Os deveres dos administradores das sociedades nos direitos angolano e português: estudo de direito comparado - 2014

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OS DEVERES DOS ADMINISTRADORES DAS SOCIEDADES NOS DIREITOS ANGOLANO E PORTUGUÊS: ESTUDO DE DIREITO COMPARADO1

Sofia Vale2

Sumário: 1- Introdução; 2- Análise das ordens jurídicas angolana e portuguesa; 3- Comparação dos ordenamentos jurídicos analisados; 4 – Conclusões.

1 - INTRODUÇÃO O principal dever dos administradores (expressão que, para efeitos deste trabalho, engloba tanto os gerentes das sociedades por quotas como os administradores das sociedades anónimas) é administrar. O dever de prestar que caracteriza a relação obrigacional específica oriunda do contrato de administração3 é exactamente o dever de administrar (que compreende os deveres de gerir e de representar a sociedade), que se apresenta como um conceito-síntese4 e que é, depois, decomposto em diversos deveres concretos. E, por consequência, todos os poderes conferidos ao administrador são funcionais, ie, são poderes-deveres5 que se destinam a assegurar o cumprimento da obrigação de administrar.

1 Contribuição para a obra colectiva Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem à Professora Maria do Carmo Medina, Edição da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, Luanda, 2014. 2

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola.

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Os actos de nomeação e aceitação configuram um verdadeiro contrato de administração, como referem RAUL VENTURA e LUIS BRITO CORREIA, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e de Gerentes de Sociedades por Quotas”, in Separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.ºs 192, 193, 194 e 195, Tipografia Anuário Comercial de Portugal, Lisboa, 1970, p. 92. 4

MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores”, in Jornadas Sobre a Reforma do Código das Sociedades Comerciais em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, coordenadas por Menezes Cordeiro e Paulo Câmara, Almedina, Coimbra, 2007, p. 66.

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ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, “A Business Judgement Rule”, in I Congresso de Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2011, p. 368, e FRADA, “A business…”, op. cit., p. 67.

Como referimos, este dever de administrar é concretizado em variados deveres concretos, que podem resultar do contrato de administração (deveres contratuais), de deliberação dos sócios, dos estatutos da sociedade ou da própria lei. A propósito dos deveres legais, distinguem-se deveres legais específicos (aqueles em que o legislador impõe ao administrador um dado comportamento) e deveres legais gerais (que perpassam toda a actuação do administrador que, enquanto tal, não é passível de ser integralmente tipificada na lei)6. E é exactamente destes deveres legais gerais de que nos iremos ocupar no presente trabalho. É nossa intenção analisar como as ordens jurídicas portuguesa e angolana tratam os deveres legais gerais dos administradores das sociedades de responsabilidade limitada, procedendo, a final, a uma síntese comparativa7 do trabalho de comparação efectuado. A ordem jurídica angolana foi escolhida por ser a ordem jurídica da autora, como não poderia deixar de ser. A ordem jurídica portuguesa foi escolhida pelo facto de, por um lado, ser a ordem jurídica mãe da angolana (no advento da independência de Angola, esta herdou todo o direito português então em vigor8) e, por outro lado, em virtude de ser aquela a que o legislador angolano mais naturalmente9 vai buscar inspiração para as reformas que visa empreender.

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JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 12 e ss. 7

REINIER KRAAKMAN, PAUL DAVIES, HENRY HANSMANN, GERARD HERTING, KLAUS HOPT, HIDEKI KANDA e EDWARD ROCK, The Anatomy of Corporate Law – A Comparative and Functional Approach, Oxford University Press, Oxford, 2004, p. 21 e ss, e DAVID KERHAW, Company Law in Context – Text and Materials, Oxford University Press, Oxford, 2009, p. 167 e ss, e KLAUS HOPT, “Comparative Company Law”, in The Oxford Handbook of Comparative Law, editado por Mathias Reimann e Reinhard Zimmermann, Oxford University Press, Oxford, 2006, p. 1166. 8

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução ao Direito Comparado, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 41, refere, a propósito dos sistemas jurídicos romano-germânicos, que “a colonização serviu como meio de transporte dos direitos europeus para as comunidades colonizadas nas Américas e em África”. Este fenómeno fez com que surgissem “sistemas jurídicos híbridos, em que a marca romanogermânica se continua a fazer sentir com diversas graduações”(p. 42). É exactamente isto que se vê em Angola onde a influência do direito societário português sempre se fez sentir com grande intensidade, como adiante se verá. 9 Esta normal tendência do legislador angolano em olhar para a ordem jurídica portuguesa não se prende apenas com razões históricas, mas também com as ligações políticas e económicas que, cada vez mais, aproximam os dois países. Dando ênfase às influências de carácter politico e económico, veja-se MARIANA PARGENDLER, “The rise and decline of legal families”, in The American Journal of Comparative Law, vol. LX, n.º 4, The American Society of Comparative Law, Michigan, 2012, p. 1043 e ss. Recusando a existência de uma família juridical lusófona, veja-se DÁRIO MOURA VICENTE, Direito Comparado, vol. I – Introdução e Parte Geral, Almedina, Coimbra, 2011, p. 87 e ss. Sobre as funções que são reconhecidas

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O estudo comparativo a que nos propomos procura verificar em que medida o direito angolano actualmente em vigor em matéria de deveres legais gerais dos administradores, e que resulta da Lei das Sociedades Comerciais10 (doravante simplesmente designada por “LSC”), publicada em 2004, se inspira (ou não) no direito português então vigente (plasmado no Código das Sociedades Comerciais11, doravante simplesmente designado por “CSC”). E, tendo em conta que o direito português foi, quanto a esta matéria, objecto de uma reforma em 200612, apurar em que medida as soluções jurídicas portuguesas se afastaram das angolanas para, em caso afirmativo, avaliar qual a medida do respectivo afastamento. Ao escolher dois ordenamentos jurídicos onde se fala português temos naturalmente ultrapassado o problema da tradução de conceitos jurídicos13. Sem prejuízo, antes de partirmos para qualquer estudo de micro-comparação é necessário aferir se os deveres legais gerais dos administradores, tal como se apresentam em ambos os ordenamentos jurídicos, são aptos para efectuarmos um juízo de comparabilidade14. Para tanto, devemos lançar mão do critério de aproximação funcional15, que determina serem comparáveis os institutos que em ambas as ordens jurídicas dão resposta ao mesmo problema social, político ou económico (ie, respondem às mesmas necessidades). Este critério carece de ser completado com um critério de aproximação estrutural, que implica que se encontre alguma afinidade entre os institutos em função do seu enquadramento jurídico, ie, os ao direito comparado veja-se GABRIEL GARCIA CANTERO, Estudios de Derecho Comparado, El Justicia de Aragon, Zaragoza, 2010, p. 47. 10

Lei n.º 1/04, de 13 de Fevereiro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 13. Para uma análise das soluções jurídicas consagradas na LSC, que resultou de uma reforma mais ampla do direito comercial em Angola, veja-se TERESINHA LOPES, “Revisão da Legislação Comercial”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, n.º 2, Edição da FDUAN, Luanda, 2002, p. 175 e ss., e, da mesma autora, “Revisão da Legislação Comercial (Continuação) – Sociedades Comerciais”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, n.º 3, Edição da FDUAN, Luanda, 2003, p. 115 e ss. 11

Decreto-Lei n.º 262/2006, de 02 de Setembro, publicado no Diário da República, I Série, n.º 201.

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Através do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 63.

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FLÁVIA GUIMARÃES PESSOA, Manual de Metodologia do Trabalho Científico: Como Fazer uma Pesquisa de Direito Comparado, Evocati, Aracaju, 2009, p. 38, que aponta algumas precauções prévias, entre as quais a questão da língua, que devem ser tidas em conta quando se efectua uma pesquisa comparativa. 14

A. J. VAN DER HELM e V.M. MEYER, Comparer en Droit, Essai Méthodologique, Cerdic Publications, Estrasburgo, 1991, p. 69 e ss. 15

KONRAD ZWEIGERT e HEIN KÖTZ, Introduction to Comparative Law, Clarendon Press, Oxford, 1993, p. 36, e FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução…, op. cit., p. 23, que acompanha o critério avançado por Zweigert.

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institutos devem ser chamados a resolver questões jurídicas semelhantes através de instrumentos também eles semelhantes16.Aplicados estes critérios às ordens jurídicas selecionadas, temos que em ambas os deveres dos administradores servem para resolver os conflitos de interesses que podem surgir entre estes e os sócios investidores (conflitos de agência) e que, quando violados, dão origem a responsabilidade civil dos administradores (e também penal, matéria de que não trataremos neste trabalho). O método que aqui utilizamos conduziu-nos à elaboração de uma grelha comparativa17, que é formada por um quadro que contém dois eixos. No eixo sintagmático18, apresentamos os elementos a considerar na comparação dos institutos selecionados, ie, as oito perguntas formuladas: (i) em que consiste o interesse social?, (ii) qual o âmbito do dever de diligência?, (iii) qual o âmbito do dever de lealdade?, (iv) qual o âmbito do dever de cuidado?, (v) qual a possibilidade que os sócios têm de condicionar as decisões dos administradores, atentos os modelos de governo tipificados na lei?, (vi) qual o grau de condicionamento das decisões de gestão através de acordos parassociais?, (vii) como opera a business judgement rule? e (viii) os deveres que impendem sobre os administradores de direito são extensivos aos administradores de facto? As perguntas que elaborámos tiveram em conta os diversos problemas a que ambos os direitos procuram dar resposta quando regulam os deveres legais gerais dos administradores. No eixo paradigmático19, apresentamos as duas ordens jurídicas seleccionadas: a angolana e a portuguesa. A final, procederemos à apreciação global das soluções conferidas pelos direitos angolano e português, procurando compreender a razão de ser das semelhanças e diferenças apresentadas20, e identificando pontos de aproximação e de afastamento entre as duas ordens jurídicas. 2. ANÁLISE DAS ORDENS JURÍDICAS ANGOLANA E PORTUGUESA 16

FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução…, op. cit., p. 24.

17

Sobre a construção da grelha comparativa, veja-se VICENTE, Direito…, op. cit., p. 47.

18

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, O Ensino do Direito Comparado, policopiado, Lisboa, 1996, p. 138.

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FERREIRA DE ALMEIDA, O Ensino…, op. cit., 138.

20

Sobre a elaboração da síntese comparativa, veja-se VICENTE, Direito…, op. cit., p. 48.

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Neste ponto procuramos não apenas descrever o que o legislador consagrou na lei de cada um dos países, mas aferir como, em cada um deles, vive o direito21. Note-se que este trabalho fica mais dificultado no que toca à ordem jurídica angolana, atenta à escassa bibliografia nacional e, até à data, a inexistente jurisprudência sobre esta matéria. Esta é a única razão pela qual se faz sentir uma significativa desproporção na bibliografia citada. 2.1. ORDEM JURÍDICA ANGOLANA 2.1.1. Em que consiste o interesse social? O art. 69º da LSC, disposição legal que consagra os deveres legais gerais dos administradores, estabelece que “os administradores de uma sociedade devem actuar no interesse desta […], e sem prejuízo dos interesses dos sócios e dos trabalhadores”. No ordenamento jurídico angolano a questão da definição do interesse social tem merecido atenção da pouca doutrina que se debruça sobre direito societário. A sociedade comercial, como pessoa jurídica actuante no comércio jurídico, parece apresentar-se dotada de um interesse próprio: o interesse social. A discussão sobre o que deve entender-se por interesse social, que se verifica há já algum tempo além-fronteiras, e opõe as comummente designadas teses institucionalistas às teses contratualistas, é revisitada por GILBERTO LUTHER22. Para as primeiras (as teses institucionalistas), o interesse social corresponde ao conjunto dos interesses dos sócios e de outros sujeitos, como os trabalhadores, os credores e a colectividade em geral, entendido de forma conciliadora e unitária. Para as segundas (as teses contratualistas), o interesse social reconduz-se ao interesse comum a todos sócios que, em caso de divergência entre eles, seria o interesse da maioria dos sócios23 (por respeito às regras gerais de tomada de decisão aplicáveis 21

FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução…, op. cit., p. 26 e 27, retomando Constantinesco, refere as regras que deverão guiar o jurista na fase analítica: (i) utilizar as fontes originárias, (ii) proceder à análise de acordo com a complexidade de fontes aplicáveis, (iii) usar o método próprio da respectiva ordem jurídica e (iv) procurar conhecer o “direito vivo”. 22 GILBERTO LUTHER, “A Questão da Preferência Societária – Um Breve Olhar Sobre um Problema Novo no Direito das Sociedades em Angola”, in RAD – Revista Angolana de Direito, Casa das Ideias, Luanda, 2009, p. 124 e ss, por referência ao anteprojecto da LSC, que não comportou, neste caso, alterações ao que veio a ser a versão definitiva da lei. 23

PRATA, Helena, A Dialéctica entre Maiorias e Minorias na Lei das Sociedades Comerciais, Tese de Mestrado, policopiado, Luanda, 2009, p. 39.

