Os conceitos jurídicos

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin)

Os conceitos jurídicos 1 José Rodrigo Rodriguez Para Marcelo M. M. e Silwe Arrcoll

I É comum os livros de introdução ao estudo do Direito iniciarem sua exposição dizendo que o Direito envolve todos os aspectos de nossa vida, desde o nascimento até a morte. Quando nascemos adquirimos personalidade, crescemos e nos tornamos juridicamente capazes, morremos e deixamos uma herança e assim em diante. Todas estas situações são objeto de normas jurídicas, além de problemas relativos a impostos, casamento, comércio, proteção do meio ambiente, crimes, trabalho e família, entre outros. O Direito também se preocupa em especificar, com todos os detalhes, o que devemos entender por queijo parmesão:

“Entende-se por Queijo Parmesão, Queijo Parmesano, Queijo Reggiano, Queijo Reggianito e Queijo Sbrinz os queijos maturados que se obtêm por coagulação do leite por meio do coalho e/ou outras enzimas coagulantes apropriadas, complementada pela ação de bactérias lácticas específicas.(...) 4. COMPOSIÇÃO E REQUISITOS. 4.1. COMPOSIÇÃO: 4.1.1. Ingredientes obrigatórios. 4.1.1.1 Leite integral ou padronizado em seu conteúdo de matéria gorda 4.1.1.2 Cultivos de bactérias lácticas específicas 4.1.1.3 Coalho e/ou outras enzimas coagulantes apropriadas 4.1.1.4 Cloreto de sódio 4.1.2 Ingredientes opcionais 4.1.2.1 Creme 4.1.2.2 Concentrado de proteínas lácteas 4.1.2.3. Cloreto de cálcio 4.2.REQUISITOS 4.2.1. Características Sensoriais. 4.2.1.1. Consistência: dura 4.2.1.2. Textura: compacta, quebradiça e granulosa 4.2.1.3. Cor: branca amarelada e ligeiramente amarelada 4.2.1.4. Sabor: salgado levemente picante 4.2.1.5. Odor: característico 4.2.1.6. Crosta: lisa, consistente, bem formada, recoberta com revestimentos apropriados, aderidos ou não. 4.2.1.7. Olhos: não possui, eventualmente poderá apresentar alguns olhos pequenos e algumas olhaduras mecânicas. 1

Agradeço os comentários críticos de Luís A.G. Andrade, Flávia Portella Püschel, Karime Costalunga, André Rodrigues Corrêa, Alexandre Santos Cunha, Rafael Francisco Alves, Adriana Ancona, Ernesto Tzirulnik, Ana Carolina Souza Lacerda, Luciana Musse e Esdras Borges Costa.

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) 4.2.2. Forma e Peso 4.2.2.1. Forma :Cilindros de faces planas, de perfil ligeiramente convexo. 4.2.2.2. Peso: Parmesão .................... de 4 a 8 kg. Reggianito e Sbrinz.......... de 5 a 10kg. Reggiano .................... de 10 a 20kg. Parmesano ................... mais de 20kg. 4.2.3. Requisitos Físico-Químicos Corresponderá às características de composição e qualidade dos queijos de baixa umidade e conteúdo mínimo de 32g/100g de matéria gorda no extrato seco. 4.2.4. Características distintivas do processo de elaboração. 4.2.4.1. Obtenção de uma massa cozida, dessorada, prensada, salgada e maturada. 4.2.4.2. Estabilização e maturação: deverá ser maturado pelo tempo necessário para a obtenção das suas características específicas. Pelo menos 6 meses para queijos de 4 a 10kg de peso, 8 meses para queijos de peso compreendido entre 10 e 20kg e 12 meses para os queijos de mais de 20 kg. 4.2.5. Acondicionamento: Sem embalagem ou em envoltórios plásticos ou em embalagens com ou sem vácuo ou envoltórios bromatologicamente aptos. Eventualmente, parafinados e/ou acondicionados com cobertura bromatologicamente aptas. 4.2.6. Condições de conservação e comercialização: É recomendado manter os Queijos Parmesão, Parmesano, Reggiano, Reggianito e Sbrinz a uma temperatura não superior a 25ºC, com o objetivo de manter suas características.” (Portaria n º 353, de 4 de Setembro de 1997 do Ministro de Estado da Agricultura e Abastecimento)

