Os desafios das empresas do conhecimento incluem diálogo e intercâmbio de saberes

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Os desafios das empresas do conhecimento incluem diálogo e intercâmbio de saberes

Antônio Heberlê1

Instituições públicas do conhecimento, talvez mais do que todas as outras, têm um desafio característico deste século: o de usar a própria criatividade para enfrentar o mundo globalizado e em rede, onde o protagonismo social é uma das suas principais marcas. Estamos vivendo a experiência de um mundo distribuído, amplamente compartilhado, de circulação aberta, que envolve todas as dimensões e todas as práticas, formatando uma nova estrutura social cujo funcionamento depende de tecnologias combinadas com informação e comunicação (CASTELLS, 1999). O aprendizado para viver neste novo tempo revela mais fortemente a necessidade de as instituições dialogarem e se comprometerem ainda mais, indo além de apenas “revelarem” com eficiência o que fazem ou desenvolvem. Tais pressupostos levam a reflexões profundas para o ambiente de empresas do conhecimento, na medida em que tornar-se-ia inevitável uma nova denominação ao macroprocesso tradicional de “Transferência de Tecnologia” ou mesmo de “Comunicação Científica”. Os novos requerimentos da sociedade induzem pensar rapidamente em conceitos como “interação” e “relacionamento”, bem como formas e capacidades de “contato”, ou ainda de como estabelecer modos de “intercambiar” ou mesmo “trocar” conhecimentos. E um desafio ainda maior, vencer o egoísmo institucional e ampliar o olhar para além do operacional e do tecnológico para assumir como suas as ações de impulsionar e promover o ”desenvolvimento”, de forma direta ou indireta, associando-se a projetos de parceiros e a políticas públicas voltadas para este fim. Tal mudança é um tema que merece atenção e não se restringe à nomenclatura ou denominação, caso contrário se resolveria com uma simples mudança de nomes. Trata-se de assumir novos processos e adquirir comportamentos para além dos corredores institucionais, no momento em que também as ações de comunicação corporativa passam por transformações, em função dos requerimentos mais imediatos e complexos da sociedade. Nesse novo contexto a forma de atuar incorpora valores adicionais, de atuar “com” e não exatamente “para”. A comunicação recupera sentidos originais de sua contribuição social (comunicação social), do “diálogo”, da “escuta social”. Nesse sentido, poderíamos pensar em Diretorias de Intercâmbio e Desenvolvimento ou Departamentos de Intercâmbio e Desenvolvimento, nas instituições do conhecimento. O primeiro argumento nesta direção se evidencia no sistema de relações pessoais e institucionais. O macroprocesso denominado institucionalmente como “Transferência de Tecnologia” tem sido amplamente contestado em diversos fóruns onde técnicos das instituições do conhecimento são 1

Antônio Luiz Oliveira Heberlê é jornalista, professor universitário e pesquisador da Embrapa.

constrangidos a explicar o que fazem para além de “transferir”, “informar” ou “estender” técnicas. Esta realidade tem sido ainda mais evidente quando há o contato necessário entre instituições de pesquisa, de ensino e de extensão. Para muitas instituições estes vocábulos já perderam o sentido. Para a rede de Extensão Rural (Rede Ater), por exemplo há muito tempo falar de “transferência” além de não recomendado como prática, é usado como exemplo de um passado importante, mas que estava preocupado apenas com a difusão das ideias, o que já não faz parte das práticas de interação valorizadas nas diferentes instâncias da sociedade, que desejam cada vez mais participar ativamente. E hoje têm à sua disposição dispositivos para tanto. Mas o mais forte argumento está relacionado à coerência da sustentação teórica da proposição aqui apresentada, já que a mudança de denominação de um macroprocesso numa instituição do conhecimento não deve ser um fato corriqueiro ou fruto de análises intempestivas. Caso esta análise seja fraca ou sem fundamentos teóricos, não se justifica tal empreendimento, pelo menos enquanto mais fortes argumentos não aparecerem. Esperamos que não seja este o caso e vamos visitar, de pronto, as teorias. Ao se observar a literatura na área das ciências sociais e naturais e também nos estudos linguísticos, verificamos que há coerência em se avançar para novas denominações, já que todo conceito refere algo prático. Em verdade todo conceito é uma coisa viva, que traz consequências práticas para as pessoas e suas interações, como nos adverte o semiótico Charles S. Peirce(1999). Não é lógico, portanto, que um conceito ou uma afirmação seja desprovida de uma relação direta de sentido àquilo a que se refere. O pragmatismo, nesta parte, alia-se ao pensamento de kant, que descreve em sua "Critica a razão pura" que toda a experiência depende do que se possa apreender dela, enquanto conceito. Em contrapartida, todo conceito que não está centrado na experiência também é vazio. Essa é a forma de se chegar ao entendimento sobre as coisas, já que se refere a um modo de "conhecimento mediante conceitos, não intuitivo, mas discursivo" (KANT, 1987, p. 93). Talvez pela falta de clareza dos conceitos ou pela negligência da força prática que possuem, os vocábulos sejam tão facilmente utilizados, ao tempo que desvestidos de suas referências práticas.