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à assembleia geral, órgão social por excelência onde se exprime a vontade dos sócios). A este propósito, GILBERTO LUTHER24 refere que o legislador angolano, apesar de fazer diversas referências expressas ao interesse social, não o define claramente nem parece ter optado por qualquer das teorias acima mencionadas. A autora também já se pronunciou sobre o que deve ser entendido por interesse social à luz do direito angolano25. Para tanto, analisou outras disposições da LSC onde o legislador angolano condiciona a actuação dos órgãos sociais à observância do interesse social: em matéria de sociedades em relação de grupo, o art. 472º, n.º 2, al. d) da LSC (a contrario), refere que a sociedade dominante deve actuar com respeito pelos interesses da sociedade dominada, sem causar prejuízos a esta, aos sócios minoritários e aos trabalhadores; no que respeita ao direito de preferência dos accionistas na aquisição de novas acções, o art. 458º, n.º 2 da LSC refere que este pode ser limitado ou suprimido desde que o interesse social o justifique; prevê-se ainda que os limites à transmissão ou oneração (em caso de penhor e usufruto) de acções nominativas devem ser conformes ao interesse social (art. 350º, n.º 2, al. c) da LSC); no caso de acções nominativas cuja transmissão esteja condicionada ao consentimento da sociedade, a respectiva recusa poderá ocorrer com fundamento em “interesse relevante para a sociedade” (art. 351º, n.º 1 da LSC). Tendo por base os exemplos acabados de indicar, a autora conclui, na senda de GILBERTO LUTHER, que o legislador angolano não propendeu para qualquer das teorias apontadas (institucionalistas ou contratualistas), optando antes por impor que a consideração dos interesses comuns dos sócios fosse matizada com a consideração do interesse de terceiros, em particular dos trabalhadores. E continua a autora, concluindo: “pensamos que o nosso ordenamento jurídico concedeu aos sócios um conjunto de mecanismos que lhes permitem, em primeira linha, definir o interesse social. A prossecução efectiva desse interesse radica, obviamente, nos administradores da sociedade, a quem cabe tomar as decisões diárias que visam a respectiva concretização.”26. Assim, na lei angolana o interesse social aparece reconduzido ao interesse da sociedade, pelo que o administrador serve o interesse de um ente jurídico. Mas, sendo o ente jurídico em si

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LUTHER, “A Questão…”, op. cit., p. 125.

25

SOFIA VALE, “O Incumprimento de Acordos Parassociais”, policopiado, Luanda, 2012, p. 30 e 31.

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VALE, “O Incumprimento…”, op. cit., p. 32.

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despersonalizado, o interesse social terá de ser definido primeiramente pelos sócios, cabendo ao administrador assegurar que as suas decisões vão ao encontro a este interesse. Dito de outro modo, a doutrina angolana tende a considerar que o interesse do ente jurídico sociedade se reconduz ao interesse dos sócios, ie, cabe ao administrador servir os sócios. Não cada sócio individualmente considerado, mas o interesse dos sócios, tal como resulta da sua articulação em colectivo, via de regra, em sede de assembleia geral. E que dizer quanto à referência expressa do legislador ao interesse dos trabalhadores? Apesar do legislador colocar aparentemente no mesmo plano o interesse dos sócios e o dos trabalhadores, a doutrina considera que o interesse dos trabalhadores não deve ter um pendor tão acentuado na definição do interesse da sociedade. Fora de questão, estaria pois, que o interesse dos trabalhadores se pudesse sobrepor ao interesse dos sócios na definição do interesse social. Como a autora já teve oportunidade de referir, os interesses de terceiros não se podem sobrepor aos interesses dos sócios na definição do interesse social: “Também não nos parece que terceiros (trabalhadores, credores, o Estado) tenham o direito de definir o que seja o interesse social. Pode, é certo, dar-se o caso de um terceiro ter um direito concreto que, numa determinada situação específica, deva ser ponderado (pelos sócios e/ou pela administração) na definição do interesse social” 27. O interesse dos trabalhadores deve, então, ser atendido pelos administradores para matizar o interesse social, tal como definido pelos sócios, tendo presente algo de que em Angola se vem falando muito: a responsabilidade social das sociedades. Em suma, “quer este interesse seja definido em sede social ou parassocial, o certo é que o programa social aparece funcionalizado ao programa dos sócios, o que contribui para realçar o carácter instrumental das sociedades”28. 2.1.2. Qual o âmbito do dever de diligência? O art. 69º da LSC tem exactamente por epígrafe “dever de diligência”. No corpo do preceito, o legislador impõe ao administrador que actue “com a diligência de um gestor criterioso”.

27

VALE, “O Incumprimento…”, op. cit., p. 33.

28

VALE, “O Incumprimento…”, op. cit., p. 33.

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O dever de diligência apresenta-se, no direito angolano, como uma norma de conduta que deve guiar toda a actuação do administrador. Ela serve de referência para a determinação do grau de esforço que se impõe ao administrador para a execução do seu poder-dever de administrar. A diligência reporta-se a um modelo abstracto e objectivo, que aparece consubstanciado no conceito de “gestor criterioso”. Como se referiu, a diligência aparece no direito societário angolano como um dever abstracto, como uma espécie de norma de conduta incompleta. Dito de outro modo, a aferição concreta de que o administrador foi ou não diligente na sua actuação importa, em primeiro lugar, que se identifique de que conduta concreta se trata para que, em segundo lugar, se determine qual o grau de diligência exigido para aquela conduta. Só assim procedendo se poderá conferir um conteúdo útil e determinado ao dever de diligência. Refira-se ainda que o legislador angolano ligou o dever de diligência à consideração de outros interesses para além dos interesses da sociedade enquanto ente jurídico, ie, aos interesses dos sócios e dos trabalhadores. O que aqui se pretendeu foi promover a concretização deste dever de conduta incompleto, direcionando o grau de esforço (a diligência) do administrador para a realização dos interesses dos sócios e dos trabalhadores. Sendo o modelo de diligência abstracto, a concretização de que certo comportamento concreto do administrador obedeceu ou não a este modelo fica, necessariamente, a cargo dos tribunais. Torna-se impossível dar exemplos desta concretização, uma vez que se desconhecem no direito angolano decisões judiciais que tenham versado sobre o tema dos deveres dos administradores. A diligência apresenta-se também como um modelo objectivo do comportamento do administrador. A este, porque chamado a administrar bens alheios, é-lhe imposta uma bitola de diligência mais exigente, quando comparada com aquela que seria aplicável ao comum comerciante. A autora e TERESINHA LOPES já se pronunciaram sobre o critério de diligência presente no direito angolano, tendo afirmado: “da nossa parte, preferimos dizer que o critério usado na LSC é o critério do bonus pater familiae dos administradores das sociedades e que, por essa razão, se exige ao administrador que actue como um administrador médio, medianamente diligente e 8

sagaz, usando das competências técnicas que a sua profissão lhe impõe e com respeito pelas normas aplicáveis. É por referência a esta bitola que se deverá avaliar, por exemplo, se existe justa causa para a destituição ou se há lugar a responsabilidade civil do administrador”29. Sendo a diligência um dever legal geral que impende sobre o administrador, uma norma norteadora da sua conduta, a sua violação gera um comportamento ilícito. Uma vez que a falta de diligência se reconduz, ao menos, à mera culpa, ela também servirá para ajudar a balizar a culpa em abstracto. A falta de diligência pode, por isso, ser fundamento autónomo de responsabilidade. Em suma, no ordenamento jurídico angolano, o dever de diligência aparece como o dever legal central da conduta do administrador. 2.1.3.Qual o âmbito do dever de lealdade? O art. 69º da LSC não se refere expressamente a um dever geral de lealdade. Não obstante, o entendimento doutrinal angolano vai no sentido da existência de um dever geral de lealdade que se impõe ao administrador, que aparece como um sub-dever do dever geral de diligência consagrado no art. 69º da LSC. Um administrador diligente é, pois, aquele que actua com lealdade. O administrador que actua com lealdade deve actuar “exclusivamente tendo em conta o interesse social, afastando possíveis conflitos de interesses”30. A justificação de tal entendimento radica no facto de os administradores serem chamados a gerir bens alheios, o que pressupõe uma lealdade específica à sociedade que gerem e, por consequência, aos sócios que os elegeram. Nessa medida, os administradores devem abster-se de condutas que resultem em seu próprio benefício, ao invés de em benefício da sociedade. O dever de lealdade apresenta, assim, uma ligação inequívoca ao interesse social, que a doutrina nacional reconduz ao interesse comum aos sócios31.

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SOFIA VALE e TERESINHA LOPES, “A Responsabilidade Civil dos Administradores de Facto”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, n.º 10, edição da FDUAN, Luanda, p. 63.

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VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 60.

31

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 60.

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Este dever geral de lealdade assenta numa ideia de justiça concreta, tendo depois concretização em deveres específicos que se impõe aos administradores, entre eles nos referentes à obrigação de não concorrer com a sociedade, obrigação de não utilizar informação interna ou negócios da sociedade em proveito próprio e a obrigação de transparência (mantendo informados os demais administradores, sócios e o público de factos relevantes de natureza não confidencial), bem como as regras relativas à remuneração dos administradores. Do ponto de vista dogmático, a justificação do dever geral de lealdade que impende sobre os administradores reconduz-se à regra geral da boa-fé. 2.1.4. Qual o âmbito do dever de cuidado? O legislador angolano não fez qualquer menção expressa ao dever de cuidado no art. 69º da LSC. Não obstante, a doutrina angolana tem interpretado o art. 69º da LSC no sentido de conter um dever de cuidado que se reconduz à diligência com que deve actuar um gestor criterioso. O dever de diligência, visto em sentido amplo, compreenderia também um dever de cuidado em sentido estrito. Deste modo, o dever de cuidado “consiste no esforço, conhecimento e competências específicas que um administrador deve empregar no exercício das suas funções, tendo em conta as circunstâncias concretas em que actua (tipo, objecto e dimensão da sociedade, funções executivas ou não que desempenha, área do conhecimento que o administrador domina, etc.)”

32

.O dever de cuidado assim configurado reconduz-se à obrigação de os

administradores cumprirem com diligência as obrigações que sobre si impendem. A aferição de tal comportamento deverá ser feita em concreto, tendo em conta as circunstâncias reais respeitantes à sociedade e às funções do administrador. O dever geral de cuidado é depois concretizado em deveres específicos para os quais a doutrina já foi chamando a atenção: “este dever de cuidado, que é aferido em função da situação concreta, impõe ainda ao administrador que tenha um efectivo conhecimento dos assuntos sociais, devendo, por um lado, acompanhar e supervisionar a actividade da sociedade 32

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 60.

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(duty to monitor) e, por outro lado, obter a informação que seja necessária á sua tomada de decisão (process due care) 33”. A aferição do cumprimento do dever de cuidado por parte de um administrador carece de ser vista, como se disse, em concreto, pelo que a jurisprudência angolana poderá ter aqui um papel essencial. Uma vez que se desconhece qualquer decisão judicial angolana sobre este tema, vai a doutrina tentando apontar critérios concretos para a sua determinação: “para se aferir se um determinado administrador cumpriu o dever de cuidado que sobre si impendia em relação a uma decisão que tomou, há que aquilatar, por exemplo, da complexidade da decisão, do grau de risco da decisão e da urgência com que esta deveria ser tomada”. 34 Reconhece-se também que o dever de administrar compreende em si um elevado grau de risco, pelo que o cuidado com que é chamado a actuar deve ser sempre aferido em função da bitola do bonus pater familiae dos administradores. Nessa medida, o administrador não poderá ser responsabilizado por más decisões de gestão (não é avaliado aqui o mérito da decisão concreta), salvo se violar o dever de cuidado (e de diligência) que sobre si impende. 2.1.5. Qual a possibilidade que os sócios têm de condicionar as decisões dos administradores, atentos os modelos de governo tipificados na lei? A estruturação da administração e da fiscalização das sociedades anónimas em Angola reconduz-se ao modelo clássico ou latino de governo das sociedades35 existindo a par do conselho de administração (ou administrador único) um conselho fiscal (ou fiscal único), sem prejuízo das competências últimas que sempre residem na assembleia geral.

