Os dias que vêm

May 23, 2017 | Autor: Emmanuel Nakamura | Categoria: Politics, Marxismo, Esquerda
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Os dias que vêm 2015-08-21 22:08:10 Emmanuel Nakamura

Os dias que vêm Para a Cida «Na França, toda classe popular é idealista política e se sente em primeiro lugar não como classe particular, mas sim como representante das carências sociais em geral. Portanto, o papel emancipador passa, de acordo com uma série, em movimento dramático, pelas distintas classes do povo francês até atingir, finalmente, a classe que já não realiza a liberdade social sob a pressuposição de certas condições que se situam fora do homem e que, não obstante, são condições criadas pela sociedade humana, mas que antes organiza todas as condições da existência humana sob a pressuposição da liberdade social.»[1] Essa ideia marxiana da liberdade social pressupõe todo o desenvolvimento do idealismo alemão sintetizado na filosofia hegeliana. Ela é, por isso, sim uma ideia, e só pode ser entendida como um desdobramento da ideia hegeliana da liberdade. Por isso também, ela pressupõe um longo desenvolvimento histórico que tem seus ápices na Reforma Protestante e na Revolução Francesa. Ao afirmar que Deus mora em nossos corações, a Reforma trouxe ao mundo o princípio da liberdade particular subjetiva: apenas a nossa fé nos liga ao Espírito Absoluto. Com o Protestantismo, a separação entre as autoridades divina e estatal passa a ser um pensamento existente dentro da própria religião cristã. O princípio da liberdade protestante significa que todas as esferas da nossa vida precisam ser legitimadas pelo que nós achamos como justo. Já a Revolução Francesa foi uma tentativa de realizar a ideia filosófica da liberdade de Rousseau. Uma ideia filosófica, diante do mundo, é uma ideia abstrata e sua realização significa negar toda a realidade do mundo existente. Ao negar o mundo antigo, a Revolução Francesa abriu caminho para que a sociedade civil burguesa se desenvolvesse livremente, sem as amarras do regime feudal, e para que as constituições dos Estados modernos pudessem ser elaboradas a partir do princípio da liberdade subjetiva moderna. Para Marx, no entanto, a o princípio da liberdade protestante é a posição da verdadeira tarefa, mas não a verdadeira solução. Isso porque, com o Protestantismo e a Revolução Francesa, Estado e sociedade civil burguesa se tornam esferas completamente separadas. Essa separação é, contudo, racional, pois a modernidade ofereceria com isso uma esfera para o desenvolvimento das liberdades privadas e dos diversos grupos sociais e uma esfera para a formação política das liberdades universais de uma comunidade de direito. Dentro dessa moderna sociedade civil burguesa desenvolveu-se, entretanto, a propriedade privada capitalista e, com esta, o antagonismo entre a acumulação de riqueza de um lado, e de pobreza, do outro. O princípio da liberdade protestante significava então efetivamente que os homens eram iguais no céu e no Estado, mas desiguais na terra e na sociedade civil burguesa. Desse antagonismo social, combinado com as lutas europeias por constituições democráticas, resultou o surgimento de um novo princípio. Esse novo princípio é irreligioso, pois ele é uma negação do princípio protestante, e resulta da própria dinâmica da sociedade civil burguesa: lá se desenvolveu o pensamento na forma da universalidade de que o «homem vale, assim, porque ele é homem, e não porque seja judeu, católico, protestante, alemão, italiano etc.»[2] Por meio dessa reflexão, surgida no interior da sociedade civil burguesa, Marx conseguiu tirar consequências sociais e políticas da filosofia de Feuerbach do ser-genérico. A irreligiosidade do homem que se sente como homem, viu Marx como uma caracterização do proletariado francês. Em seu desdobramento político, a filosofia do ser-genérico colocava o povo como princípio do desenvolvimento das constituições políticas. Surgia aqui uma defesa filosófica das repúblicas modernas. Estas apresentavam um progresso, pois permitia que os conflitantes interesses sociais se desenvolvessem conforme a dinâmica da propriedade privada capitalista, e, mesmo tempo, que esses interesses sociais ganhassem a forma de um conflito político no poder legislativo. É neste âmbito que Marx formula a sua ideia de liberdade social, i. é, a ideia de que todas as condições da existência humana sejam organizadas sob a pressuposição da liberdade social. Na Europa, essa liberdade social se realizou à maneira hegeliana, ou seja, através do direito, mais especificamente, através dos direitos sociais. O que se chamou mais tarde de «propriedade social»,[3] nada mais é do que Marx já em 1842 defendia como direito de uso comum, no sentido de costume e hábito. Trata-se de um direito que conserva a natureza imediata de algo que é usado por meio de um hábito costumeiro, mas que é posto pela forma racional do direito.[4] Pois direito nada mais é do que o ser-aí da liberdade. O direito de uso comum garante às classes despossuídas meios de produção e vida.

