Os Clérigos Regulares de São Caetano e os livros (séculos XVII e XVIII)

June 7, 2017 | Autor: Sara Ceia | Categoria: História Moderna, História Religiosa
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BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL | Sala de Formação

Resumo 24 fev. 2016 | Em torno da produção e da circulação literária Leituras e comentários de Camões e de Os Lusíadas | Isabel Almeida O mundo no palco: o império e as relações de festas na Lisboa seiscentista | Lisa Voigt Os Clérigos Regulares de São Caetano e os livros (séculos XVII e XVIII | Sara Ceia

A sessão contou com três apresentações acerca do mundo das letras dos séculos XVII e XVIII, e levantou algumas questões relacionadas com a produção, o uso, a recepção e a apropriação de artefactos literários. Lisa Voigt, em “O mundo no palco: o império e as relações de festas na Lisboa seiscentista”, explorou uma série de descrições de festas realizadas na Lisboa seiscentista, interessando-se pelo modo como africanos e ameríndios eram representados nessas descrições. Voigt analisou uma série de passagens nas quais se fala de africanos e de ameríndios, reais ou encenados, a participar em festividades celebradas na capital de Portugal, encarando as descrições da performance desses grupos como arquivos que armazenam e transmitem informação (Diana Taylor, The Archive and the Repertoire, Duke UP, 2003). Mediante uma análise pormenorizada dessas passagens, dos vocábulos e das categorias utilizadas, bem como das suas intertextualidades com outras formas de expressão (como por exemplo as gravuras, a dança ou a música), Voigt mostrou que essas descrições e o repertório que transmitem contêm processos de ethnic crossing, reveladores de etnocentrismos e de formas de discriminação racial. A par desta análise, Voigt tomou também em consideração os temas mais clássicos dos estudos sobre festividades na época moderna, como por exemplo o papel dos jesuítas na concepção dessas cerimónias, o lugar do discurso que enaltecia o mundo imperial português ou, ainda, a tópica da exaltação do poder régio que marcava presença nessas festas. No centro das suas análises, Lisa Voigt colocou algumas passagens de uma representação teatral da autoria do jesuíta António de Sousa, publicada na Relacion de João Sardinha Mimoso (Lisboa: Jorge Rodrigues, 1620). Num dos casos, trata-se da representação das diferentes províncias ultramarinas, constitutivas do Império português. Em causa está um tipo de encenação com antecedentes, pelo menos, no teatro de Torres Naharro e de Gil Vicente, que também procuraram dramatizar a representação de áreas geográficas de diferente natureza e com identidades distintas, integrando o exótico por via de um cortejo, recebido numa espécie de audiência régia, onde reis ou embaixadores de outras cortes vão desfilando. O lugar concedido a cada um dos reis acolhido na corte principal, conforme bem notou Lisa Voigt, podia oscilar consoante o estatuto de quem os representava, sendo estes recrutados entre os estudantes do Colégio dos Jesuítas em Lisboa. Por sua vez, o uso da língua de preto terá de ser visto como um recurso estilístico, com múltiplos antecedentes, cujo significado tanto pode ser o de suscitador de uma espécie de paródia, num jogo de relações entre o alto e o

