Os contratos de leasing e a alteração da política cambial brasileira

June 15, 2017 | Autor: R. Moraes | Categoria: Leasing, Direito Civil, DIREITO COMERCIAL, Direito Contratual
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Os contratos de leasing e a alteração
da política cambial brasileira

Renato José de Moraes
Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo
Advogado no Rio de Janeiro – RJ
Publicado na Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 38, p. 181-200, 2001.
1. Contrato de leasing: considerações gerais
O contrato de leasing, chamado pela lei brasileira de "arrendamento mercantil", é uma figura de confecção recente, que se impôs no direito nacional e cuja importância prática vem sendo confirmada dia a dia. Um grande número de pessoas a tem empregado a fim de poderem utilizar e adquirir bens de produção e de consumo. Trata-se de um instrumento atraente para os que desejam ter à disposição certos bens, mas não dispõem de capital suficiente para os obterem mediante a simples compra dos mesmos, e por isso se voltam a uma entidade financeira, que lhes possibilita o acesso a esses bens.
No Brasil, a primeira norma a tratar do leasing foi a Lei n. 6.099, de 12 de setembro de 1974, que disciplina o tratamento tributário deste tipo contratual. Em seu art. 1º, § único, há uma definição do arrendamento mercantil: "Considera-se arrendamento mercantil, para os efeitos desta Lei, o negócio jurídico realizado entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendadora, e pessoa física ou jurídica, na qualidade de arrendatária, e que tenha por objeto o arrendamento de bens adquiridos pela arrendadora, segundo especificações da arrendatária e para uso próprio desta".
Assim, a arrendadora compra o bem especificado pela arrendatária, a qual usará e gozará dele, pagando as prestações mensais do arrendamento e sem adquirir, de momento, a propriedade do bem em questão. Os valores pagos pela arrendatária à arrendadora, através dos aluguéis e do valor residual a ser desembolsado no caso de exercício da opção de compra, incluem o preço da aquisição do material locado pela arrendadora e os respectivos impostos, as despesas gerais da sociedade financeira, o lucro desta e os juros do capital investido.
Ao celebrarem um contrato de leasing, as partes têm a noção da existência de uma relativa equivalência entre o valor das prestações do arrendamento e o preço do bem em questão, acrescido das despesas e lucros da entidade financiadora. Ainda que esse tipo contratual seja complexo, o que aumenta o risco para as partes envolvidas, especialmente em um país de economia instável como o Brasil, o leasing é um contrato comutativo, no qual deve ser mantida a proporção entre as prestações dos contratantes.
A definição legal não explicita uma característica marcante do leasing, que é a tríplice opção do arrendatário de, ao fim do contrato, continuar o arrendamento, terminá-lo, ou comprar o bem arrendado. Em virtude disso, o leasing é considerado um negócio jurídico complexo, no qual há elementos de distintos contratos típicos, como a locação, o mandato e a promessa unilateral de venda, mas que estão moldados em uma unidade com características próprias, essencialmente distinta de qualquer outra figura contratual.
Por conta disso, o arrendamento mercantil não pode ser tratado como uma mera locação, pois há nele uma promessa de venda por parte da arrendadora, promessa que gera à arrendatária um direito potestativo gerador, que pode ou não ser exercido ao final do contrato. Portanto, o leasing é mais do que uma mera locação, e isso pode ser comprovado através dos próprios valores pagos pela arrendatária, que são, em regra, mais altos que os desembolsados pelas locatárias de bens similares.
O leasing é considerado legalmente uma operação financeira. Apesar de no início da utilização desse contrato no Brasil ter havido dúvidas sobre essa caracterização, elas foram superadas pela própria Lei n. 6.099, cujo art. 7º determina: "Todas as operações de arrendamento mercantil subordinam-se ao controle e fiscalização do Banco Central do Brasil, segundo normas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, a elas se aplicando, no que coube, as disposições da Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e legislação posterior relativa ao Sistema Financeiro Nacional".
Há autores, dentre os quais se destaca Waldírio Bulgarelli, que consideram o leasing um contrato falacioso, pois tratar-se-ia de uma figura apropriada para países que dispõem de capitais de sobra, nos quais os juros são de pouca monta. Já em países onde é crônica a falta de recursos financeiros, os custos do leasing acabariam sendo excessivos para o arrendatário, o qual, freqüentemente, termina em uma grave situação de endividamento. Essa crítica, ainda que não possa ser dirigida ao próprio conceito do contrato de leasing, tem, infelizmente, encontrado em inúmeros casos provas práticas de sua pertinência.


2. A modificação da política cambial brasileira
Após esse sucinto exame do leasing e suas principais características, cabe agora falar da alteração da política cambial do governo brasileiro, ocorrida em 1999, com o conseqüente aumento do dólar, e os efeitos disso nos contratos de leasing vinculados à variação cambial.
O Plano Real, implementado no decorrer de 1994, estancou a inflação inercial que por vários anos esteve presente em nosso país. Um dos elementos importantes para a manutenção da estabilidade monetária, no decorrer do Plano, foi a chamada âncora cambial. Ela consistia na sobrevalorização da moeda brasileira frente ao dólar, o que facilitava a importação de bens estrangeiros e dificultava a exportação de produtos brasileiros. O real sobrevalorizado desequilibrava a relação econômica entre os preços dos bens produzidos no Brasil e os dos produzidos no exterior, pois aqueles, com seus preços originariamente calculados em reais, tornavam-se caros no mercado externo, enquanto que estes, cotados em dólar, tornavam-se mais acessíveis dentro do mercado brasileiro, pois tinham seus valores artificialmente diminuídos pela taxa de câmbio.
Esse artifício, aliado à abertura do comércio exterior, fez com que os empresários brasileiros não pudessem aumentar o preços dos seus produtos, pois havia a opção de se importar similares estrangeiros, que entravam no mercado nacional com os preços minorados e em excelentes condições de competitividade. Esse modo de conduzir a política econômica, ainda que tenha efetivamente controlado a inflação, terminou por onerar as empresas nacionais; estas não podiam exportar, pelo fatos dos seus produtos terem um preço elevado para o mercado internacional, e ainda tinham que competir no mercado interno com produtos importados, cujos preços eram artificialmente minorados pela taxa cambial.
