OS DIREITOS À IGUALDADE, LIBERDADE E DIGNIDADE A PARTIR DA TEORIA DO DIREITO DE IMMANUEL KANT 1

May 29, 2017 | Autor: Lorena Costa | Categoria: Human Rights, Philosophy Of Law, Immanuel Kant
Share Embed


Descrição do Produto

OS DIREITOS À IGUALDADE, LIBERDADE E DIGNIDADE A PARTIR DA TEORIA DO DIREITO DE IMMANUEL KANT1 Lorena da Silva Bulhões Costa2 RESUMO: O presente estudo teve como intenção demonstrar de que forma a teoria kantiana pode embasar os direitos a igualdade, dignidade e liberdade. Para tanto se buscou investigar tanto a teoria moral quanto a teoria jurídica de tal filósofo, bem como apontar cada um dos argumentos que fundamentam a afirmação que tais direitos podem ser derivados da filosofia kantiana. Desta forma, foram estudados os conceitos de imperativo categórico, as suas formulações que garantem tais direitos, assim como o conceito de direito em Kant que se mostra fundamental para a compreensão de liberdade. O estudo demostrou que a teoria de Kant de fato pode ser utilizada para fundamentar tais direitos, bem como explicou de que forma cada uma destas garantias pode ser derivada da natureza racional do ser humano, sem distinções de qualquer natureza, na medida em que este possui humanidade e dignidade. Tal verificação se mostrou crucial para responder ao questionamento que deu ensejo a pesquisa, qual seja, como tais direitos poderiam ser garantidos universalmente aos homens, seja no ordenamento nacional, seja em ordenamentos globais. PALAVRAS-CHAVE: Kant. Imperativo. Humanidade. Autonomia. ABSTRACT: This work has as intention to demonstrate how the kantian theory could base the rights to equality, dignity and freedom. For this we investigated both the moral theory and legal theory of this philosopher, we also tried to point out each one of the arguments that grounds the affirmation that these rights could be derived from the kantian philosophy. In this way, the idea of categoric imperative was studied, its formulations that guarantee these rights, and the idea of law in Kant, which is fundamental to the comprehension of freedom. The study had showed that the Kant’s theory could be used to ground these rights, as well as to explain how each one of these guarantees could be derived from the rational nature of human being, without distinction of any nature, according as human beings pursues humanity and dignity. This result was crucial to answer the question that started this research, that is, how these rights could be universally guaranteed to human beings, both in the national law and international law. KEY-WORDS: Kant. Imperative. Humanity. Autonomy. 1. INTRODUÇÃO O caput do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil garante, dentre outros, os direitos à liberdade, igualdade e dignidade. O mesmo está disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos que em seu artigo primeiro garante que todos os homens são

1 2

Este trabalho foi apresentado na forma de resumo expandido na 3ª Jornada de Teoria do Direito

Aluna do curso de Bacharelado em Direito na Estácio/FCAT e do curso de Licenciatura em Filosofia na UNINTER. 1

dotados de liberdade e igualdade, bem como de dignidade. Mas, para que tais direitos fossem garantidos a raça humana sem restrição alguma, entretanto, foi necessário que houvesse uma enorme evolução histórica e cultural, e antes que esta evolução atingisse seu ápice a humanidade teve que conviver com atrocidades como a escravidão. Por isso, lembra Comparato (2013), a história acerca de como tais garantias foram de fato juridicamente concedidas a todos os homens é uma das mais belas dentro de todo o curso das civilizações, já que tal narrativa culmina exatamente com o reconhecimento do igual valor de todos os homens. Mas analisar tais direitos apenas sob uma ótica legalista torna seu estudo míope. Por isso, faz-se necessário entender porque tais direitos foram garantidos a todos os homens. Em outras palavras, em que se baseia a afirmação disposta tanto no texto constitucional quanto em vários outros diplomas (como as declarações de direitos humanos) de que todos os homens devem ser igualmente respeitados e possuem direitos iguais a serem garantidos pelo Estado. Com o intuito de responder tal questionamento foi tomado como ponto de partida a filosofia de Immanuel Kant que, tanto em sua teoria moral quando em sua teoria do direito pode ser considerada uma das formas de explicar como os direitos citados acima podem ser concedidos ao homem3. Para isso, como se disse, serão investigadas duas vertentes da teoria de Kant. A primeira delas será a teoria moral do filósofo, e para tanto serão destrinchados os conceitos existentes na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde Kant busca determinar se existe uma lei moral que pode ser válida a todos os seres racionais, bem como, se for provada a existência desta, qual seria a natureza de tal lei, a qual o filósofo acaba denominando de imperativo categórico. Dentre estas fórmulas deste, neste estudo, serão abordadas com mais ênfase a Fórmula da Humanidade e a Fórmula da Autonomia, tal escolha se fundamenta no 3

