OS CÓLOFONES DOS MANUSCRITOS HEBRAICOS MEDIEVAIS COMO FONTES DE INFORMAÇÃO HISTÓRICA RELEVANTE. OS MANUSCRITOS HEBRAICOS DE SEIA, GUARDA E SEVILHA

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P R AÇ A V E L H A Revista Cultural da Cidade da Guarda

Nº 36 | 2016

EDITORIAL

Chegados ao número 36 da publicação da revista Praça Velha, e após 19 anos de trabalho editorial desenvolvido, verificamos que a revista tem cumprido os objetivos para os quais foi criada: divulgação dos trabalhos de investigação sobre a região, nas mais diversas áreas, bem como da criação literária; e também de promoção do nosso património cultural e natural, através dos olhares de fotógrafos convidados. A revista possui uma estrutura de conteúdos que se tem mantido ao longo dos anos: Bloco Temático; Património e História; Portfólio; Grande Entrevista; Poesia, Contos e Meditações; Recensões e Súmula. Na presente edição, no bloco temático o leitor encontra as oito comunicações proferidas em 2015, no âmbito das comemorações do 816º Aniversário da Cidade da Guarda, no colóquio Diálogos e Conflitos. Relações entre Cristãos e Judeus na Idade Média. Considerada uma das mais ricas culturalmente, a região entre a Beira Interior e a província de Salamanca detém um património ímpar, em qualquer das vertentes consideradas, desde o natural ao construído, do geográfico ao cultural, proporcionando paisagens plenas de História e Tradições. Desta forma, a revista surge também como um elemento de divulgação e reconhecimento da herança judaica, nos domínios cultural, artístico e social. Mas este número apresenta também oito artigos de investigação, nas mais diversas áreas, centrando o seu olhar sobre a região da Guarda. A Grande Entrevista foi organizada e conduzida pela Professora Maria Antonieta Garcia que, de forma perspicaz e motivadora, entrevistou o Rabino da comunidade de Belmonte, Elisha Salas. A inclusão deste testemunho constitui um elemento de destaque na história de uma região, na História de um povo. Não podemos deixar de salientar os Contos e Meditações, bem como o Portfólio, com interessantes imagens do fotógrafo Alexandre Costa.

Felicitamos e agradecemos a todos os que participaram, com empenho e profissionalismo, neste número da Praça Velha, depositando na revista as suas ideias, teorias, trabalhos, e permitindo constituir um documento que a todos dignifica. Um documento memória que se transporta para o futuro. A todos o nosso mais profundo agradecimento, em nome da Guarda.   Victor Manuel dos Santos Amaral (Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Guarda)

NOTA INTRODUTÓRIA

O colóquio Diálogos e Conflitos. Relações entre Cristãos e Judeus na Idade Média, realizado no âmbito das Conferências da Guarda, organizadas pelo Município em Novembro de 2015, representou um importante passo no avanço da história da presença judaica na região da Guarda e no país e das interacções destas comunidades com a maioria cristã. Abordagens pautadas pelo carácter científico permitiram o conhecimento de novos dados relativos à vivência judaica em Portugal, para além de comprovativos, aclarações e sínteses de grande pertinência e utilidade, não só para os especialistas como para um público mais lato, de interessados nestas matérias. A publicação, na Praça Velha, do conjunto dos estudos apresentados, falará por si e cumprirá as desejáveis consagração escrita e larga difusão dessas interessantes descobertas e interpretações. É de louvar a iniciativa do Município da Guarda, tanto no plano da organização do colóquio como da atempada concretização da edição dos textos, prestando um tributo importante à causa cultural da cidade. A riqueza histórica, arqueológica, artística e arquitectónica da Guarda – da urbe e da vasta região da diocese medieval –, reconhecida pelos investigadores, tem merecido alguma atenção mas está longe do investimento de pesquisa e de valorização que a real dimensão do seu valor justifica. Que ele se veja incrementado nos próximos anos, seja por iniciativa pública ou privada, seja como resultado de uma comunhão de esforços e de vontades, juntando especialistas, autarcas, organismos estatais, mecenas e cidadãos comuns. Percorramos brevemente os oito estudos aqui publicados, no intuito de estimular o apetite do leitor. José Hinojosa Montalvo, com uma síntese sobre as relações entre judeus e cristãos na Idade Média peninsular, fornece-nos uma perspectiva geral muito completa, colocando a tónica na variedade dessas relações e nos distintos matizes que assumiram ao longo do tempo nos diversos espaços e contextos. Nega que tenha havido lugar a uma verdadeira integração da sociedade hebraica na cristã mas também não reconhece uma oposição estrutural entre elas. No quadro ideológico e religioso, sobretudo desde o Concílio de Latrão, mostra como as recomendações eram para evitar os contactos entre judeus e cristãos, que no entanto, no plano profissional e nalguns círculos da coroa, se verificavam efectivos e profícuos. Segundo o autor, o predomínio judaico nas práticas financeiras,