A sobrevalorização do real era um fator alimentador da especulação financeira. Vários investidores apostavam em uma depreciação da moeda brasileira, e agiam no mercado financeiro de acordo com essa expectativa: compravam grandes quantidades de dólares, o que forçava para cima o preço da moeda americana em relação ao real, e esperavam que o governo brasileiro não mais fosse capaz de garantir a sobrevalorização do real, o que levaria à alta do dólar e ao lucro de quem tivesse investido nessa moeda. Contra essa pressão, o governo agia lançando no mercado parte das suas reservas em moeda americana, o que aumentava a oferta desta. Assim, equilibrava-se o preço do dólar em relação ao real, mas havia a agitação do mercado e a diminuição das reservas cambiais do Banco Central.
Com isso, junto ao déficit crônico da balança comercial do Brasil, causado pela facilidade de entrada de produtos estrangeiros e dificuldade de exportação dos produtos nacionais, pode-se dizer que, de um ponto de vista econômico, a desvalorização do real era algo esperado, que poderia se dar a qualquer momento. Seria inviável, com o passar do tempo, sustentar a sobrevalorização da moeda por meio da venda de dólares, pois essa prática estava se tornando demasiado onerosa para o governo.
Em vista disso, no início de 1999, o governo brasileiro modificou a política econômica até então vigente, deixando livres as taxas de câmbio, que antes estavam sendo controladas principalmente por meio das reservas de dólares brasileiras. Apesar dos especialistas saberem que isso tinha grande probabilidade de acontecer, seria exagerado afirmar que, na época, essa era a expectativa da maior parte da população. A âncora cambial continuava firme, mesmo depois de vários ataques especulativos, ocorridos principalmente em momentos de turbulência do mercado financeiro internacional, como nas crises do Sudeste Asiático e da Rússia.
As declarações dos membros do governo eram unânimes no sentido de que o real continuaria sobrevalorizado. O Presidente do Banco Central e um dos principais mentores do Plano Real, Gustavo Franco, era um ferrenho partidário da política cambial então vigente, e afirmou em inúmeras ocasiões que ela não seria modificada; Francisco Lopes, que sucedeu Gustavo Franco na presidência do Banco Central, dissera, nas vésperas da alteração do regime cambial, que não havia possibilidades de adoção de um regime de flutuação do câmbio. O próprio Presidente da República, Fernando Henrique dissera, por então, que a moeda continuaria estável. Mais de um ano depois, ele explicaria que fora obrigado a desvalorizar o real porque a pressão econômica exigiu essa mudança: "não ia fazer (a desvalorização do real); fui obrigado a fazer pelas circunstâncias de mercado".
Nos dias em torno da mudança da política cambial, houve a queda de Gustavo Franco, substituído primeiramente por Francisco Lopes, que teve curta duração no cargo, sendo logo sucedido por Armínio Fraga. Essas mudanças em tão alto posto, a Presidência do Banco Central, mostram a grande instabilidade daqueles dias.
Como não podia deixar de ser, o mercado oscilou de maneira violenta. Depois de um momento de perplexidade dos investidores, o dólar começou a subir em relação ao real. A moeda americana, que antes estava cotada em aproximadamente R$ 1,15, chegou, em poucas semanas, a R$ 2,00. A retirada da âncora cambial fez com que preço do dólar se expandisse como uma mola que estivesse há muito comprimida, e que por isso acaba indo mais longe do que iria em uma situação de normalidade. Afinal, mesmo entre os que consideravam que a taxa de câmbio necessitava ser corrigida, entendia-se que a moeda brasileira deveria ser desvalorizada em aproximadamente trinta por cento (30%), que seria a inflação do real durante os anos em que ele ficou sobrevalorizado, chegando-se, então, a um valor realista em relação às moedas estrangeiras, notadamente o dólar. Efetivamente, não se esperava uma desvalorização de setenta por cento (70%), como de fato aconteceu.
Houve por então uma espécie de comoção nacional, com o receio da volta da inflação e da destruição do Plano Real. Não faltaram alarmes sobre uma queda acentuada do PIB e o aumento do desemprego, bem como sobre o advento do caos econômico. Entretanto, nada disso se concretizou, ao menos no grau previsto por alguns analistas econômicos, que se mostraram exagerados em seus prognósticos.
Essas bruscas e profundas mudanças econômicas se refletiram, como não poderia deixar de ser, na vida dos cidadãos. Um exemplo disso foi a alteração do valor das prestações de contratos de leasing que estavam vinculados à taxa de câmbio. De um momento por outro, elas sofreram uma majoração brusca e violenta, que as arrendatárias consideraram excessiva, enquanto que as arrendadoras sustentaram que nada ocorrera senão o seguimento do contrato exatamente nos termos em que ele fora celebrado. Daí o grande número de ações de revisão contratual que surgiram, propostas pelas arrendatárias, que pretendiam modificar o índice de reajuste de suas prestações, desvinculando-o do dólar.


3. Os contratos de leasing e a variação cambial
O interesse especial que a variação cambial despertou nos contratos de leasing explica-se pelo art. 6º da Lei n. 8.880, de 1994, que estabelece: "É nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior".
Antes dessa lei, a tendência majoritária da doutrina e da jurisprudência era a de considerar lícita a fixação do valor das prestações contratuais em moeda estrangeira, desde que o pagamento fosse feito em moeda nacional, pois não havia norma expressa em sentido contrário. Depois dela, contudo, apenas o leasing pôde ter o valor das suas parcelas reajustados de acordo com a variação cambial, quando os recursos da arrendadora tivessem sido captados no exterior. Em situações de litígio, cabe a esta provar que os recursos utilizados foram efetivamente obtidos, de maneira lícita e de acordo com as normas de Banco Central, no exterior.