Tal comparação entre o sistema internacional de proteção aos direitos do homem e a teoria kantiana pode ser vislumbrada levando em consideração dois pontos de interseção entre essas duas matérias. O primeiro ponto é o fato de que atualmente o sistema jurídico responsável pela proteção dos direitos humanos enfatiza a ideia de dignidade humana e a considera um dos pontos principais de seu ordenamento. Tal importância também pode ser vislumbrada em Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, onde o filósofo argumenta que é a dignidade que confere ao ser racional valor intrínseco, absoluto. O segundo ponto diz respeito ao fato de que os direitos em comento não são concedidos a um grupo específico de indivíduos, e sim a todo e qualquer ser humano. Tal estrutura pode ser vista nas declarações de direitos humanos. Essa universalização é bastante semelhante à pretenção de Kant em descobrir conceitos universais que se apliquem a todos os seres racionais como, por exemplo, a ideia de que a liberdade é um direito inato pertencente a todo ser humano ou que a igualdade pede ser concedida a todos os seres racionais em virtude da sua humanidade. 2

fato de que, a partir de tais formulações pode-se deduzir, respectivamente, os direitos à igualdade e à dignidade. A liberdade, terceiro direito a ser abordado neste estudo ser baseará em outro livro de Kant, este essencial para a segunda vertente da filosofia kantiana que pretendemos abordar. Tal livro é a Metafísica dos Costumes, e a partir deste será explicado de que forma Kant confere o direito a liberdade e qual a relação do sistema jurídico com este. 2. DA FUNDAMENTAÇÃO KANTIANA DO DIREITO À IGUALDADE

2.1 A fórmula da humanidade No livro “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” Kant argumenta que por meio do imperativo categórico é possível determinar quais máximas possuem conteúdo moral e, portanto, podem comandar o ser racional no exercício de sua autonomia. O imperativo categórico, possui três fórmulas, cada uma como um objetivo específico. A fórmula da lei universal (FLU) e sua subdivisão (fórmula da lei da natureza - FLN), dizem respeito à forma que o imperativo deve possuir. Tais fórmulas prescrevem dois testes ao qual a máxima4 do sujeito deve ser submetida para, a partir de tais testes, determine-se se esta máxima poderá ser universalizada como lei suprema da moral. (WOOD, 1999) Na fórmula da humanidade (FH), segunda formulação do imperativo categórico, entretanto, Kant não se preocupará com a forma que a lei moral deve possuir, e sim, com a sua matéria, ou com o seu valor. A fórmula da humanidade procurará o motivo5 que o sujeito possui para obedecer a lei moral. Isto demostra que os testes da Fórmula da lei universal e a fórmula da lei da natureza não são a versão mais completa do imperativo categórico, e que fato de que uma ação é permitida ou foi admitida nos testes das duas primeiras fórmulas não é razão suficiente para realizar tal ação. O motivo para agir de determinada forma deve ser algum tipo de valor positivo que vai além dos testes das duas primeiras formulações. Deste fato não se deve inferir, no entanto, que as duas formulações são totalmente desconexas. O

De acordo com Kant, máxima é o princípio subjetivo pelo qual o sujeito guia sua ação, enquanto a lei é o princípio objetivo. 4

5

Motivo, para Kant, é a determinação da vontade por meio da razão, e não por razões empíricas. Este último tipo de determinação Kant denomina de intenção. 3