nomeadamente a usura, contribuiu de sobremaneira para reforçar o antijudaísmo. Por outro lado, apresenta múltiplas situações, nos planos mercantil, artesanal, das práticas médicas, entre outros, em que a aproximação era real. Reconhece Hinojosa Montalvo que entre a normativa legal e a realidade se verificava uma distância e que a segregação nunca foi completa, tendo existido ocasiões de verdadeira partilha. Porém, admitindo as transferências, as influências, a coexistência tantas vezes pacífica, coloca em causa o reconhecimento de efectivas tolerância e convivência entre as duas comunidades. Maria Filomena Lopes de Barros, na sua abordagem aos judeus, cristãos e muçulmanos no Período Medieval, faz o contraponto entre as minorias em época islâmica e em época medieval cristã e assinala a disseminação dos judeus por todo o Portugal, com incremento notório no séc. XV, ao invés da minoria muçulmana, que se cingia essencialmente ao sul do Tejo. Sublinha que a construção da lei canónica e das leis do reino se fez em função de uma identidade cristã que definia barreiras em relação ao “outro”, uma legislação que marcava a superioridade cristã e determinava a separação das minorias. Por outro lado, demonstra como a normativa foi tantas vezes subvertida pela prática quotidiana. Admite que neste processo de construção da res publica christiana, sob a égide do papado, participou toda a sociedade, incluindo as próprias minorias. Da segregação das minorias, que reconhece ser bem visível no espaço público, regulando comportamentos, indumentária e a localização dos bairros, Filomena Barros fornece-nos amplos e elucidativos exemplos recolhidos em fontes dos séculos XIII a XV. Manuela Santos Silva centra-se na análise da relação do rei com os judeus, os seus judeus, através de ampla documentação, de que destaca as Chancelarias Régias e a as emanações de D. Afonso IV. Ao falar-nos sobre as comunidades e personalidades judaicas ao serviço e sob protecção da família real, lembra as muitas referências documentais que atestam recompensas régias aos judeus, por serviços como ourives, alfaiates, sapateiros, físicos, astrólogos e trovadores, entre outros . O acolhimento na corte e o acesso à privacidade do monarca, por vezes com valências de assessoria e gestão do tesouro, ter-se-á, segundo a autora, prolongado por todo o século XV. Sobre o arrabiado, refere-se particularmente aos registos do tempo de D. João I e aos privilégios concedidos, que chegaram a incluir o poder trazer “cadea e sello” e, por vezes, ter séquito, como os cavaleiros cristãos. De novo é sublinhado o constante incumprimento das normas legais, prevalecendo as leis do monarca, que se assumia como o protector dos judeus e deles recebia avultados contributos financeiros. Luís Afonso, para o mundo artístico, não deixa de enfatizar os pontos de contacto entre as duas culturas, sobretudo nos planos científico, intelectual e simbólico, particularmente dentro de um mesmo estatuto social – o da elite da época. Apresenta exemplos de inesperadas interacções entre judeus e cristãos na segunda metade do século XV, na arquitectura e na iluminura. O percurso é feito pela sinagoga ou sala de oração de

Castelo de Vide e e pela sinagoga de Tomar, mostrando, entre outros detalhes artísticos, a linguagem tardo-gótica, de grande sobriedade, do hekhal e das janelas da primeira, aspectos também presentes na segunda, onde constata a reintrodução precoce das ordens clássicas. De facto, o autor valoriza a aproximação destes edifícios a modelos e práticas da arquitectura cristã da época e acusa o afastamento da tradicional linha mudéjar. Prossegue com exemplos desta afinidade artística entre as iluminuras produzidas de um e de outro lado, com destaque para as produções sefarditas da chamada “Escola de Lisboa”, em que é evidente a adopção nas cercaduras de modelos decorativos inspirados e adaptados dos cristãos. Sublinha, porém, neste âmbito, grandes diferenças e fundamenta-as. Acrescenta ainda exemplos de outras interacções artísticas nomeadamente em obras executadas por judeus para encomendantes cristãos. Tiago Moita presenteia-nos com o estudo dos mais antigos manuscritos hebraicos medievais portugueses, um de Seia, um da Guarda e um terceiro de Sevilha mas com informação para o território português. É em especial nos cólofones, notas finais desses documentos, que concentra atenções, deles extraíndo informação de relevância histórica e cultural. O manuscrito de Seia (1284-85), inédito, permite-lhe atestar da antiguidade da presença judaica na vila e nele vê mencionada a fortaleza de Seia. O manuscrito da Guarda, de 1346, um Comentário ao Pentateuco, apresenta um interessante cólofon que permite ilações sobre o copista e as práticas religioso-culturais na comunidade hebraica da cidade. No cólofon da Biblía Hebraica de Sevilha, de 1356, Tiago Moita encontra alusão ao sismo de Lisboa desse ano. Fernando Berrocal traz-nos uma análise da presença judaica em Cáceres, recorrendo sobretudo ao códice «Foros de Cáceres», de 1267, que inclui o fuero latino e o fuero romanceado. Nesta documentação evidenciam-se a precoce presença judaica na cidade, as obrigações impostas aos judeus, bem como as liberdades e os privilégios que lhes foram concedidos, incluindo os da dimensão comercial, a protecção especial de que eram objecto, em contraste com a minoria muçulmana da cidade e as orientações no relacionamento com os cristãos. Sublinha a importância desta comunidade judaica para o desenvolvimento económico da Cáceres medieval. O autor mostra-nos ainda o valor histórico e patrimonial do que resta do bairro judeu de Cáceres e de como esse legado tem sido bem aproveitado em termos turístico-culturais. José Alberto Tavim apresenta-nos o resultado das suas pesquisas de arquivo referentes à Colegiada de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães e ao Cabido da Sé de Braga, sobretudo as cartas de emprazamento, produções essencialmente cristãs. Através desta documentação do século XV, transmite-nos indicadores da localização dos bairros judaicos e das casas emprazadas, da proveniência das famílias, dos seus nomes, das suas ocupações, do espaço familiar do judeu e do mundo cristão que envolvia as judiarias,