baixo, como revelar formas de sociabilidade dos grupos africanos e de desclassificados, cuja comunicação se baseava numa língua só unificada e existente na metrópole ou capital do Império. Sara Ceia, em “Os Clérigos Regulares de São Caetano e os livros (séculos XVII e XVIII)”, apresentou o seu programa de investigação centrado nos teatinos e na sua peculiar relação com a cultura escrita. Incidindo nos diversos espaços do livro no âmbito teatino, defendeu que, a partir do estudo da cultura escrita clerical, é possível efectuar uma história social do religioso. Como é que uma comunidade como os teatinos adquiriu relevo na vida intelectual setecentista? Que resposta podia dar aquela casa religiosa a um meio cultural que se estava a adensar cada vez mais? Estas foram duas das principais perguntas que nortearam a apresentação de uma investigação que aposta, antes de mais, no estudo dos itinerários individuais de alguns padres teatinos. Através da prosopografia, procura-se explicar a dimensão social da produção dos textos e demonstrar como os teatinos foram gestores e intermediários da escrita no tempo de D. João V. O percurso de Manuel Caetano de Sousa foi alvo de um tratamento especial, por permitir mostrar o poder detido por alguns destes homens, por exemplo como qualificadores do Santo Ofício ou pelas suas ligações a instituições de decisão política, pela sua proximidade do rei e pelo seu envolvimento em academias. O caso de Caetano de Sousa é também revelador da coexistência, na sociabilidade intelectual daquele tempo, entre a cultura impressa, a transmissão manuscrita e a oralidade. Como seria de prever, a dimensão religiosa esteve também muito presente nesta caracterização dos teatinos e da sua relação com a cultura escrita, em especial quando se discutiram os modelos de santidade que falavam de uma ligação especial aos livros. O projecto de investigação em curso de Sara Ceia levantou um conjunto de questões acerca do trabalho intelectual localizado numa pequena, mas vibrante, comunidade eclesiástica, durante o reinado de D. João V. Antes de mais, o trabalho intelectual encontrava-se submetido a uma ordem mais propriamente religiosa, a que a autora se referiu sob a forma de “modelos de criação do carisma”. Ou seja, longe de se constituir numa esfera autónoma, o trabalho intelectual integrava as diferentes operações e as mais diversas formas de conhecimento que tinham como objectivo participar numa esfera cujos valores centrais continuavam a estar orientados para a transcendência. As actividades intelectuais subsumiam-se, por isso, numa esfera de adoração e de comunhão com o divino. Em segundo lugar, os modos de sociabilidade intelectual entre teatinos, com as suas sociabilidades próprias quer de integração, quer de rivalidade individual, contrariando as certezas relativas à vida das corporações ou casas religiosas, dão sentido, mas não esmagam, os modos intensos de emancipação autoral. Isto é, a figura do autor, que ultrapassa a disciplina, mesmo quando se trata a casa religiosa em que se trabalha, parece impor-se nas investigações de Sara Ceia. Tudo isto a ponto de a investigação correr o risco de se atomizar na busca de sentidos mais individualizados que cada autor teatino dá às suas próprias obras. Em terceiro e último lugar, será de reparar que o trabalho intelectual dos teatinos necessita de ser inserido num sistema de comunicação e de circulação da informação mais vasto, do qual fazem parte tanto o mercado editorial, livreiro e tipográfico, como outros produtores ou intelectuais que, provavelmente libertos das mesmas obrigações, mantêm diálogos entre formas altas e baixas da cultura, adoptando o registo da paródia, mais ou menos carnavalizada (como sucedeu com Fr. Lucas de Santa Catarina).

Isabel Almeida apresentou a última investigação desta sessão (“Leituras e comentários de Camões e de Os Lusíadas”). A partir de um erudito estudo sobre a vida e a obra de D. Marcos de São Lourenço – um crúzio que, na primeira metade de Seiscentos, decidiu realizar um grande comentário do poema épico de Camões – , Isabel Almeida desenhou um quadro aprofundado do modo de trabalhar desse homem de letras. Identificou as leituras de D. Marcos, explicou a forma como se relacionava com os diversos autores, elucidou a sua atitude perante a censura eclesiástica, identificou os seus sentimentos de orgulho nacional e de animosidade face aos espanhóis, e, ainda, as livrarias a que teve acesso, boa parte delas situadas na província. Mostrando que, a partir destes comentários, é possível captar o modo como então se encarava a imitação de um grande poeta, Isabel Almeida demonstrou, também, como funcionava, no Portugal de Seiscentos, um diversificado espaço de comunicação entre homens de letras, espaço esse marcado pelo mimetismo, pela emulação, pela preocupação pela reputação e, ainda, pelo desejo de auto-promoção. Todos estes aspectos revelam que D. Marcos tinha plena consciência de que, ele próprio, fazia parte de um processo de circulação literária, de um mundo literário diversificado e auto-referencial. Um outro aspecto sublinhado na apresentação em causa foi o da forte marca autoral, uma vez que, em cada momento do seu comentário à épica de Camões, D. Marcos efectuou escolhas, incorreu em omissões deliberadas e fez citações carregadas de intencionalidade. Além disso, os seus escritos revelam que o seu autor foi um comentador fortemente politizado, como, por exemplo, quando deu destaque a temas que lhe permitiam expressar orgulho por Portugal e rebaixar Castela, ou quando fez eco das rivalidades entre ordens religiosas, por exemplo nas críticas dirigidas contra frei Bernardo de Brito e a sua obra (Santa Cruz de Coimbra face aos monges de Cister, de Alcobaça). Um dos aspectos da circulação foi definido por Isabel Almeida como a reprodução de um ziguezague. Assim se compreende que D. Marcos não se tivesse referido aos usos que Camões fez de Ariosto, o qual se encontrava proibido pelo Index. No entanto, o mesmo D. Marcos transcreve trechos eróticos e hedonistas da Aminta de Tasso, o que segundo a autora é bem revelador de como um religioso se podia interessar por tal tipo de registos. Como interpretar esta oscilação entre, por um lado, o respeito pela ortodoxia, ou seja, pelas recomendações e censuras impostas pelo Index, e, por outro lado, a participação numa esfera onde o espaço para a leitura e utilização de formas heterodoxas parece evidente? Significaria a incursão na heterodoxia, um modo de transgressão só ao alcance dos que podiam afirmar a sua distinção e impor a sua intencionalidade individual? Qual seria, então, a margem para o comportamento mais individualizado, numa configuração cultural onde se multiplicavam os mecanismos de controlo e de imposição dos comportamentos católicos ortodoxos? Será que a defesa de D. Marcos de uma história nacional, feita a partir de Os Lusíadas, e numa polémica aberta contra Juan de Mariana, também pode ser vista como uma espécie de apego a um outro tipo de ortodoxia que permitiria criar uma maior margem para ou, pelo menos, relativizar os devaneios eróticos do crúzio? No debate que se seguiu à apresentação das três investigações, começaram por ser levantadas questões centradas nos seguintes pontos: o modo de analisar relatos de festividades e a genealogia do vocabulário cerimonial convocado para esses eventos; a especificidade do trabalho intelectual numa comunidade religiosa e o modo como esses homens de letras teatinos se relacionavam com os demais; a ligação dos teatinos com o mercado do livro; a permeabilidade da literatura erudita ao mundo "popular"; e, ainda, o papel desempenhado pelos centros provinciais – conventos e cenóbios – na cultura intelectual dos séculos XVII e XVIII.