A INTERAÇÃO, O DIÁLOGO E A RE-AÇÃO Podemos avançar para o conceito de interação, que significa ação entre, referindo à ação com (e não para alguém). Relativo a fazer, operar alguma coisa e isso é mais do que apenas tratar da compreensão oportunizada pela linguagem. O autor que nos esclarece sobre o conceito é o britânico Jonh Langschaw Austin (1990) que trata da teoria dos atos de linguagem ou de fala, mostrando como a linguagem tem uma função performativa e pragmática. Neste sentido é que as afirmações (verdadeiras ou falsas) não apenas dizem algo, mas fazem, porque movimentam no sentido da ação. A ação que os sujeitos sociais realizam em seus atos de linguagem geralmente acontecem entre as pessoas. Não é, portanto, solitária esta ação, pois quem emite endereça a alguém, porque ao emitir pensa e imagina na sua

audiência. A inter-ação é, portanto, uma espécie de vai e vem de atos de fala que naturalmente estão destinados a afetar os interlocutores em suas práticas. É importante que se avalie o trânsito de tais conteúdos, pois sabemos que sempre acontecem num determinado lugar e num contexto e assim é que podemos relacionar essa mecânica às interações pessoais e institucionais. Além disso, há uma natural interdependência entre os atores do processo em função dos compromissos recíprocos. Por exemplo, quando uma agência do conhecimento elabora de forma autóctone as suas mensagens, com a intenção de mostrar suas inovações, nem sempre está resolvida ou bem negociada (simbolicamente) a equação de consonância entre quem emite e quem recebe a informação e simplesmente pode acontecer que nada seja efetivamente transmitido. Isto acontece porque há necessidade de ajustes sobre os sentidos pretendidos pelos emissores e se trata de uma relação de confiança, para que sejam captados, percebidos como importantes e elevados ao nível dos sentidos dos receptores, onde podem ser validados e possibilitar uma determinada ação. De todo modo e por mais excelente que seja a comunicação, em função do contexto improvável da recepção, a mensagem captada não será exatamente aquela pretendida. Isso é natural, porque se trata de uma codificação arbitrária de signos e eles são incontroláveis em recepção. Por isso é que se diz que na esfera da recepção tudo pode acontecer, inclusive nada. Nesta perspectiva, um discurso técnico pode soar absurdo para uma dada comunidade, uma vez que ela não comungue dos códigos ou referências que são apresentados pelos emissores. Isso acontece se a preocupação é apenas de levar a informação ou fazer “transferência”. Pode-se diminuir essa entropia se houver conhecimento do quadro interacional em ação, das regras que conferem sentido ao que é dito, tornando a ligação mais estreita entre os atores no circuito interacional. Quando alguém fala das suas experiências para um público, sem perguntar o que esse público quer saber, é natural que os indivíduos não sintonizem ou estejam interessados nas explicações. Os receptores podem até aplaudir enfaticamente a nobreza do discurso, mas em termos interacionais não se pode esperar comportamentos novos ou adoção. A questão da adoção de tecnologias, aliás, faz parte dos esforços das instituições de pesquisa e de extensão rural a partir da década de 1960 no Brasil, então sintonizados com a difusão de tecnologias. O modelo veio aportado pelo norte-americano Everett Rogers, com base nas experiências na década anterior nos Estados Unidos. Essa matriz teve uma grande receptividade na pesquisa e na extensão rural (ROGERS, SHOEMAKER, 1971). Como legado desta fase, os órgãos responsáveis pelos esforços de adoção chamavam-se "difusão de tecnologia", e assim permaneceu, até que passou a se impor, na década de 1990, a noção de "transferência de tecnologia", sem que os modos de operar sofressem qualquer mudança de fundo. Ou seja, geralmente, faz-se a mesma coisa com outro nome. O paradigma de Rogers baseava-se na teoria de que, para alcançarem o desenvolvimento econômico e social, agricultores de áreas tradicionais ou subdesenvolvidas deveriam modificar seu comportamento adotando novas

tecnologias cientificamente válidas, pois somente assim conseguiriam resolver seus problemas. Para a sua operacionalização, entretanto, o modelo precisou de ajustes, primeiro agregando a necessidade de “pacotes tecnológicos“ e depois valorizando a “inovação induzida pelo mercado”. Estas e outras adaptações, entretanto, não conseguiram interpretar demandas mais complexas para responder aos problemas de desenvolvimento social e bemestar das comunidades rurais. Tais requerimentos, hoje se sabe, vão além das preocupações com tecnologias, da eficiência da extensão do conhecimento científico, ou mesmo da capacidade de adoção de inovações pelos sujeitos sociais. Além disso, o esforço para implantar as novas técnicas vinha acompanhado de forte componente comunicacional, baseado na persuasão.