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VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 60.

34

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 60.

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SOFIA VALE, “A Governação das Sociedades Anónimas em Angola”, in A Governação das Sociedades Anónimas nos Países Lusófonos, no prelo, p. 8 (da versão policopiada). Vejam-se as razões pelas quais a Comissão da Reforma do Direito Comercial optou por consagrar um modelo de governo único para as sociedades anónimas em LOPES, “Revisão da Legislação Comercial (Continuação)…”, op. cit., p. 123. Note-se que, para as empresas públicas e com domínio público, o legislador passou a consagrar, a par do modelo clássico, a possibilidade destas adoptarem uma estrutura de governo que compreende um conselho de coordenação e orientação estratégica e uma comissão executiva, nos termos do artigo 48º da Lei de Bases do Sector Empresarial Público (Lei n.º 11/13, de 3 de Setembro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 169).

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Esta trilogia presente no direito societário angolano erige a assembleia geral como órgão deliberativo, o conselho de administração como órgão executivo e o conselho fiscal como órgão de supervisão, conferindo-lhes competências distintas e separadas. À assembleia geral das sociedades anónimas são conferidas competências residuais, cabendolhe “deliberar sobre todas as questões que interessem à sociedade, desde que não compreendidas nas atribuições dos restantes órgãos” (art. 393º, n.º 2 da LSC). O conselho de administração, por seu lado, alia o poder exclusivo de representar a sociedade (art. 425º, n.º 1, al. a) da LSC) ao poder de a gerir com autonomia, só se devendo subordinar às deliberações da assembleia geral quando o contrato de sociedade o impuser (art. 425º, n.º 1, al. b) da LSC), podendo deliberar sobre qualquer assunto relativo à administração da sociedade (art. 425º, n.º 2 da LSC). Da articulação da competência da assembleia geral com a do conselho de administração percebe-se que os sócios apenas podem definir as linhas mestras que pautarão a condução da gestão da sociedade, não podendo tomar decisões concretas de gestão36. Os órgãos sociais acima referidos são de existência obrigatória, correspondendo à aplicação do princípio da tipicidade à orgânica das sociedades anónimas. Para além dos órgãos de existência obrigatória, a LSC consagra a possibilidade das sociedades anónimas instituírem órgãos de natureza facultativa, designadamente a comissão executiva e administradores delegados (art. 426º da LSC). Em ambos os casos, estamos perante situações de delegação de competências por parte do conselho de administração (art. 426º, n.º 1 da LSC). A doutrina já se pronunciou sobre se este modelo de governação configurado pela LSC (com os órgãos obrigatórios e facultativos acima referidos) limita a autonomia estatutária, não permitindo aos sócios das sociedades anónimas angolanas configurar no contrato de sociedade um outro modelo de governação que se afigure mais adequado à sociedade em questão, atenta a sua dimensão e distribuição do seu capital social. A este propósito escreveu a autora que “deve também ter-se presente que o limite negativo à alteração do modelo de governo da LSC é apenas e exclusivamente o referido princípio da tipicidade. Dito de outro modo, se a mudança do modelo de governo operada em sede estatutária não conduzir à

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PRATA, A Dialéctica…, op. cit., p. 18, que refere que “os administradores deixam de ser mandatários dos sócios e passam a constituir um poder próprio dentro da empresa”.

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mudança do tipo social sociedade anónima, então, ela deve ser admissível porquanto se respeitam as normas imperativas da LSC”37. E defendeu, por isso, a autora que será admissível que “uma sociedade anónima institua estatutariamente outros órgãos, como um conselho superior ou consultivo, uma comissão de remunerações, uma comissão de gestão de riscos ou uma comissão de responsabilidade social. Em qualquer dos casos, estes órgãos sempre terão funções meramente consultivas, devendo as suas deliberações ser sancionadas pelos órgãos tipificados na LSC para que se tornem vinculativas perante a sociedade e terceiros, sempre que tais decisões caiam no âmbito da respectiva competência”38. Parece, pois, que no ordenamento jurídico angolano, os sócios das sociedades anónimas não podem tomar decisões de gestão concretas, condicionando, nessa medida, a actuação dos administradores, ainda que os estatutos da respectiva sociedade consagrem órgãos sociais atípicos que resultam de modelos de governo conhecidos noutros ordenamentos jurídicos. No que toca às sociedades por quotas, o art. 272º da LSC consagra uma panóplia de competências imperativas e supletivas da assembleia geral. Algumas delas constituem verdadeiras decisões de gestão, como a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de direitos sobre imóveis ou sobre estabelecimento comercial (art. 272º, n.º 2, al. c) e d) da LSC), a subscrição, alienação ou oneração de participações sociais noutras sociedades (art. 272º, n.º 2, al. e) da LSC) ou a contracção de empréstimos bancários (art. 272º, n.º 2, al. f) da LSC). Para além disso, o contrato de sociedade pode atribuir outras competências à assembleia geral (art. 272º, n.º 1, 1ª parte da LSC) e, deste modo, podem os sócios avocar a si diversas competências de gestão, condicionando em larga medida as decisões dos administradores. No mesmo sentido parece apontar o art. 282º da LSC quando refere que os gerentes “devem sujeitar a sua actuação […] às deliberações dos sócios”, não prescrevendo qualquer reserva de competência dos gerentes. 2.1.6. Qual o grau de condicionamento das decisões de gestão através de acordos parassociais?

37

VALE, “A Governação…”, op. cit., p. 9 (versão policopiada)

38

VALE, “A Governação…”, op. cit., p. 10 (versão policopiada).

13

O art. 19º, n.º 2 da LSC estatui que os acordos parassociais “podem respeitar ao exercício do direito de voto, mas não ao exercício de funções de administração ou de fiscalização”. Os acordos parassociais, de utilização quotidiana nas sociedades por quotas e anónimas angolanas, têm por objectivo fundamental assegurar aos sócios um elevado grau de certeza nas decisões que os órgãos sociais são chamados a tomar39. Tendo os sócios projectado um determinado negócio para ser prosseguido pela sociedade, ao qual aportaram os meios financeiros iniciais, eles procuram assegurar que o referido negócio segue as directrizes que definiram, com respeito pelo equilíbrio de poderes entre eles acordado, arredando ao máximo as incertezas e imprevisões que poderão ocorrer no processo de tomada de decisão no seio dos órgãos sociais (quer a nível da assembleia geral quer a nível da administração). Os sócios incluem, assim, nos acordos parassociais cláusulas que têm por objectivo condicionar, em maior ou menor medida, as decisões da administração. A este propósito, já se escreveu: “os sócios procuram garantir que os administradores da sociedade têm conhecimento e se comprometem a implementar uma determinada estratégia de negócio por eles gizada. De facto, os sócios designam (e destituem, com ou sem justa causa) os administradores da sociedade, correntemente vinculando-os através de um contrato de administração, do qual constam as directrizes que deverão nortear a sua tomada de decisão no seio do órgão de administração da sociedade; e isto, diga-se, sem prejuízo da consideração do interesse social (art. 69º LSC) que sempre deverá estar presente nas decisões tomadas pela administração.”40 Parece, pois, que o primeiro limite ao condicionamento das decisões da administração em sede parassocial reside necessariamente no interesse social. Sendo este o guia norteador de qualquer decisão de administração, faz sentido que os administradores estejam vinculados a promover sempre a sua concreta realização. Sem prejuízo, e como resulta do ponto 1 supra, no ordenamento jurídico angolano, o interesse social reconduz-se ao interesse comum dos sócios, quer este se encontre definido em deliberações da assembleia geral ou em acordos parassociais (necessariamente representativos da colectividade dos sócios).

39

PRATA, A Dialéctica…, op. cit., p. 71 e ss.

40

SOFIA VALE, “O incumprimento…”, op. cit., p. 11.

14

O outro limite ao condicionamento das decisões de administração é o que resulta directamente do art. 19º, n.º 2 da LSC, que parece dever ser interpretado no sentido de apenas impedir os sócios de imporem condutas concretas aos administradores, não obstando a que aqueles consagrem as linhas orientadores que deverão guiar o processo de tomada de decisão. Mas, se se atender ao facto de que os acordos parassociais são, via de regra, confidenciais, é de esperar que muitas das cláusulas neles inseridas contenham orientações significativamente concretas, à revelia do entendimento legal e doutrinal angolano vigente. Haverá ainda que ter em conta qual o grau de vinculação dos administradores em relação às disposições parassociais. A este propósito, o art. 19º, n.º 1 da LSC refere que os acordos parassociais são subscritos pelos sócios, vinculando-os, mas produzindo efeitos apenas entre eles, e não permitindo a impugnação de actos da sociedade com base no que neles se consagra. Não obstante, parece que os administradores das sociedades angolanas se sentem vinculados pelas disposições parassociais, encarando-as como elementos validamente expressivos da vontade dos sócios e, por consequência, do interesse social. Exemplo acabado da vinculação dos administradores ao cumprimento de acordos parassociais é o facto de estes frequentemente os subscreverem, o que indicia que eles os encaram como verdadeiros contratos, com natureza vinculativa. A autora teve já oportunidade de, a este propósito, escrever: “é, por isso, comum ver entre nós, especialmente por influência dos sistemas anglo-saxónicos, os administradores das sociedades a subscreverem um termo de adesão a um acordo parassocial celebrado entre os sócios, no qual se comprometem a implementar as orientações relativas à estratégia nele definida para a condução do negócio social”41 Também o legislador angolano não foi alheio ao modo como os administradores encaram os acordos parassociais, nem parece reprovar tout court o simples facto de os sócios influenciarem as decisões de gestão através de acordos parassociais. E, por essa razão, consagrou a responsabilidade solidária do sócio que, através de acordo parassocial, tenha o direito de designar gerentes ou administradores, sem que os outros sócios participem nessa designação (arts. 88º, n.º 1 e n.º 3 da LSC). Aliás, o legislador angolano reconhece especificamente que os sócios podem conduzir os administradores a praticarem ou a omitirem

41

VALE, “Incumprimemento…”, op. cit., p. 11.

15

um acto em concreto (art. 88º, n.º 4 da LSC) em virtude de acordos parassociais celebrados, o que conduzirá à responsabilidade solidária de sócios e administradores envolvidos. Parece, pois, evidente que, no ordenamento jurídico angolano, os sócios conseguem efectivamente influenciar as decisões dos administradores através da consagração de linhas norteadoras das decisões de gestão (apresentadas com maior ou menor grau de concretização) em acordos parassociais. 2.1.7. Como opera a business judgement rule? No direito angolano, tem-se entendido que o art. 69º da LSC consagra normas de conduta que se impõem aos administradores das sociedades, aplicando-se transversalmente a toda a sua actividade. Quando tais deveres forem violados, há que lançar mão do mecanismo de responsabilidade civil previsto no art. 77º da LSC e fazer prova dos requisitos que permitem accionar a responsabilidade contratual dos administradores42. Apesar do legislador angolano não ter consagrado expressamente a business judgement rule, ie, a possibilidade de os administradores das empresas não serem responsabilizados por perdas, salvo se tiverem actuado com violação dos deveres procedimentais de cuidado, de lealdade ou com dolo, a doutrina tem procurado, dentro do quadro legal, proteger os administradores que cometem erros de julgamento. A autora e TERESINHA LOPES já se pronunciaram quanto a esta questão, nos seguintes termos: “não pretendemos […] sugerir que os tribunais devam aferir do mérito das decisões de gestão tomadas pelo administrador. De todo. Simplesmente, quando os tribunais são chamados a aferir da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, eles têm de avaliar se o administrador actuou com a diligência e cuidados que razoavelmente lhe eram exigidos, tendo em conta o padrão do bonus pater familiae dos administradores. Caso a sua decisão não possa considerar-se razoável face a este padrão (reasonable decision making process e duty to a reasonable decision), então o dever de diligência deve considerar-se violado.”43 A doutrina parece admitir que a violação de deveres procedimentais, no âmbito do processo de tomada de decisão por parte dos administradores, que conduzam à tomada de decisões

42

VALE, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 32.

