Os clássicos e a invenção da ópera

June 2, 2017 | Autor: L. Cerqueira | Categoria: Literature and Music, Historical Musicology, Ancient Greek Theater, ópera
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Os clássicos e a invenção da ópera

Luís M. G. Cerqueira –CEC
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O assunto desta comunicação é a análise do processo que, nos finais
do séc. XVI, inícios do séc. XVII, levou à criação da ópera, como resultado
de uma intenção de restaurar a tragédia antiga.
Esta análise, por outro lado, revela uma atitude em relação aos
clássicos que me parece útil considerar. A velha imagem dos anões que vêem
mais longe por estarem aos ombros de gigantes tem um interesse histórico,
mas perdeu adequação. Desde o séc. XVI que as proporções já não são essas,
e a modernidade descobriu a penicilina e a bomba atómica. Já não somos
anões. Por outro lado falta a esta imagem, medievalmente contemplativa, o
lado funcional, a dinâmica activa do fazer. Propomos, talvez atrevidamente,
uma outra imagem para a nossa relação com os clássicos e o seu legado, mais
prosaica e quotidiana, a imagem do acto de caminhar: ao caminhar há um pé
que se apoia, apoio que é simultaneamente uma relação de tensão, e que
podemos comparar à tradição recebida, e um pé que avança para o devir, que
será, etimologicamente aliás, o progresso. Se só usarmos o pé que se apoia,
andaremos ao pé-coxinho, se só usarmos o que avança, estatelar-nos-emos
inevitavelmente. Foi este avançar harmonioso, um pé depois do outro, a
atitude que gerou a ópera a partir da tragédia, e a nossa análise poderá
eventualmente ser de proveito e exemplo.
A ópera surge nos finais do séc. XVI, no seio da Camerata Fiorentina,
espécie de tertúlia de humanistas reunidos em torno do conde de Vernio,
Giovani Bardi, homem de letras e compositor amador, que tem a ideia de
restaurar a tragédia antiga e se abre aos projectos de músicos e literatos
que frequentam o seu salão.
A tragédia desaparecera durante toda a Idade Média, até porque a
possibilidade de redenção que o Cristianismo comporta dissipa a própria
essência do trágico. Ressurge no séc. XV, com o Orfeo de Ângelo Poliziano,
cuja segunda versão data de 1480 e se estrutura em cinco actos,
representando o primeiro passo no sentido do drama lírico neo-antigo.
Poliziano inspirou-se em Vergílio e Ovídio, e o seu texto era já
acompanhado por partes musicais, nos entreactos, com música composta pelo
cardeal Riario, sobrinho de Sixto IV. Esta obra integra-se na transição
teatral italiana das Sacre rappresentazione (tragédia religiosa) para a
tragédia laica.
A Camerata Fiorentina procura ressucitar integralmente a tragédia
antiga, incluindoa recuperação do seu carácter musical, no próprio corpo da
acção e não só nos espaços intervalares. Os hpmens que desenvolvem este
projecto são Vincenzo Galilei, pai do astrónomo, Cavalieri (autor do
primeiro oratório), o pai de Alessandro Striggi (futuro libetista do Orfeo
de Monteverdi), os compositores Giulio Caccini e Jacopo Peri, o poeta
Ottavio Rinuccini, com o qual Caccini e Peri colaboraram em 1600 para a
produção das suas Eurídices, feitas no mesmo ano e sobre o mesmo libreto.
Estes homens tomam como ponto de partida o facto de a música grega produzir
efeitos poderosos com meios reduzidos, e procuram regressar à simplicidade
antiga, renunciando aos meios que a arte utilizava há vários séculos,
nomeadamente à polifonia e à riqueza do acompanhamento instrumental.
Os teorizadores são Girolamo Mei, que estudou seriamente a música
antiga, e Vincenzo Galilei, reunidos em torno de Bardi. Em 1581, Vincenzo
Galilei publica em Florença o seu Dialogo della Musica antica e della
moderna, em que expõe a sua teoria sobre a nova música dramática: propõe-se
a monodia, uma voz única, com acompanhamento discreto de cravo, chitarrone,
lira e alaúde, a imitar a lira e a cítara dow antigos. Os instrumentos
deviam estar fora de cena, para não distrair, à imitação do tipo de
acompanhamento instrumental que se julgava ter sido o da tragédia antiga.