Esta situação legal especial do arrendamento mercantil permitiu que as empresas financeiras, que contratavam como arrendadoras, oferecessem aos seus clientes, possíveis arrendatários, duas opções de contratos de leasing: ou com o valor das prestações fixado em moeda brasileira, ou com o valor fixado em moeda estrangeira, especialmente em dólar. As taxas de juros a serem pagas, caso a arrendatária escolhesse a primeira opção, eram mais altas, pois os custos da captação de recursos no Brasil eram mais elevados do que no exterior, além de haver menor risco de variações para a arrendatária.
Caso a parte preferisse contratar com os preços vinculados ao dólar, ela pagaria à arrendadora um juro menor, mas estaria sujeita ao risco da desvalorização do real. Como se vê, tratava-se de uma opção bastante mais atraente para alguém que não tivesse conhecimento da possibilidade de alteração da política cambial, ou que simplesmente confiasse no que o governo vinha dizendo sobre a manutenção do valor da moeda brasileira. Além disso, ainda que houvesse a correção do valor do real, essa não deveria ser de tal monta que comprometesse gravemente o equilíbrio contratual.
Entretanto, quando houve a liberação das taxas de câmbio, as arrendatárias, que tinham optado pela vinculação ao dólar, experimentaram um aumento significativo, da ordem de setenta por cento (70%), em suas prestações. Inúmeros contratantes consideraram que suas prestações tornaram-se excessivamente onerosas, e mesmo desproporcionais, em vista do risco que julgavam ter assumido. De fato, na imensa maioria dos casos, a vantagem que as arrendatárias tiveram, ao pagar juros menores que os contratantes que haviam optado pelas prestações de valores pré-fixados, tornou-se uma desagradável ironia, frente às quantias a serem pagas depois da liberação da taxa cambial.
Por outro lado, esse brusco aumento deu-se com o seguimento estrito do contrato, não ficando caracterizado, ao menos em princípio, qualquer dolo por parte dos contratantes favorecidos, nem abuso de poder econômico, ou coisa que o valha. As partes celebraram livremente o contrato, e cada uma delas podia perder ou ganhar, de acordo com o desenvolvimento da relação contratual; o que aconteceu foi simplesmente que uma perdeu bem mais do que esperava.
A partir dessa situação, advinda da desvalorização do real, cabe examinar que instrumental jurídico há no direito brasileiro que possibilite, ou impeça, a revisão dos contratos de leasing em questão.
3.1. A argumentação baseada na imprevisão
Um instituto tradicional do direito brasileiro vem imediatamente à mente, quando se trata de solucionar uma questão como a dos contratos de leasing vinculados à variação cambial: a teoria da imprevisão. Afinal, a primeira sentença brasileira que versou sobre ela é de 1930, sendo que em 1938 o Supremo Tribunal Federal já se pronunciara pela sua admissão no direito brasileiro em um acórdão memorável. Com o tempo, ela foi assimilada completamente pela doutrina e jurisprudência brasileiras, ainda que haja divergências a respeito da amplitude de sua aplicação.
Segundo essa consagrada teoria, os contratos poderiam ser revisados, se estivessem presentes os seguintes requisitos: serem os referidos contratos de execução diferida ou continuada; ter ocorrido um fato imprevisível, que tenha influído na relação contratual; as prestações terem se tornado excessivamente onerosas para uma das partes; não ter havido culpa da parte prejudicada pelo advento do fato imprevisível.
De acordo com os que são favoráveis à aplicação da teoria da imprevisão aos contratos de leasing afetados pela alta do dólar, a modificação da política de câmbial, promovida pela equipe econômica do governo, foi repentina, acarretando uma elevação do valor das moedas estrangeiras, que era, ao menos na amplitude em que se deu, imprevisível para o homem médio. Apesar de vários economistas e negociantes saberem que havia a possibilidade efetiva de desvalorização do real em relação ao dólar, o posicionamento do governo não indicava que isso fosse acontecer logo.
Por outro lado, há os que consideram ter sido previsível a alteração da política cambial, sendo que qualquer contratante deveria estar ciente dessa possibilidade e dos riscos que assumira, especialmente em um país de história econômica tão instável como o Brasil. Efetivamente, ao vincularem o contrato à variação cambial, as partes aceitaram o risco que essa opção representava. Poderiam sofrer prejuízos tantos as arrendadoras quanto as arrendatárias; coube a estas o ônus negativo do negócio, e devem arcar com ele, conforme o previamente acertado.
Em nossa opinião, não é correto afirmar que a maioria dos contratantes arrendatários devesse prever a possibilidade de uma violenta e repentina desvalorização da moeda brasileira quando celebraram suas avenças. Havia cinco anos que a situação do país se mantinha estável, sem que a taxa de câmbio mudasse significativamente, ou a moeda brasileira sofresse qualquer abalo mais sério, mesmo depois de períodos conturbados da economia mundial, como as crises dos tigres asiáticos e da Rússia. E ainda que se admitisse ser a desvalorização do real de maneira geral previsível, ela não o era nos níveis em que realmente se deu. Os economistas consideravam que o real estaria sobrevalorizado em aproximadamente trinta por cento (30%), e não em setenta por cento (70%), que foi a alta sofrida pelo dólar em poucos dias.
Os outros requisitos da teoria da imprevisão também estão, na imensa maioria das vezes, presentes nos contratos de leasing afetados pela variação cambial. Trata-se de um contrato de execução continuada; houve quase sempre a onerosidade excessiva para a arrendatária; esta não teve qualquer culpa no que lhe ocorreu. Portanto, a teoria da imprevisão parece-nos amplamente aplicável aos casos em questão.
Há que se ressaltar, contudo, que existem sérias divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a extensão do conceito imprevisão, elemento fundamental da teoria. De um lado, vários julgados encaram a imprevisão de modo abstrato, sem descer às peculiaridades da situação singular e objetiva, mas sustentando que não cabe falar de imprevisão quando se trata de "inflação" ou de "instabilidade econômica", idéias que sempre estiveram presentes na vida brasileira, e contra as quais as partes deveriam se resguardar melhor. Outros acórdãos, por sua vez, preferem examinar, no caso concreto, se aqueles contratantes deveriam ter previsto a ocorrência ou a intensidade do fato que desequilibrou o contrato. Nestes segundo grupo de acórdãos, há uma maior propensão a admitir a revisão contratual.