43

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 64.

16

irrazoáveis se reconduzem à violação do dever de diligência que sobre eles impende e, consequentemente, à sua responsabilidade civil. E parece também apontar a distinção entre o padrão de conduta que se impõe ao administrador (art. 69º da LSC) e o padrão de revisão judicial face a essa actuação (art. 77º da LSC). Tal escrutínio caberá aos tribunais angolanos, que, ao que parece, poderão aplicar as directrizes da business judgement rule. Nessa medida, cabe-lhes ponderar o regime da responsabilidade civil (art. 77º da LSC) e os deveres dos administradores (art. 69º da LSC), avaliando os interesses em jogo, mas sem que tal possa implicar a sindicância judicial do mérito das decisões de gestão. Deste modo, caberia ao demandante na acção de responsabilidade civil fazer prova dos factos que integram a violação dos deveres legais gerais dos administradores (ilicitude), dos prejuízos e do nexo de causalidade, presumindo-se a culpa nos termos do art. 77º, n.º 1 da LSC. Aos administradores demandados caberá ilidir a prova feita. Os tribunais serão, atenta a prova conseguida, chamados a avaliar se os administradores cumpriram com os procedimentos necessários à tomada de decisão, se actuaram com dolo ou se tomaram decisões completamente irracionais. A conclusão a que o tribunal chegará resultará da normal articulação dos procedimentos probatórios no foro judicial. 2.1.8. Os deveres que impendem sobre os administradores de direito são extensivos aos administradores de facto? Em Angola, são muitos os casos em que as sociedades comerciais são geridas por administradores de facto. Três situações são particularmente frequentes44. A primeira respeita ao caso em que um cidadão estrangeiro, que deveria ser nomeado administrador de uma sociedade comercial angolana, protela a sua nomeação até ter obtido um visto de trabalho (sob pena de ter de deixar Angola e as suas funções de administração da sociedade para regressar aos seu país de origem e requerer novo visto ordinário), sendo, neste interregno, nomeado administrador um cidadão angolano ou estrangeiro residente. Neste

44

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 55.

17

caso, o administrador nomeado esvazia-se da sua autonomia decisória, tornando-se o cidadão estrangeiro um verdadeiro administrador da sociedade, um administrador de facto. A segunda ocorre quando um cidadão angolano que pretenda administrar uma sociedade esteja impedido de o fazer, em razão de incompatibilidades legais motivadas por cargos públicos ou outros cargos de administração de sociedades que ocupe. Para ultrapassar este obstáculo é nomeado administrador um indivíduo em relação ao qual não se verificam tais incompatibilidades, que se limita a executar as orientações do primeiro (administrador de facto). A terceira, motivada por razões de estratégia empresarial ou pelo facto de um administrador validamente designado necessitar de passar longas temporadas fora de Angola, ocorre quando esse administrador (de direito) constitui mandato a favor de terceiro a quem atribui poderes genéricos para praticar todos os actos inerentes à actividade de gestão da sociedade e à sua representação, como se de um verdadeiro administrador se tratasse. Este mandatário acaba actuando como um verdadeiro administrador, um administrador de facto. A doutrina tem entendido que os deveres que impendem sobre os administradores de direito (validamente nomeados) devem estender-se aos administradores de facto (administradores na sombra e administradores de facto em sentido estrito), atenta a identidade das funções que desempenham. A autora e TERESINHA LOPES escreveram: “entendemos que os administradores de facto estão vinculados a cumprir as obrigações que, por força da lei, do contrato de sociedade ou das deliberações dos sócios, impendem sobre os administradores de direito. Mais, a sua actuação em geral deve ser pautada pelos deveres de cuidado, de lealdade e de diligência […]”45. Na medida em que se considera que os administradores de facto devem observar as mesmas regras de conduta (art. 69º da LSC) que pautam a actuação dos administradores de direito, também parece ser de estender o regime da responsabilidade civil dos administradores de direito aos administradores de facto. A doutrina advogada esta extensão tendo por base o art. 85º da LSC que, sob a epígrafe “responsabilidade de outras pessoas com funções de administração”, estatui que “as disposições respeitantes à responsabilidade dos gerentes e

45

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 75.

18

administradores aplicam-se a outras pessoas a quem sejam confiadas funções de administração”. A argumentação avançada pela doutrina é a seguinte: “na verdade, tanto os administradores na sombra como os administradores de facto em sentido estrito, que actuam sem nomeação (inválida ou caduca) ou com base numa procuração, actuam com a anuência dos sócios ou dos administradores de direito da sociedade, razão pela qual deve entender-se que as funções que desempenham lhes foram confiadas. È exactamente essa confiança que justifica que um administrador de direito siga as instruções do administrador na sombra e actue nessa conformidade, não as contestando porque reconhece aquele como verdadeiro administrador da sociedade; é também essa confiança que justifica que os sócios aceitem que alguém actue como administrador da sociedade ainda que não tenha título (por, por exemplo, ser filho de um administrador falecido e ter começado a exercer as tarefas do pai após a sua morte). Parecenos que, a não existir essa confiança, plasmada na anuência dos sócios e/ou administradores da sociedade, não estaríamos perante um administrador de facto mas perante um usurpador de funções, cuja actuação já poderia ser posta em causa pela sociedade (designadamente, contestando a sua vinculação aos actos por ele praticados) e passível de outro tipo de sanções penais, que não as previstas na LSC”46. Parece, pois, que, é a confiança depositada pelos sócios e pelos administradores de direito nos administradores de facto que justifica, como consequência, que os administradores de facto possam ser responsabilizados pelas decisões de gestão que tomam (e que fazem executar pelos administradores de direito), quando tais decisões consubstanciem a violação dos deveres de lealdade, de cuidado e de diligência impostos pelo direito angolano. 2.2 ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA 2.2.1. Em que consiste o interesse social? A disposição da ordem jurídica portuguesa que trata do interesse social em geral é o art. 64º, n.º 1, al. b) do CSC, que estatui: “Os gerentes ou administradores das sociedades devem observar […] deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses de outros sujeitos relevantes para a

46

VALE e LOPES, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 76.

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sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”. Esta redacção resultou da reforma legislativa de 2006. A doutrina portuguesa tem amplamente discutido o que deve entender-se por interesse social, pendendo a maioria da doutrina para a tese contratualista47, não obstante haver alguns defensores da tese institucionalista48. A redacção do art. 64º, n.º 1, al. b) do CSC aponta como guia da actuação dos administradores o dever de lealdade, devendo essa lealdade verificar-se em relação ao interesse da sociedade, configurado de molde a atender ainda aos interesses dos sócios e de outros terceiros (designadamente, trabalhadores, clientes e credores). MENEZES CORDEIRO49 é da opinião que a subordinação do interesse da sociedade ao dever de lealdade, tal como configurada pelo legislador, acaba por conduzir o administrador a deslealdades sucessivas. Na verdade, sendo os interesses da sociedade, dos sócios, dos trabalhadores, dos clientes e dos credores muitas vezes antagónicos, torna-se difícil ser leal a todos eles. O dever de lealdade deverá, pois, ser entendido como um dever em si que perpassa toda a actuação do administrador e não deverá decompor-se em lealdades concretas e particulares. No máximo, o respeito por tais “lealdades”, deverá ser enquadrado no âmbito da diligência exigível ao administrador.

47 JORGE COUTINHO DE ABREU, “Deveres de cuidado e de lealdade dos administradores e interesse social”, in Reformas do Código das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2007, p. 33, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades (art. 64º, n.º 1 do CSC), in A Reforma do Código das Sociedades Comerciais. Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, Almedina, Coimbra, 2007, p. 40, MARIA ELIZABETE RAMOS, Responsabilidade Civil dos Administradores e Directores das Sociedades Anónimas perante os Credores Sociais, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 113, ARMANDO MANUEL TRIUNFANTE, A Tutela das Minorias nas Sociedades Anónimas. Direitos de Minoria Qualificada. Abuso do Direito, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 212 e ss., ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Cláusulas do Contrato de Sociedade que Limitam a Transmissibilidade das Acções. Sobre os arts. 328º e 329º do CSC, Almedina, Coimbra, 2006, p. 23, nota 21. 48

ANTÓNIO AVELÃS NUNES, O Direito de Exclusão dos Sócios nas Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 1968, p. 150 e ss, MARIA AUGUSTA FRANÇA, A Estrutura das Sociedades Anónimas em Relação de Grupo, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1990, p. 58 e PEDRO CORDEIRO, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1989, p. 111 e ss. 49

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 41.

20

Assim sendo, em que consiste então o interesse da sociedade? Deverá ele reconduzir-se ao interesse definido pelos sócios, tal como vinha sendo defendido pela doutrina portuguesa maioritária? O legislador português manda atender aos “interesses de longo prazo dos sócios”, na definição do interesse social (e nada diz quanto aos interesses de curto e médio prazo). Na opinião de MENEZES CORDEIRO50, deve entender-se que estes interesses de longo prazo se reportam ao “modo colectivo de defesa dos sócios”, ie, os interesses dos sócios são prosseguidos de acordo com as regras societárias aplicáveis, uma vez que os sócios têm um papel essencial na sociedade mas não exclusivo. E dá como exemplo a necessidade de não se sacrificar a sociedade a uma apetência imediata de lucros por parte dos sócios. O legislador português manda ainda considerar os interesses de “outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade” (stakeholders). No entender de MENEZES CORDEIRO51, esta referência (que o legislador concretiza, a título meramente exemplificativo, com os interesses dos trabalhadores, clientes e credores) mais não é do que uma indicação de que o administrador deve respeitar as regras gerais do ordenamento jurídico português, quando tais stakeholders tenham interesses atendíveis. Por seu lado, COUTINHO DE ABREU entende que o interesse da sociedade resulta da conjugação dos interesses dos sócios enquanto tais (que sejam comuns a todos os sócios, que não tenham natureza extrassocial nem sejam de ordem conjuntural) com os interesses de outros sujeitos que tenham relações com a sociedade52. No entender deste autor, o institucionalismo moderado consagrado pelo legislador português acaba por ser inconsequente, na medida em que “os interesses dos sócios pesam muito mais, a falta de (ou deficiente) ponderação dos interesses dos não-sócios praticamente não tem sanção”53. Como se vê, a doutrina dominante em Portugal tem interpretado a norma do art. 64º, n.º 1, al. b) do CSC no sentido de caber ao administrador hierarquizar os diversos interesses nela referidos, quando está em causa a determinação do interesse social. Tal hierarquização implica colocar em primeiro lugar os interesses dos sócios (interesses que não se esgotem no curto 50

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 42.

51

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 42.

52

ABREU, “Deveres…”, op. cit., p. 43

53

JORGE COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol. II, Almedina, Coimbra, 2012, p. 307.

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prazo, numa perspectiva de investimento especulativo) e em segundo lugar os interesses dos restantes sujeitos54 que se relacionam com a sociedade. A doutrina reconhece ainda que o legislador de 2006 promoveu um alargamento do conceito de interesse social55, e quebrou com a recondução do interesse social ao interesse dos sócios, que vinha sendo defendida pela doutrina portuguesa à luz da anterior redacção deste preceito. 2.2.2. Qual o âmbito do dever de diligência? O art. 64º, n.º 1, al. a) do CSC estatui que os gerentes e administradores da sociedade devem observar “deveres de cuidado […] e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado”56. A expressão “gestor criterioso e ordenado” não sofreu alteração com a reforma de 2006. O preceito legal citado parece indiciar que a diligência deixa de ser uma bitola geral que serve para a determinação do grau de esforço exigido ao administrador para a execução de todos os seus poderes-deveres, acompanhando apenas os deveres de cuidado. Porém, a interpretação defendida pela doutrina portuguesa maioritária vai no sentido de a diligência continuar a servir de medida para todas as funções dos administradores. MENEZES CORDEIRO57 refere, a este propósito, que “a bitola da diligência, apesar de desgraduada para o final do art. 64º, n.º 1, al. a), conserva todo o seu relevo. Desde logo, em termos literais: ‘nesse âmbito’ – portanto: o âmbito em que os administradores devem empregar a diligência de um gestor criterioso e ordenado – reporta-se às ‘suas funções’: não apenas aos deveres de cuidado. Obviamente: o administrador deve ser diligente na execução de todos os seus deveres e não, apenas, nos de cuidado.”

