escadarias da igreja, que estava com as portas fechadas; a baiana do tabuleiro distribuiu a flor do velho aos que assistiam à apresentação. Havia alguns turistas tirando fotos e filmando, e também alguns moradores da cidade assistindo. Em seguida, seu Celso pediu a dona Maria, Cosme Talassidã, Vanderson e Naiana para cantarem algumas músicas. Vanderson aproveitou para falar sobre a importância das casas de axé da cidade se unirem para divulgar a sua cultura e para homenagear os orixás. Depois, falou um pouco sobre Oxum, pedindo que a deusa da beleza e da riqueza nos abençoasse e que cuidasse de todos os seus filhos. Gritando ao final do discurso a saudação à deusa das águas doces ‒ “Ora yê yê ô!” ‒ e pedindo que respondêssemos: “Ora yê yê ô!” Por fim, Vanderson disse que faria a entrega do balaio da Oxum. Ele passou o microfone para seu Celso e convidou Cosme Talassidã, dona Maria e Naiana para irem com ele entregar o balaio. Vanderson também solicitou à moça que estava trajada de Oxum que o acompanhasse. Eles desceram até a beira do rio e fizeram a entrega cantando para Oxum. Quando depositaram o balaio no rio, não demorou para que a moça que estava vestida de Oxum a manifestasse, e Cosme Talassidã, Vanderson, dona Maria e Naiana saudaram a divindade: “Ora yê yê ô!” A entrega foi aceita. Cantamos mais para Oxum e, depois de Cosme desvirar a moça, eles retornaram. Seu 193

Celso, então, reorganizou o bloco para seguirmos para a sua casa. Nengo assumiu o microfone e puxou o ponto de Exu, o que causou troca de olhares e reclamações de algumas baianas e fez com que seu Celso rapidamente se dirigisse a ele e pedisse para puxar outro ponto. Nengo então passou a cantar Estrela d’Alva. Era a segunda vez que Nengo puxava o ponto de Exu para além do momento inicial do cortejo. Posteriormente, esta sua “falha” foi matéria de resenha, isto é, crítica entre os que participaram do ritual. No caminho para a casa de seu Celso, algumas baianas foram se despedindo do grupo e caminhando para as suas casas. Vanderson, Naiana, as baianas e o destaque da Oxum, que os acompanhavam, também se desvincularam do cortejo no meio do caminho. Quando chegamos, não havia metade do grupo inicial. Os destaques vestidos de orixás, Cosme Talassidã e dona Maria, os cambones, e quem estava de abadá seguiu com seu Celso até o fim, mas, das baianas, restaram apenas Norley, a baiana do tabuleiro, dona Maria José, dona Raimunda e as que fazem parte da família Bonfim dos Santos. Essas separações ao longo do caminho também foram matéria para resenha nos dias seguintes, mas seu Celso observou que já está acostumado com as baianas procedendo desse modo. Quando chegamos à casa de seu Celso, iniciamos a comemoração final. Cosme Talassidã e dona Maria não chegaram a entrar, se despedindo do portão mesmo. Seu Celso pediu para Dió ir à distribuidora de bebidas pedir para entregarem duas caixas de cerveja e alguns litros de refrigerante em sua casa, e também para entregar uma caixa de cerveja em Vanderson e uma caixa de cerveja em dona Otília. Percival pediu mais duas caixas de cerveja para a casa de seu Celso. Os cambones pararam de tocar. Percival soltou mais fogos. As baianas tomaram o refrigerante, ficaram um pouco e se despediram de seu Celso. Do mesmo modo, procederam Honorina, dona Quelé e Norley. Elas não queriam ficar para beber. Já os cambones e demais estávamos começando a comemoração. Iara, a iabassê de Cosme Talassidã, que é mãe de Juciara, destaque que saiu de Euá, 194

acompanhou todo o cortejo, mas apenas ao lado, junto ao público relativamente flutuante que foi seguindo o Gandhy. Entre ele também estavam Shyrlei, a companheira de Soleny, Neto, irmão de Carmen Lúcia que também é cambone, e Anísia, mãe de Ariane. Eles também participaram da festa. Posteriormente, chegou Vânia, esposa de Nengo, que costuma sair no bloco como baiana, mas que não pôde participar do cortejo pois havia machucado o pé alguns dias antes. A certa altura, depois de já termos bebido um bocado, o marujo de Iara se manifestou. Ele chegou saudando a todos e se apresentando: era Dom Manoel Alves de Alencar, filho de Talassidã, neto de Matalandê. Disse que estava em Canavieiras e que tinha vindo apenas para aquela comemoração, e queria saber dos donos da casa. Seu Celso se aproximou e o marujo o cumprimentou. Em seguida, Carmen Lúcia veio e cumprimentou o marujo dizendo que já estava estranhando ele não ter aparecido, que era tradição ele vir todos os anos e que ela estava sentindo falta dele. Carmen pediu para Lucilene pegar um caneco para o marujo, que prontamente agradeceu dizendo a seu Celso que sempre voltava à sua casa porque era muito bem tratado por sua esposa. Com o caneco de cerveja em punho, o marujo disse que a festa estava muito desanimada, e pediu para os cambones pegarem os tambores. O marujo começou a puxar chulas e o samba começou. Não tardou, uma mulher apareceu na casa de seu Celso. Era uma das namoradas do marujo, que trazia o chapéu de Dom Manoel e um maço de cigarros. Ela passou a tarde a seu lado, servindo cerveja, acendendo os cigarros, sambando e conversando com ele. Vânia, a certa altura, pediu para o marujo olhar seu pé. Ele examinou, disse que estava feio, e receitou alguma coisa para remediá-lo. O marujo seguiu puxando chulas. Os cambones o acompanhavam. Mesmo com a namorada, o marujo não hesitava em pedir para namorar outras moças: quando queria cortejar alguém, 195

puxava a chula: “Você quer namorar mais eu?” Não vi o horário em que o marujo se despediu e o samba acabou. Por volta das 16 horas, saí da roda de samba e fui me deitar no quarto de Lucilene para descansar um pouco. Acordei de madrugada, quando as visitas já tinham se retirado e todos da casa já estavam dormindo. *

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Desde o início do trajeto do Netos de Gandhy, algumas pessoas que não eram integrantes do bloco seguiam o cortejo de bicicleta ou a pé. Outras acompanhavam uma parte e depois se distanciavam. Não era muita gente, mas havia um certo grupo que se mantinha por perto, acompanhando o cortejo. Pelas ruas da cidade, algumas pessoas demonstravam gostar da brincadeira, parando, cumprimentando seu Celso ou alguns dos integrantes, indo à frente de suas casas para espiar e acenar. De outro lado, alguns jovens caçoavam e outras pessoas se distanciavam, mas não chegou a haver nenhuma manifestação explícita de reprovação. A descrição que Baran oferece sobre a saída dos blocos Netos de Gandhy e Filhos de Olorum (bloco em muito semelhante ao Gandhy, liderado por Cosme Talassidã, que na época em que fiz a pesquisa já não existia mais) no carnaval de 2003 destaca justamente a surpresa que o autor teve ao perceber que o público que assistia à apresentação não demonstrava muito entusiasmo, nem uma participação colaborativa, mas o contrário: eles observavam a apresentação de modo passivo e com distanciamento (Baran, 2007: 67). Baran argumenta que o motivo para esse distanciamento era o vínculo explícito que esses blocos têm com o candomblé. O autor procede à descrição de alguns episódios que vivenciou e que o fizeram compreender que, em Belmonte, apesar de haver muitas pessoas que frequentam as casas de santo, essa socialidade ainda é escondida, e há ainda muito medo e preconceito em relação à religião. Ele realiza a sua análise, assim, pontuando a atuação de seu Celso como uma forma de atuação política do movimento negro em Belmonte, destacando que seu Celso tem o 196