A ideia marxiana da liberdade social se tornou um princípio que orientou a formação dos Estados sociais europeus. As classes despossuídas não encontraram neles esse direito de uso em sua integridade, mas o direito à seguridade social. Se dentro de seu contexto histórico, essa ideia se tornou um princípio de formação de Estados sociais, fora de seu contexto essa ideia marxiana da liberdade social tinha o valor de uma ideia apenas filosófica. Na Rússia, onde predominavam relações sócio-políticas pré-modernas, essa ideia desempenhou o mesmo papel que as ideias de Rousseau na Revolução Francesa: a realização da ideia abstrata de liberdade social significou a negação de todas relações sócio-políticas existentes na Rússia. Enquanto na França a realização da liberdade absoluta da filosofia resultou no terror jacobino, na Rússia resultou na ditadura do proletariado. A Europa já conhecia, no entanto, o princípio da liberdade subjetiva. Na Europa, o princípio da liberdade social orientou a luta dos diferentes grupos sociais no poder legislativo. O reconhecimento legal dos diversos grupos e interesses sociais produz o patriotismo, i. é a confiança de que os interesses sociais particulares estão contidos na formação dos assuntos universais da comunidade política. A representação política moderna apresenta, contudo, uma contradição. O voto é um ato político individual. E o sufrágio universal se apresentou como um progresso na formação dos Estados modernos, pois, por meio dele, os assuntos políticos se estenderam para todo o povo. Por meio desse ato político, o indivíduo se conecta imediatamente com a sua comunidade política, sem a mediação de uma organização social. Os avanços dos direitos sociais dependem, entretanto, da oposição que as diferentes organizações sociais exercem por meio dos deputados, eleitos pelo voto individual. O ato político do cidadão está, portanto, em contradição com a sua organização social e com a continuidade da oposição política no poder legislativo. Como resultado, o cidadão tem direitos sociais apenas ao estar conectado imediatamente, individualmente e patrioticamente com um Estado-nação. Uma nação é, contudo, um povo em sua forma natural. Tudo que é natural nasce e perece. E isso aconteceu com a ideia marxiana da liberdade social. Em seu âmbito filosófico, ela é só um desdobramento da ideia hegeliana da liberdade: Ela é, portanto, eterna. Mas, ao se degradar no mundo exterior da realidade finita dos Estados nações como um princípio de formação dos Estados sociais europeus, ela se torna necessariamente finita. Que os conflitantes interesses sociais adquiram uma significação política por meio da oposição dentro do poder legislativo, significa que a determinação legal das liberdades sociais depende dessa oposição. A forma legal de uma liberdade social não tem uma determinação imediatamente social, mas é determinada por meio dessa oposição no poder legislativo. Por um lado, o direito de uso comum tomou a forma de direito à seguridade social. Por outro lado, a propriedade privada capitalista adquiriu seu espaço livre de desenvolvimento. A representação política, ao mesmo tempo em que dava significação política aos interesses sociais, se realizava em contradição com a formação desses interesses sociais. Ao ligar os indivíduos diretamente com o Estado nação, os indivíduos se retiravam dos espaços onde seus interesses sociais se formavam. Sobrou apenas os interesses ligados à propriedade privada capitalista. O princípio irreligioso da liberdade social é uma negação do princípio da liberdade protestante. Um novo princípio dos Estados modernos não poderia mais surgir de uma confissão religiosa. Ele surgiu nas faculdades de economia das universidades austríacas e norte-americanas. Trata-se do princípio da concorrência.[5] Quando os interesses ligados à propriedade privada capitalista ganharam preponderância no poder legislativo, estes puderem se universalizar, tornando-se um novo princípio de organização dos Estados nações. Todos os Estados nações competem entre si, oferecendo espaços legais mais ampliados para os interesses ligados à propriedade capitalista. É esse princípio que atualmente tem a força espiritual de formar as instituições neoliberais e destruir as antigas, dos Estados sociais. Nos antigos Estados sociais, o princípio da concorrência reforça o patriotismo principalmente entre os indivíduos despossuídos. Isso porque o bem-estar destes indivíduos foi reconhecido por meio de um direito social, conquistado por meio de um grupo social, mas que agora está ligado diretamente ao Estado nação. Diferentes Estados nações possuem diferentes direitos sociais. Esse patriotismo está, assim, ligado a um direito social, e não à naturalidade da forma nacional de um povo. Por isso, resta uma forma reflexiva nesse patriotismo, mas o homem não vale mais aqui simplesmente porque é um homem, mas porque é um judeu, católico, protestante, alemão, italiano etc. No entanto, ao mesmo tempo, o princípio da concorrência desterra os indivíduos de seus vínculos nacionais, ao acabar com os direitos sociais. Os indivíduos passam então a se refugiar em busca de nações com mais direitos sociais, assim como a propriedade privada capitalista se move para nações onde há menos direitos sociais e espaços legais mais ampliados para se desenvolver. Os assim chamados «refugiados econômicos» refugiam de