54

JOÃO CALVÃO DA SILVA, “Responsabilidade Civil dos Administradores não Executivos, da Comissão de Auditoria, do Conselho Geral e de Supervisão” in Revista da Ordem dos Advogados, ano 67, vol. I, Janeiro, 2007, p. 1 a 48, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=59032&ida=59049, p. 39. 55

PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 572. 56

A versão originária do art. 64º do CSC estabelecia: “os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.

57

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 58.

22

Enquanto modelo objectivo, a diligência afere-se em função do padrão do “gestor criterioso e ordenado”, determinante do modo como devem ser executadas as tarefas concretas da administração. O gestor criterioso e ordenado é, nas palavras de RICARDO COSTA58, “o administrador qualificado e medianamente disponível, competente tecnicamente (o que acentua a ideia de profissionalização) e conhecedor da actividade, mediado pelas circunstâncias em que certa decisão foi tomada”. E continua o autor, referindo que a avaliação do acto do administrador “é feita de acordo com a diligência exigível a um ‘gestor criterioso e ordenado’ colocado nas circunstâncias concretas em que actuou e confrontado com as qualidades que revelou de acordo com o exigível – a administração lícita e não culposa é aquela que um administrador ‘criterioso e ordenado’, colocado na posição concreta do administrador real, realizaria”59. A ligação dos deveres de cuidado à diligência, parece, na opinião da doutrina maioritária, indiciar que aquele aparece como medida da diligência, requerida para o exercício das funções de administrador. Mas, ainda assim, deve entender-se que a diligência tem preponderância, como regra de conduta incompleta, que deve servir para aferir a conduta exigida aos administradores60. COUTINHO DE ABREU é da opinião que a norma do art. 64º, n.º 1, al. a) do CSC, para efeitos de responsabilidade civil dos administradores, tem relevância em matéria de ilicitude e de culpa. Assim, a actuação do administrador que desrespeite deveres de cuidado deve considerar-se ilícita e a falta de observância da diligência exigida releva para efeitos de culpa (determinação da culpa em abstracto)61. 2.2.3.Qual o âmbito do dever de lealdade? O art. 64º, n.º 1, al. b) do CSC estatui que os administradores e gerentes da sociedade devem observar “deveres de lealdade”. Resulta, pois, inequívoco que no ordenamento jurídico português impende sobre os administradores o dever de actuarem com lealdade, em toda a extensão da sua conduta.

58

RICARDO COSTA, “Deveres gerais dos administradores e ‘gestor criterioso e ordenado’”, in I Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2011, p. 171. 59

COSTA, “Deveres…”, op. cit., p. 172.

60

FRADA, “A business…”, op. cit., p. 64 e CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 58.

61

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 24.

23

A lealdade erigida como dever geral62 de conduta aparece ligada à sociedade, aos sócios e aos demais stakeholders. A redacção do preceito supra citado indica que o dever de lealdade deve ser exercido “no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses de outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”. Como já tivemos oportunidade de referir no ponto 2.1. supra, esta norma estabelece uma panóplia considerável de interesses a que o administrador deve atender. Por essa razão, a doutrina dominante defende que tais interesses devem ser hierarquizados, sendo considerados, em primeiro lugar, os interesses dos sócios e, em segundo lugar os interesses dos demais stakeholders. Cabe, pois, aos administradores evitar condutas desleais. Nas palavras de RICARDO COSTA, “conduta desleal é aquela que promove ou potencia, de forma directa ou indirecta, situações de benefício ou proveito próprio dos administradores (ou de terceiros, por si influenciados, ou de familiares), em prejuízo ou sem consideração pelo conjunto dos interesses diversos atinentes à sociedade.”63 No entender de MENEZES CORDEIRO64, este preceito deve ser interpretado no sentido de que a lealdade dos administradores é devida à sociedade. No que respeita aos sócios e demais stakeholders, o que deve existir é, no máximo, um dever de cuidado. Entende, por isso, que “ a referência legal vale, pois, como uma prevenção e como um novo apelo aos códigos de corporate governance”. Este dever geral de lealdade aparece depois concretizado em diversos deveres específicos que constam do CSC, tais como o dever de não realizar certos negócios com a sociedade ou de não os realizar sem o consentimento da sociedade, não votar nas deliberações do órgão de administração quando se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade, não fazer uso em proveito próprio de informação não pública e privilegiada da sociedade ou ser neutral perante ofertas públicas de aquisição. Mas há ainda outras manifestações não legais deste dever de lealdade, tais como não aproveitar oportunidades de negócio da sociedade em proveito próprio, guardar sigilo das informações da sociedade ou não aceitar vantagens de terceiros ligadas à celebração de negócios com a sociedade.

62

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 25.

63

COSTA, “Deveres…”, op. cit., p. 179.

64

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 58.

24

O fundamento dogmático do dever de lealdade radica nos deveres fiduciários dos administradores, decorrentes do facto destes gerirem bens alheios65, havendo autores que também invocam o princípio da boa-fé66. 2.2.4. Qual o âmbito do dever de cuidado? O art. 64º, n.º 1, al. a) do CSC estabelece que o administrador deve observar “deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequado às suas funções”. A referência expressa do legislador português aos deveres de cuidado não constava do Projecto da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários67, que foi o grande impulsionador da reforma do CSC de 2006, acabando por ser introduzida à última da hora. COUTINHO DE ABREU refere que “os administradores hão-de aplicar nas actividades de organização, decisão e controlo societário o tempo, esforço e conhecimento requeridos pela natureza das funções, as competências específicas e as circunstâncias”68, assim actuando com cuidado. A referida disposição legal aponta ainda algumas circunstâncias exigíveis para que se possa concluir que o dever de cuidado foi observado: a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade. A doutrina maioritária69 entende que estas concretizações ou precisões têm carácter meramente exemplificativo, havendo muitas outras que deverão ser apreciadas ante a situação concreta, designadamente: o tipo, objecto e dimensão da sociedade, o sector de actividade, a natureza e importância da decisão, o enquadramento da decisão na gestão (corrente ou extraordinária), o tempo disponível para 65

SÓNIA DAS NEVES SERAFIM, “Os Deveres dos administradores”, Temas de Direito das Sociedades, Colectânea de Dissertações em Direito das Empresas – ISCTE-IUL, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 524, e COSTA, “Deveres…”, op. cit., p. 179. 66

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 48.

67

COMISSÃO DE MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS Governo das Sociedades Anónimas: propostas de alteração ao Código das Sociedades Comerciais, Processo de Consulta Pública n.º 1/2006, n.º 11, disponível em http://www.cmvm.pt/CMVM/Comunicados/Comunicados/Documents/56be6a08403749cbbfdada63db 3da0aaproposta_alter_csc.pdf 68

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 18.

69

COSTA, “Deveres…”, op. cit., p. 165 e 166, ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 18 e 19 e SERAFIM, “Os deveres…”, op. cit., p. 533.

25

obter informação e para tomar a decisão, a confiança dos administradores nas pessoas que analisaram o assunto, a experiência do administrador ou o tipo de comportamento normalmente adoptado naquela situação. A previsão legal de um dever geral de cuidado destina-se a evitar situações de negligência na actuação do administrador. Por isso, a doutrina refere que a qualificação das qualidades de disponibilidade, competência técnica e conhecimento da actividade da sociedade “são essenciais na densificação do padrão do ‘gestor criterioso e ordenado’”70, reconduzindo o art. 64º, n.º 1, al. a) do CSC o dever de cuidado à diligência exigível. COUTINHO DE ABREU considera que o dever de cuidado compreende em si um dever de controlo ou de vigilância organizativo-funcional, o dever de actuação procedimentalmente correcta na tomada de decisões e o dever de tomar decisões substancialmente razoáveis71. Sendo estes deveres consideravelmente flexíveis, o papel da jurisprudência e da doutrina na sua concretização afigura-se essencial. A doutrina portuguesa tem visto no art. 64º, n.º 1, al. a) do CSC a consagração daquilo que no direito anglo-saxónico se designa por business judgement rule. Ainda que reconhecendo as particularidades do direito português, ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA72 afirma que, nesta sede, a business judgement rule aparece como um porto seguro para os administradores, na medida em que eles só serão responsabilizados por perdas se tiverem actuado com violação do dever procedimental de cuidado73. Esta regra foi consagrada, no entender do mesmo autor, “por mero utilitarismo economicista” e o seu objectivo é assegurar que os administradores não são responsabilizados pelo facto de tomarem decisões altamente arriscadas que, tendo sucesso, poderão potenciar bastante os lucros dos sócios. 2.2.5. Qual a possibilidade que os sócios têm de condicionar as decisões dos administradores, atentos os modelos de governo tipificados na lei? A lei portuguesa consagra três modelos de governo para as sociedades anónimas (art. 278º do CSC). Cada sociedade anónima deverá optar pelo modelo que mais lhe convém, atenta, 70

COSTA, “Deveres…”, op. cit., p. 166 e ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 19.

71

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 19 e ss.

72

PEREIRA DE ALMEIDA, “A business…”, op. cit., p. 364.

73

No mesmo sentido, CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 57.

26

designadamente, a sua estrutura de propriedade, dimensão da sociedade e maior receptividade de um dado modelo no mercado em que a sociedade está cotada. Cada um dos modelos tipificados na lei pode sofrer variações significativas, também elas devidamente previstas na lei, que conduzem ao estabelecimento de sub-modelos de governação. Não obstante, é impossível a adopção de modelos que não estejam previstos no art. 278º do CSC, ainda que a doutrina defenda ser possível a criação no contrato de sociedade de órgãos atípicos apenas com funções consultivas74. No modelo clássico (ou latino)75, previsto no art. 278º, n.º 1, al. a) do CSC, a administração é exercida por um conselho de administração (ou administrador único) e a fiscalização por um conselho fiscal (ou fiscal único). Neste modelo de governo as decisões de gestão cabem exclusivamente aos administradores, que só devem subordinar-se às deliberações dos sócios no caso em que a lei ou o contrato de sociedade o imponham (405º, n.º 1 do CSC). Por essa razão, torna-se difícil aos sócios condicionarem as decisões de gestão da administração através de deliberação da assembleia geral. No modelo anglo -saxónico (art. 278º, n.º 1, al. b) do CSC), a administração é exercida por um conselho de administração. No seio deste conselho de administração é ainda criada uma comissão de auditoria, constituída por parte dos seus membros, cuja função essencial é assegurar a fiabilidade da informação financeira e acompanhar o processo da sua elaboração e fiscalização. O modelo completa-se com a existência de um revisor oficial de contas (art. 446º do CSC), a quem cabe a fiscalização da actividade da sociedade (art. 420º do CSC). Também aqui se aplica a regra supra citada do art. 405º, n.º 1 do CSC, só podendo a assembleia geral condicionar as decisões da administração nos casos em que o contrato de sociedade expressamente o previr.

74

PAULO CÂMARA, “Os modelos de governo das sociedades anónimas”, in Reforma do Código das Sociedades Comerciais, Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, Almedina, Coimbra, 2007, p. 210 e PAULO OLAVO CUNHA, “Designação de Pessoas Colectivas Para os Órgãos das Sociedades Anónimas e Por Quotas”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano I, vol. 1, Almedina, Coimbra, 2009, p. 186. 75

Este modelo já existia antes da reforma legislativa de 2006.