Dentre os vários assuntos de que trata, o Direito revela, nesta regulação bastante detalhada, sua preocupação com a integridade da macarronada de domingo. Mas para quê serve um conceito jurídico de parmesão? Um profissional do Direito não teria nenhuma dificuldade em imaginar uma boa resposta para esta pergunta. Essa espécie de ser humano sente-se completamente à vontade diante de disparates como este, além de achar triviais afirmações como “nem toda pessoa é um ser humano” ou “navios são bens imóveis”. Mas vamos tentar manter a calma. Antes que alguém chame aqueles simpáticos senhores de branco para vestirme com um camisão de mangas longas e oferecer transporte para um lugar bem tranqüilo, talvez seja o caso de esclarecer um pouco mais esta estranha familiaridade dos estudiosos do Direito com o inusitado. Voltemos ao queijo parmesão e a seu conceito legal, ou melhor, voltemos ao queijo parmesão sem conceito algum. Se alguém perguntasse a você, caro aluno, o que é um queijo parmesão, o que você responderia? Vamos supor, é claro, que você tenha algum interesse no assunto, ou seja, que não pratique uma alimentação macrobiótica e não seja uma atriz (ou ator), modelo e manequim. Provavelmente, você descreveria a cor, a textura, o cheiro do queijo, além do formato em que ele costuma ser comercializado, a forma de sua embalagem e outros detalhes 2

Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) perceptíveis aos sentidos. Um gourmet, apreciador do queijo parmesão, certamente apresentaria ao ouvinte uma espantosa riqueza de detalhes e nuances, além de histórias sobre o vale do Rio Pó, local de nascimento da preciosa iguaria, explicadas com uma paixão comparável apenas àquela dos amantes de vinho, proprietários de cachorros ou casais enamorados. Se fossemos conversar sobre o mesmo assunto com o dono do supermercado que o comercializou, provavelmente teríamos um quadro bastante diferente. Para a ação de vender queijo, seu preço é o aspecto central. O comerciante, evidentemente, se interessa pelas qualidades sensoriais do queijo, sua qualidade e sua procedência. Mas, ao engajar-se numa compra ou numa venda, essas características ficam em segundo plano e são levadas em conta apenas para os fins da operação econômica. Trata-se de saber, no caso da venda a varejo, quantas pessoas estarão dispostas a trocar seu dinheiro pelo queijo e qual será o lucro obtido nesta operação. Do ponto de vista de quem faz o queijo, importa saber quais são as suas propriedades físico-químicas e a maneira pela qual é possível chegar ao resultado final desejado a partir de determinadas matérias primas. Para este fim, o queijo parmesão é a mistura disto, daquilo e daquilo outro, numa determinada ordem de preparo. De novo, é claro que seu preço importa, também suas características sensoriais, mas não em primeiro plano. Para o processo de fabricação e para os discursos que se referem a este processo (uma receita, um livro sobre a fabricação de queijo, uma discussão de engenheiro de alimentos sobre o assunto etc) importam sobretudo as propriedades físico-químicas e o procedimento de preparo do parmesão. Enfim, para o amante da boa mesa, o queijo parmesão é uma coisa, para o comerciante, outra e, para o fabricante, ainda outra. Diante desta pluralidade de pontos de vista sobre o mesmo objeto, podemos perguntar: afinal, o que é queijo parmesão? Qual sua essência? Qual dos personagens evocados tem a palavra final sobre seu conceito? E por que a definição de queijo interessa ao Direito? Quando falamos em Direito e queijo parmesão, falamos a partir de um determinado ponto de vista. O conceito jurídico citado acima foi elaborado com uma certa finalidade: armar o Estado para exercer o poder de fiscalizar a produção e a comercialização de produtos alimentícios. Além disso, ele serve de referência para o comportamento da sociedade