compromisso de valorizar e divulgar a cultura e os símbolos africanos e afro-religiosos numa cidade em que as pessoas ainda são muito resistentes ao candomblé (idem: 73). De outro lado, Baran apresenta a atuação do mestre de capoeira Raio, que, por meio das atividades com seus alunos, também atua politicamente de modo a valorizar as contribuições culturais da população negra, quando fala sobre a história de luta e de resistência desta população a fim de recuperar a autoestima de seus alunos, ensinando a todos a respeitar as diferenças. Todavia, Raio era evangélico e apresentava grande resistência em participar de qualquer atividade que o associasse ao candomblé. Poderia citar inúmeros outros exemplos para contribuir com a argumentação de Baran, e também explicitar como a intolerância religiosa e o preconceito racial ainda são vivenciados de modo muito forte no cotidiano de Belmonte. Todavia, considero que o trabalho e a argumentação do autor já sejam suficientes para elucidar este ponto, bem como para apresentar diferentes atores da cidade que elaboram estratégias singulares para atuar politicamente a partir dessa perspectiva. Acrescentaria apenas que, ainda que as demais brincadeiras tradicionais não tenham conexões tão explícitas com o universo do candomblé, seus donos (especialmente seu Donha, dono do boi duro; Daco, dono do Negros Africanos; e Sidney, dona da Negras Africanas) têm discursos fortemente elaborados nesse sentido. Apresentando as brincadeiras como manifestações culturais que valorizam a cultura negra, bem como pelo fato de que são brincadeiras que vêm na linha dos caboclos, isto é, que mobilizam um repertório estético (de músicas, ritmos, entre outros), ritual e espiritual, chamemos assim, desta linha-doutrina, eles se apresentam como importantes atores políticos nessa luta pela valorização cultural e afroreligiosa em Belmonte. O boi duro, por exemplo, é uma brincadeira realizada no início do ano, entre o período de 6 a 20 de janeiro, respectivamente dia dos Santos Reis e dia de São Sebastião. Seu 197

Donha, herdeiro de um dos bois duros mais antigos da cidade, explicou que o boi duro “tradicional” guarda muita similaridade com a brincadeira do Reisado, que era realizada entre o Natal e o dia dos Santos Reis, mas que, hoje em dia, já não é mais feito na cidade. As similaridades são a composição da orquestra com instrumentos de percussão, incluindo tambores, caixa e pandeirão; a possibilidade do uso de instrumentos de corda, como viola e violão, e instrumentos de sopro, como cornetas e trompetes. Os instrumentos de corda, no entanto, já não são mais utilizados nos bois duros de Belmonte, e os instrumentos de sopro estão sendo pouco utilizados também. A regência da orquestra e da brincadeira é feita pelo capitão (o dono da brincadeira), que utiliza um apito para se comunicar com os tocadores. Há também o ciclo de visitações às casas dançando e cantando, levando alegria para os moradores. No caso do boi duro, existem ainda mais personagens: os animais e os vaqueiros são os principais personagens do folguedo, com especial destaque para o boi cuja bravura é saudada na brincadeira. Os vaqueiros também são saudados pela bravura e pelo trabalho de captura dos animais. Por meio de uma performance cômica, os vaqueiros, que se apresentam mascarados, cumprem a função de capturar os animais, que se apresentam a partir do chamado do capitão. Todavia, quando vai se aproximando o momento de captura do boi, a comicidade cede lugar a um efetivo enfrentamento entre os vaqueiros e o boi. As apresentações são feitas à noite, na rua, em frente às casas dos moradores que previamente entraram em contato com o dono da brincadeira e que contribuem para a realização do churrasco dos brincantes, ao final do ciclo do boi. Em geral, os bois duros saem da casa do dono da brincadeira e se apresentam na frente de três ou quatro casas por noite, de três a quatro vezes na semana. A apresentação é feita em roda e consiste na chamada e apresentação dos animais, e posterior captura dos mesmos pelos vaqueiros. Para cada animal, há uma chula diferente, e um dos aspectos de avaliação da brincadeira consiste na capacidade 198

dos músicos de inventar chulas criativas para os novos animais que vão sendo incluídos na brincadeira a cada ano. A apresentação começa com a passagem do pau de formiga para os vaqueiros, o qual eles ficam empurrando uns para os outros ao longo de toda a brincadeira; em seguida, apresentam-se as lavadeiras, que dançam e simulam lavar roupas, no decorrer de uma chula que as elogia e elogia sua beleza. É possível que personagens cômicos como a Catarina, um homem vestido de mulher que corre atrás dos vaqueiros, e a boneca, uma grande boneca de braços longos que gira acertando os vaqueiros, também sejam chamados nesse primeiro momento. Depois, inicia-se o jogo de apresentação e captura dos animais. O capitão começa cantando para a apresentação dos animais mais mansos, chamando um por um ao centro da roda: o casal de patos e os patinhos, a burrinha, o carneiro. Os bichos se apresentam e os vaqueiros os capturam. À medida que a brincadeira vai evoluindo, vão sendo chamados os animais mais bravos, como o bode, o dromedário e o pit bull. O último animal a se apresentar é o boi, e o embate entre este animal e os vaqueiros é violento, podendo ou não terminar com a captura do mesmo, pois, no caso do boi duro, não há um enredo previamente fechado: tudo depende de como os vaqueiros e o boi vão desenvolver o embate. Os homens que encarnam o boi se revezam, pois a estrutura que dá forma ao animal é uma das mais pesadas: os animais são feitos com bugios, madeiras retiradas do mangue que, em determinado período da lua, ficam moles e podem ser envergadas; com o tempo essas madeiras enrijecem novamente. A estrutura do boi é forrada com espuma em seu interior para evitar machucar quem o carrega, mas, com o impacto do embate, nem sempre a espuma dá conta da proteção. Do lado de fora, enfeita-se o boi com tecido e papelão. O crânio de um boi morto é usado para a cabeça do animal da brincadeira. As apresentações são realizadas até o dia 20 de janeiro, quando, por ocasião da subida 199

do mastro de São Sebastião, todos os bois se apresentam na praça em frente à igreja do padroeiro. Em 2011, se apresentaram cinco bois duros de diferentes bairros da cidade. Cabe destacar que essa brincadeira é reconhecida como uma forma de homenagear os caboclos e boiadeiros, entidades do candomblé. Nengo, filho de seu Donha, por exemplo, assumiu a brincadeira do pai, dentre outros motivos, como um compromisso para zelar de seu caboclo. Ela é uma brincadeira da linha de caboclos assim como a Nagôs Africanas, que são uma homenagem aos pretos velhos, e o Negros e Negras Africanos, que são uma homenagem aos antepassados.

5.3 RESENHAS As resenhas são, em geral, as fofocas, as críticas que são elaboradas no universo do candomblé de Belmonte. Sempre após alguma festa ou obrigação, há resenhas sobre algo, alguém ou algum acontecimento. Ao longo do ano, tive a oportunidade de ouvir algumas resenhas que me instruíram de uma forma interessante (e bem didática) sobre as regras de conduta valorosas nesse meio, bem como fui matéria de algumas que me levaram a dar mais atenção aos princípios a observar. Nesta seção, apresento algumas resenhas realizadas por ocasião da homenagem do Netos de Gandhy à padroeira da cidade em 2011, de modo a elucidar os princípios que regem a organização e avaliação das brincadeiras tradicionais desde o ponto de vista de quem é do candomblé. Vanderson foi matéria de resenha em diferentes grupos. A postura que ele assumiu durante os preparativos do evento, afirmando que algo em torno de 30 mulheres o acompanhariam, foi considerada arrogante. Como poucas mulheres o acompanharam e a maioria era da casa de dona Otília, a resenha foi no sentido de que ele não tinha força ainda, mas já queria se fazer como pai de santo. Observaram que Vanderson anda com mania de 200