E é na concretização deste esforço teórico que surge a primeira
ópera, a Euridice, de Peri, com libreto de Rinuccini, representada em 1600,
no palácio Pitti, por ocasião do casamento de Maria de Medicis e de
Henrique de Navarra. O assunto, o mito de Orfeu, era o mais natural, não só
pelo que representa miticamente Orfeu, pela bela história de amor e de
morte, pela transgressão de todas as regras, indo aos infernos para trazer
de volta Eurídice, e pelos antecedentes de recuperação da tragédia do
século anterior. O texto de Poliziano serviu, aliás, de base a Rinuccini, o
autor do libreto, mas havia também uma razão para a escolha de Orfeu, do
ponto de vista funcional: quem melhor do que Orfeu para tornar aceitável e
verosímil ao primeiro público do melodrama o facto de alguém cantar em vez
de falar?
A Euridice de Peri é obra de teóricos da música antiga e de
literatos. A resposta à questão prima la parola o prima la musica redunda
claramente em proveito do texto e detrimento da música. A criação do
recitativo por Peri é o corolário das opções teóricas de Vincenzo e
Girolamo. O recitar cantando consiste numa única linha melódica vocal,
acompanhada por uma parte instrumental. Neste recitar cantando, a linha
melódica, a altura das notas e a acentuação rítmica são escolhidos pelo
autor fundamentalmente em função de uma melhor compreensão do texto. Prima
la parola. O resultado, embora não desprovido de qualidade estética, não
sobreviveu aos séculos, e a obra hoje é sobretudo conhecida através de
gravações, não fazendo parte do repertório frequentemente levado à cena.
Vejamos um recitativo. (Ex., Euridice de Peri, Ninfe che i bei crin d'oro,
faixa 1, 4).
Orfeu, em cuja pessoa se unem a poesia e a música, tem o seu corpo
dilacerado, não pelas Ménades, mas por esta dissociação das artes cuja
unidade primordial representa: a carne da poesia é agora separada da alma
da música.
Assim nasce aquilo que foi considerado a primeira ópera em termos
absolutos. Pensando ressuscitar a tragédia, estes homens, quando deram por
si, tinham inventado a ópera. As designações dadas às primeiras óperas são
elucidativas: tragedia rappresentata in musica, favola recitata in musica,
favola rappresentata in musica recitativa. A designação favola, decalcada
sobre o latim fabula, era já usada para representações teatrais desde o
séc. XV, nomeadamente os drammi meschiati, e é a designação da tragédia de
Poliziano, La fabula d'Orfeo (1480). Só em 1640 surgirá a designação opera
scenica.
Apesar das limitações da Euridice de Peri, a novidade era grande, e o
impacto causado teve consequências. O duque de Mântua, Vincenzo Gonzaga,
assistiu à representação, e encomendou de imediato a Monteverdi uma obra
sobre o mesmo tema, no espírito de emulação e rivalidade das aristocracias
das cidades italianas.
Em 1607, em Mântua, será representada a Favola d'Orfeo de Monteverdi,
com libreto de Striggi, secretário do duque de Mântua, e impressa em 1609.
Só com o Orfeo de Monteverdi nasce a ópera com as características
fundamentais que a irãos definmir ao longo dos séculos. A Euridice de Peri
fora apenas o delinear de um esboço, um abrir de porta: a primeira ópera, a
ópera matricial, a que define o que a ópera será, é a Favola d' Orfeo, de
Monteverdi.
O melodrama continuará com Monteverdi fiel à palavra. Mas a música
recupera os seus direitos. A palavra é senhora do ritmo e da harmonia, e,
na oposição, que se discutia então, entre cantar parlando (prima practica)
e parlar cantando (seconda practica), Monteverdi é adepto confesso da
seconda practica. Mas também não renega a polifonia, apresentando duas
peças absolutamente polifónicas, uma no fim do acto III, Nulla impresa per
uom, e outra no final do IV acto, E la virtute un ragio.
Monteverdi regressa às riquezas da harmonia e da instrumentação,
exemplo disso é logo a tocata, ou melhor, a fanfarra inicial, confiada às
trompetes, cheia de brilho, presença e agilidade, em que se adivinha já a
importância das aberturas da ópera posterior (ex.: tocata, faixa 1, 1).
Expressivo é o facto de o prólogo de Monteverdi ser agora confiado à
Música, enquanto o prólogo de Peri fora confiado à Tragédia. Recupera-se a
unidade fundamental da poesia e da música, simbolizada por Orfeu. Não digo
que seja essa a essência da ópera, até porque me parece que posteriormente
a evolução do género perdeu este equilíbrio e o valor literário dos
libretos fica, de modo geral, muitos pontos abaixo do nível da construção
musical.