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) (produtores, negociantes, consumidores etc). Sua função é evitar que se fabrique e/ou que se venda gato por lebre. De posse de um conceito de queijo parmesão - com especificações técnicas relativas a seu aspecto, odor, textura e composição - as autoridades podem fiscalizar produtores, importadores e vendedores com o objetivo de garantir que o consumidor leve para casa aquilo por que pagou. Além disso, o conceito permite que os particulares tenham uma referência para o comportamento de produzir, importar, comprar e vender queijo parmesão. O comerciante, o gourmet e o fabricante olham o queijo a partir de outros pontos de vista. Se chamados a defini-lo, certamente ressaltariam outros de seus aspectos, importantes para os seus respectivos fins. A definição legal de parmesão não está diretamente a serviço destes fins. O direito tem seus objetivos específicos, por isso mesmo, precisa de uma definição própria de queijo parmesão. Mas a questão volta a incomodar: existe um conceito de queijo parmesão que unifique todos estes sentidos? Devemos escolher um deles? Nesse caso, qual deles escolher? O conceito sensorial do apreciador, o conceito técnico do produtor, o conceito econômico do vendedor ou o conceito jurídico - instrumento para o exercício do poder? Qual ou quais das diversas qualidades do queijo servem para definir sua essência? Para além delas, haveria algo escondido por detrás de sua cor, sabor, textura, preço, etc; uma qualidade oculta e essencial, imperceptível aos sentidos, que teria precedência na definição deste objeto? Vou deixar esta questão sem resposta, afinal, apesar da aparente trivialidade do queijo, objeto de nossa investigação, tal indagação é central para a história de toda a filosofia ocidental. Queijo parmesão ou pedaço de cera, como nas Meditações sobre a Filosofia Primeira de Descartes, a pergunta sobre a essência das coisas remonta ao início da filosofia. Não há espaço aqui para tratar disso. Para o que nos interessa, é importante ressaltar que o uso da expressão “queijo parmesão” tem funções diversas em cada uma das situações que examinamos. As mesmas palavras são usadas em sentidos diferentes em contextos diferentes. Cada um desses usos pressupõe regras específicas que determinam seu sentido. O ás de um baralho tem usos variados nos jogos de buraco, truco e pôquer. O mesmo ás é utilizado de três maneiras diferentes conforme as regras que definem os três jogos. Qual é o uso correto do ás? Qual é sua essência? Não se trata de descobrir o uso correto da carta, mas

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) de respeitar as regras referentes a cada um de seus usos. É incorreto tratar o ás como carta de truco no contexto de um jogo de pôquer e vice-versa. Ambos os jogos, truco e pôquer, permitem usos diferentes da mesma carta. Da mesma maneira, o conceito jurídico de queijo parmesão não tem lugar numa conversa de gourmets ou no contexto de sua comercialização: ele não serve para expressar prazeres da mesa ou o valor econômico da mercadoria. Falar do conceito jurídico é preocuparse com o exercício de poder. Portanto, seu uso é adequado em discursos que se refiram a este objetivo. Cada conceito tem seu contexto. Cada macaco no seu galho. Cada um, cada um, como dizia o filósofo Tim Maia.

II Aos olhos do senso comum, os conceitos jurídicos podem assumir características amalucadas. Um exemplo: para certos fins, navios são tratados como bens imóveis pelo Direito, apesar de poderem ser movimentados 2. Ora, como algo móvel pode ser tratado juridicamente como imóvel? Por que esta confusão de termos? A explicação é simples (pelo menos para um jurista...). No contexto em que estamos falando, a palavra “imóvel” não designa uma característica física das coisas, mas um regime jurídico. São tratados como imóveis pelo Direito uma série de objetos, imóveis por natureza ou não. Mas como se explica esta confusão? Por que manter a palavra “imóvel” para designar coisas móveis por natureza? Isso não é complicar demais a utilização da palavra, afastando-a demais de seu uso comum? Caro aluno, tendo a concordar com sua perplexidade. Mas, neste caso, a explicação da confusão revela muito do modo de funcionamento dos conceitos jurídicos e do modo de pensar do jurista. Vejamos. A coisa se explica assim: os conceitos de bem móvel e bem imóvel nasceram com as sociedades agrárias em que a terra era o bem mais valioso. Por esta razão, a compra e venda de bens imóveis foi submetida a formalidades específicas. Comprar uma fazenda não é comprar um chiclete: envolve mais riscos, mais dinheiro, mais poder econômico. Em sociedades de economia agrária, sem indústrias, sem sociedades anônimas, sem mercados de ações, sem

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Sobre o tratamento de bem imóvel dado aos navios para fins de registro e transferência de propriedade, veja a L. n. 7652/88.