grandeza, mas que, na vida no santo, tudo tem seu tempo e sua hora, e que não vai tardar para o santo mostrar isso para ele. Existe um percurso para se tornar pai de santo, inclusive para aqueles que seguem a linha-doutrina da umbanda: esse percurso se dá por meio do desenvolvimento com o trabalho no santo e, posteriormente, é possível que um número de pessoas passem a fazer parte deste desenvolvimento, ajudando nos trabalhos da casa de santo, compondo uma máquina social singular de captação e distribuição de axé, tal qual exposto no capítulo anterior. Existe, inclusive, uma estimativa de tempo e alguns requisitos específicos para isso: para se tornar um pai ou uma mãe de santo é preciso ter, no mínimo, uns três anos de trabalho no santo, e este trabalho deve ser realizado por um caboclo ou preto velho. No caso, Vanderson recebeu seu santo de dote quando criança, mas só veio a se desenvolver no santo mais recentemente, quando jovem. Seu caboclo manifestara a pouco tempo, em 2010, após o falecimento de seu amigo e pai de santo Mário Sérgio. Até então, Vanderson trabalhava com sua legbara; foi o Caboclo Juremeira quem puxou o seu caboclo. Conforme avaliaram, era isso que faltava para Vanderson ser considerado um pai de santo. Todavia, ele está aprendendo que, para ser um pai, precisa trabalhar muito, observando que não é fácil trabalhar com gente e mantê-las por perto. Esse trabalho também é avaliado em termos da composição das brincadeiras: quanto mais pessoas um bloco ou brincadeira possui, mais força tem a brincadeira e o seu dono. Seu Celso, por exemplo, fez questão de contar que, quando assumiu o bloco e passou a fazer a entrega para Exu, o número de participantes do Netos de Gandhy aumentou exponencialmente. A entrega para Exu, ainda que nem todos saibam de sua realização, deixa a brincadeira mais segura, evitando que eguns se aproximem e confusões ocorram, possibilitando que mais pessoas considerem participar da mesma. Outros fatores também são acionados para justificar a adesão maior ou menor aos 201

blocos e brincadeiras, avaliando também a sua força: no ano de 2003, por exemplo, o Netos de Gandhy perdeu um grande número de participantes que optaram por sair no Filhos de Olorum, bloco com proposta semelhante a do Netos de Gandhy, liderado por Cosme Talassidã. Nessa época, por motivos políticos, seu Celso deixou de receber o apoio da Prefeitura para realizar a brincadeira: ele apoiou publicamente o candidato da oposição durante as eleições no ano anterior. Cosme Talassidã recebeu, então, o convite do prefeito para colocar o Filhos de Olorum na rua de modo a realizar a abertura oficial do carnaval de Belmonte. O prefeito doou rendas e tecidos para a confecção das roupas das baianas e dos destaques, e quase todo o povo do santo de Belmonte quis sair no bloco de Cosme, já que seu Celso não tinha recursos e pouco tinha a oferecer para os participantes do Netos de Gandhy. Seu Celso observou que Cosme chegou a colocar algo em torno de 400 pessoas na rua naquele ano. Por sua vez, seu Celso teve o apoio de Honorina e de seu filho Fumaça, que convidaram os alunos do Grupo de Capoeira Raízes de Zumbi, grupo de Fumaça, para sair no Gandhy. Seu Celso também contou com a ajuda de outros amigos e algumas baianas que sempre saíram com ele: dona Diva, dona Raimunda, Quelé, Percival e a esposa. O Netos de Gandhy se apresentou com aproximadamente três dúzias de pessoas, logo atrás do Filhos de Olorum. Mas, observou seu Celso, o Filhos de Olorum não durou nem dois anos. No ano seguinte, Cosme Talassidã passou o bloco para Adílson, companheiro de dona Maria, que rebatizou o bloco com o nome de Filhos de Zambi e conseguiu colocar a metade do número de participantes que Cosme colocara na rua. No ano posterior, contudo, o Filhos de Zambi já não saiu mais. A longevidade da brincadeira é também a marca de sua força, e quanto mais tempo o dono de uma brincadeira consegue colocá-la na rua, mais força considera-se que ele tem. Seu Celso observou que, para colocar uma brincadeira na rua durante tanto tempo (em 2012, faria 202

20 anos que seu Celso estaria à frente do Netos de Gandhy), primeiramente, não há como ficar refém da política, que é algo instável e que obedece as suas próprias conveniências. É preciso cuidar dos fundamentos e contar com os amigos, que vão ajudar a manter a brincadeira independente dos bons ou maus períodos. Outra resenha que fizeram foi a respeito da moça que acompanhou Vanderson como destaque da Oxum. Apesar de ter a roupa linda, a mais bonita dos destaques, conforme avaliaram, a moça não sabia dançar. “Não adianta ter roupa bonita e não saber dançar. Chega a perder a beleza da roupa.” Saber dançar é uma qualidade muito apreciada no universo do candomblé. A dança é a principal forma de manifestação dos orixás nas festas. Por intermédio da dança, se expressa a divindade, o santo da pessoa e, conforme a autora Barbara, que realizou estudo sobre a centralidade do corpo e da dança na aprendizagem e iniciação no candomblé: A arte presente nos rituais do candomblé, além de propiciar a fruição estética, serve para construir e chamar a energia dos orixás (…) os orixás são energias reais, são “as-coisasem-si-mesmas”. Há assim algumas técnicas como a música e a dança que constroem e abrem os “caminhos energéticos” para o orixá se manifestar no ritual. (2002:185-6).

Ainda nessa chave de leitura, é possível compreender a resenha feita a respeito dos cambones: apenas Pinho, Dió e Welinton tocaram bem. Os demais apenas “alisaram os tambores” e não demonstraram tocar com emoção, com vibração. O toque dos tambores é uma das formas de “abrir os caminhos” e estabelecer a conexão com a vibração dos orixás. Essa vibração deve ser de tal modo que todos os participantes possam sentir a força, a energia que a brincadeira promove, mas o ideal é que não virem no santo, apenas estejam irradiadas. A irradiação permite que a brincadeira leve para a rua a força dos orixás, mas a pessoa deve estar consciente do que se passa, pois a rua e as brincadeiras não são os locais apropriados para a manifestação dos orixás. Ainda assim, a manifestação da Oxum durante a entrega do balaio não foi questionada. Por se tratar de uma oferenda ritual, a manifestação da Oxum era 203

esperada naquele momento, indicando que o presente foi aceito pela divindade das águas doces. O fato de Nengo ter puxado os pontos de Exu após o início da brincadeira também foi matéria de muita resenha. Falou-se que Nengo não conhece os fundamentos para poder cantar, que ele não tem responsabilidade e não quer buscar os conhecimentos da religião. Para Exu, se canta somente na saída do bloco. Depois que começa a cantar para os orixás, não se canta para Exu. A regra que rege os toques de candomblé ‒ a de que Exu não deve ocupar os mesmos espaços que os demais orixás ‒ rege também a brincadeira. Seu Celso, no entanto, não via quem poderia ocupar o lugar de Nengo. Ele observava que o cunhado tinha boa vontade e voz para levar a brincadeira, só faltava se aprofundar na religião. Quem seu Celso avaliava que teria fundamento e voz para ser o puxador do bloco e que, inclusive, chegou a assumir a função durante alguns anos, era Raildo ou Adílson, respectivamente, filho e companheiro da mãe de santo dona Maria. Contudo, ambos se afastaram do Netos de Gandhy em função de discordâncias na maneira de conduzir a brincadeira. Por fim, houve uma resenha sobre a dispersão das baianas, de Vanderson e Naiana durante o retorno para a casa de seu Celso. Como algumas baianas já têm costume de proceder desse modo e não mudam o comportamento, as críticas se direcionaram mais a Vanderson e Naiana. Conforme observado, o ideal seria seguir até a casa de seu Celso, como fizeram Cosme Talassidã e dona Maria, de modo a evitar que a corrente fosse quebrada. A ideia é a de que os participantes do bloco formam um circuito próprio de captação e irradiação de energia, e o ideal é que esse circuito seja desfeito em seu local de início, como uma forma de encerrar o ritual: chegar de onde se partiu, mas sem passar pelos mesmos lugares. No caso, como consideravam que Vanderson e Naiana eram pessoas entendidas no 204

santo por terem a vivência em suas próprias casas (mesmo Vanderson, tocando apenas em rituais fechados), esperava-se que eles procedessem conforme os fundamentos, e dessem exemplo para as baianas. Todavia, eles optaram por se desligar do bloco antes do término do cortejo. Não se frisou tanto os possíveis perigos que esse desligamento precoce poderia atrair, como a aproximação de eguns nos espaços “abertos”. Apontou-se mais para uma dimensão do coletivismo, digamos assim, da qual eles descuidaram: a ideia de que existe uma troca e distribuição de energia entre os participantes e também pelos locais em que se passa. Quando todos retornam para a casa de seu Celso, dono da brincadeira e responsável por sua organização, a energia produzida pelo bloco – que se pôs em movimento a partir daquele ponto e, sobretudo, pelo trabalho de seu Celso – regressa e se irradia para esta casa, ajudando a fortalecer o local e quem nele habita. O ponto a observar diz respeito ao fato de que não se deve apenas levar axé; tem que se deixar um pouco também. Não se trata, obviamente, de uma lógica calculista, mas de um princípio ancorado no que Vallado definiu como “sentido existencial do sou porque você é!”, um princípio de coletivismo que procura abarcar todas as atividades e pensamentos de quem é do candomblé (Vallado, 2006:143).