NOVAS DEMANDAS EXIGEM DIALOGIA E TROCA DE SABERES Opõe-se a este modelo indutivo de desenvolvimento tipologias dialógicas focadas na troca de saberes entre os interagentes. O vocábulo "intercâmbio" é mais regularmente usado no sentido de "conviver" e "visitar", mas induz trocas, câmbios “entre”. Os conceitos de interação e de intercâmbio são preciosos para descrever propósitos da esfera das relações de vínculos sociais. A definição básica emerge originalmente no livro de Stephen W. Littlejohn, em Fundamentos Teóricos da Comunicação Humana (1982), mostrando que a comunicação de qualquer ideia é um processo básico de "interação", de relacionamento entre as pessoas. A ação é que define a situação e por isso o vocábulo "intercambiar" reflete signicamente a visão dialógica e dialética da interação social, de acordo com o que foi pensado por Paulo Freire ao mostrar, em 1969, que o trabalho dos agrônomos extensionistas estava mais sintonizado com as ações de educação e de comunicação e não com extensão, como o conceito é curiosamente até hoje- empregado (FREIRE, 1980). Observa-se, portanto, que a reflexão sobre a adequação linguística se estende igualmente para as ações de extensão. Intercambiar e trocar conhecimentos é o que acontece numa relação entre sujeitos em processo de aprendizagem. Mesmo os doutos em ciências, quando visitam uma típica propriedade rural de qualquer porte ou tamanho, se realmente interessados nas doutrinas do saber, encontram espaço para aprender muito, às vezes mais do que imaginam, desde que estejam dispostos a ver o complexo sistema com olhares curiosos e com respeito pelas lógicas produtivas, sociais e culturais. Outra questão central para passar da noção e do paradigma da transferência para a de interação e de intercâmbio são ditadas pelas novas demandas para o setor das ciências, mais complexas do que foram até aqui. Tecnologias isoladamente, seja método, prática ou um novo material genético, são importantes, mas, apenas, mais um dos componentes do processo mais amplo do ambiente onde elas se inserem. Desenvolver tecnologias é um meio pelo qual uma instituição do conhecimento usa para cumprir o seu papel de agência, que identifica problemas limitantes para o desenvolvimento e com base neles seleciona e orienta ativos tecnológicos com foco direcionado para as precisas e úteis soluções. Não se trata, portanto, de um simples sistema de

entregas, mas de compromissos, que podem ser avaliados pelos impactos que produzem. O compromisso com o “desenvolvimento” infere que o vocábulo pode assumir um sentido mais amplo do que aquele inscrito no processo de geração de conhecimentos, configurado na pesquisa e no desenvolvimento (P&D). Trata-se, portanto, de outro e mais amplo “D”, que nos aponta para processos de sustentabilidade, entre as quais das próprias ações de P&D. Neste sentido, o maior desafio convocado pelo axioma da sustentabilidade é, possivelmente, o de se pensar a condição humana nas dimensões global, nacional, regional e local e os processos onde elas se inserem nas dimensões sociais, políticas, econômicas, ambientais e culturais. Albert Einstein, um dos maiores cientistas do nosso tempo nos alertou que a "preocupação com o homem e seu destino deve sempre ser o interesse principal de todo esforço técnico. Nunca se esqueçam disso entre seus diagramas e equações", disse ele, como uma boa referência para as empresas do conhecimento. Finalmente, a proposição apresentada aqui aponta elementos, ainda que iniciais, para que as empresas públicas do conhecimento (Institutos, Empresas Públicas, Agências, Universidades, etc.) reelaborem suas práticas com a sociedade e que isso se reflita na ultrapassagem de conceitos tradicionais até aqui utilizados em relação ao processo de “transferência de tecnologia”. Também sinaliza que o “D” do P&D refere-se procedimentos relacionado ao escopo da investigação cientifica e que é necessário pensar num outro “D”, o do desenvolvimento para fora deste sistema. Por analogia e coerência, infere também que o “C” da comunicação corporativa também é pouco produtivo operacionalmente para este fim, solicitado um “C” mais comprometido com o desenvolvimento, ou seja, uma comunicação para o desenvolvimento.

Bibliografia AUSTIN, Jonh Langschaw. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes médicas. Traduzido por Danilo Marcos de Souza Filho, 1990. 136p. CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3, São Paulo:

Paz e terra, 1999, p. 411-439. FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. KANT, I. Crítica da razão pura. Os pensadores Vol. I. São Paulo: Nova Cultural, 1987. LITTLEJOHN, Stephen W. Fundamentos teóricos da comunicação humana. Rio de Janeiro:Zahar, 1982. LUHMANN, Niklas. A improbabilidade da comunicação. Lisboa:Edições Veja, 2006. PEIRCE, C. S. (1999). Semiótica, trad. José Teixeira Coelho Neto. 3aed. São Paulo: Perspectiva. Tradução de: The Collected Paper sof Charles Sanders Peirce. Rogers, E. M., & Shoemaker, F. F. (1971). Communication of innovations: A cross-cultural approach (2nd ed. of Diffusion of innovations). New York: Free Press.

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