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) navios e sem chuveiros aquecidos; mas com carroças, cavalos e banhos de bacia, as coisas móveis tendiam a ter uma importância econômica menor do que as coisas imóveis. O tempo foi passando e os conceitos foram sendo usados por autoridades públicas e cidadãos no contexto dos conflitos jurídicos, formando uma tradição. Lembremos que os conceitos jurídicos servem de critério para a ação do Estado e são referência para toda a sociedade, sujeita a seu poder. A administração cobra seus impostos, os advogados propõem suas demandas, os juízes proferem suas sentenças, os particulares discutem seus conflitos usando, todos eles, o mesmo vocabulário sobre bens móveis e imóveis. Todos os personagens citados participam do contexto do Direito e, neste âmbito, comunicam-se por meio de um mesmo conjunto de palavras. O sentido das palavras precisa ser relativamente estável para que a comunicação se faça. Para retomar o exemplo do ás, eu não posso jogar uma mão de truco no meio de um jogo de pôquer, assim como um juiz, um advogado, um promotor e um cidadão não podem mudar arbitrariamente o sentido de uma palavra. Analogamente, eu não posso xingar a mãe de alguém e esperar que ele não reaja. Não vai adiantar nada dizer, em meu favor, que mudei o sentido das palavras e, na verdade, eu queria dizer que o fulano e sua mãe, objetos do adjetivo que usei, são pessoas muito legais. As regras que determinam o sentido das palavras são relativamente independentes de nossa vontade individual. Fazem parte de um sistema que define a maneira pela qual as palavras são usadas em um determinado contexto. Se eu quiser me fazer entender, preciso aceitar e utilizar as regras que orientam seu uso. Do contrário, coloco-me fora do jogo. Há mecanismos que regulam eventuais discordâncias acerca do sentido das palavras. No caso do Direito, debates assim ocorrem no interior de instituições como o Poder Judiciário. Caso ocorra um conflito entre um fiscal e um vendedor sobre a caracterização de um determinado lote de queijo como “parmesão”, a questão será resolvida por este poder. Voltando ao exemplo: “móvel” e “imóvel” são termos que fazem parte de um contexto específico e foram utilizados durante anos pelos atores do mundo jurídico. Seu uso tem permitido a comunicação entre os diversos personagens do mundo jurídico, além de servirem de referência para a ação de toda a sociedade. Mudar arbitrariamente seu sentido, ou seja, fora dos mecanismos construídos pelo Direito para este fim, significa desorientar todos os participantes do contexto, complicando a comunicação. E veja bem, prezado aluno, quando

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) falamos de Direito, falamos, entre outras coisas, no exercício de poder pelo Estado. Mudar um conceito jurídico pode significar ampliar, diminuir ou mudar o foco de sua ação, além de desorientar a ação dos indivíduos que compõem a sociedade sujeita ao seu poder. Retomemos o exemplo do queijo. A regra que citamos acima afirma que o parmesão deve incluir leite como seu ingrediente. Vamos imaginar que a portaria seja modificada e se retire dela a referência ao leite. Resultado: o queijo parmesão, para o Direito, seria um queijo que não levaria este ingrediente. A portaria não tem o poder de mudar a substância do queijo: o legislador não é alquimista ou mágico. No entanto, ela pode mudar aquilo que é relevante para o Direito. Neste caso, o resultado da mudança seria o seguinte: todos os produtos aos quais a regra se referia originalmente teriam sido postos fora do raio de ação do Estado. Queijos feitos com leite seriam irrelevantes para a fiscalização. Este exemplo, apesar de esdrúxulo, mostra a independência de sentido entre os conceitos jurídicos e qualquer outro conceito de parmesão. Outro exemplo: vamos imaginar que surja um novo queijo, tipo X, muito parecido com o parmesão. O Ministro da Agricultura, para evitar a edição de uma portaria específica para este queijo, resolve incluir na portaria acima a seguinte frase: “Para os fins desta portaria, considera-se o queijo X como queijo parmesão”. O que o Ministro fez neste caso? Fez mágica? Transformou o queijo X em parmesão por força da norma jurídica que editou? Nada disso. Apenas deu a ele o mesmo tratamento jurídico do queijo parmesão. Para os fins da portaria, “queijo parmesão” é um conceito que inclui o queijo parmesão e o queijo X. Algo muito parecido aconteceu com os termos móvel e imóvel. A lei foi incluindo no âmbito destes termos coisas que não têm as características físicas de bens móveis ou imóveis. Assim, termos que nasceram em uma sociedade agrária foram “torcidos” para continuarem a ser usados, tudo em nome da continuidade da comunicação no contexto do Direito. Mudar um conceito jurídico pode ter um custo muito alto para a comunicação. Sem ele, pode-se perder uma referência importante e prejudicar seu fluxo. Por esta razão, o legislador decidiu que era melhor utilizar o termo “imóvel” para regular esta matéria. Assim, a legislação afirma que os navios devem ser tratados como bens imóveis para fins de registro da transferência de propriedade. Afinal, um navio pode ser mais valioso do que milhares e milhares de metros quadrados de terra. Comprar um navio envolve muitos riscos. Por esta razão, o legislador decidiu que uma operação comercial que envolva este veículo deve seguir