Na doutrina mais recente sobre a teoria da imprevisão, nota-se uma tendência de diminuir a importância da imprevisibilidade do fato causador do desequilíbrio, ao mesmo tempo em que se dá destaque ao prejuízo exagerado sofrido pela parte e à quebra da comutatividade do contrato. Nessa perspectiva, a própria onerosidade excessiva passa a ser considerada um indício de que o fato foi imprevisto pelas partes, pois nenhuma delas se obrigaria a algo que fosse um absurdo econômico ou jurídico.
Essa tendência moderna mostra, segundo nosso juízo, uma evolução na compreensão da teoria da imprevisão, a qual, em sua origem, visava proteger diretamente a vontade dos contratantes, e não a comutatividade dos contratos. Como a própria teoria dos contratos evoluiu, no sentido de valorizar a justiça material na relação entre os contratantes, com o conseqüente enfraquecimento do voluntarismo, era de esperar que a teoria da imprevisão se modificasse, conforme tem efetivamente ocorrido.
Contudo, há uma natural inércia para modificar institutos tradicionais, e isso se percebe em uma série de julgados, que aderem a uma concepção demasiado estrita do pacta sunt servanda, restringindo assim o conceito da imprevisão. Em certo sentido, o próprio nome "teoria da imprevisão" poderia sugerir que o contrato só deveria ser revisado se a vontade das partes foi afetada por um acontecimento que estas não previram, o que leva alguns estudiosos e julgadores a colocar o destaque na imprevisibilidade, e não no equilíbrio contratual. Parece-nos equivocada essa concepção, conforme explicitamos no parágrafo acima, mas ela está sem dúvida bem presente, o que dificulta, na prática, que certos magistrados admitam a revisão dos contratos de leasing vinculados à taxa de câmbio com fundamento na teoria da imprevisão.
3.2 - A teoria da base do negócio jurídico e o leasing
Outra fundamentação jurídica para os pedidos de revisão contratual é a teoria da base do negócio jurídico. Ela foi elaborada a partir da célebre teoria da pressuposição, do jurista alemão Windscheid, a qual, depois de um hiato de séculos, trouxe novamente ao mundo jurídico germânico a discussão sobre a alteração das circunstâncias negociais. A pressuposição seria uma condição não desenvolvida; o declarante não coloca em sua declaração uma condição expressa, mas quer que o efeito jurídico desejado só ocorra dentro de certo estado de coisas, isto é, se tiver acontecido a pressuposição.
Inúmeros juristas de peso, como Oertmann e, principalmente, Karl Larenz, procuraram solucionar o que seriam deficiências da doutrina de Windscheid, especialmente o que essa tinha de subjetivismo e insegurança. Oertmann foi o primeiro a tratar da base do negócio jurídico, conceituando-a como "a representação mental de uma das partes no momento da conclusão do negócio jurídico, conhecida em sua totalidade, e não rechaçada pela outra parte, ou a comum representação das diversas partes sobre a existência ou aparição de certas circunstâncias, nas que se baseia a vontade negocial".
Apesar de exigir que a outra parte também conhecesse e, ao menos tacitamente, admitisse a representação mental do outro contratante, a teoria da base do negócio de Oertmann foi considerada, do mesmo modo que sua antecessora, excessivamente dependente da vontade psicológica das partes, não conseguindo, com isso, construir uma diferenciação satisfatória entre a base do negócio e o simples motivo juridicamente irrelevante.
Por sua vez, Karl Larenz sustentou que a base do negócio podia ser utilizada em dois sentidos: a base subjetiva, ou seja, a representação mental existente nos contratantes ao concluir o negócio e que influiu grandemente na formação dos motivos; e a base objetiva, que seria o conjunto de circunstâncias que o contrato pressupõe existir ou persistir, e sem as quais não se alcançaria o fim do contrato, nem o propósito das partes contratantes, deixando assim o negócio de ter sentido, fim ou objeto.
Desenvolvendo sua concepção da base objetiva do negócio jurídico, Larenz afirma que ela desapareceria em duas hipóteses: nos casos em que a relação de equivalência entre as prestações se rompa de tal maneira, que já não seja mais possível falar razoavelmente de contraprestação; ou quando a finalidade objetiva do contrato, que ambas as partes aceitaram como própria, tenha se tornado inatingível, ainda que a prestação do devedor seja em si possível.
Essa bipartição da base do negócio formulada por Larenz foi alvo de críticas certeiras e dificilmente respondíveis. Tanto a base do negócio subjetiva quanto a objetiva requerem, na sua determinação, elementos objetivos e subjetivos. Efetivamente, na base objetiva, para examinar se o contrato não pode mais atingir sua finalidade, é preciso levar em conta elementos subjetivos referentes à vontade das partes; e na base subjetiva, é impossível, na prática, chegar à representação mental comum dos contratantes sem se utilizar de critérios objetivos.
De qualquer modo, a hipótese da desaparição da base do negócio em virtude do rompimento do equilíbrio entre as prestações traz em si uma característica diferente, que é o maior destaque dado aos elementos objetivos, ficando em uma posição mais secundária a vontade psicológica das partes. A partir disso, alguns autores recentes concluíram que a teoria da base do negócio jurídico tenderia a ser objetiva, enquanto que a teoria da imprevisão seria subjetiva.
Como conseqüência, sustentam que o Código de Defesa do Consumidor teria agasalhado a teoria da base do negócio jurídico, especialmente em seu art. 6º, que determina: "São direitos básicos do consumidor: V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas" (grifos nossos). Assim, como o CDC não se referiu à imprevisão e admitiu a revisão contratual, ele teria aderido à teoria da base do negócio jurídico.