5.4 FAZENDO A CORRENTE Os preparativos para a saída do bloco envolvem procedimentos que servem para “fazer a corrente”, como falou dona Diva ao visitar o compadre no dia anterior ao cortejo. Para colocar o bloco na rua, seu Celso se ocupa em alimentar o assentamento dos seus orixás de cabeça e oferece o sacrifício para Exu, de modo a trazer os orixás para perto e manter a brincadeira segura, criando em seu entorno uma amarração tal qual as baianas e destaques procedem ao amarrar seus corpos com os contraeguns, utilizando suas contas e banhando-se com o amaci feito por seu Celso. Elas, de um lado, procedem de forma a evitar a aproximação 205

dos eguns; de outro, preparam seus corpos para aproximar os orixás, tal qual Honorina e Quelé explicaram. O cuidado de seu Celso ao solicitar que enviassem as bebidas e ao realizar a comemoração em sua casa também se ancora no princípio de fazer a corrente: em agradecimento à participação de Vanderson e Naiana, seu Celso solicitou a entrega de bebidas em suas respectivas casas, para que eles realizassem suas comemorações. Do mesmo modo, seu Celso teria a oportunidade de “dar um agrado” a Cosme Talassidã e dona Maria por terem ajudado a “fortalecer” a brincadeira. A brincadeira do Netos de Gandhy, assim, não é somente uma maneira de atuar politicamente na cidade levando a estética e os símbolos afro-religiosos para as ruas de Belmonte; também não é apenas uma manifestação da cultura tradicional. O bloco Netos de Gandhy, ao sair nas ruas de Belmonte, se prepara para irradiar a energia dos orixás. Há todo um procedimento ritual e uma organização da brincadeira que tem por objetivo operar tal qual as pessoas operam no trabalho de aproximação, organização e corte dos fluxosintensidade que constituem o mundo e elas mesmas. A diferença, no caso, é que esse trabalho é realizado coletivamente.

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SACUDIMENTO: NOTAS À GUISA DE CONCLUSÃO

“Foram as almas que me ajudou, meu divino Espírito Santo, viva Deus, nosso senhor”

A Vovó pediu para Josi tomar nota do trabalho e depois me instruiu: ela não poderia vir fazer o trabalho porque o seu aparelho (dona Rita) estaria de resguardo por conta da obrigação. Seria o Rei dos Índios quem viria, e ela ia mandar Josi chamar os filhos da casa para passar as coisas no meu corpo. Disse que eu deveria observar o resguardo também, e que seria bom fazer o trabalho antes da obrigação de Rei dos Índios para poder aproveitar a força da quitanda dele, isto é, da obrigação que seria feita para ele. Vovó disse ainda que era para ver a data certa com o aparelho, porque ela teria que viajar para Coroa Vermelha nos dias próximos. Depois das orientações, Vovó me deu a bênção e mandou ir acender a vela pro anjo de guarda. Pouco mais de 15 dias antes tinha feito uma limpeza de corpo com a Vovó. Foi depois de uma consulta que contei para ela que estava sentindo uma sensação de febre, fraqueza e dores de cabeça todos os dias, mais ou menos no mesmo horário, por volta das 18 horas. Além disso, sentia-me cansada e indisposta o dia todo. Foi aí que ela disse que seria bom fazer a limpeza e tirou a nota.51 Antes, contudo, já tinha conversado com seu Celso e com Quelé sobre as sensações que estava sentindo. Falei que ia ao posto de saúde, mas achava estranho justamente que a dor de cabeça e os sintomas mais fortes vinham sempre no mesmo horário. Quelé falou que era para eu lavar a cabeça com capim santo durante três dias seguidos nesse horário e acender a 51

Póvoas fornece uma rica descrição dos procedimentos e conhecimentos mobilizados no quarto de consulta de um terreiro de candomblé. Ele enumera os princípios de diagnóstico e a base para os procedimentos terapêuticos, e observa que “os passos delimitados para a terapia, seja ela direcionada para o corpo, para a mente ou para o espírito (…) obedecem a um rigor pautado na fala dos orixás. São eles que determinam o que fazer e orientam todos os procedimentos” (2006:218-9). No caso, contudo, Póvoas dá centralidade ao papel do jogo de búzios nessa operação, o que não pareceu central no modo de trabalho realizado por dona Rita.

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vela para o anjo de guarda. Seu Celso lembrou que tinha ainda capim aruanã que pegou com a pajé Jaçanã em Aldeia Velha, e que ia queimar à noite (isto é, fazer uma defumação). Já estava fazendo esses procedimentos quando falei com Vovó e ela disse que eles iam ajudar, mas que o bom seria fazer a limpeza de corpo. Foi aí que começou o trabalho. Na limpeza de corpo, Vovó, o velho Xangô e Josi participaram. Foi um trabalho relativamente simples. Cheguei por volta das 19 horas levando uma toalha branca e outra muda de roupa, porque a que usava seria rasgada e jogada fora. Já estavam todos lá: Vovó e o velho Xangô estavam em terra e Josi já tinha preparado tudo. Vovó perguntou se eu tinha passado bem o dia. Recuperei um pouco dos acontecidos e depois ficamos um tempo em silêncio. Vovó pediu para Josi pegar as folhas no quarto porque íamos começar o trabalho. Fomos para a parte de trás do terreiro, no quintal, próximo à casa de Exu. Tinha um pedaço de morim branco no chão, em cima do qual eu deveria ficar. Ao redor do morim, tinha a flor do velho, o milho branco para Oxalá e outros pratos rituais. Josi não participou nesse momento do ritual, ficando dentro de casa. O velho Xangô veio primeiro com as folhas: espada-de-são-jorge, aroeira e outras, e passou no meu corpo: primeiro de frente, dos ombros, braços, tronco para baixo, batendo as folhas com vigor no chão a cada vez que passava; depois pediu para virar de costas e fez o mesmo procedimento. Vovó ficou puxando as chulas e instruindo o velho Xangô. Depois das folhas, ele passou os demais elementos rituais pelo meu corpo, e Vovó ia cantando e falando algumas coisas, me instruindo também, dizendo o que era para pensar no momento. Quando finalizou, depois de passar o milho branco pelo corpo, Vovó disse que era para eu empurrar o pé para trás três vezes antes de sair do morim e pensar que tudo de ruim que estava sentindo estava sendo jogado para trás. Deveria observar que, depois de fazer isso, eu deveria caminhar para frente e não olhar mais para trás, e em hipótese alguma retornar. Deveria pedir a Josi o amaci e ir para a maianga tomar o banho do pescoço para baixo que, 208

depois, ela levaria a água do milho branco para me banhar também. Saí do pedaço de morim sentindo que deixava algo atrás de mim, não exatamente uma presença, mas senti que algo foi “sugado”, como se tivessem tirado uma película que me envolvia. Segui sem olhar para trás como Vovó recomendou e chamei por Josi, que me deu o amaci e pediu que eu lhe entregasse as roupas para que ela rasgasse. Enquanto tomava banho, Josi foi rasgar as roupas. Vovó veio com o banho de Oxalá e disse que era para jogar no corpo todo, inclusive na cabeça, pedindo a Ele paz e proteção. Quando saí do banho, Rosalvo já tinha saído para levar o despacho. Josi estava conversando com a Vovó e fui me juntar a elas. Vovó perguntou se já me sentia melhor e contei a sensação que tive. Ela disse que era um bom sinal e falou que era para ir acender a vela do anjo de guarda. Depois que voltei do quartinho, Vovó falou que era bom ir para casa e dormir cedo, e que Josi ia me acompanhar até a esquina. Antes de sair, Vovó me avisou que não era para dividir cama com ninguém naquela noite e que tinha que passar o dia seguinte de resguardo: não comer carne, nem beber nada de cor escura e também não usar roupa escura. Além disso, não poderia beber bebida alcoólica, bem como deveria evitar lugares de festa naquela semana. Quando cheguei em casa fiz pouquíssimas coisas, senti grande sono e dormi profundamente. *

