Os condomínios e o alcance da regra do art. 1336, III, do Código Civil

August 7, 2017 | Autor: Vitor Guglinski | Categoria: Direito Civil, Condominio
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OS CONDOMÍNIOS E O ALCANCE DA REGRA DO ART. 1.336, III, DO CC/2002



Zapeando em frente à TV, deparei-me com uma reportagem aparentemente boba,
mas que, do ponto de vista jurídico, me causou certo espanto.

No caso, a TV Record exibia um episódio envolvendo uma personalidade da TV,
revelando que ela sofria perseguições por parte da administração do
condomínio onde reside, pelo fato de ter decorado um dos quartos cuja
janela fica de frente para a via pública, com cortinas rosa–choque, tendo
em vista que é a cor que predomina nas paredes e móveis de seu apartamento.

A equipe de reportagem, então, solicitou esclarecimentos de um advogado
especializado em condomínios, o qual afirmou ser possível estatuir na
convenção de condomínio que as unidades não podem ter cortinas que destoem
da cor predominante na fachada do prédio.

Notificada a retirar as cortinas, a condômina se recusou, pelo que recebeu
uma multa de R$600,00 (seiscentos reais), bem como foi advertida de que a
insistência poderia ensejar novas multas.

Pois bem, o art. 1.336, III, do Código Civil vigente prevê como sendo um
dos deveres do condômino a não alteração da forma e da cor da fachada, e
das partes e esquadrias externas do prédio. Eis a regra:



Art. 1.336. São deveres do condômino:

(omissis)

III – não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias
externas.



Mas, qual é o alcance dessa regra? Quais são os limites impostos ao
condômino e à administração do condomínio? Essa regra aplica-se à
ornamentação interna das unidades habitacionais do prédio?

Comentando o dispositivo, Flávio Tartuce esclarece que "a proibição de
alteração de fachada tem por objetivo a manutenção da harmonia estética do
edifício". Adiante, o autor arremata, asseverando que "a alteração que em
nada implique comprometimento dessa harmonia arquitetônica não é
considerada infração (…)" (TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 4: Direito
das Coisas, 4ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 285).

A regra em questão deixa claro que a proibição imposta aos condôminos
refere-se à área externa do edifício. A nosso aviso, por se tratar de regra
restritiva, deve ser interpretada restritivamente, conforme recomendam as
melhores técnicas de hermenêutica. Além disso, conforme a consideração
doutrinária do eminente civilista citado, a limitação restringe-se ao
conjunto arquitetônico da construção, isto é, refere-se a proibições de
alterações na fachada do prédio.

Alguns argumentos podem ser apontados para justificar a abusividade com que
agiu a administração do condomínio em questão.

No que interessa a este breve estudo, a primeira justificativa pode ser
retirada da própria Constituição Federal, que estatui como direitos
fundamentais:

"Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei" (art. 5º, II);

"São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação" (art. 5º, X);

"A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou
para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial" (art.
5º, XI).

Entendemos que as normas constitucionais em comento podem ser perfeitamente
aplicáveis em casos como o narrado, em absoluta consonância com a tese da
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cujo objetivo é o de limitar
a supressão ou limitação de direitos fundamentais por parte de outros
particulares, e não só do Estado, como é tradicionalmente demarcada a
função de direitos dessa natureza.

Em relação à necessidade de lei para que algo seja imposto ou proibido a
alguém, embora seja comum na praxe jurídica a afirmação de que a convenção
de condomínio é sua lei interna, não se pode perder de vista que tal
estatuto decorre de mero exercício da autonomia privada, portanto não se
revestindo da força das espécies normativas previstas na Carta Fundamental
(art. 59), sendo que nesta, bem como na lei em sentido formal, emanada dos
entes legiferantes, é que as convenções de condomínio encontram limites,
jamais podendo se revestir de poderes capazes de violar direitos
fundamentais.

Quanto à inviolabilidade da vida privada, não é difícil enxergar como
afrontoso um ato que determine que a residência de alguém deva ser ornada
com cortinas dessa ou daquela cor. A escolha da decoração de uma residência
cabe, exclusivamente, a seu dono, e mais ninguém. No caso do possuidor, a
lei faculta ao proprietário estatuir contratualmente que determinadas
alterações estruturais não poderão ser feitas no imóvel, mas jamais
determinar que os móveis devem harmonizar com a arquitetura do apartamento
ou da casa; que o tapete do banheiro deve combinar com os azulejos etc.

Finalmente, no que toca à inviolabilidade do domicílio, entendemos que tal
proibição não alcança somente a invasão física da casa de outrem, mas
também a violação institucional. Nesse sentido, um ato que importe na
supressão ou limitação de um direito fundamental deve ser considerado
inválido. Sendo assim, uma convenção de condomínio jamais poderia
determinar que as cortinas do apartamento de alguém devam ter cores que
combinem com a fachada do prédio. Fosse assim, um morador que preferisse
não ornamentar seu imóvel com cortinas poderia ser interpelado pela
administração do condomínio, pelo fato de o lustre com design modernista
que possui em sua sala não combinar com a arquitetura franco-anglo-romano-
germano-jamaicana do prédio! Seria um absurdo!

Fica, então, o convite para a reflexão. Se me permitem o trocadilho, às
vezes, uma simples e despretensiosa matéria jornalística pode se capaz de
fazer com que se descortine um universo de ideias. É isso que dá vida ao
Direito.

Quanto às cortinas rosa–choque, gosto não se discute; mas o direito, sim.
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