nações sem qualquer liberdade social em nações onde restam liberdades sociais. Nesse ato de refugiar é possível reencontrar vivamente a ideia da liberdade social, só que não mais vinculada a um princípio natural de um povo, pois os refugiados mostram que são homens, e que entanto tal valem não como judeu, católico, protestante, alemão, italiano etc., mas sim porque são homens e que a ideia da liberdade social não tem barreiras nacionais. Pois, como ideia, ela é eterna, imperecível. O refúgio econômico é uma reivindicação de que todas as condições da existência humana em todo o mundo têm de ser organizadas sob a pressuposição da liberdade social. Quando isso acontecer, apenas o interesse pessoal ou a curiosidade de conhecer a forma natural de um povo, vai determinar onde um individuo quer viver. Qualquer indivíduo poderá fazer essa escolha livre de qualquer barreira natural não-reflexiva. A situação atual deve, portanto, nos encher de esperança. Emmanuel Nakamura Berlim, 20/08/2015 [1] MARX, K. Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie. Einleitung. In:Karl Marx: Werke, Artikel, Entwürfe März 1843 bis 1844. MEGA I/2. Berlim: Dietz Verlag, 1982, p. 170–183, p. 181. [2] HEGEL, G. W. F.Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse. GW 14, 1. Hamburg: Felix Meiner: 2009, § 209. [3] Cf. CASTEL, R.Les métamorphoses de la question sociale: Une chronique du salariat. Paris: Fayard, 1995. [4] Cf. MARX, K. Publizistische Arbeiten. MEGA I/1. Berlin: Dietz Verlag, 1975, p. 93–366, p. 204–9. [5] DARDOT, P.; CHRISTIAN, L. La nouvelle raison du monde: Essai sur la société néolibérale. Paris: La Découverte, 2010. Compartilhar isto: Facebook Tw eet

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