Essa afirmação não nos parece totalmente exata, pois também na imprevisão há a valorização de aspectos objetivos, como o desequilíbrio entre as prestações, e a própria noção de imprevisibilidade vem tendo sua importância relativizada, como anteriormente visto. Por outro lado, a teoria da base do negócio jurídico não deixou de lado a imprevisão, pois ocorrendo um fato imprevisível, há uma maior possibilidade de desaparição da base sobre a qual as partes firmaram o negócio. Parece-nos, na realidade, que a teoria da imprevisão e a da base do negócio jurídico, conforme foram formuladas e vêm sendo aplicadas no Brasil, não têm diferenças tão relevantes entre si. O que vem ocorrendo é que, justamente para fugir da exigência de uma imprevisibilidade absoluta, que alguns tribunais entendem de maneira demasiado estrita, certos juristas vêm preferindo utilizar a expressão teoria da base do negócio, cujo título não traz de maneira evidente aquela exigência. Em nossa opinião, trata-se de dar nomes diferentes a realidades histórica e doutrinariamente bem semelhantes, que têm a mesma raiz - a cláusula rebus sic stantibus - e desenvolvimentos doutrinários similares.
Após todas as considerações expostas neste subtítulo, cabe concluir que os contratos de leasing afetados pela alteração da política cambial podem ser revisados por força da teoria da base do negócio jurídico. O contrato teve seu equilíbrio rompido, deixando de existir como uma regulação dotada de sentido, segundo a intenção de ambos contratantes. Afinal, nenhum deles havia assumido a possibilidade de sofrer um prejuízo da monta do que ocorreu com a alteração drástica da política cambial.


4- A revisão com base no Código de Defesa do Consumidor
Sendo admissível a revisão dos contratos de leasing afetados pela alteração do câmbio, tanto em face da teoria da imprevisão como da teoria da base do negócio jurídico, convém agora examinar se seria possível essa intervenção judicial na economia dos contratos com base no Código de Defesa do Consumidor.
Isso é de grande interesse prático, pois as teorias supracitadas, ainda que aceitas pela doutrina e jurisprudência brasileiras, não estão claramente previstas por nenhuma lei pátria, o que muitas vezes redunda na maior dificuldade de sua utilização pelos tribunais. Como o CDC admitiu expressamente a possibilidade de revisão de contratos firmados entre consumidores e fornecedores, utilizá-lo como fundamento do pedido de revisão dos contratos de arrendamento mercantil vinculados à variação cambial seria o caminho mais seguro, no atual estágio do direito brasileiro, para garantir às arrendatárias a possibilidade de terem satisfeitas suas pretensões.
4.1- A incidência do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de leasing
Para responder à questão da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de leasing, é preciso examinar se há, entre arrendadora e arrendatária, uma relação de consumo, nos termos previstos pelo CDC.
Uma primeira corrente considera que o contrato de arrendamento mercantil é, primordialmente, uma espécie peculiar de locação, pois nele há a cessão de um bem mediante o pagamento de um aluguel. O fato de o arrendatário ter a opção de, ao final do contrato, adquirir o bem pelo pagamento do valor residual não eliminaria o caracter de locação predominante do leasing. Assim, ele não deveria ser tratado como um contrato de financiamento ou de mútuo. A partir dessa perspectiva, o arrendatário não poderia ser considerado um consumidor, no sentido de destinatário final de um produto ou serviço, pois ele não exauriria a utilidade do bem fornecido.
Já outra posição considera que o leasing deve ser considerado um contrato de consumo, pois nele está presente, de modo nuclear, a faculdade (direito subjetivo) do arrendatário de comprar à arrendadora o bem arrendado mediante o exercício da opção de compra e venda. Além disso, o arrendamento mercantil tem características de financiamento e, como tal, é um serviço que pode ser fornecido no mercado de consumo, como expressamente prevê o CDC.
Parece-nos inequívoco que o leasing, desde que a arrendatária seja a destinatária final do bem objeto da prestação contratual, configura-se como um contrato de consumo. Ele não é uma espécie de locação, mas um contrato complexo, no qual entram elementos de várias figuras contratuais, que se unem formando um novo contrato, diverso dos que lhe serviram de base, e que traz características conjuntas, por exemplo, da locação, da promessa de venda e do financiamento, sendo que apenas entidades financeiras podem ser arrendadoras.
Além disso, a arrendatária não paga somente o valor do empréstimo do bem, como deveria ocorrer caso se tratasse de uma locação, mas sim uma prestação cujo preço engloba outros valores, que chegam com freqüência a ser bastante onerosos. Ora, está se propondo, ao tratar o arrendamento mercantil como uma espécie de locação, que o arrendatário terá que pagar mais do que um simples locador, sem que tenha a proteção que legalmente lhe caberia como sujeito de uma relação tipicamente de consumo.
Finalmente, o leasing é considerado por lei uma operação de natureza financeira, e por isso cai sob o campo de incidência do CDC, conforme expressamente prevê o art. 3º, § 2º, deste diploma legal. Há quem argumente que, por ser uma lei ordinária, o Código de Defesa do Consumidor não poderia incidir sobre operações financeiras, já que a própria Constituição Federal, em seu art. 192, estabelece que o sistema financeiro será regulado em lei complementar. Essa argumentação peca em não considerar que o referido Código não regulamenta o sistema financeiro, nem tem a pretensão de fazê-lo; ele apenas protege os consumidores que se servem de empresas financeiras, o que em nada altera a moldura do sistema financeiro brasileiro, o qual será confeccionado pela lei complementar prevista na Constituição.
Assim estabelecida nossa posição favorável à aplicabilidade do CDC aos contratos de leasing nos quais o arrendatário é o destinatário final do serviço, convém recordar, ao menos de passagem, um aspecto que vem sendo pouco tratado. Mesmo sendo o CDC diretamente aplicável, em princípio, apenas aos contratos de consumo, os dispositivos dessa lei devem influenciar todo o ordenamento jurídico em temas de direito contratual, como sempre acontece com a promulgação de uma nova lei de grande alcance. A interpretação de quaisquer contratos, mesmo que não sejam de consumo, deve levar em conta o tratamento que o CDC dispensa às relações que estão sob a sua égide. Afinal, há uma influência mútua entre todas as normas do ordenamento, e o CDC sem dúvida tem um papel de destaque em todo o direito privado brasileiro.