A música em Monteverdi é esforçadamente trabalhada não só para
exprimir o texto com clareza, mas sobretudo para dar expressão adequada às
emoções (ex.: a alegria de Orfeu, ao recuperar Eurídice, Quale onor, 2, 8).
A importância dos affeti e a sua expressão musical é uma das
características fundamentais das obras em análise. Monteverdi e Striggio,
quer musical quer literariamente, privilegiaram o drama humano, a
rapprezentazione degli affeti. Monteverdi chega a rejeitar uma encomenda
importante para fazer a música de um espectáculo naval, sobre as núpcias
de Tétis, porque, como diz em carta a Striggio, não vê possibilidade de
exprimir sentimentos humanos poderosos: " Os ventos? Como poderei mover
afectos com eles? Ariana comoveu-nos porque era uma mulher, e do mesmo modo
Orfeu, porque era homem, e não um vento".
Da Ariana ficou-nos apenas o famosíssimo lamento que, quando bem
cantado fazia inevitavelmente chorar os auditores. Ariana invectiva o
traidor, embora continue a amá-lo, e este doloroso choque de emoções
contraditórias é expresso com uma harmonia expressivamente dissonante, com
um violento retardo inicial, pungente mesmo para os nossos ouvidos, muito
mais no séc. XVII (exemplo.: início do lamento de Ariadnae). Ouvimos apenas
alguns compassos, para ninguém chorar.
A inspiração deste lamento vem do lamento de Ariadne do carmen 64 de
Catulo, que inspirou outro artista desta época, Ticiano. O quadro Il
trionfo di Baco é significativo, sem a matriz clássica não entendemos de
todo o que se passa: de Ovídio vem a metamorfose da coroa de princesa de
Ariadne. Mas de Catulo, do carmen 64, vem a explicação das personagens: Com
efeito, Catulo faz a ecfrasis de um bordado do leito nupcial, que é pintado
em pormenor e com as mesmas personagens por Ticiano. A dificuldade
específica da pintura é a simultaneidade, não sendo possível uma sucessão
que conte a história, sendo o pintor forçado a conceber a imagem de forma a
contar a história de uma forma simultânea, coisa que o génio de Ticiano
consegue eficazmente. Há naturalidade no gesto de Ariadne, que agita a mão
em direcção ao barco que se afasta – é o lamento – , e no voltar da cabeça
para Baco que a requesta, – passagem a um recomeço.
Também este artista, utilizando um material clássico que conhece
profundamente, acrescenta algo de novo, a cor, uma cor generosa, cor a que
não há referências em Catulo. É esta deslumbrante expressividade da cor,
que o opõe a Miguel Ângelo, homem do desenho e da escultura, o seu
contributo peculiar. A beleza do bordado que Catulo descreve não seria
nunca como a deste quadro, em que as cores frias e azuladas do abandono por
parte de Teseu, cujo barco se perde na distância, contrastam com as cores
quentes das forças vitais representadas por Baco e pelo seu séquito,
estruturando o quadro em duas partes que se opõem. A matriz clássica é
indispensável para compreender, mas insuficiente para explicar. Um pé que
se apoia e um pé que avança, beleza que leva à criação de beleza nova.
Os clássicos são não só uma matriz que permite compreender, mas um
património palpitante, cuja qualidade intrínseca exige uma exteriorização
dinâmica e fecundante. Há nos clássicos uma masculinidade que não permite
que permaneçam fechados sobre si próprio, polidos e auto-admirados, mas
antes reclama a transformação do mundo que tocam, ajudando a construir o
devir humano.
É este também o mérito de Monteverdi, que avança procurando meios
musicais para exprimir eficazmente as emoções humanas exacerbadas: no
prefácios aos Madrigali guerrieri et amorosi (1638) reflecte sobre os
principais sentimentos definidos pelos filósofos (cólera, moderação,
humildade e súplica) e sobre os meios musicais de os expressar, levando a
cabo um estudo aprofundado das paixões da alma, dos affeti, e da sua
relação com a frase musical, recorrendo a uma harmonia audaciosa e
expressiva, com predilecção pela dissonância e seu efeito dramático.
Para além do temperamento dramático de Monteverdi, há uma teorização
subjacente, elaborada por Vincenzo Galilei e resultante dos estudos de
Girolamo Mei sobre a música grega antiga. Em carta deste a Vincenzo
salienta-se o efeito ético da música, elemento central da música
especulativa grega, que consistia na capacidade de provocar sentimentos,
mas agora teoriza-se também, e é uma novidade, que se alicerça sobre as
categorias do legado grego, sobre a sua capacidade de exprimir os afectos.