objetivo da fórmula da humanidade é justamente promover a conexão, (sintética e a priori6) do motivo que baseia a obediência a um imperativo categórico com o conceito deste, exposto na fórmula da lei universal. (WOOD, 1999) A fórmula da humanidade, segundo Kant a descreve na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, é a seguinte: “Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim, nunca meramente como meio.” (KANT, 2009, p. 243) Wood (1999) observa que neste ponto a teoria kantiana pode parecer contraditória, haja vista que, se é exigido que as ações conforme o imperativo categórico sejam realizadas tendo como motivo apenas o cumprimento da lei moral, então como admitir que a humanidade é o fim da lei moral? Segundo o autor tal equívoco é apenas ilusório. O que Kant nega são aqueles fins a serem efetivados pelo mero desejo do sujeito ou que serão produzidos por este, e não fins que já existem, como a humanidade. A existência deste fim, Kant argumenta na Fundamentação, é o que concede ao imperativo categórico o fundamento objetivo que este necessita. Mas o que seria a humanidade ou a natureza racional? Em Kant há uma diferenciação entre “personalidade”, “humanidade” e “animalidade”. O primeiro conceito trata da capacidade de respeito à lei moral. Kant relacionará a personalidade com a autonomia, na medida em que o ser racional é capaz de impor a ele mesmo a lei moral, sendo este o fundamento da dignidade. O terceiro conceito diz respeito a autopreservação, aos instintos. A humanidade é o meio termo entre os dois. Esta diz respeito a todas as capacidades racionais do indivíduo, não somente àquelas relacionadas a moralidade. A humanidade também diz respeito a comparação entre fins estabelecidos pela razão. Ou seja, a humanidade reside na capacidade do ser racional de se guiar por fins que foram escolhidos racionalmente, bem como de organizar tais fins em um sistema, não havendo necessidade destes possuírem conteúdo moral. (WOOD, 1999) Mas, se a busca de Kant sempre coloca em destaque a ação moral, por que então considerar a humanidade, e não a personalidade como fim em si mesmo? Wood (1999) aponta duas razões para esta escolha. A primeira é o fato de que respeitar a natureza racional significa

6

Proposições sintéticas a priori são aquelas onde não é necessária uma experiência (geralmente exigida em proposições sintéticas) para que se possa conectar o conceito do predicado ao conceito do sujeito. A possibilidade de tais juízos é provada por Kant Crítica da Razão Pura. 4

respeita-la em todas as funções, não somente em relação a sua função de respeitar a lei moral. Segundo, para pressupor um imperativo categórico o conceito envolvido deve possuir necessidade, ou seja, não pode ser meramente contingente. Se Kant admitisse que o fim em si mesmo se liga somente às ações morais então esta fórmula seria contingente, haja vista que nem sempre o ser racional agirá de acordo com a lei moral. Mesmo que a racionalidade possa ser considera em diferentes graus, haja vista que nem todos os seres racionais possuem a mesma capacidade, Kant argumenta que a qualidade de fim em si mesmo é absoluta, ou seja, não vem em degraus. E, uma vez que o ser racional consegue estipular fins para sua ação ele terá valor em si mesmo, independente de quais sejam estes fins. Kant conclui, então, que o valor atribuído a natureza racional é derivado do fato de que somente esta pode estabelecer os fins que pretende alcançar, sendo este valor igual para qualquer ser racional. (WOOD, 1999)

2.2 O igual valor de todos os seres racionais como consequência da Fórmula da Humanidade De acordo com Wood (1999), o fato de que cada ser racional possui um valor absoluto que não pode ser suprimido, e que este valor provém do simples fato de este ser racional ser capaz de estabelecer fins para sua ação, tem uma consequência imediata: Todos os seres humanos são iguais. Aquele ser humano que escolhe sempre a melhor ação a seguir, será igual àquele que escolhe sempre a pior. Aqui, para Kant, comparações que geralmente fazemos para estabelecer disparidades entre seres humanos tal como quem possui mais honra, poder ou prestígio não são válidas e não representam o valor de nenhum ser racional. A única forma de comparação que Kant admite é a de que um ser racional poderá ter um valor interno na medida em que cumpre a lei moral, mas este valor interno poderá ser considerado somente se o ser racional for comparado consigo mesmo ou com a lei moral, nunca com outro indivíduo. O mérito derivado do cumprimento de ações morais também não deverá ser mensurado através da comparação entre pessoas. Em outras palavras: a diferença de valor interno, em Kant, não afeta o valor igual que todos os seres racionais possuem, uma vez que a comparação para que este valor interno seja estabelecido será sempre com a lei moral ou com o próprio ser racional, nunca com outro indivíduo. (WOOD, 1999) Cada ser humano é igual ao outro, por ser capaz de estabelecer fins para si mesmo e por possuir o valor absoluto relacionado à fórmula da humanidade: a dignidade. Este valor 5

absoluto, segundo Wood (1999) pode ser extraído da seguinte passagem da Fundamentação: “Supondo, porém, que haveria algo cuja existência tenha em si mesma um valor absoluto - o que enquanto fim em si mesmo, poderia ser um fundamento de leis determinadas - então encontrar-se-ia nele e tão-somente nele o fundamento de um possível imperativo categórico, isto é, lei prática.” A humanidade, como valor absoluto, portanto, está eivada de dignidade e por conta disso nenhum ser racional poderá ser negociado, comparado ou substituído. Segundo Wood (2008), o termo “dignidade” é tradicionalmente relacionado com classes que possuem um status social que faz com que estas classes sejam mais valorizadas do que outras. A partir de Kant, entretanto, este termo passou a denominar o valor absoluto que o ser racional possui por ser capaz de fazer escolhas racionais, este valor gera a igualdade de todos os seres racionais na medida em que não importa se o indivíduo é rico ou pobre, bom ou mau, importa somente o fato de que este indivíduo é capaz de determinar quais fins vai seguir, sendo, portanto, igual a todos os outros seres racionais.

