Os Celtas da Galiza antiga: sociedades de guerreiros ou com guerreiros?

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Os Celtas da Galiza antiga: sociedades de guerreiros ou com guerreiros? Luis Magariños Iglesias [email protected] Mestrado em Arqueologia e Ciências da Antiguidade - USC 2014-15 14 de Jan de 2015

Fig.1 Representação do guerreiro na Fíbula de Bragança Museu Britânico, Londres

Não é objetivo deste pequeno trabalho introdutório e preliminar fazer uma profunda análise duma questão que por si mesma se apresenta extremadamente complexa na hora de tirar conclusões mais ou menos certeiras; devido, sobretudo à limitação de tempo para fazer um estudo mais aprofundado e também à falta de informação e fontes válidas que nos ajudem a interpretar melhor as sociedades celtas do NW Ibérico na Idade do Ferro. Mesmo assim, e baseando-nos nos trabalhos já realizados por pesquisadores que tem tratado este assunto, vamos a tentar discernir na medida do possível e partindo do marco teórico de Pierre Clastres, se os povos que do NW se conformavam como sociedades de guerreiros (menos estatalizadas e hierarquizadas) ou sociedades com guerreiros (mais estatalizadas e hierarquizadas) .

Sociedades de guerreiros vs. sociedades com guerreiros. A distinção entre sociedades de guerreiros e sociedades com guerreiros apresentase como importante para diferenciar antropologicamente as formas de organização das sociedades primitivas antigas e actuais. Assim CLASTRES (2010, 1987) e também HEUSCH (2007) traçam alguns elementos de distinção entre estas duas formas de organização social. Nas sociedades de guerreiros, não encontramos assim uma especial divisão social que permita a existência dum grupo específico para a guerra que possua autonomia e poder específico dentro da comunidade, mas apenas guerreiros que formam parte do grupo e cuja única distinção é aquela que vem do prestigio simbólico conseguido nas façanhas alcançadas e batalhas ganhadas. Nas sociedades de guerreiros, estes estão predestinados à morte pois é este o final da espiral trágica na que se insere a sua condição dentro da comunidade que estimula e alenta de forma permanentemente a sua condição. O ethos guerreiro faz parte do sistema de valores normas que regem a comunidade primitiva e "a superioridade do grupo dos guerreiros repousa unicamente no seu prestigio e na imagem positiva que a sociedade projeta neles para que julguem legítimos e necessários os riscos a tomar e para que perseverem na sua trágica condição de guerreiros apaixonados pola guerra" (CLASTRES 1987). Eles só poderão ser aceites pola sua comunidade na medida em que consigam derrotar ao inimigo, em caso de isto não acontecer, serão assassinados guerreiros com os que se confronta ou mesmo pola sua própria comunidade, que o executará ao ter perdido todo a sua legitimidade simbólica. Será totalmente rechaçado também polos seus. O guerreiro não possui nada de antemão, a glória é intransferível e não fundamenta nenhum privilégio. O amor pela guerra é uma paixão secundária, derivada de outra primária: o desejo, mais fundamental, de prestígio. A guerra é o médio de realizar

um fim individual, o desejo de glória do guerreiro. O guerreiro tem vocação de glória e não poder. Nas sociedades de guerreiros, os chefes (guerreiros ou não), do clã, da comunidade, ostentam por sua vez, um poder apenas simbólico, de prestígio, mas sem capacidade para tomar decisões mais importantes que as que possa adoptar o resto da comunidade. "O papel do chefe é ser generoso e dar todo aquilo que se lhe pede: em certas tribos indígenas, pode-se sempre reconhecer ao chefe naquele que possui menos que todos e que leva os ornamentos mais miseráveis." (CLASTRES 1987). O demais foi entregado como presentes. Quanto mais der, mais prestígio e reconhecimento alcançará o chefe dentro da comunidade. Por sua vez, nas sociedades com guerreiros, encontramos uma maior especialização e divisão social que se caracteriza em primeiro lugar pola inversão da déveda entre os chefes e a comunidade, sendo agora a comunidade a que se sente na obriga de compensar ao chefe entregando-lhe diversos bens materiais e simbólicos que lhe permitem acumular prestigio e poder, também coercitivo. Tab.1. Características básicas das sociedades de guerreiros e com guerreiros Fonte: Elaboração própria a partir CLASTRES (2010, 1987); HEUSCH (2007)

Sociedade de Guerreiros

Sociedade com Guerreiros

Déveda

Déveda do chefe com a comunidade

Déveda da comunidade com o chefe

Estado

Sociedade sem Estado

Sociedade com Estado

Coerção

Cara fóra. Grupos concorrentes.

Cara fóra e cara dentro, control interno da comunidade.

Divisão social

Sociedades pouco divididas e com menos especialização interna.

Sociedades mais divididas e especializadas internamente. Os guerreiros ocupam um role diferenciado.

Prestigio dos guerreiros e dos chefes

Simbólico, sem nenhum privilégio especial. Procura da gloria, não do poder. Talento, generosidade e oratória são elementos importantes.

Permite a acumulação de poder dentro da comunidade. Prestígio por acumulação.