Cabe lembrar em favor dessa opinião o que o grande Túlio Ascarelli escrevia a respeito das influências de um direito especial no direito comum: "Pode-se notar, embora não se trate de um fenômeno constante ou uniforme, que o direito privado apresenta-se, com freqüência, distinto e separado em dois sistemas diversos; de um lado o sistema do direito tradicional, de outro lado um sistema eqüitativo, mais sensível às novas exigências que se vêm apresentando e que, portanto, elabora e sistematiza, em contraposição ao direito tradicional, novos princípios que, embora inicialmente de exceção, passam, no decorrer da evolução histórica, a constituir direito comum". Tal vem acontecendo com o direito do consumidor em relação a todo o direito contratual, ainda que neste já estivessem os gérmens das inovações legais trazidas pelo CDC.
Portanto, não deveria haver dúvida sobre a aplicabilidade das normas especiais do Direito do Consumidor aos casos dos contratos de leasing vinculados à variação da taxa cambial. O contrário seria violentar a realidade dos fatos, que demonstram claramente tratar-se de um contrato que traz em seu bojo elementos de várias figuras, mas que não se confunde com nenhuma delas. Sendo a arrendatária a destinatária final do contrato, e sendo o objeto deste um serviço, não há outra saída lógica do que concluir que se trata de um contrato de consumo. Esta tem sido a posição da doutrina mais recente.
Conseqüentemente, deve ser aplicado aos contratos de arrendamento mercantil o disposto no art. 6º, V, do CDC, modificando-se a cláusula contratual que previa a indexação do valor das prestações pela variação da taxa cambial.
Em nossa opinião, o Código de Defesa do Consumidor adota uma postura mais avançada do que as teorias da imprevisão e da base do negócio jurídico, ao menos na acepção clássica destas, chegando de maneira direta exatamente para onde elas estão pouco a pouco evoluindo, isto é, a uma maior independência em relação aos aspectos subjetivos do contrato e à vontade puramente psicológica das partes, em favor de uma concepção objetiva do vínculo contratual, que valoriza o equilíbrio entre as prestações e a justiça material na gênese e desenvolvimento do contrato. Por sinal, essa justiça material dos contratos é considerada, por juristas da importância de Franz Wieacker, a nota dominante da teoria contratual no direito romano-germânico após a II Guerra Mundial.
Paradoxalmente, parece-nos que a posição adotada pelo Código de Defesa do Consumidor é a mais satisfatória e moderna, exatamente por estar próxima da solução mais clássica ao problema da alteração das circunstâncias contratuais, que é a chamada cláusula rebus sic stantibus, cuja primeira formulação completa é devida aos glosadores medievais. Estes afirmavam que todas as promessas, negócios e pactos deveriam ser entendidos em função da situação de fato do momento em que foram feitos. Seria uma espécie de implied condition, uma condição prévia à própria manifestação de vontade, que serviria para garantir a justiça da relação que se estabeleceria entre as partes. Não havia referência à imprevisão, ou à manutenção de um sentido que as partes embutiram no contrato, mas se tratava de uma proteção contra as modificações fáticas que pudessem atingir e desregular o vínculo existente entre as partes. Em síntese, é em muito semelhante ao que estabelece o art. 6º, inciso V, do CDC.
4.2- O índice para a alteração das prestações
Importante questão é a do índice a ser utilizado no lugar da variação cambial, a fim de se determinar o valor das prestações devidas pela arrendatária à arrendadora. Uma possibilidade seria a aplicação do próprio INPC, Índice Nacional de Preços ao Consumidor, que serviria para corrigir em reais as prestações acertadas em dólar antes da desvalorização cambial, levando em conta simplesmente a inflação sofrida pela moeda brasileira.
Entretanto, essa não parece ser uma solução equânime. Afinal, o arrendatário podia, ao celebrar o contrato, optar entre: a) prestações pré-fixadas em valores mais altos, pois a arrendadora teria captado os recursos financeiros no mercado nacional, onde as taxas de juros são elevadas; b) prestações sujeitas à variação cambial, nas quais as taxas de juros eram menores, pois a arrendatária teria captado os recursos necessários para comprar o bem objeto do contrato no exterior. Nessa segunda opção, contudo, havia o risco de desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar, risco esse que a parte deveria assumir, se quisesse se submeter a taxas de juro menores que as das prestações pré-fixadas.
Assim, ao celebrar o contrato optando pela vinculação das prestações ao valor da moeda estrangeira, a parte teve vantagens em relação àqueles que preferiram as prestações pré-fixadas, ao menos enquanto o câmbio permaneceu estável. Como foi maior seu risco, ela teve maior vantagem em um primeiro momento; daí que seria injusto que ela, quando ficou em uma situação de desvantagem, tivesse o valor das suas prestações simplesmente corrigido pelo INPC. Antes da mudança da política cambial, ela teria tido mais lucro que os que escolheram as prestações pré-fixadas; depois que a taxa de câmbio foi liberada pela autoridade monetária brasileira, ela ficaria exatamente na mesma situação que os contratantes que optaram por um cálculo do valor das prestações menos arriscado.
Tendo assumido um risco, a arrendatária deve arcar com as conseqüências disso. Contudo, o risco assumido não o foi na proporção em que variou a moeda; tanto que as vantagens auferidas pelo pagamento de menores encargos financeiros, antes da desvalorização do real, foram claramente inferiores aos prejuízos que vieram depois. Apesar de haver ínsito ao contrato um risco, este estava colocado dentro de certos parâmetros, os quais foram em muito ultrapassados com a modificação das circunstâncias, o que ocasionou um grave desequilíbrio contratual.
Portanto, deve haver uma repartição dos prejuízos entre a arrendadora e as arrendatárias. A primeira deverá receber uma prestação de valor superior àquela que fosse simplesmente corrigida pelo INPC, mas inferior a uma que simplesmente seguisse a variação cambial, que foi absolutamente exagerada e redundou em prestações excessivamente onerosas para os consumidores. A melhor solução seria uma divisão eqüitativa dos riscos e dos prejuízos.
Na prática, o juiz deve chegar a um índice que satisfaça a arrendatária em sua pretensão de não responder por um risco que não assumiu em toda sua magnitude, e que também represente uma contraprestação justa para a arrendadora, que acertou taxas de juros menores em virtude dos valores das prestações da arrendatária estarem indexados à variação cambial.