das boas relações entre os proprietários urbanos cristãos e as comunidades judaicas. Em Guimarães regista alguma permeabilidade entre judeus e cristãos, com casas arrendadas por cristãos na judiaria. Em Braga, percorre, através das fontes, aspectos da judiaria velha e da judiaria nova, distinguindo o edifício da sinagoga desta última, onde persiste uma inscrição do séc. XV. O estudo de Tavim permite também relevar outros aspectos interessantes, como, no caso de Braga, a prerrogativa de assinatura de documentos em hebraico. O estudo da região da Guarda (excluindo algumas áreas do território vastíssimo da diocese medieval, a sul e oeste) é apresentado por Maria José Ferro Tavares. Com base em documentação medieval e em processos da Inquisição, a autora problematiza a localização e a dimensão da presença judaica a partir da onomástica, da toponímia e da topografia, alertando para as dificuldades de interpretação de conjuntos viários e arquitectónicos face às transformações que foram sofrendo ao longo dos tempos. À comunidade judaica da Guarda, sede do arrabiado das Beiras, entre duzentos e quatrocentos, dedica análise detalhada, com a localização de espaços de habitação, de vida religiosa e económica, descrevendo alguns deles. Aborda também as judiarias da Covilhã e de Castelo Branco e menciona várias outras localidades com comunas ou presença judaica. Com fundamento em abundantes referências recolhidas das fontes, aborda as relações entre judeus e cristãos, as relações de judeus com o rei, as relações entre os próprios judeus, aspectos da evolução demográfica das comunidades judaicas e aspectos das mudanças motivadas pela expulsão. De forma eloquente e crítica, Maria José Ferro Tavares proporciona-nos uma completa panorâmica da presença judaica nas Beiras. Em suma, este conjunto de estudos, que ora se publicam, permitiu várias importantes constatações: – No plano artístico, foi possível reconhecer uma transferência mútua de tendências e a adopção, por parte de determinados edificados judaicos em Portugal, de uma linguagem racional, italianizante, evidenciando um proto-despojamento que caracterizará alguma arquitectura cristã de finais de quatrocentos. – Na dimensão literária, a apresentação de novos manuscritos hebraicos de origem portuguesa, dos séculos XIII e XIV, sendo os mais antigos de Seia e da Guarda, proporcionaram inovadoras releituras da realidade intelectual judaica e da importância dessas comunidades na região da Beira Alta. – Através de estudos de casos baseados em documentação variada, alguma desconhecida até há pouco, conclui-se estarem a ser possível avanços significativos no entendimento das comunidades judaicas – na forma como se definiam as suas relações com os cristãos, na dimensão espacial, como noutras. – Os estudos que trataram preferencialmente do relacionamento entre judeus e cristãos foram unânimes em reconhecer a distância entre as disposições legais e a prática

quotidiana, onde a protecção régia, os interesses mercantis e financeiros, ou as simples relações de vizinhança quebraram muitas vezes as normas estabelecidas e a vigilância clerical cristã, conduzindo à permissividade e mesmo à convivência. – Por fim, particularmente relevante para a Guarda, o estudo e as interpretações de Maria José Ferro Tavares reforçaram a importância da presença judaica na região da Beira Alta, com destaque para a cidade da Guarda. A remanescente judiaria, cuja existência e antiguidade a documentação histórica inequivocamente comprova, plasma-se num notável conjunto patrimonial que, empenhadamente, é preciso preservar.

Isabel Cristina Ferreira Fernandes

SUMÁRIO DIÁLOGOS E CONFLITOS. RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS NA IDADE MÉDIA RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS NA IDADE MÉDIA José Hinojosa Montalvo...................................................................................................................................................................................17 JUDEUS, CRISTÃOS E MUÇULMANOS NO PORTUGAL MEDIEVAL Maria Filomena Lopes de Barros............................................................................................................................................................. 37 COMUNIDADES E PERSONALIDADES JUDAICAS AO SERVIÇO E SOB PROTEÇÃO DA FAMÍLIA REAL: UMA RELAÇÃO MANTIDA DESDE OS PRIMÓRDIOS DA MONARQUIA PORTUGUESA ATÉ FINAIS DO SÉCULO XV Manuela Santos Silva.......................................................................................................................................................................................55 O POVOAMENTO JUDAICO NO TERRITÓRIO DA DIOCESE DA GUARDA (período medieval e moderno) Maria José Ferro Tavares..............................................................................................................................................................................65 FALANDO DE SI MESMOS. DUAS COMUNIDADES PRÓXIMAS: OS JUDEUS DE GUIMARÃES E DE BRAGA José Alberto Rodrigues da Silva Tavim.................................................................................................................................................89 A COMUNIDADE JUDIA NOS FOROS MEDIEVAIS DE CÁCERES Fernando Jiménez Berrocal...................................................................................................................................................................... 107 INTERAÇÕES ARTÍSTICAS ENTRE JUDEUS E CRISTÃOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SÉCULO XV: ARQUITETURA E ILUMINURA Luís Urbano Afonso..........................................................................................................................................................................................119 OS CÓLOFONES DOS MANUSCRITOS HEBRAICOS MEDIEVAIS COMO FONTES DE INFORMAÇÃO HISTÓRICA RELEVANTE. OS MANUSCRITOS HEBRAICOS DE SEIA, GUARDA E SEVILHA Tiago Moita...........................................................................................................................................................................................................147

PATRIMÓNIO E HISTÓRIA O CONJUNTO TERMAL DO SÍTIO ROMANO DA PÓVOA DO MILEU (GUARDA) Vitor Pereira.........................................................................................................................................................................................................163 CONTRIBUIÇÃO PARA A HISTÓRIA DA JUDIARIA DA GUARDA Alcina Cameijo, Maria Leontina Cunha, Telmo Cunha.............................................................................................................. 183 JUDIARIA DA GUARDA. ESTUDO DO ESPAÇO PÚBLICO URBANO E IDENTIDADE LOCAL Cecília dos Santos Zacarias.......................................................................................................................................................................201 O COMBATE E O INTERVENCIONISMO MILITAR REPUBLICANO NA GUARDA José Luís Lima Garcia....................................................................................................................................................................................213 SAÚDE EM PINHEL NO PRIMEIRO ANO DA REPÚBLICA Aires Diniz............................................................................................................................................................................................................223