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Depois da limpeza de corpo, Vovó disse que seria bom dar o tabuleiro e falou que Biguinha estava com o dele marcado, de modo que, se eu quisesse, poderíamos fazer juntos. Assim foi. O tabuleiro, como mencionado anteriormente, é um ebó de saúde, uma homenagem a Omulu para pedir saúde para o corpo e para a mente e também cuidar do lado espiritual. Os tabuleiros são rituais muito realizados nos candomblés em Belmonte. Todas as obrigações findam com esse ritual, que é realizado geralmente na segunda-feira posterior à obrigação e são conduzidos pelos pretos velhos das casas. 209

Os tabuleiros podem ser abertos ou fechados. Geralmente, os tabuleiros abertos ocorrem em função das obrigações mais importantes realizadas nas casas, como as festas dos santos da mãe ou do pai de santo e as saídas de filhos. Os tabuleiros fechados são realizados pelos filhos para propiciar saúde ou para encerrar uma obrigação; destes, além do pessoal da casa, podem participar parentes ou pessoas convidadas por aquele/a que está oferecendo o tabuleiro. O tabuleiro faz bem também para aqueles que dele participam. Logo após realizar a limpeza de corpo fiquei me sentindo muito bem. Parei de ter os mal-estares e já não me sentia desaminada. Contudo, próximo ao período do tabuleiro, tornei a sentir outras sensações estranhas e mais fortes. Parecia que tudo o que sentia antes tinha voltado em dobro, com a diferença de que somava-se naquele momento um peso enorme e uma tristeza profunda. Eu tinha a sensação de que essa tristeza vinha de muito longe, de outra vida. Contei para Vovó o que sentia e foi aí que ela disse que ia tirar a nota do meu sacudimento. *

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O sacudimento foi realizado 15 dias antes de regressar de Belmonte. No dia marcado, passei, ao final da manhã, na casa de dona Rita para deixar alguns dos itens que ainda faltavam. Josi disse que ela já ia deixar tudo pronto e que já tinha avisado a dona Nilsa, Rogério, Rosalvo e dona Raimunda para chegarem às 19 horas, quando também eu deveria chegar. Cheguei no horário combinado e já estavam todos no terreiro. Dona Nilsa e dona Raimunda já estavam de saia, sentadas, esperando. Rogério e Rosalvo estavam arrumando as coisas na parte de trás da casa, onde seria realizado o ritual. Dona Rita estava no quartinho da Vovó. Josi disse que era para aguardar. Depois de um tempo, dona Rita veio e ficou sentada em sua cadeira. Pediu para Josi perguntar para Rogério e Rosalvo se estava tudo pronto e, com a confirmação, ela falou para 210

eles virem para o barracão. Estávamos em silêncio. Dona Rita estava sentada com a testa apoiada numa das mãos. De repente, se levantou e ficou parada na nossa frente. Já era seu Rei dos Índios que estava em terra. Seu Rei dos Índios chegou cantando: Boa noite pra quem é de boa noite, bom dia pra quem é de bom dia, aqui cheguei, sou Rei dos Índios, sou o Rei lá da Hungria. Seu Rei dos Índios puxou outras chulas. Numa delas dizia que na sua aldeia ele tinha um pajé que tinha ervas para curar. Rei dos Índios cantou e dançou por todo o salão. Foi até a entrada do barracão, retornou. Depois de um tempo cantando e dançando, veio até nós e disse que já era hora de fazer os trabalhos. Era a primeira vez em que eu interagia com Rei dos Índios, e só então entendi o que as meninas diziam quando falavam que ele era rígido. A relação dele conosco era bem diferente da relação que tínhamos com a Vovó, que era mais acolhedora. Rei dos Índios foi quem conduziu o ritual. Fomos para trás do barracão: Rogério, Rosalvo, dona Nilsa e dona Raimunda. Josi novamente não participou. Rei dos Índios indicou que deveria ficar no local onde estavam os tecidos sobrepostos: preto, vermelho e branco. 52 Ao redor estavam os pratos rituais e as velas acesas. Rei dos Índios indicou também onde os demais deveriam ficar: dona Nilsa e dona Raimunda foram posicionadas de um lado, Rosalvo de outro, e Rogério ficou à minha frente. No primeiro momento do trabalho, foi Rogério quem procedeu à limpeza: Rei dos Índios puxava as chulas e pedia para os demais cantarem, enquanto dava as instruções para Rogério. Primeiro, Rogério pegou a garrafa de cachaça e aproximou de minha boca, Rei dos Índios disse que deveria dizer meu nome todo três vezes; em seguida, Rogério apresentou o padê. Esse primeiro momento era para estabelecer a comunicação com Exu ‒ quem propicia a 52

De acordo com Elbein dos Santos, essas cores são representações de todos os axés (1977:41).

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mudança, quem dá dinamicidade ao mundo e quem zela das entradas. Em seguida, Rei dos Índios pediu para Rogério quebrar os ovos. Eram sete, e, a cada ovo quebrado, Rei dos Índios falava que eu deveria repetir o que ele dizia, mandando coisas embora. Rei dos Índios puxava as chulas e mandava as coisas embora: desânimo, cansaço, inveja e outros. Num segundo momento, disse para Rosalvo fazer o sacudimento com as folhas. Rosalvo passava as folhas pelos meus braços e pernas, batendo-as fortemente no chão. Depois, Rei dos Índios instruiu dona Nilsa e dona Raimunda a passarem os pratos rituais pelo meu corpo, seguindo uma sequência que começava pela cabeça e passava pelos braços, tronco, pernas e pés; a diferença nesse momento é que elas passavam os elementos cruzando o corpo a cada etapa, primeiro de frente, depois de costas. Nesse momento, passaram os pratos rituais com o feijão fradinho, milho de galinha, acaçá, pipoca, etc. Encerraram novamente com o milho branco. Rei dos Índios dizia o que era para trazer: saúde, caminhos abertos, bom andamento dos trabalhos. Por fim, Rei dos Índios disse para Rogério queimar a pólvora, pediu que apagasse as velas e me entregasse, explicando que eu deveria quebrá-las em três partes. Antes de sair do local, novamente fui instruída a empurrar os pés três vezes para trás pensando nas coisas ruins que estavam ficando e, ao sair, deveria dar três longos passos para frente pensando em coisas boas para mim. Quando saísse não era para olhar para trás, nem retornar. Era para ir para a maianga, que levariam o banho de folha para mim. Tomei o banho de folha e Josi levou o banho com a água do milho branco, e novamente me instruiu a jogá-lo da cabeça aos pés. Ela pediu minhas roupas, que foram rasgadas e colocadas junto ao despacho que Rogério e Rosalvo levariam. Depois que saí da maianga, dona Nilsa e dona Raimunda foram tomar o banho de folhas também. Quando Rogério e Rosalvo regressaram, Rei dos Índios disse para tomarem o banho e depois falou para Rogério incensar a todos nós. 212

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Foi dona Rita Camuinganga quem me instruiu em relação aos procedimentos após o sacudimento: deveria passar a semana de resguardo e evitar comer carne, ingerir líquidos escuros e usar roupas escuras pelo menos nos três primeiros dias. Durante a semana, deveria evitar me cansar, pegar sol forte, ir a festas ou bares, beber bebidas alcoólicas e namorar. Também deveria evitar andar pela rua nas “horas cheias”: seis horas, meio-dia, 18 horas e meia-noite. Segundo ela, esses horários de transição do dia são horários em que os eguns caminhavam pela rua. E, mais uma vez, pelo menos na noite em que fiz o sacudimento, não deveria dividir cama com ninguém. Esses cuidados eram fundamentais para que o procedimento ritual surtisse efeito. O ritual de sacudimento é um ritual profilático: o objetivo maior é restabelecer o equilíbrio físico, mental e psíquico da pessoa. De acordo com Barros e Teixeira, a realização deste ritual é concebido como: Meio eficaz de promover uma mudança de estado, isto é, retirar os males, a poluição ou sujeira através da purificação do corpo, afastando os possíveis elementos responsáveis pela instalação da desordem, propiciadores do “corpo aberto”, assim controlando os distúrbios indicadores de doença ou desequilíbrio. (2004:131).