27

No modelo dualista76, previsto no art. 278º, n.º 1, al. c) do CSC, a administração está confiada a um conselho de administração executivo (com funções de gestão – art. 431º, n.º 1 do CSC) e a um conselho geral e de supervisão (que tem funções de supervisão – art. 441º do CSC). Este modelo é completado por um órgão de fiscalização: o revisor oficial de contas (art. 446º do CSC). PAULO CÂMARA chama a atenção para o facto de o modelo dualista permitir “uma maior interferência na gestão, seja em termos informativos (art. 432º, n.º 1 a 3 do CSC), seja em termos decisórios (art. 442º do CSC) do órgão de fiscalização”77. De facto, ainda que as competências de gestão sejam atribuídas ao conselho de administração executivo, o art. 442º do CSC acaba por introduzir uma importante variante em matéria de gestão. Em primeiro lugar, estabelece a possibilidade de o contrato de sociedade determinar que o conselho de administração executivo não poderá tomar certas decisões de gestão sem que antes tenha obtido a anuência do conselho geral e de supervisão (art. 442º, n.º 1 do CSC); na prática, este dispositivo remete a tomada de decisão sobre matérias de gestão determinadas para o conselho geral e de supervisão. Em segundo lugar, quando se verifique divergência entre conselho de administração executivo e conselho geral e de supervisão quanto às matérias indicadas, não conferindo o conselho geral e de supervisão o seu consentimento, caberá então à assembleia geral de sócios o poder de decidir, a final, sobre a questão (art. 442º, n.º 2 do CSC, que exige uma maioria mínima de dois terços dos votos emitidos pelos sócios). O modelo dualista acaba, então, por ser aquele em que se verifica uma maior possibilidade de condicionamento das decisões dos administradores das sociedades, tanto pelo órgão de supervisão como pela assembleia geral. Nas sociedades por quotas, as decisões de gestão cabem à gerência, que se encontra vinculada a respeitar as decisões dos sócios (art. 259º do CSC). Este preceito indicia, pois, que os sócios das sociedades por quotas têm possibilidade de exercer grande influência na gestão da sociedade, condicionando concretamente as decisões dos gerentes78.

76

Este modelo já existia antes da reforma de 2006, embora tenha saído robustecido.

77

CÂMARA, “Os modelos…”, op. cit., p. 246.

78

RIBEIRO, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 524.

28

2.2.6. Qual o grau de condicionamento das decisões de gestão através de acordos parassociais? O art. 17º, n.º 2 do CSC estabelece que os acordos parassociais não podem respeitar à conduta de intervenientes ou de outras pessoas no exercício de funções de administração. Interpretada literalmente, esta disposição parece apontar no sentido de uma total proibição dos acordos parassociais que admitam uma organização da sociedade diferente da do pacto social (no sentido das competências funcionais atribuídas aos diversos órgãos), o que conduziria à violação do princípio da tipicidade das sociedades comerciais79. Porém, na prática societária, os sócios tendem sempre a assegurar o controlo directo sobre a actividade da administração da sociedade, pelo que a limitação imposta pelo dispositivo legal citado é frequentemente violada80. A doutrina portuguesa mais recente tem defendido, uma interpretação restritiva da regra do art. 17º, n.º 2 do CSC, admitindo que os acordos parassociais possam visar a estabilidade da gestão social e a manutenção de uma política comum reconhecida como benéfica para os interesses societários. Também a jurisprudência portuguesa tem advogado a interpretação restritiva do preceito, interpretando-o no sentido de apenas serem proibidas cláusulas que imponham aos titulares do órgão de administração condutas concretas. Isto porque a imposição de uma determinada conduta específica ao administrador consistiria num desvio do poder que a lei atribui ao órgão de administração81. CARNEIRO DA FRADA entende que o art. 17º, n.º 2 do CSC não respeita à conduta daqueles que exercem o cargo de administrador, mas simplesmente à sua conduta no exercício da função de administração82. RUI PINTO DUARTE83 começa por referir que, uma vez que o dever de administrar recai exclusivamente sobre o órgão de administração, poder-se-ía pensar que os sócios não 79 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Acordos Parassociais”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 61, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, Lisboa, 2001, p. 541. 80

MARIA DA GRAÇA TRIGO, “Acordos parassociais – síntese das questões jurídicas mais relevantes”, in Problemas de Direito das Sociedades, IDET, Almedina, Coimbra, 2003, p. 174 e 175. 81

Acórdão da Relação de Lisboa de 05.03.2009 (Granja da Fonseca), in www.dgsi.pt.

82

MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “Acordos parassociais omnilaterais”, in Direito das Sociedades em Revista, Ano 1, vol. 2, Almedina, Coimbra, 2009, p.117.

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poderiam inserir no acordo parassocial cláusulas sobre esta matéria ou, no limite, apenas o poderiam fazer nos casos em que a lei admitisse a sua intervenção na gestão das sociedades. E continua o autor constatando que a atribuição da gestão da sociedade em exclusivo ao órgão de administração apenas se verifica nalguns tipos de sociedades anónimas (uma vez que no modelo dualista os estatutos podem atribuir competências ao conselho geral e de supervisão para autorizar certos actos de gestão) e tal não ocorre, de todo, nas sociedades por quotas. Também o legislador português parece admitir que os sócios, através de acordos parassociais celebrados, possam influenciar a conduta dos administradores (art. 83º, n.º 1 e n.º 3 do CSC), admitindo que tal influência possa ser determinante para a prática ou para a omissão de um acto de gestão em concreto (art. 88º, n.º 4 do CSC). Em qualquer caso, haverá lugar à responsabilidade solidária do sócio que, através de acordos parassociais, tenha o direito de designar gerentes sem que os outros sócios participem nessa designação. Consequentemente, RUI PINTO DUARTE entende que o art. 17º, n.º 2 do CSC deve ser interpretado de modo a não impedir que os acordos parassociais contenham cláusulas atinentes à gestão das sociedades, apenas sendo proibidos os acordos que vinculem as pessoas que exercem funções de administração ou os que tenham por objectivo exonerar os administradores de responsabilidade (causa de justificação para maus actos de gestão, nos termos do art. 74º, n.º 1 do CSC)84. Seguindo o mesmo entendimento, CARNEIRO DA FRADA, refere que o legislador português admite genericamente a possibilidade de um sócio influenciar, através de um acordo parassocial, a conduta de um administrador e, por consequência, a conduta da sociedade, sem que tal implique qualquer reprovação por parte do legislador, enquanto tal conduta não representar um prejuízo para a sociedade ou para os demais sócios. E vai mais longe, defendendo que, quando todos os sócios convergem num dado entendimento sobre o que seja o interesse social (sendo, portanto, o acordo parassocial omnilateral), não há lugar à responsabilidade prevista no art. 83º, n.º 4 do CSC85.

83

RUI PINTO DUARTE, “Formas Jurídicas de Cooperação Entre Empresas”, Lisboa, 2010, disponível em http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/rpd_MA_15167.pdf , p. 21 e ss. 84

DUARTE, “Formas…”, op. cit., p. 31.

85

FRADA, “Acordos…”, op. cit., p. 117 e 118. Também RUI PEREIRA DIAS, Responsabilidade por Exercício de Influência sobre a Administração de Sociedades Anónimas – Um estudo de direito material e de direito dos conflitos, Almedina, Coimbra, 2007, p. 103 e ss.

30

Constata-se uma evolução na doutrina portuguesa86, no sentido de uma maior aceitação de que os sócios, através de acordos parassociais, possam exercer influência considerável sobre os administradores das sociedades, conformando as decisões concretas de gestão que estes são chamados a tomar. O limite de tal influência é encontrado através da responsabilidade solidária de sócios influenciadores e de administradores influenciados, quando as decisões de administração não respeitarem o interesse social. 2.2.7. Como opera a business judgement rule? O art. 64º do CSC tem por epígrafe “deveres fundamentais” e, na opinião da generalidade da doutrina portuguesa, consagra exclusivamente normas de conduta dos administradores. Dito de outro modo, esta disposição legal destina-se apenas a reger a actuação dos administradores e não a fixar consequências no caso da violação de outras normas legais, não contendo por isso regras relativas à responsabilidade civil87. A referida disposição compreende os deveres legais gerais dos administradores que, depois, se decompõem em deveres específicos. No cumprimento de tais deveres, entende ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA que “o standard of conduct dos administradores rege-se pelas best practices, tendo em atenção a actividade e a dimensão da empresa. Estes benchmarks servem, por um lado, para cálculo da remuneração variável e, por outro lado, eventualmente, para fundamentar justa causa de destituição.”88 Quando violados estes deveres, há que accionar o mecanismo da responsabilidade civil dos administradores, previsto no art. 72º do CSC, que importa a prova dos requisitos gerais de ilicitude, dano, culpa e nexo de causalidade. A grande discussão que se tem suscitado na doutrina portuguesa prende-se com o sentido a dar à norma do art. 72º, n.º 2 do CSC (introduzido em virtude da reforma legislativa de 2006), que a generalidade da doutrina tem considerado como a transposição da business judgement rule para o direito societário português. Tal discussão centra-se na redacção do preceito, que

86

Veja-se uma síntese da evolução doutrinal e jurisprudencial portuguesas, no sentido da maior aceitação dos acordos parassociais e das funções que são chamados a disciplinar, em ADELAIDE MENEZES LEITÃO, “Acordos Parassociais e Corporate Governance”, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol II, Almedina, Coimbra, 2012, p. 232 e ss. 87

CORDEIRO, “Os deveres…”, op. cit., p. 57.

88

ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, “A business…”, op. cit., p. 368.

31

estabelece: “a responsabilidade é excluída se [se] provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.” A business judgement rule corresponderia, na expressão utilizada pelo legislador português, a “critérios de racionalidade empresarial”. Da articulação do art. 64º, n.º 1 do CSC com o art. 72º, n.º 2 do CSC parece poder concluir-se que este se limita a explicitar, para efeitos de responsabilidade civil, o conteúdo dos deveres legais gerais que o primeiro enuncia. E, assim, o padrão de conduta (art. 64º, n.º 1 do CSC) dos administradores aparece mais exigente do que o padrão de revisão judicial informado pela regra da racionalidade empresarial (art. 72º, n.º 2 do CSC)89. Este último visa assegurar um espaço de discricionariedade ao administrador, limitando consideravelmente a sindicabilidade por parte dos tribunais em relação às decisões de gestão (o tribunal será chamado a aplicar o critério da irracionalidade90). A business judgment rule não se aplica às situações em que os administradores não respeitem deveres específicos, de natureza legal, estatutária ou contratual. Como refere COUTINHO DE ABREU, “aqui não há espaço de liberdade ou discricionariedade, as decisões dos administradores são juridicamente vinculadas, hão-de respeitar os deveres especificados.”91 Com o propósito de conferir conteúdo útil à regra da racionalidade económica, a doutrina portuguesa92 tem apresentado soluções diversificadas sobre ao modo como ela deve operar em sede de responsabilidade civil dos administradores. GABRIELA FIGUEIREDO DIAS e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS entendem que ela deve actuar como causa de exclusão da ilicitude, advogando este último que o art. 72º, n.º 2 do CSC consagraria uma presunção de ilicitude que acresceria à presunção de culpa existente no art. 72º, n.º 1 do CSC; MENEZES CORDEIRO93 entende que poderá funcionar como causa de exclusão de culpabilidade; COUTINHO DE ABREU94 advoga que será útil para afastar a violação do dever de cuidado; CALVÃO DA SILVA95 89

ABREU, Os Deveres…, op. cit., p. 39 e PEREIRA DE ALMEIDA, “A business…”, op. cit., p. 368.

90

COMISSÃO DE MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS, Governo…, op. cit., p. 16, que se refere a critérios de racionalidade económica. 91

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 47.

92

Para uma súmula das posições apresentadas, veja-se PEREIRA DE ALMEIDA, “A business…”, op. cit., p. 367.

93

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, vol I, Almedina, Coimbra, 2011, p. 928 e 929.

94

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 46 e 47.