D. JOÃO ANTÓNIO DA SILVA SARAIVA (1923-1976) 29.º BISPO DO FUNCHAL (1965-1972) J. Pinharanda Gomes......................................................................................................................................................................................241 O CHARRO OU OS FALARES FRONTEIRIÇOS DE ALAMEDILLA E XALMA, OU SEJA DE UMA ZONA QUE, PELO LADO PORTUGUÊS VAI DE BATOCAS, NORDESTE DA RAIA SABUGALENSE A ARANHAS, SUESTE DE PENAMACOR E, PELO ESPANHOL SE ESTENDE DE ALAMEDILLA, NOROESTE DE SALAMANCA A SAN MATIM DE TRAVEJO, SUDOESTE DE CACÉRES Manuel Leal Freire..........................................................................................................................................................................................257 REZAS A ADONAI, DEUS DE ABRAÃO, ISAAC E JACOB E A DEUS PAI, PRIMEIRA PESSOA DA SANTÍSSIMA TRINDADE SEGUNDO O CRISTIANISMO Guilhermina Leal............................................................................................................................................................................................. 269

PORFÓLIO Alexandre Costa .............................................................................................................................................................................................279

GRANDE ENTREVISTA ENTREVISTA AO RABINO ELISHA SALAS Maria Antonieta Garcia.................................................................................................................................................................................291

POESIA, CONTOS E MEDITAÇÕES Cristino Cortes................................................................................................................................................................................................307 João Esteves Pinto............................................................................................................................................................................................311

RECENSÕES...............................................................................................................................................................................................317 SÚMULA......................................................................................................................................................................................................... 345

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Tiago Moita1

Introdução Poucos artefactos históricos podem dizer-nos tanto sobre uma civilização como os livros que ela produziu. No caso da civilização medieval judaica esta asserção é particularmente evidente, por dois motivos: em primeiro lugar, os livros encontram-se entre os poucos artefactos produzidos pelos judeus que chegaram aos nossos dias; em segundo lugar, estes livros oferecem-nos numerosíssimas informações genealógicas, biográficas e históricas relativas àqueles que os produziram e consumiram, constituindo-se em testemunhos palpáveis da sua história não poucas vezes complexa2. Entre as variadíssimas notas históricas possíveis de encontrar nestes manuscritos – por exemplo, assinaturas de proprietários, anotações de nascimentos e óbitos, actas de compra e venda, etc. –, nenhuma parece ser tão valiosa como o cólofon: a nota final redigida pelo escriba, na qual nos dá a conhecer a sua identidade e a daquele que lhe comissionou a cópia, o local e data onde a mesma foi produzida, o conteúdo do texto copiado e a duração com que o efectuou, entre outras informações pessoais ou relativas a eventos históricos que se considerem oportunas. Importa sublinhar que em comparação com os manuscritos medievais latinos, os cólofones dos manuscritos hebraicos oferecem maior número de informação. Na verdade, enquanto a maior parte dos códices latinos medievais eram copiados em scriptoria monásticos (mais tarde em oficinas universitárias), e circulavam sobretudo entre monges e aristocratas, na sociedade judaica a literacia encontra-se amplamente disseminada entre a população (so1

ARTIS – Instituto de História de Arte, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal.

2

Em outro contexto, também a iconografia, no caso dos manuscritos hebraicos iluminados, pode revelar aspectos particulares e cenas relevantes da vida quotidiana dos judeus medievais. Sobre este tema, veja-se METZGER, Thérèse e METZGER, Mendel, Jewish Life in the Middle Ages. Illuminated Hebrew Manuscripts of the Thirteenth to the Sixteenth Centuries, Nova Iorque, Publishers of Fine Art Books, 1982.

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bretudo masculina, mas também feminina) e os livros eram copiados e usados maioritariamente para uso privado (mesmo se a cópia fosse comissionada a um escriba profissional ou semiprofissional)3. É evidente, portanto, o interesse historiográfico representado pelos cólofones dos manuscritos hebraicos medievais como fontes de informação histórica e cultural relevante4. Deve-se referir, contudo, que a historiografia nacional pouca atenção tem oferecido aos cólofones dos manuscritos hebraicos medievais produzidos em Portugal, em parte devido à inexistência de traduções integrais destas notas para português (ou mesmo como resultado de um certo desconhecimento destes manuscritos, conservados na sua totalidade fora do país)5. Com isto, é a própria voz do copista que é esquecida e com ela muitas informações pessoais e históricas. Neste artigo propomo-nos, por meio do estudo de três cólofones, chamar a atenção para estes documentos judaicos medievais e sua relevância historiográfica: dois dos cólofones aqui estudados foram realizados nas cidades beirãs de Seia (1284-1285) e da Guarda (1346); um terceiro, produzido em Sevilha (1356), oferece notícias interessantes para a história da sismicidade em Portugal6.

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BEIT-ARIÉ, Malachi, Hebrew Manuscripts of East and West: Towards a comparative codicology, Londres, The British Library, 1993, pp. 12, 80 e 81.