As noções de corpo aberto e corpo fechado eram muito utilizadas por aqueles que frequentavam os candomblés. Elas indicavam a suscetibilidade das pessoas de serem mais ou menos afetadas pelos fluxos de força que constituem todo o mundo, inclusive as pessoas. Mais especificamente, essas noções operavam de modo a indicar se o corpo da pessoa, a matéria ou aparelho dos mensageiros e orixás, estava suscetível às influências que a levam a perder força (axé). Assim como a própria existência da pessoa ao longo da vida no santo, o corpo fechado não é um estado permanente, mas sim o resultado de um trabalho contínuo de fortalecimento do santo de cabeça, dos mensageiros e de seu enredo de santo. Estar com as obrigações em dia, alimentar seus santos (no caso dos que possuem assentamento) e todo o processo de 213

desenvolvimento no santo é também uma forma de fechar o corpo contra as influências que o fazem perder força: doenças, feitiços e a ação de eguns. Processo que dura toda a existência, convém lembrar. Todavia, em alguns casos, o próprio santo da pessoa poderia fazer com que esta perdesse força e ficasse com o corpo aberto, suscetível às influências de eguns e de ser acometido por doenças. Naiana certa vez contou que uma das filhas da casa não cumpriu devidamente o resguardo após ter sido iniciada tendo relações sexuais com o marido antes de encerrar o período recomendado. Começaram a ocorrer inúmeros problemas com a moça, e nem ela, nem a mãe conseguiam entender o motivo; até que o Caboclo Juremeira se manifestou e fez a moça contar o que aconteceu. Foi aí que elas descobriram que o próprio santo puxou um egum “brabo” para castigá-la. A solução encontrada foi realizar um trabalho em quase todo similar ao procedimento de iniciação na umbanda: efetuando a limpeza de corpo e o bori novamente. Além disso, conforme Barros e Teixeira, pode ser o caso do corpo aberto ser ocasionado por uma ação ou “marca” de um dos orixás sobre alguém escolhido para cumprir a iniciação parcial ou total (idem). Nesses casos, a pessoa pode ser acometida por uma série de doenças físicas ou psíquicas (a depender do orixá). Também pode ser o caso de passar por inúmeros problemas de convívio social, financeiros e amorosos. Este foi o motivo que levou dona Domingas, por exemplo, a ingressar na vida no santo. Seus filhos todos tiveram problemas de saúde na tenra infância e ela teve que levá-los para serem rezados pelo Caboclo Juremeira, procedimento que resultou na iniciação dos seis filhos e também na iniciação da própria dona Domingas. Do mesmo modo que o corpo fechado, o corpo aberto não é um estado permanente, mas pode ser um estado de “poluição momentânea”, como definiu Barros e Teixeira (idem: 119), ou um processo de desvitalização do corpo. O corpo aberto é aquele que perdeu ou está 214

propenso a perder força. Alguns processos fisiológicos, por exemplo, são considerados formas de perder força, que ocasionam o corpo aberto, como a menstruação, em que se perde axé do corpo. Algumas ocasiões também são mais propensas a deixar o corpo aberto. No capítulo anterior, descrevi alguns procedimentos de amarração do corpo das baianas do Netos de Gandhy, que observavam que se tratava de evitar que os eguns se aproximassem, dado que elas estariam realizando um candomblé na rua, território que também é desses seres. Elas procediam de modo a trazer os santos e mensageiros para perto, mas não ao ponto de virarem no santo. O ideal era que eles estivessem juntos, mas somente irradiando. E mesmo seu Celso cuidava dos procedimentos rituais necessários para manter a brincadeira toda em ordem, efetuando o corte para Exu e cuidando da organização das baianas. A amarração era também estabelecida entre os participantes do bloco. A ação dos eguns consistia numa das principais formas de perder força, e era matéria para muito trabalho nas casas de candomblé. Como descrito na Introdução, os eguns constituem o polo negativo do mundo: se os santos abastecem os humanos, os eguns sugam sua força. Mas há diferenças entre eles, convém lembrar: uns escolhem trabalhar para os orixás, se diferenciando dos demais e tornando-se, assim, seus mensageiros. Os eguns mensageiros constituem as linhas de trabalho dos orixás: são linhas nas quais as faixas-intensidade orixá se manifestam para trabalhar. Já os espíritos dos mortos indiferenciados causam distúrbios no mundo. Eles não aceitam a condição de mortos e se aproximam das pessoas para satisfazer desejos como os que tinham quando ainda possuíam matéria própria. Assim como, a depender da intensidade, os santos podem irradiar e se manifestar nas pessoas, os eguns, a depender da fragilidade das pessoas, podem encostar e possuí-las. Essa presença dos eguns pode ser percebida como um peso, mas esse peso só começa a ser 215

identificado a partir dos sintomas que a desvitalização opera na pessoa. Não existe um quadro sintomatológico preciso, mas os distúrbios de ordem psíquica, física e social podem estar diretamente relacionados à influência desses seres. A consulta com um guia ou com um pai ou uma mãe de santo pode identificar mais precisamente qual o fluxo que está atuando para promover o mal-estar. Os diferentes procedimentos rituais de limpeza de corpo são também maneiras de afastar esses seres das pessoas. O sacudimento consiste num tipo de trabalho particular. Como descrito, é um ritual que inicialmente convoca Exu, por ser ele o comunicador, quem movimenta o mundo, opera as transformações, e também quem protege as entradas. Em seguida, procede de modo a, por contágio, transmitir os fluxos negativos para alguns elementos rituais: um animal e os ovos. A passagem no corpo de folhas próprias para limpeza, realizada na etapa seguinte, empurra estes fluxos para o chão. Em ambos os casos, o movimento é realizado de modo contínuo, de cima para baixo. Já num quarto momento, tratou-se de passar as comidas dos orixás pelo corpo, cruzando-o: milho, pipoca, canjica, etc. O corpo é, assim, alimentado a partir do contato com esses pratos rituais, atravessado pelas faixas-intensidade que foram também convocadas ritualmente. A pólvora foi queimada e as velas quebradas, procedimentos que cortam o fluxo estabelecido inicialmente. Mas o ritual não se encerra aí. O banho de folha e a defumação foram recomendados para todos os que dele participaram, e existe, ainda, para quem foi tratado, uma continuidade do trabalho, que se inicia ainda no barracão: os banhos e a defumação são seguidas das recomendações para evitar a perda da força e reaproximação dos eguns. Para além dos procedimentos rituais de limpeza de corpo ora descritos, os procedimentos para afastar os mortos de uma casa de candomblé e dos momentos rituais são tão importantes quanto os que estabelecem a comunicação com as faixas-intensidade dos orixás. A casa de Exu, por exemplo, de um terreiro de candomblé é local de fundamental 216

importância nesse sentido, pois Exu é o dono das entradas, é ele quem abre ou fecha as portas. Assim, o Exu do pai de santo é assentado e alimentado, e trabalha não apenas estabelecendo a comunicação com os orixás, mas também fechando a passagem para os eguns. Nos rituais, Exu também é chamado em primeiro lugar pelos mesmos motivos: seu papel de comunicador e de guardião das porteiras se atualiza no momento ritual. Em seguida, tomando como exemplo o modo que dona Rita realiza o xirê, queima-se a pólvora e se dá prosseguimento com os toques para a pemba, incenso e Lemba Caranga, que é um canto para saudar os antepassados da casa ‒ uma qualidade de mortos específica, da qual também é bom que se mantenha distância, mas dos quais não se pode esquecer. Somente após esta preparação ritual, é que os orixás são chamados para descer no salão. *