Nem sempre se tratará de simplesmente repartir os prejuízos de forma aritmética, através de uma prestação que tivesse o valor médio entre uma corrigida pelo INPC e outra que seguisse a vinculação estrita com o dólar. Algumas vezes, será necessário levar em conta as taxas de juros dispostas no contrato: quanto mais altos elas forem, menor deverá ser a correção feita em favor da arrendadora, já que esta vinha obtendo uma retribuição considerável pelo leasing. Também a capacidade das partes de saberem o risco a que se sujeitavam ao contratarem com prestações vinculadas à taxa cambial deve ser considerado; se a arrendatária tinha menor possibilidade de conhecer o grau de risco que assumia, ou se ela não foi devidamente informada disso pela arrendadora, menor deverá ser o reajuste da prestação. O fato do bem objeto do arrendamento mercantil ter se valorizado por força da variação cambial deve levar a um maior reajuste das prestações, pois o arrendatário está se utilizando, e poderá adquirir ao final do contrato, de um bem que se tornou economicamente mais valioso. Enfim, é preciso estudar cada caso com atenção, buscando-se sempre que um contratante não tenha um lucro exagerado às expensas do outro, e seja assim mantido o equilíbrio contratual.
Contra essa solução, há uma série de argumentos, seja a favor da arrendatária, seja a favor da arrendadora. Há autores que consideram, por exemplo, que sendo objeto do leasing um bem nacional, que não foi valorizado pela alteração do câmbio, cabe à arrendadora arcar com toda a diferença originada pela desvalorização da moeda brasileira. A justificativa disto está em que a instituição financeira teria boas condições de saber da precariedade da situação do real frente ao dólar, e podia, assim, prevenir-se contra as turbulências que se deram no início de 1999; se assim não o fez, cabe a ela sofrer os efeitos de sua desídia.
Essa argumentação não nos parece correta, pois o próprio fato de ter indexado as prestações do contrato à variação cambial serviria como uma forma de proteção para a arrendadora. Além disso, não cabe, na discussão sobre as prestações de um contrato de leasing, inquirir se a instituição financeira tomou ou não providências, alheias ao contrato, para se proteger do advento da crise cambial; isso é assunto do interesse dela, não importando em nada para a arrendatária. Se a instituição financeira protegeu-se ou não, isso não influencia diretamente no valor das prestações a serem pagas pela arrendatária, pois se tratam de outros negócios, com sujeitos e finalidades diferentes.
Já a favor da arrendadora, há os que propõem a correção estrita das prestações de acordo com a variação cambial, caso o bem objeto do leasing tiver sido valorizado pela alta do dólar, sob pena de enriquecimento indevido do arrendatário em detrimento da arrendadora, já que o preço do bem aumentou, ao menos na cotação em moeda nacional.
Julgamos que não se deve afirmar a priori que, pelo fato do bem ter se valorizado, há que se manter o reajuste nos moldes exatos do acordado. Afinal, quando a arrendadora comprou com moeda estrangeira o bem para arrendá-lo, o valor do dólar estava menor em relação ao real, o que facilitava economicamente a importação do bem, e talvez exatamente por isso a arrendatária se interessou em celebrar o contrato. Logo, não parece justo que apenas esta tenha que pagar pela valorização do bem, quando a arrendadora teve também vantagens, em virtude da política cambial, ao adquiri-lo.
Outro argumento a favor da observância do reajuste vinculado estritamente ao dólar é o de que a arrendadora captou recursos no exterior, assumindo dívidas em moedas estrangeiras frente terceiros. O fato da arrendatária pagar o valor vinculado ao dólar não representaria, assim, lucro algum para a arrendadora, mas esta simplesmente teria recursos para pagar seus débitos no exterior. A resposta a esse argumento é que não seria correto os riscos correrem por conta exclusiva da parte mais frágil na relação, a arrendatária. Afinal, também a arrendadora teve benefícios ao captar recursos no exterior, com os quais pôde oferecer propostas aparentemente mais vantajosas aos seus clientes, aumentando assim o número de contratos firmados.


Conclusão
A teoria da imprevisão, a da base do negócio jurídico e a aplicação pura e simples do art. 6º, inciso V, do CDC, são, qualquer uma delas, base suficiente para a revisão dos contratos de leasing afetados pela alteração da política cambial do governo, ocorrida em janeiro de 1999. Os magistrados devem simplesmente encontrar um índice de correção das prestações que seja justo, mantendo-se o equilíbrio do contrato e levando em conta as várias circunstâncias concretas que estão presentes em cada uma dessas relações jurídicas.
Todos os argumentos contrários à revisão parecem-nos, data venia, viciados por uma concepção demasiado estrita do pacta sunt servanda, sem atentar que o direito contratual tem evoluído em um sentido diverso, favorável à manutenção da justiça material entre as prestações das partes. Isso é ainda mais importante no Direito do Consumidor, cujas normas devem incidir nos contratos de leasing afetados pela alteração da política cambial.



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Fábio Konder COMPARATO, Contrato de "leasing", Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, 250: 8, abr./jun. 1975. O autor não se refere ao valor residual a ser pago com o exercício da opção de compra, mas consideramos que também ele deve ser levado em conta para se calcular os valores das prestações do contrato.
Cfr. Waldírio BULGARELLI, Contratos mercantis, p. 373; Fran MARTINS, Contratos e obrigações comerciais, p. 535; Fábio Konder COMPARATO, Contrato de "leasing", p. 7; Arnoldo WALD, "Leasing": o que é, como funciona, p. 34.
Fábio Konder COMPARATO, O irredentismo da "nova contabilidade" e as operações de leasing, Revista de Direito Mercantil, São Paulo, Editora Malheiros, 68: 56-7, 1987. Waldírio BULGARELLI, Contratos mercantis, p. 376, sustenta que o leasing deve ser considerado um contrato misto, não complexo, porque traria em sua composição elementos de contratos típicos moldados em uma unidade. Parece-nos mais correta a posição de Comparato, pois todos os contratos de feitura mais recente trazem em seu bojo elementos que são característicos de contratos mais tradicionais, e nem por isso deixam de ser autônomos e típicos, gozando de regulamentação própria e não se confundindo com outras figuras contratuais.