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Sobre os cólofones dos manuscritos hebraicos e sua relevância histórica e cultural, veja-se BEIT-ARIÉ, Malachi, “Colophons in Hebrew Manuscripts: Source of Information on Book Production and Text Transmission”, in CONDELLO, Emma e DE GREGORIO, Giuseppe (ed.), Scribi e Colofoni. Le sottoscrizioni di copisti dale origini all’avvento della stampa, Atti del seminário di Erice, X Colloquio del Comité international de paléographie latine (23-28 Ottobre 1993), Spoleto, Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1995, pp. 495-509; BEIT-ARIÉ, Malachi, “Colophoned Hebrew Manuscripts Produced in Spain and the Distribution of the Localised Codices”, Signo: Revista de Historia de la Cultura Escrita 6 (1999), pp. 161-178; BERNHEIMER, Carlo, Paleografia Ebraica, Florença, Leo S. Olschki, 1924, pp. 149-180; RIEGLER, Michael, “The Colophon as a Source for the History of Yemenite Books and their Scribes”, in HAZAN, Ephraim e DISHON, Judith, Studies in Hebrew Literature and Yemenite Culture [em hebraico], Ramat Gan (Israel), Bar Ilan University Press, 1991, pp. 161-179; RIEGLER, Michael, “Colophons of Medieval Hebrew Manuscripts as Historical Sources” [em hebraico, com Abstract em inglês], Jerusalém, Tese de Doutoramento apresentada à Universidade Hebraica de Jerusalém, 1995; SIRAT, Colette, Hebrew Manuscripts of the Middle Ages, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, pp. 208-229; ZELDES, Nadia, “Diffusion of Sicilian Exiles and their Cultures as Reflected in Hebrew Colophons”, Hispania Judaica Bulletin 5, 2007, pp. 303-332.

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Na tese de doutoramento que estamos a preparar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em torno dos manuscritos hebraicos portugueses iluminados do século XV, ofereceremos a transcrição e tradução completa dos cólofones de todos os códices hebraicos portugueses remanescentes produzidos entre os séculos XIII e XV.

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Expressamos aqui o nosso público agradecimento ao Doutor Manuel Forcano, hebraísta formado na Universidade Autónoma de Barcelona (Catalunha), pelo precioso auxílio na tradução dos cólofones que aqui se apresentam.

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1. O cólofon do manuscrito hebraico de Seia (1284-85) Munique, Biblioteca Estadual da Baviera, MS Cod. Heb. 142, fol. 195v

«Escrevi-o e minhas mãos destilaram mirra (Cântico dos Cânticos 5,5); era como se os meus olhos estivessem vendo o Sinai e meus ouvidos escutando mandamentos. No mês de Nissan do ano (50)44 [= março/abril de 1284] comecei com a ajuda de Deus, e concluí esta cópia no mês de Iyyar do ano (50)45 [= abril/maio de 1285], obra de minhas mãos, com a luz dos meus olhos e as palavras da minha boca. Eu, Natan, filho de rabi Abraão al-Tsifi, escrevi este livro Aruk. Que todo o que o leia seja bendito. Para o bom aluno, cepa predileta (Isaías 5,7), flor de açucena (1 Reis 7,26), agradável entre cardos, rabi Sasson – que Deus, seu Rochedo, o proteja –, filho do sábio, humilde e feliz em tudo o que fez, rabi José el Lungo – que repouse honrosamente –, no mês de Iyyar do ano 5045 da Criação do mundo segundo o nosso cômputo, na fortaleza de Seia. Que Deus, em sua misericórdia, lhe permita meditar [o livro], a ele, a toda a sua descendência, e à descendência da sua descendência. Ele engrandeceu a força (Salmo 148,14) da sua salvação. E que assim se cumpra a sua vontade. Ámen». Devem-se, sobretudo, a Maria José Ferro Tavares os principais estudos em torno das comunidades judaicas que habitaram a Beira Interior durante a Idade Média7. De acordo com a autora, ao longo do período medieval os judeus foram-se fixando nas principais localidades do interior beirão, crescendo em presença e número sobretudo a partir da se-

7

Veja-se, por exemplo, TAVARES, Maria José Ferro, “As comunidades judaicas das Beiras, durante a Idade Média”, Revista Altitude, ano II, 2ª série, n.º 4, 1981, pp. 5-15; TAVARES, Maria José Ferro, “Judeus e Cristãos-Novos: o ante e o pós baptismo nas Terras de Riba Côa e arredores”, in O Tratado de Alcanices e a importância histórica das Terras de Riba Côa, Actas do Congresso Histórico Luso-Espanhol, 12-17 de Setembro de 1997, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1998, pp. 271-284; TAVARES, Maria José Ferro, “Os judeus na Beira Interior”, in Guarda. História e Cultura Judaica, Guarda, Museu da Guarda, 1999, pp. 117-123; TAVARES, Maria José Ferro, “Os judeus da Beira Interior: a comuna de Trancoso e a entrada da Inquisição”, Sefarad 68-2, 2008, pp. 369-411 (1ª Parte); Sefarad 69-1, 2009, pp. 101-129 (2ª Parte); Sobre as comunidades judaicas da Beira Interior, veja-se também MIGUEL, Isaura Luísa Cabral, “Religião e vida social no espaço urbano: comunidades judaicas na Beira Interior em finais da Idade Média”, Lisboa, Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007.

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gunda metade do século XIV e ao longo do século XV8. A mais antiga comuna de judeus parece ter sido a da Guarda, que a documentação faz remontar, pelo menos, ao século XIII9. Na centúria seguinte, os judeus encontravam-se instalados na Guarda, Trancoso, Viseu, Castelo Rodrigo, Belmonte, Sabugal, Monforte e Castelo Branco10. A estas comunas juntar-se-ão muitas outras durante o século XV, entre as quais a comuna judaica de Seia11, que aqui agora nos importa, nela tendo sido realizado o cólofon acima transcrito e traduzido. Com efeito, embora a documentação dos arquivos portugueses apenas refira a presença judaica na cidade senense a partir do século XV, o cólofon copiado nesta localidade entre 1284 e 1285 sugere que os judeus encontravam-se nesta povoação desde muito antes, remontando a sua presença, ao menos à segunda metade do século XIII. De acordo com a nota do escriba, o volume contém o Sefer he-Aruk [Livro do Predisposto] de Natan ben Abraão Yehiel de Roma (1035-1106), tendo sido copiado no Castelo de Seia (um monumento entretanto desaparecido) por Natan, filho de Abraão al-Tsifi, sob iniciativa de Sasson, filho de José el Lungo, seu encomendante12. Considerando as datas expressas no cólofon, o manuscrito senense estima-se entre os mais antigos códices hebraicos portugueses remanescentes13. Para o século XIII não se conhece outro manuscrito datado sobrevivente consensualmente reconhecido. A sua produção ocupou um tempo relativamente longo, de pouco mais de um ano, supondo-se, portanto, que o escriba não trabalhou nele em exclusivo, ou, ao menos, de modo contínuo. Em relação à identidade dos agentes que produziram e consumiram este manuscrito nada se conhece. Os seus nomes não são referidos na documentação conservada nos arquivos portugueses pelo que a sua existência permaneceria olvidada para sempre se o manuscrito