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) formalidades semelhantes àquelas reservadas aos bens imóveis por natureza. Como no exemplo do queijo tipo X, o termo bem imóvel passou a incluir, entre outros, os bens imóveis por natureza e, para certos efeitos, os navios. O Direito tem o poder de manipular os conceitos, ampliando ou estreitando seu sentido. Portanto, fique claro: um navio tratado juridicamente como imóvel não é, necessariamente, um navio encalhado.

III Se o Direito se preocupa até em definir o queijo parmesão, existe alguma coisa que fique fora dele? Existe algum assunto ignorado pelo Direito? A resposta a esta pergunta, a exemplo da pergunta sobre a natureza das coisas, também tem uma tradição respeitável na história da filosofia. Para simplificar, a resposta é: sim e não. Sim, o Direito não regula diretamente todas as coisas, todos os atos humanos. Não, aquilo que o Direito não regula diretamente está juridicamente protegido em sua condição. Mesmo sem regulação específica, o assunto ignorado pelo direito é protegido por ele. Trata-se de uma proteção pela negativa: as normas jurídicas passam a não legitimar intervenções sobre atos relativos a certos assuntos: na relação entre particulares, tudo o que não é proibido é permitido. Há diversas áreas da ação humana que se tornam imunes a intervenções fundadas em normas jurídicas, simplesmente porque não há norma sobre elas. Vou tentar explicar melhor. O Direito tem regras sobre o casamento, relações familiares, separação, divórcio, mas não regula entre outras coisas, as relações de amizade e de namoro. Uma mulher ou um marido que desejem terminar seu casamento precisam recorrer aos tribunais. Para terminar uma amizade ou um namoro não é preciso (nem possível) propor uma demanda judicial. Esta matéria não é regulada pelo Direito. Os indivíduos devem resolver suas relações de amizade e seus namoros sem a mediação das normas jurídicas. Amizade e o namoro são espaços sem regulação jurídica específica e, por isso mesmo, estão protegidos contra qualquer intervenção jurisdicional indevida. Há vários outros aspectos da vida isentos de regulação jurídica. Quem define quando e por que uma determinada matéria deve ser regulada? Quem decidiu que o queijo parmesão

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) precisava de uma disciplina jurídica específica? Esta decisão cabe ao legislador, ou seja, à sociedade mesma, que se manifesta por meio de seus representantes. Nem sempre o legislador toma decisões razoáveis. Por exemplo, na lei de proteção à propriedade industrial, nosso legislador decidiu que: Art. 192. Fabricar, importar, exportar, vender, expor ou oferecer à venda ou ter em estoque produto que apresente falsa indicação geográfica. Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.

De acordo com este artigo, quem fabricar, importar, exportar, vender, expor ou oferecer à venda um parmesão com indicação de origem incorreta pode ser condenado pela Justiça penal. Um parmesão fabricado no Brasil pode utilizar, sem problemas, a denominação “queijo parmesão”. No entanto, não pode ser identificado como oriundo de Parma caso tenha sido fabricado em outro lugar. Um parmesão de Birigui precisa ser identificado como tal, caso contrário, o responsável pela fabricação e/ou o importador ou exportador, além do dono do supermercado, terão de enfrentar os rigores da lei penal. Para que o crime se configure, basta que o supermercado mantenha em estoque o queijo de Birigui falsamente identificado como oriundo de Parma. Veja bem: mesmo que ele não esteja exposto e não tenha sido oferecido ao público o mal intencionado dono do supermercado está sujeito à punição. Neste caso, as perguntas que podemos fazer como cidadãos são: esta matéria precisaria de uma regulação específica? É necessário transformar esta conduta em crime? Não há outra maneira de evitar que se veiculem informações incorretas sobre a procedência dos produtos? Seja como for, questionar as decisões sobre o que o Direito deve regular e o que deve ficar fora de seu alcance imediato é essencial para uma democracia. As normas jurídicas são passíveis de reforma: é importante que os cidadãos levem ao poder legislativo suas demandas por novas leis e pela reelaboração ou revogação de leis antigas. Este é um processo sem fim, marca distintiva de qualquer estado de Direito. Os limites entre aquilo que Direito regula diretamente e o que deve ficar fora de seu alcance são dinâmicos e devem ser objeto de preocupação de todos. Um exemplo estrangeiro: recentemente, a Suprema Corte dos EUA julgou inconstitucional uma lei do estado do Texas que considerava a prática de sexo anal um crime. Preferiu deixar que os indivíduos decidissem sobre suas práticas sexuais sem a influência direta