Esta busca da expressão do sentimento exacerbado e do patético é também um
elemento indispensável que se irá manter na ópera.
Um outro elemento utilizado pela primeira vez por Monteverdi são os
leit motiven, não exactamente à maneira de Wagner, mas de qualquer modo com
uma função identificadora: cada personagem é acompanhada pelo som de um
instrumento peculiar: Orfeu pela lira, Plutão pelos trombones, Eurídice
pela viola (exemplos musicais).
O tratamento do mito merece também alguma reflexão: ao invés da
Euridice de Peri, peça composta para a ocasião festiva de uma boda
aristocrática, e em que Eurídice era devolvida pela segunda vez à vida e a
Orfeu, em Monteverdi tal não acontece, assumindo-se a verdade profunda do
mito antigo, que ensina a inexorabilidade da morte, contra a qual o amor e
a beleza são apenas breves dilações. De facto, porque olha Orfeu para trás?
Não podia esperar mais um pouco? Orfeu olha para trás porque não pode ser
de outro modo. Em Monteverdi a pessoa de Eurídice não regressa à vida.
Apolo, porém, conduz Orfeu aos céus, como recompensa do seu esforço e arte,
e diz-lhe que, não revendo mais a pessoa de Eurídice, encontrará, contudo,
no brilho das estrelas o fulgor da sua beleza.
A opção por este final preserva a lição do mito, e afasta a
temática da guerra dos sexos, a misogenia de Orfeu e o seu assassinato
pelas Ménades, retomado de forma burlesca por Offenbach, que contradizia o
mito central do amor de Orfeu e de Eurídice. O que envolve uma consequência
musical, a vitória do canto sobre o grito, da harmonia sobre a desordem e a
loucura. De acordo como Neopitagorismo e o Neoplatonismo, a música é a
recuperação da harmonia do mundo, a mulher revelação e forma transitória de
uma beleza que é a da harmonia cósmica. Esta subtil melodia, mesmo que
trauteada apenas intimamente, lembra-nos que a ordem e a beleza existem de
facto, dá-nos um fio de Ariadne que nos conduzirá incólumes pelo labirinto
das vicissitudes.
O dueto final de Apolo e Orfeu, no quinto acto, é também uma inovação
com futuro, o primeiro de muitos duetos da ópera. As vozes, deixando de se
ouvir em rigorosa alternância, misturam-se, enlaçam-se e confundem-se. Esta
fusão das vozes de Apolo e Orfeu é a fusão do céu e da terra, que exprime
de forma sublime toda a dimensão do mito, a reconciliação de deus e do
homem no triunfo da luminosidade. A música exprime de forma plena a sua
magia, susceptível de ressonâncias pagãs e cristãs ao mesmo tempo, magia
que é a raiz profunda do mito.
Escusado será dizer que a presença recorrente o mito de Orfeu nos
primórdios da ópera moldou também a sua feição, e os tópicos fundamentais
reaparecerão repetidamente: o confronto do amor e da morte, a transgressão
das normas cósmicas pela descida aos infernos, o elemento estético da morte
envolta em sentimentos de paixão, a superlativação do sentimento amoroso.
E concluo. Vivemos num tempo trágico, em que a quebra de uma ordem
social estruturante, o regresso professado a um individualismo feroz, a uma
perspectiva autocentrada das pessoas e das nações, à razão da força, nos
conduz para baixo, para uma voragem de destruição e morte. Tempos de
catábase e catástrofe. Os valores que a humanidade elaborou para vivermos
civilizadamente uns com os outros tremem nos seus fundamentos.
Vivemos num tempo labiríntico. Emparedámos a porta da transcendência e
estamos presos como ratos, sem vislumbrar saídas. A beleza do canto de
Orfeu não nos libertará, certamente, da morte física, mas pode conduzir-nos
das trevas à luz, para cima, salvando em vida as nossas almas. A arte
permite o encontro com o Outro: que é arte senão a humanidade partilhada?
A extraordinária beleza intrínseca clássicos, a beleza que os
clássicos provocaram, a possibilidade da criação de coisas belas a que nos
desafiam, são um fio de Ariadne que continuamos a poder seguir, para
construir sentidos e estruturar renovadamente o mundo. Para sairmos do
labirinto, pé ante pé.
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