8

TAVARES, Maria José Ferro, “Os judeus da Beira Interior…, p. 372.

9 Idem, ibidem, p. 117. 10

TAVARES, Maria José Ferro, “As comunidades judaicas das Beiras…, p. 5.

11 Idem, ibidem, p. 6. 12

O volume, com 303x282 mm, é composto por 202 fólios de pergaminho, escritos com letra semicursiva sefardita, em uma só coluna de 26 linhas, apresentando um formato praticamente quadrado. Depois do cólofon do escriba, no fol. 195v, encontramos o Sefer Marot Elohim [Livro das Visões Divinas], de Enoc al-Constantini (fols. 196r-202v), uma adição tardia. Esta obra, acrescentada em momento desconhecido, contém uma explanação filosófica às visões divinas dos profetas Isaías (1,1-6) e Ezequiel (1,1-20) e à visão do candelabro de ouro do profeta Zacarias (4,1-14). O manuscrito não apresenta qualquer decoração. Do percurso histórico do volume desde a sua confecção até aos nossos dias pouco sabemos. O códice integrou a colecção de Augusto Frederico, Duque de Sussex (1773-1843), em Inglaterra, sendo adquirido à família na segunda metade do século XIX pela Biblioteca Estadual da Baviera, onde se encontra.

13

Na verdade, o manuscrito hebraico de Seia rivaliza a antiguidade com um outro manuscrito, atualmente na Bodleian Library de Oxford (MS Can. Or. 67), proveniente de Lisboa mas com data não consensual. Com efeito, na nota final deste manuscrito, o copista indica que a cópia foi concluída no ano judaico de 5038, o qual corresponde ao ano de 1278 do nosso cômputo, antecedendo, portanto, o manuscrito senense. A análise paleográfica do manuscrito de Lisboa, porém, encetada por Malachi Beit-Arié, sugere que o manuscrito não poderá ter sido copiado no século XIII, mas sim nos finais do século XIV. Neste sentido, e de acordo com o autor, é possível que o copista do manuscrito de Lisboa tenha omitido a indicação da centena, e que a cópia do manuscrito tenha ocorrido em 5(1)38 = 1378, data que assumimos. BEIT-ARIÉ, Malachi, Catalogue of the Hebrew Manuscripts in the Bodleian Library. Supplement of Addenda and Corrigenda to vol. I (A. Neubauer’s Catalogue), Oxford, Clarendon Press, 1994, p. 466 (n.º 2391).

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não chegasse aos nossos dias. O conteúdo do volume, um léxico de hebraico talmúdico com a explicação das palavras e termos difíceis dos Talmudes de Jerusalém e da Babilónia, dos midrashim e dos targumim, evidencia a cultura do seu proprietário, interessado no estudo do Talmud e dos autores rabínicos clássicos. Enquanto resultado de encomenda atesta igualmente o poder económico do proprietário. Em todo o caso, o manuscrito de Seia oferece-se como um importante testemunho da presença judaica nesta cidade, revelando-nos a sua antiguidade, nomes de indivíduos e seus interesses cultuais. 2. O cólofon do manuscrito hebraico da Guarda (1346) Parma, Biblioteca Palatina, MS Parm. 2705, fol. 261r

«Concluído o Comentário ao Pentateuco. Louvor e glória ao Sublime e Terrível que construiu para nós o átrio, o altar e o lugar onde congregar-nos, e nos conduziu à Casa da Eleição. Eis-me aqui, eu, o jovem com a vista afligida, com pouco entendimento, sem alegria no coração, que não levanta os olhos, a quem meus inimigos desterraram para que não participe na herança do Senhor (1 Samuel 26,19). Eu o concluí no segundo dia do mês de Nissan, do ano 5106 da Criação do mundo [= 26 de março de 1346], na cidade de Guarda, no extremo do Reino de Portugal. O escritor é o mais jovem de todos os estudantes, José, filho do sábio rabi Isaac – que Deus o guarde, se compadeça dele e o abençoe – Daluiya, filho do sábio e santo rabi José – que a sua memória seja justa e santa seja bendita – Daluiya. Que Aquele que abençoa e é misericordioso e suporte dos que socorre, seja sempre o meu apoio e me conduza à Terra de Israel». Conforme refere Maria José Ferro Tavares, a comuna de judeus mais antiga na região da Beira Interior é a da Guarda, existente, pelo menos, desde o século XIII, ou mesmo até antes14. Nas centúrias seguintes a comunidade parece ter crescido substancialmente, havendo no final do século XIV duas judiarias na cidade15. Em 1346 foi 14

TAVARES, Maria José Ferro, “Os Judeus na Beira Interior…, p. 117.

15

GOMES, Rita Costa, “Um microcosmos citadino: a judiaria medieval da Guarda”, in Guarda. História e Cultura Judaica, Guarda, Museu da Guarda, 1999, pp. 111-115 (p. 112).