Apesar de inconclusivas algumas das questões postas durante o debate orientaram-se no sentido de requerer uma maior verificação das capacidades heurísticas e analíticas de alguns conceitos, como o de “ethnic crossing”. É que, por vezes, a capacidade para descrever, de modo erudito, minucioso e denso, algumas situações – a começar por aquelas em que agentes intelectuais e com uma posição alta e privilegiada dramatizam o encontro com outras províncias ou com grupos de desclassificados, provenientes do baixo da sociedade – nem sempre coloca problemas pertinentes de investigação. Tão pouco, a mera evocação de conceitos que fazem parte de agendas de investigação recentes substitui a enunciação de problemas, em jeito de uma histoire-problème. Por sua vez, uma história social e prosopográfica de grupos de clérigos com uma forte orientação intelectual, ao investir na especificidade individual, corre o risco de se perder numa espécie de reconstituição dos significados plurais da vida de cada teatino. Mostrando-se, por isso, incapaz de se centrar nas questões culturais suscitadas pelo Iluminismo Católico. Enfim, qualquer estudo de história cultural centrado na circulação e inspirado nas teorias da recepção pode provocar a relativização da própria intencionalidade dos autores e intelectuais, em causa. Claro que um dos modos de ultrapassar tal dicotomia consistirá sempre em perceber até que ponto os próprios autores tinham consciência dos referidos processos de circulação. Enfim, como interpretar as três investigações no interior de um conjunto de processos históricos atentos à mudança na produção e circulação literária? De facto, as pesquisas em causa correspondem a três diferentes momentos: os comentários de D. Marcos datam da primeira metade do século XVII, mas prolongam um processo de leitura e utilização provocado pela publicação de Os Lusíadas (1572); as festas e cerimónias da monarquia encontraram como principal laboratório de análise a “tragicomédia” escrita por um jesuíta para a entrada de Filipe III em Lisboa, em 1619; e o trabalho intelectual dos teatinos corresponde ao reinado de D. João V e à sua participação na Academia Real de História. Se os três casos documentam a permanência de agentes eclesiásticos (um crúzio, um jesuíta e um conjunto de teatinos), a prática de leitura e comentário de um poema épico, a organização de um espaço público de representação cerimonial e o cruzamento entre uma casa religiosa e uma academia de patrocínio régio sugerem temas capazes de suscitar problematizações díspares. De qualquer modo, dos poemas épicos à centralidade das cerimónias régias e, destas últimas, às academias será possível traçar um arco temporal que vai do Renascimento tardio ao Iluminismo, ultrapassando, assim, a ideia das constantes de uma cultura eclesiástica. De fora deste mesmo arco de mudança, ficam as relações – sugeridas por Lisa Voigt – entre o alto e o baixo. Este último envolvendo o comportamento dos grupos populares, capazes de porem em causa os monopólios elitistas relativos à vida intelectual e cultural, nomeadamente os que diziam respeito à construção e autonomia de uma esfera literária. Diogo Ramada Curto, Pedro Cardim

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