*

*

Ao longo da tese, procurei apresentar como nos candomblés de Belmonte as diferentes manifestações da força que constituem o mundo vão sendo postas em relação de modo a constituir existências singulares: pessoas, mensageiros e linhas-doutrinas são elas próprias manifestações únicas dessa força. É por meio do trabalho no santo que se tem a possibilidade de adquirir certo conhecimento para operar a alternância entre essas diferentes manifestações. É na alternância entre essas singularidades e no espaço aberto entre o Não-Ser e o Ser que se processa a existência. E é estabelecendo um fluxo de manifestação singular dessa força que se efetiva o existir. A morte, todavia, não consiste no fim da existência. Ao morrer, a pessoa se transforma. A iniciação é definida como uma forma de morte, em que a pessoa (e os santos), ao efetuar o ritual, deixa de ser o que era para se tornar um outro ser, que só é em relação com suas forças constituintes-constitutivas. A morte propriamente dita apresenta outros caminhos para a transformação, um deles aberto pela escolha de se manter em relação com essas forças, mas 217

de modo diferente: trabalhando para os orixás, os mortos se diferenciam dos demais e se tornam mensageiros, constituindo as linhas de trabalho dos orixás. De outro lado, permanecem atuando sobre a matéria sem aceitar a transformação imposta e, assim, tornam-se seres que trazem distúrbios para o mundo e dos quais é necessário afastar-se. Quando se morre, no candomblé, é necessário desfazer alguns procedimentos que inicialmente serviram para vincular a pessoa ao santo de cabeça, ao axé da casa e à família de santo (Cruz, 1995:21). Na linha da umbanda, também é preciso cortar as relações do morto com o mundo da matéria. Esse corte é, contudo, um procedimento ritual necessário para que se opere a transformação que novamente abre os caminhos para o processo de uma outra forma de existir.

218

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223

ANEXO I O município de Belmonte53

Localização O município de Belmonte está localizado no estado brasileiro da Bahia, mesorregião do Sul Baiano54 e microrregião de Ilhéus-Itabuna, conforme divisão territorial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O município é composto pelos distritos de Barrolândia, Boca do Córrego, Santa Maria Eterna, Mogiquiçaba e a cidade de Belmonte, sede do município. Há também muitos povoados rurais. A cidade de Belmonte está localizada às margens da foz do rio Jequitinhonha, à beiramar. É dividida administrativamente em seis bairros: o Centro, os tradicionais bairros da Ponta de Areia, Visgueira e Biela, e os bairros formados mais recentemente – São Benedito e Bom Jardim. Como a cidade é pequena, é fácil e rápido conhecer todos esses bairros numa manhã, sobretudo de bicicleta, meio de transporte mais usado pelos habitantes. De modo geral, o Centro é onde reside a elite econômica e política local. Existe uma rivalidade antiga entre os moradores dos bairros da Biela e da Ponta de Areia, originada, segundo alguns moradores, nos campeonatos de futebol realizados na cidade na década de 1930. De um lado, os moradores da Ponta de Areia, que torciam para o Águia; de outro, os moradores da Biela, que torciam para o Belmonte. Num dos campeonatos, a rixa entre o Águia e o Belmonte chegou a tal ponto que, ao final de uma partida, os jogadores dos times oponentes desencadearam uma briga que extrapolou o campo de futebol e se espraiou por toda a cidade, durando uma noite inteira. Conforme contam, foi preciso solicitar reforços policiais de Porto Seguro. Ainda hoje é possível perceber uma certa rivalidade entre os

53

Para elaboração desta seção, a maior parte dos dados foi obtido mediante consulta ao site do IBGE (http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1). Caso recorra a outras fontes, indicarei no texto. 54 Uma das sete mesorregiões do Estado, conforme a classificação estabelecida pelo IBGE.

moradores dos bairros, que se referem uns aos outros ora como “metidos”, ora como “arruaceiros”. Já a Visgueira é também um dos bairros mais antigos, habitado por famílias de pescadores e de ceramistas55. Os bairros do Bom Jardim e São Benedito são estigmatizados por não possuírem a mesma infraestrutura dos bairros mais antigos – muitas ruas ainda não são calçadas e não há luz elétrica. Conforme a pesquisa história de Cancela (2012), essa região onde está localizada a cidade de Belmonte foi originariamente povoada por Botocudos, Kamacãs, Pataxós e por outras etnias nômades. No período colonial, Belmonte era um aldeamento jesuíta, que foi promovido à vila em 1726, constituindo-se a terceira povoação criada na antiga Capitania de Porto Seguro. A partir de meados e final do século XIX, a cidade começou a integrar um importante polo político e econômico por fazer parte da rota de produção e escoamento do cacau. Nessa época, ocorreram migrações para a região: famílias de portugueses, alemães e italianos investiram em terras para cultivo e exportação do fruto; a população negra recém liberta também se deslocou para trabalhar nas fazendas de cacau e no porto da cidade (sobre esse assunto, ver Baran, 2007). A situação de prosperidade econômica se estendeu até aproximadamente 1990, quando o aumento da competitividade no mercado internacional conjugado com a diminuição da produção do cacau em decorrência do desenvolvimento de uma doença causada pelo fungo Moniliophtora (doença conhecida como vassoura-de-bruxa), perniciosa para os cacaueiros, desestabilizaram o sistema socioeconômico vigente e a proeminência da cidade em âmbito regional. Atualmente, os chamados “herdeiros do cacau”, os donos das fazendas de cacaueiro, 55

No bairro da Visgueira reside a ceramista Dagmar Ferreira Muniz, conhecida internacionalmente por suas obras de cerâmica (potes e jarros), que chegam a medir mais de dois metros.

cultivam e comercializam o fruto, mas não mais em larga escala. Grande parte das terras, aliás, está arrendada para o plantio de eucalipto e mamão, produtos que também são exportados. Inclusive, o município abriga o porto da empresa multinacional Veracel Celulose.

Características da população segundo critérios de sexo, idade e cor/raça A população belmontense foi estimada em 21.798 habitantes, no censo de 2010. Destes, pouco mais da metade, 11.420 pessoas, reside na área urbana, sendo que 21,2% têm entre 25 e 39 anos de idade, e 5.751 são mulheres, isto é, 50,3% da população urbana. Em relação a critérios de cor e raça da composição da população do município, de acordo com o Censo de 2010, 84% da população declarou-se negra e parda; 13,5%, branca; 0,79%, amarela; e 1,5%, indígena, conforme a tabela56: COR/RAÇA Branco/a Negro/a Pardo/a Amarelo/a Indígena Total Geral

TOTAL 2.958 2.502 15.817 173 348 21.798 Tabela 01: População de Belmonte por Cor/Raça

Aspectos socioeconômicos57 O Índice de Desenvolvimento Humano do município era de 0,618 no ano de 2000, posicionando-o no 224º lugar entre os 417 municípios baianos, conforme dados do Programa

56

Deve-se ressaltar, conforme observaram Paixão et al. (2010:28), que “a cor ou raça parda é uma categoria mais oficial do que culturalmente definida, apresentando, assim, diferentes possibilidades interpretativas sobre quem e por que se define como tal. Do mesmo modo, os indígenas não formam, sociologicamente, nem um grupo de cor e, tampouco, um grupo de raça. Seria mais apropriado defini-los como grupos étnicos: são cerca de 180 em todo o país. Mesmo o grupo branco pode, em alguns casos, ser acrescido de pessoas de peles mais escuras, mas de maior poder aquisitivo, autopercebidas assim pelo efeito ‘branqueador’ das melhores condições socioeconômicas. Os autoclassificados como pretos, a rigor, igualmente poderiam assim estar fazendo por conta de uma identidade ou afinidade ideológica com o movimento negro ou com alguma origem ancestral africana, sem necessariamente implicar uma determinada tonalidade de cor de pele e demais traços físicos”. 57 Nesta seção darei destaque às variáveis de cor/raça para conduzir as análises. Infelizmente, Belmonte de modo algum se apresenta como um ponto fora da curva no contexto de um país com índices de desigualdade racial. As únicas variáveis analisadas nesse tópico são o rendimento salarial nominal, formas de ocupação e nível de escolaridade dessas populações.

das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)58.