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concluída a cópia de um manuscrito hebraico também nesta localidade beirã, situada «no extremo do Reino de Portugal» (como refere o cólofon)16. O volume foi realizado por José Daluiya, filho de Isaac Daluiya, e neto de José Daluiya, que o produziu para seu uso pessoal. Importa referir que o manuscrito hebraico da Guarda, ao contrário do manuscrito de Seia, não é totalmente desconhecido dos investigadores nacionais. O primeiro estudioso português a referenciar este códice foi António Ribeiro dos Santos (1745-1818), um dos mais relevantes homens de cultura do Século das Luzes, que o indica em uma lista de dez manuscritos hebraicos com origem portuguesa17. O autor equivocou-se, porém, na identificação do conteúdo do volume, que aponta como uma Bíblia hebraica. Em seu seguimento, outros investigadores, como Pinharanda Gomes, não deixaram de se referir erroneamente ao manuscrito como a “Bíblia da Guarda”18. O conteúdo do volume não é bíblico mas sim exegético – o Comentário ao Pentateuco de Rashi (Samuel ben Isaac, 1040-1105), uma das obras clássicas da exegese judaica medieval que as comunidades sefarditas muito apreciaram e comentaram19. Em relação ao copista do manuscrito, José Daluiya, pouco se conhece da sua biografia senão o que ele próprio nos revela no cólofon. Considerando que o volume foi produzido para seu uso pessoal e que Daluiya se apresenta como «o mais jovem de todos os estudantes» podemos supor que o terá copiado como apoio ao seu estudo, levado a cabo eventualmente na escola da sinagoga (yeshivah) ou junto de um mestre particular. Nada mais podemos afirmar de José Daluiya, cuja existência na Guarda é somente atestada pelo cólofon do manuscrito referido. Devemos registar ainda um dado curioso neste manuscrito a propósito do copista. Daluiya não regista o seu nome próprio somente no cólofon. Por nove vezes ao longo do texto, o copista faz decorar o seu nome – Yosef (José) – sempre que este comparece no início das linhas de escrita nos diversos fólios(ver figuras 1 e 2)20. Este dispositivo – uma prática comum e única do mundo judaico medieval – foi usado com relativa abundância pelos 16

Sobre este manuscrito, veja-se RICHLER, Binyamin e BEIT-ARIÉ, Malachi, Hebrew Manuscripts in the Biblioteca Palatina in Parma, Jerusalém, Jewish National and University Library, 2001, p. 93 (n.º 505). O manuscrito, com 235x165 mm, é composto por 263 fólios de pergaminho, escritos com letra semicursiva sefardita, em uma só coluna de 24 linhas. O volume recebeu a assinatura de um censor eclesiástico, Alexandro de Cari, que revê o manuscrito a 28 de agosto de 1559 (fol. 1r). A actividade deste censor encontra-se documentada na cidade italiana de Pisa, em torno do terceiro quartel do século XVI. Sobre este censor e sua atividade, veja-se POPPER, William, The Censorship of Hebrew Books, Nova Iorque, KTAV Publishing House, 1899, p. 138 (§32-33).

17

SANTOS, António Ribeiro dos, “Memórias da Litteratura Sagrada dos Judeos Portuguezes desde os primeiros tempos da Monarquia até os fins do Século XV”, Memórias da Litteratura Portugueza publicadas pela Academia das Sciencias de Lisboa, Tomo II, Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1792, pp. 236-312 (p. 261-262).

18

GOMES, Josué Pinharanda, A Filosofia Hebraico-Portuguesa, Lisboa, Guimarães Editores, 2009, p. 46: «As obras mais copiadas são de natureza bíblica, sendo documentos valiosos, não apenas a conhecida Bíblia da Guarda, mas as Bíblias Completas de Lisboa […]».

19

LAWEE, Eric, “The Reception of Rashi’s Commentary on the Torah in Spain: the Case of Adam’s Mating with Animals”, The Jewish Quarterly Review 97-1, 2007, pp. 33-66 (especialmente pp. 36-44).

20

Nos fols. 36r, 49r, 51v, 57r, 59v, 62r, 64v, 181v e 210r. A decoração consiste em pequenos traços intermitentes desenhados a partir do nome “Yosef” formando uma discreta linha que se projeta na margem direita do fólio.

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Fig. 1 – Parma, Biblioteca Palatina, MS Parm. 2705, fol. 62r. Comentário ao Pentateuco de Rashi. Guarda, 1346

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Fig. 2 – Parma, Biblioteca Palatina, MS Parm. 2705, fol. 64v. Comentário ao Pentateuco de Rashi. Guarda, 1346

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escribas e pelos massoretas hebraicos para divulgar (sub-repticiamente) a sua identidade, sobretudo quando a não podiam declarar no manuscrito (como sucedia aos escribas secundários ou aos aprendizes, ou por lhes ser negado pelo comitente da obra)21. Em nenhuma destas situações se enquadra Daluiya pelo que o recurso a este dispositivo por parte do copista parece revelar somente uma regozijosa afirmação pessoal.