32

pensa que será útil na articulação entre deveres de cuidado e de diligência; CARNEIRO DA FRADA96 acredita que poderá funcionar como causa de exclusão de responsabilidade; RICARDO COSTA97 entende que deverá actuar como causa de exclusão simultânea da culpa e da ilicitude; já ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA98 refere que se trata apenas de um padrão de referência para que os tribunais sindiquem o procedimento e não o mérito da decisão dos administradores. A diversidade de posições existentes na doutrina portuguesa parece não permitir ainda a identificação de uma corrente doutrinal maioritária. Será, pois, necessário que a jurisprudência vá abrindo caminho no sentido de permitir identificar qual o exacto alcance da business judgement rule como forma de excluir a responsabilidade civil dos administradores no direito português. 2.2.8. Os deveres que impendem sobre os administradores de direito são extensivos aos administradores de facto? A doutrina portuguesa define administrador de facto: “é administrador de facto (em sentido amplo) quem, sem título bastante, exerce, directa ou indirectamente e de modo não autónomo (não subordinadamente) funções próprias de administrador de direito da sociedade”99. A noção assim apresentada abrange100: (i) alguém que actua como se fosse administrador de direito mas sem título bastante; (ii) alguém que ostenta um título diverso do de administrador, mas desempenha funções de gestão com a autonomia própria de um administrador de direito; e (iii) alguém que, não tendo qualquer cargo ou função profissional na sociedade, determina habitualmente a actuação dos administradores de direito.

95

CALVÃO DA SILVA, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 34 e 35.

96

FRADA, “A business…”, op. cit., p. 94.

97

COSTA, “Deveres…”, op. cit., p. 173 e ss.

98

PEREIRA DE ALMEIDA, “A business…”, op. cit., p. 370 e 371.

99

JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU E MARIA ELIZABETE RAMOS, “Responsabilidade civil dos administradores e dos sócios controladores”, in Miscelâneas, vol 3, IDET, Almedina, Coimbra, 2004, p. 43. 100

MARIA ELIZABETE GOMES RAMOS, O Seguro de Responsabilidade Civil dos Administradores (entre a exposição ao risco e a delimitação de cobertura), Almedina, Coimbra, 2010, p. 153.

33

Apesar dos diversos tipos de administradores de facto (uns apresentam-se publicamente exercer funções de administração enquanto que outros não), o certo é que todos eles exercem funções de gestão (ou directamente ou dirigindo os administradores que as desempenham) próprias dos administradores de direito e com a autonomia característica deles. E é exactamente esta identificação de funções que leva COUTINHO DE ABREU a abraçar uma perspectiva funcional como argumento bastante para estender o regime da responsabilidade civil dos administradores de direito aos administradores de facto101. O ordenamento jurídico português não contempla uma norma legal que expressamente regule a responsabilidade civil dos administradores de facto. Na reforma legislativa de 2006 a introdução de uma norma legal sobre esta matéria foi ponderada, acabando por se decidir pela sua não inclusão uma vez que o código já considerava implicitamente aplicáveis ao administrador de facto as normas respeitantes ao administrador de direito102. Deste modo, têm-se por aplicáveis aos administradores de facto todos os deveres que impendem sobre os administradores de direito, entre eles os deveres legais gerais consagrados no art. 64º da LSC. E uma vez que os administradores de facto são chamados a observar as regras de conduta que a lei estabelece para os administradores de direito, parece que, quando tais regras são violadas, haverá que responsabilizar civilmente os administradores de facto. A doutrina portuguesa tem apresentado várias propostas sobre o fundamento de tal responsabilidade. ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA103 defende a aplicação do art. 80º do CSC aos administradores de facto, com base numa interpretação correctiva do preceito, porquanto este normativo estabelece que tal responsabilidade se impõe a “outras pessoas a quem tenham sido confiadas funções de administrador”.

101

ABREU, Responsabilidade…, op. cit., p. 102.

102

COMISSÃO DE MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS, Governo…, op. cit., p. 17.

103

ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários, 5ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 256.

34

COUTINHO DE ABREU e ELIZABETE RAMOS104 fazem uma equiparação directa dos administradores de facto aos administradores de direito para justificar a aplicação directa dos arts. 72º e ss do CSC aos administradores de facto. Os autores afastam a aplicação directa do art. 80º da LSC por considerarem que não se pode dizer que os administradores na sombra e os administradores de facto em sentido estrito sem qualquer título possam ser considerados “pessoas a quem foram confiadas funções de administração”, pelo que a aplicação desta disposição só faria sentido em relação aos mandatários ou procuradores a quem tivessem sido conferidos poderes para além dos limites legais impostos à delegação ou a administradores cujo acto de nomeação fosse nulo ou tivesse caducado. RICARDO COSTA, por seu lado, advoga uma interpretação extensiva das normas do art. 72º e ss do CSC105. Independentemente dos fundamentos avançados pela doutrina portuguesa, o certo é que todos concordam com a extensão do regime de responsabilidade civil dos administradores de direito aos administradores de facto. 3. COMPARAÇÃO DOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS ANALISADOS O nosso estudo comparativo percorreu já duas fases: a preliminar, na qual seleccionámos o objecto de estudo, escolhemos as ordens jurídicas a comparar e procedemos ao necessário juízo de comparabilidade; e a analítica, na qual fomos analisando, de modo individual, a resposta dada por cada um dos ordenamentos jurídicos selecionados às perguntas que previamente formulámos. Este nosso estudo entra agora na sua terceira fase, a fase comparativa em sentido estrito. Tendo por base a grelha comparativa que elaboramos e que fomos progressivamente preenchendo, procuraremos agora apresentar as conclusões a que chegamos, relativas às

104

ABREU e RAMOS, “Responsabilidade…”, op. cit., p. 43. Note-se que ELIZABETE RAMOS defendia anteriormente a aplicação do art. 80º do CSC aos administradores de facto, tendo entretanto mudado de posição, como se pode ver em RAMOS, A Responsabilidade…, op. cit., p. 186. 105

RICARDO COSTA, “Responsabilidade Civil Societária dos Administradores de Facto”, in Temas Societários- Colóquios, n.º 2, Almedina, Coimbra, 2006, p. 39 e ss.

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semelhanças e diferenças apuradas, de modo coerente e sistematizado. Temos aqui como objectivo a elaboração de uma síntese comparativa106. 3.1. INTERESSE SOCIAL Ambos os ordenamentos jurídicos reconhecem que os administradores devem guiar a sua actuação tendo em vista a observância do interesse social. O direito português anterior à reforma de 2006 reconduzia, em tese geral, a definição do interesse social aos sócios, como actualmente sucede no direito angolano onde a doutrina é de pendor marcadamente contratualista. Com a reforma de 2006, foi introduzido no direito português um quadro mais alargado de stakeholders cujos interesses deverão ser atendidos pelos administradores na tomada de decisão. Ainda assim, o entendimento doutrinal dominante vai no sentido de que os diversos titulares de interesses atendíveis não se encontram em pé de igualdade, devendo dar-se prioridade aos interesses dos sócios na definição do interesse social. Porém, é inultrapassável que, em virtude da reforma de 2006, a lei portuguesa passa a consagrar um institucionalismo moderado. Ainda em matéria de interesse social, o direito angolano apresenta-o como postulado geral, sem o ligar a nenhum dever legal geral dos administradores em particular. Sendo diligente, o administrador de uma sociedade angolana promove a realização do interesse social através das suas decisões e acções. Este entendimento era também preconizado no direito português anterior à reforma de 2006. O legislador português de 2006 procura ligar o dever de lealdade dos administradores à realização do interesse social, promovendo que o administrador seja leal em relação a outros stakeholders, e não apenas aos sócios que o designaram; a doutrina, porém, continua a advogar que não se trata aqui de observar diversas lealdades mas de actuar com diligência. 3.2. DEVER DE DILIGÊNCIA No direito angolano, o dever de diligência aparece como o dever fundamental que pauta a actuação dos administradores. Dele decorrem outros sub-deveres, designadamente o dever de lealdade e o dever de cuidado. Esta solução é idêntica à existente no direito português anterior a 2006. O legislador português de 2006 procurou ligar o dever de diligência apenas ao dever de 106

FERREIRA DE ALMEIDA, Introdução…, op. cit., p. 28.

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cuidado, abrindo caminho para que a diligência deixasse de ser uma bitola para toda a actuação dos administradores, entendimento que a doutrina refuta, continuando a ver a diligência como bitola geral. Em ambos os ordenamentos jurídicos a diligência é reportada a um padrão objectivo e abstracto, consubstanciando o grau de esforço exigível aos administradores para determinar e executar a conduta que determina o cumprimento de um dever. Sendo um padrão abstracto, o trabalho da jurisprudência afigura-se essencial na concretização das condutas dos administradores por ela abrangidas em qualquer um dos ordenamentos jurídicos analisados. No direito angolano entende-se que a referência do legislador aos interesses de sócios e de trabalhadores serve para direcionar o grau de esforço/diligência exigível ao administrador. Já no direito português, a previsão de deveres de cuidado em relação aos sócios e demais stakeholders parece indiciar que o dever de cuidado é medida da diligência, defendo a doutrina que diligência deve, ainda assim, ser preponderante. Enquanto padrão objectivo, a diligência deve aferir-se em relação a um tipo. No direito angolano esse tipo corresponde ao “gestor criterioso”, que a doutrina reconduz ao critério do bonus pater familiae dos administradores. No direito português, que neste aspecto não sofreu qualquer alteração em virtude da reforma de 2006, o tipo é o do “gestor criterioso e ordenado”. As conclusões a que cada ordenamento jurídico chega são idênticas, constatandose que a diligência (o esforço) que impende sobre um administrador é maior do que a que impende sobre o bonus pater familiae do direito civil ou sobre o comerciante em geral. No que concerne às consequências que a violação do dever de diligência acarreta em sede de responsabilidade civil, verificam-se algumas diferenças de enquadramento dogmático em ambos os ordenamentos jurídicos. No direito angolano, a violação do dever de diligência é fundamento autónomo de responsabilidade civil: o comportamento não diligente é ilícito e, na medida em que indicia, pelo menos, mera culpa, serve para determinar a culpa em abstracto do administrador. Esta solução é idêntica à que preconizava o direito português antes de 2006. O actual direito português, que após a reforma de 2006 veio ligar a diligência ao dever de cuidado, reconduz a ilicitude à violação do dever de cuidado, servindo a diligência apenas para determinar a culpa em abstracto do administrador. 3.3. DEVER DE LEALDADE 37

O legislador angolano não consagrou expressamente qualquer dever de lealdade, à semelhança do que sucedia na lei portuguesa anterior a 2006. A estatuição legal do dever de lealdade só veio a ocorrer no direito português com a reforma de 2006. Mas deve entender-se que, fruto da laboração doutrinal, tal dever sempre existiu nos ordenamentos jurídicos angolano e português. Em ambos os ordenamentos jurídicos este dever apresenta-se como fiduciário, reconduzindo-se à relação de agência que existe entre administrador e sócios e, em última instância, ao princípio da boa-fé. Sendo um dever legal geral, ele aparece concretizado em variados deveres específicos em ambos os ordenamentos jurídicos estudados. Como já se referiu, também em ambos os ordenamentos jurídicos, o dever de lealdade apresenta uma ligação intrínseca à prossecução do interesse social por parte dos administradores. E só neste ponto o direito português vigente se aparta do angolano, na medida em que, após a reforma de 2006, o legislador português alargou o leque de terceiros com interesses atendíveis a ter em conta na definição do interesse social, fazendo apelo às actuais regras de corporate governance. 3.4. DEVER DE CUIDADO O legislador angolano não consagrou especificamente um dever geral de cuidado, mas a doutrina atesta a sua existência, identificando-o como um sub-dever do dever de diligência: o administrador diligente é aquele que observa deveres procedimentais de cuidado na sua tomada de decisão. Nesta medida, o direito angolano reconduz-se ao direito português anterior à reforma de 2006. No direito português consta-se a existência de um dever legal geral de cuidado, que aparece densificado, a título meramente exemplificativo, pelas referências à disponibilidade, competência técnica e conhecimento da actividade da sociedade, competências essas que se reconduzem à diligência exigível ao administrador. Em ambos os ordenamentos jurídicos se reconhece que este dever é abstracto e que só ante comportamentos concretos por parte do administrador, atendendo às circunstâncias específicas que nortearam o processo de decisão, se pode aferir se ele foi ou não observado. A

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densificação exacta do seu conteúdo fica remetida para a doutrina e jurisprudência nacionais respectivas. Também em ambos os ordenamentos estudados se defende que o administrador não deve ser responsabilizado por más decisões de gestão. A sua responsabilização só poderá ocorrer se o administrador não tiver respeitado os deveres de cariz procedimental inerentes ao processo de tomada de decisão, que são, em ambos os ordenamentos, deveres de cuidado. A diferença está em que, no direito angolano, tal desiderato se consegue por referência ao dever de diligência, enquanto que no direito português esta solução aparece como uma decorrência da consagração (após a reforma de 2006) da business judgement rule. 3.5. MODELOS