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) do Direito. A matéria está, agora, fora do alcance das autoridades públicas. Os indivíduos estão protegidos contra qualquer intervenção em suas práticas sexuais pelo Estado ou por outros membros da sociedade. Ninguém pode denunciar ninguém às autoridades públicas por ter praticado sexo anal nem as autoridades têm poder para fiscalizar com o fim de descobrir e coibir esta prática. A decisão de regular qualquer matéria deve ser útil e bem justificada. Por esta razão, é importante manter vivo o debate sobre o processo legislativo. A discussão sobre a utilidade e a justiça das normas jurídicas é desejável e útil na sala de aula, no Poder Judiciário, no palanque, no bar etc. No entanto, não tem poder direto sobre a existência e a força de uma norma jurídica. Enquanto ela estiver valendo, ou seja, enquanto o legislador não tomar alguma providência, a norma continuará a ser mais uma peça do jogo e poderá ser utilizada em raciocínios jurídicos. Estou simplificando o problema: há casos em que uma norma deixa de ser aplicada pelas autoridades competentes, deixa de ser respeitada pela sociedade e, portanto, perde completamente a utilidade. É criticada por advogados, juízes, promotores e cidadãos: ninguém a invoca, ninguém a aplica, ou seja, torna-se letra morta. Em casos como esse, alguns filósofos do Direito diriam que a norma não vale mais, deixa de ser norma jurídica. Outros diriam que não. Trata-se de outro problema complicado sobre o qual muito já foi dito e escrito. Não vou avançar mais a explicação. Vamos ficar por aqui. Mesmo porque, a resposta à questão da validade das normas jurídicas seria parecida com a resposta que dei acima: sim e não. Não sei se você, caro aluno, agüentaria mais uma resposta dúbia para uma pergunta direta em menos de dez páginas. Iria pensar que estou tentando lhe enrolar. De qualquer maneira, mesmo que este texto pare por aqui, acho que ele poder ser útil. Na pior das hipóteses, além de compreender um pouco o funcionamento dos conceitos jurídicos você já faz idéia de como funciona a cabeça dos juristas. Os juristas são pessoas que acham necessário construir definições jurídicas de queijo parmesão; tratam navios como bens imóveis e respondem com um sonoro “sim e não” a perguntas diretas. Mas não se preocupe, querido aluno. Você está apenas começando a estudar Direito. Daqui a pouco você se acostuma e tudo vai soar muito normal. Eu juro.

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) Leituras complementares

ROSS, Alf. Tû-tû. São Paulo: Quartier Latin, 2004. HAFT, Fritjof. “Direito e linguagem”, in: A. Kaufmann, W. Hassemer (orgs.), Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 2002.

Abordagem introdutória concisa e precisa da relação entre direito e linguagem.

OLIVECRONA, Karl. Linguagem jurídica e realidade. São Paulo: Quartier Latin, 2005. Sobre o problema da relação entre linguagem jurídica e realidade, posto pelo realismo escandinavo.

FERRAZ JR.,Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão dominação, São Paulo, Atlas, 2003 e Direito, Retórica e Comunicação, São Paulo: Saraiva, 1997. Obra que utiliza a filosofia da linguagem de forma sofisticada e original para estudar o direito.

Para a relação entre conceitos jurídicos, dogmática jurídica e aplicação do Direito, vejase, entre vários outros:

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2004 (especialmente o último capítulo). NEUMANN, Franz. The Rule of Law. Political Theory and the Legal System in Modern Society, Leamington: Berg, 1986 (especialmente o capítulo 14). HART, Herbert. O Conceito de Direito, Lisboa: Calouste Gulbekian, 2001 (especialmente o capítulo VII).

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Publicado em “Organização das Relações Privadas” (ed. Quartier Latin) DWORKIN, Ronald. Os Direitos Levados a Sério, São Paulo: Martins Fontes, 2002. LUHMANN, Niklas. Sistema Jurídico e Dogmática Jurídica, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre Factcidade e Validade, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica, São Paulo: Landy, 2005.

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