O nível médio de escolaridade dos belmontenses é o ensino fundamental incompleto, sendo que 24,8% da população (3.769 pessoas) com 15 anos ou mais não sabe ler e escrever. Os índices de educação formal mostram que, do total de pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto, 85% são negros/as e pardos/as; 11,7% são brancos/as; 1,2% amarelos/as; e 1,1% indígenas. Já os dados sobre o ensino superior completo mostram que a porcentagem da população negra e parda cai para 71%, e da população branca aumenta mais do que o dobro, para 28%. E não há indígenas, nem amarelos/as com ensino superior completo.

Escolaridade Sem instrução/ fundamental incompleto Fundamental completo/ médio incompleto Médio completo/ superior incompleto Superior completo Não determinado

Pardos/as e negros/as 10.433

Brancos/as

Amarelos/as

Indígenas

TOTAL

1.433

146

137

12.149

2.067

436

16

71

2.589

2.184

448

---

57

2.689

161 29

63 11

-----

-----

224 39

Tabela 02: Escolaridade da população por critérios Cor/Raça

O setor que mais emprega é o de prestação de serviços, sendo que apenas 1.651 pessoas têm carteira assinada; destes, 260 são brancos/as, 1.370 são pardos/as e negros/as e 21 são indígenas. Do universo de 58 empregadores, 32 são brancos/as e 26 são pardos/as e negros/as.

Ocupação Empregados com carteira 58

Pardos/as negros/as 1370

e

Brancos/as

Amarelos/as

Indígenas

Total

260

---

21

1.651

Informações obtidas no site: http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH-M%2091%2000%20Ranking %20decrescente%20(pelos%20dados%20de%202000).htm (acesso em 05 de janeiro de 2014)

Militares e funcionários públicos Empregados sem carteira Conta própria Empregadores Não remunerados Produção para consumo próprio

526

54

---

10

590

2.709

378

9

17

3.106

1.231 26 202

338 32 43

15 -----

----35

1.584 58 245

453

21

---

88

562

Tabela 03: Ocupações em Belmonte por Cor/Raça

Outra atividade no município que gera renda e empregos é o setor de agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e/ou aquicultura. Muitos moradores e moradoras da cidade de Belmonte vivem da pesca, extração e venda de pescados, mariscos e crustáceos, beneficiados pela localização da cidade, que fica próxima à praia, ao mangue e à foz do rio Jequitinhonha. Nos últimos anos, contudo, os pescadores e marisqueiras observaram o desaparecimento de espécies de crustáceos, como o camarão-d’água-doce, popularmente conhecido como pitu. No período em que residi na cidade, a barra sul do rio Jequitinhonha – a saída mais próxima da cidade – foi fechada, o que fez com que o acesso dos barcos ao mar aumentasse em duas horas. Essas mudanças, de acordo com os pescadores e marisqueiras, ocorreram em função da operação da fábrica de celulose, que joga seus detritos no rio Jequitinhonha, e da movimentação do Terminal Marítimo de Belmonte, que pode estar espantando algumas espécies de peixes. Ao longo dos anos, essas dificuldades têm excluído ou diminuído a oferta de alguns alimentos básicos da dieta do belmontense, ocasionando, assim, o encarecimento de determinados itens, como o cação, que era comum na região.59 59

Durante os últimos meses em que morei em Belmonte, pude acompanhar, na Colônia de Pescadores e Marisqueiras, as reuniões preparatórias para a 3ᵃ Audiência Pública de Ampliação da Veracel e participar com eles da referida audiência, realizada em 11 de agosto de 2011. Das discussões realizadas, as duas grandes preocupações da classe eram: a constatação do fato de que, em 20 anos de funcionamento, não houve nenhuma melhoria socioeconômica para a população belmontense com a atuação da empresa, conforme prometeram no momento de implantação do negócio; a observação de que a ampliação das atividades da fábrica e do movimento no Terminal Marítimo poderia prejudicá-los ainda mais. Diante disso, decidiram posicionar-se contra a expansão da Veracel Celulose durante a realização da audiência. Mais informações em:

O valor do rendimento nominal mediano mensal domiciliar per capita urbano é de R$ 255,00. Conforme a tabela anterior, 84% da população residente no município de Belmonte é parda e negra, isto corresponde a 18.319 pessoas. Destas, 17.737 estão economicamente ativas, sendo que 38% dessa população tem rendimento de mais de 1/4 a ½ salário mínimo e, 21% têm rendimento de mais de ½ a 1 salário mínimo. Apenas 196 pessoas negras e pardas, isto é, 1,7% dessa população, têm rendimento superior a dois salários. 2.800 pessoas brancas compõem a população economicamente ativa, sendo o rendimento médio desta população de ¼ a ½ salário mínimo (29,3%) e ½ a um salário (21,1%).

RENDIMENTO Até 1/8 de salário 1/8 a ¼ de salário ¼ a ½ de salário ½ a um salário um a dois salários dois a três salários Acima de três salários TOTAL

Pardo/as e negro/as 1.919 3.538 6.715 3.811 1.396 117 196 17.737

Branco/as 211 375 823 593 541 148 109 2.800

Amarelo/as --111 24 29 --9 --173

Indígenas 10 166 124 28 8 --11 347

Tabela 04: Rendimento da População a partir do Critério Cor/Raça

Ou seja, a média salarial da população é praticamente equivalente na base ‒ quase todos os municípios recebem em média de ¼ a ½ salário mínimo, independente da cor/raça. No entanto, é possível perceber uma grande desigualdade salarial quando analisamos os rendimentos a partir de dois salários, sendo comparativamente maior o número de pessoas brancas que recebem a partir dessa faixa salarial: de um universo de 17.737 trabalhadores/as negros/as e pardos/as, 313 recebem dois salários ou mais, o que equivale a 1,7% dessa população; e de um universo de 2.800 trabalhadores/as brancos/as, 9,1% recebem dois salários ou mais.

Religião http://www.cptba.org.br/joomla15/attachments/655_ATA%20PORTO%20SEGURO%20-%20VERACEL %2011_08_2011.pdf (acesso em 07 de janeiro de 2014)

Ainda de acordo com o censo de 2010, os dados sobre a religião dos belmontenses são os seguintes: RELIGIÃO Católicas* Evangélicas de missão** Evangélicas pentecostais*** Evangélicas não determinadas Espírita Umbanda Candomblé Sem religião Outras religiosidades

Pardos/as e negros/as 8.625 1.238 2.616

Brancos/as

Amarelos/as

Indígenas

TOTAL

1.188 324 680

39 9 22

38 10 229

9.890 1.581 3.547

517

36

---

---

553

64 --48 4.062 894

27 ----576 126

------77 27

------71 ---

91 --48 4.786 1.047

Tabela 05: Religião da População conforme Cor/Raça 60

Desses dados, é interessante observar que exclusivamente negros/as e pardos/as se declararam do candomblé, e foram apenas 48 pessoas. Ninguém se declarou umbandista, e 91 pessoas se declararam espíritas. Neste ponto, cabe observar, como mencionado na tese, que, de maneira geral, as pessoas tendem a não assumir o pertencimento religioso às religiões de matriz africana. Como descrito por Baran (2007), assumir-se ou vincular-se ao candomblé ainda faz com que essas pessoas passem por situações de preconceito. Assumir-se como do candomblé é assumir-se positivamente como negro e/ou pardo, ainda que não exista militância explícita nesse sentido dentro dos terreiros. Todavia, existem muitas pessoas que trabalham de modo a combater os preconceitos de cor/raça e a intolerância religiosa. Seu Celso do Gandhy, por meio das atividades do bloco Netos de Gandhy, é um deles, e atua na cidade há quase 20 anos. Por fim, cabe acrescentar que a cidade de Belmonte tem a maior estátua de crustáceo da América Latina: obra do artista plástico argentino Miguel, que reside em Belmonte há mais de 20 anos. O Guaiamum foi feito com estruturas de ferro, cimento e lanternas, dentre outros 60

*Católica apostólica romana, católica apostólica brasileira e ortodoxa; ** Presbiteriana, metodista, batista e adventista; *** Assembleia de deus, cristã do Brasil, universal do reino de deus, deus é amor, maranata e outras.

materiais reaproveitados. A obra faz referência à principal iguaria da cidade, que, de grande abundância na região, faz parte da dieta belmontense, bem como é ingrediente fundamental em diversos pratos, como moquecas, pastéis, casquinhas, etc.

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