DE

GOVERNO

E

CONDICIONAMENTO

DAS

DECISÕES

DOS

ADMINISTRADORES POR PARTE DOS SÓCIOS Em ambos os ordenamentos jurídicos estudados se verifica que, nas sociedades por quotas, os sócios possuem competências de gestão concretas, podendo avocar a si um leque maior de decisões de gestão caso assim o determinem no contrato de sociedade. Confirmando-se que as competências de gestão não estão reservadas aos gerentes, percebemos que o legislador português e angolano legitimam os sócios das sociedades por quotas a influenciarem as decisões que aos gerentes cabe tomar. No ordenamento jurídico angolano existe apenas um modelo de governo que as sociedades anónimas devem adoptar, o chamado modelo clássico. Neste aspecto, o direito angolano apresenta diferenças face ao direito português anterior à reforma de 2006, uma vez que este já permitia às sociedades anónimas optarem por um de dois modelos: o modelo clássico ou o modelo dualista (de inspiração germânica). Com a reforma de 2006, o direito português continuou a consagrar a referida possibilidade de escolha do modelo de governo a utilizar, mas agora alargando o leque a três modelos: o clássico, o dualista e o anglo-saxónico. Constata-se que no modelo clássico (existente em ambos os ordenamentos jurídicos) e no modelo anglo-saxónico (existente apenas no ordenamento jurídico português) se prevê uma reserva das competências de gestão para o órgão de administração, prevendo-se ainda que este só deverá obedecer às deliberações da assembleia geral nos casos em que a lei ou o contrato o determinarem. Nestes modelos, é retirada aos sócios a capacidade de condicionarem as decisões da administração. 39

Já no modelo dualista (que só está previsto no direito português) constata-se que os sócios têm uma maior capacidade de influenciar as decisões dos administradores. Isto sucede porquanto o contrato de sociedade pode determinar que certas decisões do conselho de administração só poderão ser tomadas com o consentimento do conselho geral e de supervisão e, caso tal consentimento não seja concedido, caberá à assembleia geral tomar a decisão. Nessa medida, torna-se mais acessível aos sócios o poder de influenciarem concretamente as decisões de gestão da sociedade. Discute-se em ambos os ordenamentos jurídicos se a criação de órgãos sociais atípicos dentro dos modelos de governo tipificados na lei poderá conduzir a que os sócios das sociedades anónimas possam tomar decisões de gestão. Tanto a doutrina angolana como a portuguesa são da opinião que tais órgãos apenas terão funções consultivas, não sendo por esta via conseguida a transferência de competências de gestão e, por conseguinte, não terão os sócios o poder de condicionar as decisões de gestão da sociedade. 3.6. ACORDOS PARASSOCIAIS E CONDICIONAMENTO DAS DECISÕES DE GESTÃO Os direitos angolano e português (neste caso o direito português não sofreu alterações com a reforma de 2006) apresentam disposições legais consideravelmente restritivas no que respeita à possibilidade de os acordos parassociais poderem versar sobre decisões de gestão dos administradores. Não obstante, verifica-se na prática societária diária dos dois ordenamentos estudados que um dos grandes objectivos dos acordos parassociais é, exactamente, o de influenciar as decisões de gestão, condicionando os comportamentos dos administradores de modo mais ou menos concreto. Tornando menos discrepante a previsão legal e a prática societária, a doutrina de ambos os países promoveu interpretações restritivas dos respectivos preceitos, de modo a defender que apenas seria vedado aos sócios imporem aos administradores condutas concretas (direito angolano e português) e exonerarem os administradores da sua responsabilidade (direito português). O argumento invocado pela doutrina de ambos os países tem por base disposições legais semelhantes que preveem a responsabilidade solidária do sócio que, através de acordo parassocial, tem o direito de designar um administrador, mesmo quando o comportamento do 40

sócio conduzir à prática/omissão de um acto em concreto. Se o legislador tivesse por intuito reprovar o simples facto de os sócios influenciarem a conduta dos administradores em sede parassocial (considerando as referidas cláusulas nulas), não teria previsto a responsabilidade solidária do administrador e do sócio que o designou. 3.7. FUNCIONAMENTO DA BUSINESS JUDGEMENT RULE Em ambos os ordenamentos jurídicos estudados se faz uma distinção entre o padrão de conduta dos administradores (que se reconduz aos deveres legais gerais de diligência, lealdade e cuidado) e o padrão de revisão judicial das decisões dos administradores (a sindicância que os tribunais são chamados a efectuar), quando as decisões e acções dos administradores dão origem a responsabilidade civil contratual. No caso dos deveres legais gerais (cuja observância importa sempre uma margem de discrionariedade para os administradores), é entendimento assente em ambos os ordenamentos jurídicos que aos tribunais não cabe sindicar o mérito das decisões dos administradores. Pelo contrário, o papel dos tribunais passa apenas por aferir se os deveres procedimentais que devem nortear a tomada de decisão pela administração foram respeitados. Em ambos os direitos, cabe ao demandante na acção de responsabilidade civil contratual fazer prova dos requisitos de ilicitude, culpa (que em ambos os ordenamentos jurídicos se presume, dando lugar a uma inversão do ónus da prova), dano e nexo de causalidade. Ao administrador caberá, por seu lado, fazer prova de que o seu comportamento não dá origem a responsabilidade civil contratual, afastando os respectivos pressupostos. A diferença entre ambos os ordenamentos jurídicos reside no facto de, após a reforma de 2006, o direito português ter passado a consagrar a business judgement rule, o que não sucede no direito angolano. A doutrina portuguesa apresenta várias soluções quanto ao modo como deve actuar este critério de racionalidade empresarial, para efeitos de exclusão da responsabilidade dos administradores, não sendo possível, até ao momento, identificar uma corrente maioritária. No direito angolano, que se aproxima do direito português anterior à reforma de 2006, na medida em que não há consagração legal da business judgement rule, a doutrina tem defendido que os tribunais devem, ainda assim, aplicar as respectivas directizes. A violação dos 41

deveres procedimentais inerentes ao processo de decisão importa a violação do dever de diligência, que, atentas as regras da responsabilidade civil contratual e os interesses em jogo, devem merecer ponderação judicial. 3.8. EXTENSÃO

DOS

DEVERES

DOS

ADMINISTRADORES

DE

DIREITO

AOS

ADMINISTRADORES DE FACTO A existência de sociedades geridas por administradores de facto é uma realidade em ambas as ordens jurídicas, parecendo ser Angola o país onde isso se verifica em maior escala. Em ambos os ordenamentos jurídicos estudados não existe norma legal expressa que consagre a extensão dos deveres e, por consequência, das regras sobre responsabilidade civil dos administradores de direito aos administradores de facto. Porém, a doutrina de ambos os países é consensual quanto a tal extensão, atenta a identidade de funções que ambos desempenham. A diferença entre ambos os ordenamentos jurídicos reside apenas na justificação dogmática que fundamenta a responsabilidade civil dos administradores de facto. Em Angola, a doutrina defende que tal extensão se justifica em virtude de terem sido confiadas funções de administração aos administradores de facto pelos sócios ou pelos administradores de direito. Em Portugal, são diversas as soluções apresentadas pela doutrina, não se conseguindo identificar uma corrente doutrinal maioritária.

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4. CONCLUSÕES Tivemos o cuidado de chamar a atenção para as semelhanças e diferenças existentes em ambos os ordenamentos jurídicos estudados, fazendo também referência às soluções consagradas no direito português anterior a 2006 de modo a realçar em que medida o direito angolano vigente se inspirou no direito português de então. Agora, afigura-se-nos útil proceder a uma apreciação verdadeiramente global dos direitos angolano e português, de modo a tentarmos perceber as razões de ser das semelhanças e diferenças encontradas, explicando-as. E, deste modo, estaremos em condições de dar resposta às questões que colocámos no início deste trabalho: (i) em que medida o direito angolano vigente se inspirou no direito português anterior à reforma de 2006 e (ii) em que medida as soluções actualmente consagradas no direito português se afastam das soluções do direito angolano. Estas são as principais conclusões a que chegámos: 1. No que concerne à concentração do capital social das sociedades de responsabilidade limitada, constatámos uma diferença entre a realidade angolano e a portuguesa: em Portugal, o capital social está mais pulverizado (até porque existe uma bolsa de valores em funcionamento onde se transacionam participações sociais); em Angola, o capital social aparece, em geral, concentrado nas mãos de sócios de referência. 2. Talvez por esta razão as preocupações de bom governo societário que se fazem sentir em Angola procuram, acima de tudo, diminuir os conflitos de interesses que possam surgir entre os sócios de referência e a administração das sociedades, reconhecendose que aqueles procuram condicionar, em grande medida, as decisões da administração. Já em Portugal, as regras de boa governação preocupam-se em acautelar os interesses dos sócios minoritários e, de modo mais abrangente, os interesses de outros stakeholders que se relacionam com a sociedade. 3. Em 2004 (data da publicação da LSC), verificava-se uma identidade no tratamento do interesse social em ambos os direitos, que o reconduziam ao interesse dos sócios. A constatação (em 2006) de que a realidade empresarial portuguesa mudara e a permeabilidade do direito português às influências do movimento de corporate governance internacional, terão justificado a consagração de um institucionalismo moderado, fazendo com que o interesse social exija agora a ponderação dos interesses 43

de outros stakeholders a par do interesse dos sócios. Esta, parece-nos, é a diferença mais marcante encontrada neste nosso estudo comparativo. 4. O administrador que actua tendo em conta o interesse social há-de ser um administrador diligente. O dever de diligência aparece, em ambos os ordenamentos jurídicos, como a bitola geral que deve pautar toda a actuação do administrador. A identidade de tratamento do dever de diligência faz-se sentir no direito angolano e no direito português anterior a 2006. Após a reforma de 2006, constata-se a seguinte diferença: no direito angolano, a violação do dever de diligência é fundamento autónomo de responsabilidade (ilicitude e culpa); no direito português, a responsabilidade há-se surgir com a violação de deveres de cuidado (ilicitude) e de diligência (culpa). 5. Os deveres de lealdade e de cuidado aparecem como sub-deveres do dever de diligência em ambos os ordenamentos jurídicos. Verificam-se diferenças quanto à sua consagração legal expressa, quanto à sua densificação e quanto ao modo como se relacionam com o dever de diligência (diferenças que não existiam quando comparamos o direito angolano e o direito português anterior à reforma de 2006), o que permitirá à jurisprudência de ambos os países deles retirar diferentes consequências práticas. 6. Os ordenamentos jurídicos estudados afastam-se quanto aos modelos de governo que estabelecem para as sociedades anónimas (e já se afastavam se tivermos em conta o direito português anterior a 2006). Neste ponto, constata-se que o direito português é (e sempre foi) mais permeável às preocupações de corporate governance. 7. O tratamento dado aos acordos parassociais que contêm cláusulas sobre a gestão das sociedades é similar nos direitos angolano e português (este último, não sofreu qualquer alteração em virtude da reforma de 2006). 8. A business judgement rule é conhecida nos direitos angolano e português (embora neste último tenha consagração legal expressa desde 2006). Neste momento, não conseguimos ainda apurar em que medida o seu funcionamento afasta os dois ordenamentos jurídicos, o que só se conseguirá perceber em face do trabalho jurisprudencial que for sendo feito. 9. A extensão dos deveres dos administradores de direito aos administradores de facto é reconhecida pelos direitos angolano e português, não tendo em qualquer deles tratamento legal expresso e ainda que a justificação dogmática apresentada seja distinta. 44

10. Em suma, parece-nos que, em matéria de deveres legais gerais dos administradores, o direito angolano se inspirou grandemente no direito português que vigorava em 2004. Com a reforma legislativa empreendida em Portugal em 2006 os dois ordenamentos jurídicos apartaram-se ligeiramente, não sendo porém evidente que as soluções a que, na prática, conduzem se possam considerar substancialmente diversas. 11. Por tudo, parece-nos que os sócios das sociedades comerciais angolanas têm maior capacidade para influenciar os administradores, se comparados com os sócios das sociedades portuguesas.

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