3. O cólofon do manuscrito hebraico de Sevilha (1356) Milão, Biblioteca Ambrosiana, MS C 149 inf., fol. 350v

«”Eu sou o lírio dos vales” (Cântico dos Cânticos 2,1) e direi as maravilhas de Deus e recordarei o tempo da erupção da terra e dos ventos divinos. Eu, Ḥayyim, filho de rabi Jacob Nieto, escrevi este livro para o honorável Dom Salomão Alvares, e o concluí no ano do Senhor 5116 [= 1356], que teve piedade dos seus servos, e nesse ano, na quarta-feira, 17 de Elul [= 24 de agosto] rugiu e tremeu a terra e caíram em Sevilha as muralhas e muitas casas, e caíram as maçãs que estavam no ponto alto da grande torre [= Giralda da Catedral], e também se sentiu em Lisboa e em outros sítios. Que Deus, em sua misericórdia, proteja o seu povo e levante o poder do Seu Ungido». Os cólofones dos manuscritos hebraicos portugueses medievais não são os únicos susceptíveis de apresentar informação nova e relevante para a história e a cultura dos judeus em Portugal. Também os manuscritos hebraicos medievais produzidos nos demais reinos peninsulares podem surpreender-nos ocasionalmente com informação relativa ao território nacional. Não poderia ser de outro modo se considerarmos as profícuas relações existentes entre os judeus dos dois lados da fronteira, unidos por laços familiares, religiosos, linguísticos e culturais. O cólofon de uma Bíblia hebraica glosada (contendo os livros dos Profetas com comentários de Rashi), produzida em 1356, provavelmente em Sevilha constitui um desses testemunhos sefarditas não-portugueses susceptíveis de apresentar matéria relevante para a história nacional22. Com efeito, nele o escriba, Ḥayyim, filho 21

Este dispositivo constitui, portanto, uma ferramenta utilíssima para descobrir e identificar nomes de escribas em manuscritos desprovidos de cólofon. BEIT-ARIÉ, Malachi, “How Scribes Disclosed their Names in Hebrew Manuscripts”, in ZWIEP, Irene (ed.), Omnia in Eo: Studies on Jewish Books and Libraries in Honour of Adri Offenberg, Celebrating the 125th Anniversary of the Bibliotheca Rosenthaliana in Amsterdam, Leuven, Peeters, 2006, pp. 144-157.

22

BERNHEIMER, Carlo, Codices Hebraici Bybliothecae Ambrosianae, Florença, Leon S. Olschki, 1933, pp. 12-13 (n.º 9).

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de Jacob Nieto, alude a um sismo de grande impacto ocorrido a 24 de agosto daquele ano, cujos efeitos se fizeram sentir um pouco por toda a Península Ibérica, sobretudo na Andaluzia.Entre os locais referidos pelo escriba destaca-se Sevilha, cujos efeitos do sismo descreve com pormenor, mas também Lisboa «e em outros sítios». De acordo com Victor Moreira, o epicentro do referido sismo ocorreu ao largo do Cabo de S. Vicente, tendo atingido em Portugal intensidade semelhante à do Terramoto de 175523. Em Sevilha são conhecidos os estragos nos panos das muralhas, nas habitações, e na Giralda da Catedral24. Nesta última, o terramoto provocou a ruptura do espigão do yamur islâmico, destruindo as quatro esferas (ou maçãs) de bronze dourado nele sustentadas, as quais caíram com grande estrépito no pavimento. Também em Lisboa o sismo provocou grandes estragos, conforme descreve o autor acima referido: «No dia 24 de Agosto, quarta-feira, pouco antes do pôr-do-sol houve um grande terremoto em toda a Península que provocou grandes estragos em Portugal. Foi tão forte que provocou o badalar dos sinos das igrejas e abriu de alto a baixo a capela-mor da Sé de Lisboa que poucos dias antes se acabara de edificar por ordem de el-rei D. Afonso IV [...]. Em Lisboa caíram muitas casas e outras ficaram arruinadas. Este terremoto provocou grande pânico e destruições em Espanha, especialmente na Andaluzia. Em Sevilha houve estragos na torre da catedral (Giralda) e em Córdova também houve destruições, tendo morrido muitas pessoas e arruinaram-se bastantes igrejas. [...] As réplicas deste sismo prolongaram-se durante um ano»25. A Bíblia de Sevilha constitui um documento significativo ainda por outro motivo. No fol. 1r, uma marca de posse atesta que o manuscrito pertenceu ao influente e controverso Samuel, filho de José Abravanel, o avô do português Isaac Abravanel. Figura poderosa «nas cortes de três reis de Castela que se sucederam uns aos outros, ao ponto de ter alcançado, durante o reinado do terceiro de entre eles, Henrique III, a mais alta posição na tesouraria de Castela, quando ocupou o cargo de contador mayor26, Samuel Abravanel converter-se-á ao cristianismo depois de 1391 tomando o nome de Juan Sánchez de Sevilha.

O manuscrito, com 225x272 mm, é composto por 353 fólios de pergaminho, escritos com letra quadrada sefardita, em duas colunas de 23 linhas. 23

MOREIRA, Victor João de Sousa, “Sismicidade histórica de Portugal continental”, Sep. da Revista do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica, Lisboa, 1984, p. 15.

24

Antigo minarete da mesquita muçulmana.

25

MOREIRA, Victor João de Sousa, “Sismicidade histórica de Portugal…, pp. 14-15.

26

NETANYAHU, Benzion, Dom Isaac Abravanel. Estadista e Filósofo, Coimbra, Tenacitas, 2012, pp. 45-49.

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Conclusão Os cólofones dos manuscritos hebraicos aqui citados e discutidos constituem testemunhos históricos, materiais e culturais da presença judaica no país, revelando quer informação inédita quer informação complementar à já existente. Entre a informação inédita sublinhamos o manuscrito de Seia, cuja existência faz recuar a presença judaica naquela localidade para o século XIII. De referir também a possibilidade que os cólofones oferecem para a identificação de indivíduos que de outro modo nos seriam desconhecidos dada a ausência de referências aos mesmos na documentação arquivística portuguesa. Entre a informação complementar destaca-se o manuscrito de Sevilha. O sismo de 1356 e o seu impacto eram conhecidos. No entanto, o cólofon deste manuscrito pode figurar agora entre os testemunhos coevos deste acontecimento, demonstrando que a informação circularia com maior rapidez entre os dois lados da fronteira do que se poderia esperar.

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