Fábio Konder COMPARATO, Contrato de "leasing", p. 10.
Cabe aqui lembrar que os direitos potestativos, na moderna dogmática jurídica, são aqueles nos quais seus titulares, ao exercê-los, atingem a esfera jurídica do sujeito passivo da relação jurídica, o qual está em uma situação de sujeição frente ao titular do direito. São exemplos de exercícios de direitos potestativos: a denúncia na locação de imóveis, a extinção do mandato por parte do mandante, a constituição de servidão em favor de prédio encravado, etc.
Fábio Konder COMPARATO, O irredentismo da "nova contabilidade" e as operações de leasing, p. 57.
Vejam-se as argumentações de Ary Oswaldo MATTOS FILHO, Problemas nas operações de "leasing", Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, 250: 81-4, abr./jun. 1975.
Waldírio BULGARELLI, Contratos mercantis, São Paulo, Ed. Atlas, 1995, 8. ed., p. 370-1,
Sobre as taxas de câmbio, explicadas de maneira sintética e precisa, Paul SAMUELSON e William D. NORDHAUS, Economia, Lisboa/São Paulo, MacGraw-Hill, 12. ed., 1991, p. 1077-101.
Márcio Mello CASADO, O leasing e a variação cambial, Revista dos Tribunais, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 763: 86, maio 1999
Entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, quinta-feira, 8 de junho de 2000, p. A4.
Cfr. Renato Ventura RIBEIRO, Crise cambial e revisão judicial dos contratos de leasing indexados em moeda estrangeira: breve contribuição ao debate, Revista dos Tribunais, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 766: 41, ago. 1999.
A sentença é do Juiz Nélson Hungria, e se encontra na Revista de Direito Civil, Commercial e Criminal, Rio de Janeiro, Livraria Jacyntho, 100 (1): 177-9, abr. 1931.
RT 116/224; o voto de Eduardo Espínola é admirável pela amplitude e erudição.
Interessantes considerações sobre a vulnerabilidade do homem médio estão em Renato Ventura RIBEIRO, Crise cambial e revisão judicial dos contratos de leasing indexados em moeda estrangeira: breve contribuição ao debate, p. 38-40.
Vide supra, p. 3.
O 2º Tribunal de Alçada Cível de São Paulo decidiu nesse sentido, em 4 de maio de 1999, a respeito de um pedido de tutela antecipatória em um contrato de arrendamento mercantil; vide RT 767/282.
Cfr. RT 669/176, RT 700/81 e RT 664/127.
Cfr. RT 620/204 e RT 630/181.
Nesse sentido, Rogério Ferraz DONNINI, A revisão dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 65, sustenta que, se um fato ocasionou um desequilíbrio contratual grave, para que caiba a revisão, basta que esse fato não tenha sido efetivamente previsto, não sendo de exigir que se tratasse de um acontecimento imprevisível e extraordinário.
Também afirmando a dependência da teoria da imprevisão à concepção voluntarista de contrato, Luís Renato Ferreira da SILVA, Do Código Civil ao Código do Consumidor, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 121.
Uma excelente exposição em língua portuguesa sobre a teoria da base do negócio jurídica, com uma crítica que se afigura bastante acertada, está em Antônio Manuel da Rocha e Menezes CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, Coimbra, Livraria Almedina, 1997, p. 1032-50.
Cfr. Karl LARENZ, Base del negocio juridico y cumplimiento de los contratos, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1956, p. 27-9.
Sobre a teoria da pressuposição, Bernardo WINDSCHEID, Diritto delle Pandette, Torino, Unione Tipografico-Editrice, 1925, v. 1, p. 394-6.
Cfr. Clóvis V. do Couto e SILVA, A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro, in: Vera Maria Jacob de FRADERA (org.), O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1997, p. 92-3.
Paul OERTMANN, Geschäftsgrundlage, p. 37, apud Karl LARENZ, Base del negocio juridico y cumplimiento de los contratos, p. 23.
Karl LARENZ, Base del negocio juridico y cumplimiento de los contratos, p. 23-7.
Karl LARENZ, Base del negocio juridico y cumplimiento de los contratos, p. 37-8.
Karl LARENZ, Base del negocio juridico y cumplimiento de los contratos, p. 225.
Cfr. Antônio Manuel da Rocha e Menezes CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, p. 1048.
Luís Renato Ferreira da SILVA, Do Código Civil ao Código do Consumidor, p. 101-2; Márcio Mello CASADO, O leasing e a variação cambial, p. 88-94.
Cfr. supra, p. 6.
Cfr. RT 726/141; o acórdão é do STF.
Cfr. RT 767/378, acórdão proferido pelo TJRS.
Cfr. supra, p. 2.
Diz o CDC, art. 3º, § 2º: "Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista" (grifo nosso).
Cfr. supra, nota 2, p. 1.
Túlio ASCARELLI, Panorama do direito comercial, São Paulo, Saraiva, 1947, p. 13.
Cfr. Renato Ventura RIBEIRO, Crise cambial e revisão judicial dos contratos de leasing indexados em moeda estrangeira: breve contribuição ao debate, p. 50-1 e 60-1; Márcio Mello CASADO, O leasing e a variação cambial, p. 78-84.
Cfr. Franz WIEACKER, História do direito privado moderno, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 599.
No mesmo sentido, com base nos princípios da boa-fé e da segurança das relações jurídicas, o breve e substancioso artigo de Cláudio Antônio Soares LEVADA, Leasing e variação cambial: a necessidade de manutenção do equilíbrio contratual, Revista dos Tribunais, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 763:73-6, maio 1999.
Cfr. Renato Ventura RIBEIRO, Crise cambial e revisão judicial dos contratos de leasing indexados em moeda estrangeira: breve contribuição ao debate, p. 49.
Renato Ventura RIBEIRO, Crise cambial e revisão judicial dos contratos de leasing indexados em moeda estrangeira: breve contribuição ao debate, p. 49.

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