Habitat1

Mais nomadismo.

Mais sedenterização.

As sociedades com guerreiros conformam também o nascimento das sociedades hierarquizadas com Estado, onde cada grupo se encarrega dum tipo de função Modelo geral que não se corresponde exactamente com os estudos ao respeito sobre o NW de GONZÁLEZ GARCÍA (2009) 1

muito específica dentro da comunidade. Onde a coerção violenta passa a ser um instrumento fundamental do controlo e da ascensão na escala social dentro da tribo.

Sociedades de guerreiros e sociedades com guerreiros no NW Ibérico na Idade do Ferro Chegados a este pontos já temos uma idéia mais ou menos clara das características que distinguem os dous tipos de sociedades guerreiras dos que vimos falando. Pretendemos aplicar agora essa base teórica proposta CLASTRES (2010, 1987) e HEUSCH (2007) às sociedades Celtas da Galiza antiga ainda sabendo do risco que supõe trasladar um marco analítico elaborado a partir do estudo de sociedades primitivas do nosso tempo na América do Sul e em outras áreas do planeta. Também temos a dificuldades agregada da tremenda escassez de fontes existente sobre as sociedades celtas antigas em geral e sobre a sociedade celta do NW Ibérico em particular. Mesmo assim e seguindo os apontamentos de QUINTELA (2002) disponhemos de algumas fontes (neste caso sobre as sociedades celtas gálatas da Asia) como a caracterização que POLIBIO (XXII, 21) faz dos atributos de Ortiagón, um dos reis gálatas mais importantes. Segundo Polibio, este deveria dispor de graça e inteligência, valor guerreiro e capacidade militar e também ser benfeitor e generoso. Do mesmo jeito, as fontes Irlandesas2 falam-nos dum jovem candidato a rei que deveria possuir as qualidades de generosidade, elegância e beleza, tesão guerreiro e capacidade para montar a cavalo Comprovamos portanto que estes atributos coincidem com os indicados anteriormente a respeito das sociedades de guerreiros indivisas, porém, no NW peninsular e tal como indica QUINTELA (2002) "o rei é, chega a sê-lo, basicamente polas suas qualidades pessoais exemplificadas na sua eloqüência, que não é outra coisa que a expressão duma liderança, dum carisma, dum valor guerreiro e duma generosidade [atributos coincidentes com os que vimos citando]. A pertença a uma linhagem real ajuda, mas não é o fundamental. Porém, uma vez que o rei ou chefe da comunidade não é capaz de manter operativos esses rasgos, corre o risco de ser abandonado pelos seus seguidores" Ainda assim, o próprio Quintela aponta as dificuldades de chegar a uma conclusão mais definitiva sobre isso dado que as noticias relativas às qualidades do guerreiros podem-se testificar epigraficamente mas em peças soltas e muitas vezes inconexas. 2

Togail Bruidne Dá Derga

Tab.1 Sociedades de guerreiros e com guerreiros na Galiza antiga Fonte: Elaboração própria a partir GONZÁLEZ GARCÍA (2009).

Sociedade de Guerreiros

Sociedade com Guerreiros

Periodização no NW Ibérico GONZÁLEZ GARCÍA (2009)

Idade do Ferro Inicial

Duas etapas: Segunda metade da Idade do Bronze e Idade do Ferro final.

Armas principais no contexto do NW Ibérico GONZÁLEZ GARCÍA (2009)

Lança

Daga ou Espada

Tipo de combate no NW Ibérico GONZÁLEZ GARCÍA (2009)

Formação coletitiva: Falange ou Phalanx

Mais individualizado (corpo a corpo): Razzia. Existência duma elite aristocrática guerreira diferenciada

Monumentalização e exaltação da figura do guerreiro GONZÁLEZ GARCÍA (2009)

Estatuas de guerreiros em lugares públicos3

Prestígio do Guerreiro PARCERO-OUBIÑA, C., (2002)

Sociedades Heróicas (SH)

Porém, é GONZÁLEZ GARCÍA (2009) quem delimita e categoriza com mais precisão as sociedades guerreiras do NW Ibérico da Idade de Bronze e Idade do Ferro distinguindo três etapas ou fases fundamentais: Fase 1.- Uma primeira etapa conformada na segunda metade da Idade do Bronze na que podemos perceber a existência duma sociedade com guerreiros conformada por combatentes individualizados e altamente distinguidos do resto da comunidade. Um grupo social aristocrático de grande prestígio e poder a respeito do grupo. Isto poderia vir confirmado pola importante quantidade de joias, ornamentos, armas de metal e objetos de prestígio que o registro arqueológico nos tem fornecido a respeito deste periodo. E igual que no conjunto da Europa nesse periodo, as armas de metal seriam portadas unicamente polos guerreiros de mais prestígio e seriam estas armas mais individualizadas (dagas no bronze inicial e espadas posteriormente) que incitam o combate corpo a corpo próprio duma concepção heroica da guerra formada por combatentes de elite. 3

O exemplo paradigmático no NW Penínsular é a figura das esculturas em pedra dos guerreiros "galaico-lusitanos" ou mesmo a representação que encontramos na Fíbula de Bragança.

O método habitual de combate entre guerreiros neste periodo seria a Razzia ou o ataque de incursão, a pilhagem, mediante o uso do cavalo. Outro aspecto que nos ajuda a entender esta este perido é a monumentalização das armas (dagas ou espadas) que encontramos em diversos petrolifos do NW Ibérico, como é o de Castrinho de Conjo (Fig. 2) já no bronze final ou o da Auga da Laxe. Fig. 2 Representação de dagas ou espadas no Petroglifo do Castrinho de Conjo (Santiago de Compostela). Bronze final - Início da Idade do Ferro. Fonte: USC, UVigo (2014)

A espada manifesta-se aqui como um elemento de grande distinção social com um valor simbólico quase mágico Fase 2.- Uma segunda etapa estabelece-se a partir da primeira Idade do Ferro, define-se polo passo duma sociedade com guerreiros a uma sociedade com guerreiros paralelamente à aparição da cultura dos castros e o inicio da fortificação dos povoados com as transformações sociais inerentes a esta mudança na forma de habitat. Estas mudanças vem-se acompanhadas por um novo paradigma na arte da guerra dado que as comunidades passam agora a encontrar-se protegidas nos recintos fortificados e a emergência de novas tácticas guerreiras baseadas na luta em formação próxima mediante o sistema da Falange ou Phalanx (ver Fig. 3) no que os guerreiros faziam uso de lanças e escudos em formação de combate próxima.

Há portanto uma democratização do facto guerreiro onde toda a comunidade faz parte desse grupo sem qualquer distinção destacável. Quiçá o facto dos castros e as suas muralhas de fortificação terem sido construídas por toda a comunidade ajudou a essa mudança de paradigma. Fig.3 Representação hipotética do sistema de combate da Falange ou Phalanx Fonte: Wikipedia

Fase 3.- Numa terceira fase, já no período final da Idade do Ferro, constata-se a volta a uma sociedade com guerreiros no que o combate individualizado mediante o sistema da Razzia (ver Fig. 4) começa a tornar-se hegemônico, como tinha sido ao longo da Idade do Bronze. O aparecimento desta nova sociedade com guerreiros (CLASTRES, 2010, 1987) com uma nova elite de combatentes aristocráticos, surge nos últimos séculos da Idade do Ferro, alcançando seu máximo apogeu nos grandes Oppida no sul da actual Galiza (Santa Trega) e do Norte de Portugal (Sanfis, Briteiros...). Isto provavelmente tenha a ver também com o forte desenvolvimento da minaria e da extração de metais que se tinha dado nas áreas próximas a esses grandes centros habitacionais (GONZÁLEZ GARCÍA, 2009) dado que os objetos de ouro e prata (Torques principalmente) tornam-se elementos de grande distinção para esta nova elite aristocrática guerreira. Podemos portanto concluir que segundo GONZÁLEZ GARCÍA (2009) as categorias acunhadas por Clastres de Sociedades de Guerreiros e Sociedades com Guerreiros podem ser úteis para ajudar-nos a compreender melhor o ethos guerreiro e a organização político-social das sociedades celtas da Galiza da Idade do Bronze e Ferro.

Fig.4 Representação hipotética de guerreiro do sistema de combate da Razzia e reprodução de escultura de guerreiro Galaico-Lusitano. Fonte: deviantart.com e Archaeoethnologica

Bibliografia: CLASTRES, P. (2010) La sociedad contra el Estado. Bilbao: Virus Editorial. CLASTRES, P. (1987) “La desgracia del guerrero salvaje”, en Clastres, P., Investigaciones en antropología política. Gedisa. Barcelona. pp. 217-256. CLASTRES, P. (1987) “Arqueología de la violencia: la guerra en las sociedades primitivas”, en Clastres, P., Investigaciones en antropología política. Gedisa. Barcelona. pp. 178-216. CLASTRES, P. (1978) “Intercambio y poder; filosofía del liderazgo indígena”, en Clastres, P., La sociedad contra el Estado. Monte Ávila, Caracas, pp. 26-44. HEUSCH, L. (2007) de, “La inversión de la deuda (Proposiciones acerca de las realezas sagradas africanas)”, en Abensour, M. (comp.), El espíritu de las leyes salvajes. Pierre Clastres o una nueva antropología política, Buenos Aires, pp. 95-120. GARCIA QUINTELA, M. V (2002) El Noroeste da la Península Ibérica en el contexto de una antropología política del mundo céltico. Traballos de Arqueoloxía e Patrimonio, 28. pp 93106. GONZÁLEZ GARCÍA, F. J. (2009) Between warrios and champions: warfare and social change in the later prehistory of the NW of the Iberian Peninsula. Oxford Journal of Archaeology 28 (1) 59-76-2009. PARCERO-OUBIÑA, C., (2002) “Sociedades campesinas, sociedades germánicas, sociedades heróicas. Un modelo de estructuración sociopolítica”, en Parcero-Oubiña, C. La construcción del paisaje social en la Edad del Hierro del Noroeste Ibérico, Ortigueira (A Coruña), pp. 175-187.

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