3. O DIREITO À DIGNIDADE 3.1. A Fórmula da Autonomia Como consequência da Fórmula da Lei Universal e da Fórmula da Humanidade surge a terceira e última fórmula do imperativo categórico, a saber, a Fórmula da Autonomia (FA): “(...) A ideia da vontade de todo ser racional como uma vontade legisladora universal”. Tão logo se lê a fórmula acima descrita, tem-se a impressão de que há algo de errado com a teoria kantiana. Se a minha vontade é capaz de legislar universalmente então como a lei moral pode ser válida para todos os seres racionais? Aqui parece que Kant acaba deixando a lei moral ao simples arbítrio de cada ser racional. No entanto, segundo Wood (1999), o fato de Kant utilizar a palavra “ideia” na Fórmula da Autonomia afasta este problema inicial. “Ideia”, para Kant, é um conceito da razão que não possui qualquer correspondência no mundo físico. Desta forma, fundamentar a moralidade tendo por base a vontade do ser racional não é simplesmente deixa-la ao simples arbítrio deste, e sim, fazer com que este, seja limitado, na hora de sua escolha, a certos limites impostos pela razão. Argumentar que a lei moral é, portanto, a ideia da vontade, é basear esta lei em uma verdade, e não no desejo arbitrário de seres racionais.

6

Kant argumenta que da Fórmula da Lei Universal e da Fórmula da Humanidade segue-se a Fórmula da Autonomia. A relação entre estas três fórmulas, mais especificamente a relação entre a Fórmula da Autonomia e as demais, não pode ser entendida através de uma analise textual das três. A melhor forma de entender como a Fórmula da Autonomia pode ser derivada das outras duas fórmulas é analisando o conteúdo de cada uma para então derivar a última fórmula. Nas palavras de Wood (1999, p. 158): A fórmula da Lei Universal é baseada no mero conceito de um imperativo categórico, e este pensamento naturalmente nos leva depois a inquirir a autoridade que pode fundamentar tal princípio. A Fórmula da Humanidade identifica a natureza racional como o valor fundamental por detrás de todos os princípios morais, o que nos propõe a investigar qual princípio pode residir neste valor fundamental. Colocando estes dois pensamentos juntos, e endereçando as duas questões que eles provocam, nós chegamos a um terceiro pensamento, qual seja, de que o valor da vontade racional pode servir como autoridade para uma lei universal objetiva comandando categoricamente. Isso também estende a concepção de humanidade, a capacidade de estabelecer fins tendo valor objetivo, com a de personalidade, a capacidade de estabelecer leis determinam todo o valor objetivo. Isto nos leva a Fórmula da Autonomia, “a ideia de todo ser racional como uma vontade dando leis universais” (TRADUÇÃO LIVRE)

Segundo Wood (1999), Kant determina que uma lei fundada em interesses externos não pode comandar categoricamente, haja vista que tal lei iria necessitar que outra lei que limitasse a atuação do interesse próprio e, por conta do caráter limitado de tal lei, ela não poderia obrigar de forma categórica e incondicional. A lei moral, então, deve ter como fundamento o valor absoluto do ser racional na medida em que este obedece a lei. Tal prerrogativa, que devo respeitar tanto em mim quanto nos outros, é objetiva somente com base na ideia de vontade7 . E na medida em que eu me estimo como um ser racional, a ideia de uma lei dada por esta vontade racional pode também ser concebida como obrigatória, mesmo

7

Vontade, segundo Kant, é a capacidade, que somente o ser racional possui de se guiar por meio de leis, que ele mesmo escolhe. Se estas leis são leis da razão, ou seja, não têm em sua base motivos empíricos então a vontade é autônoma, e esta vontade serve como fundamento para o valor absoluto do ser racional. 7

que tenha sido estabelecida por mim mesmo. Portanto, a lei moral obrigará o ser racional que se auto legisla somente através do respeito8. Assim conclui-se que a lei moral não confere somente valor aos fins determinados pela razão, mas confere também validade às leis dadas pela razão na medida em que determina os padrões fundamentais para as ações por dever. A natureza racional possui, então, um valor singular na teoria kantiana, haja vista que esta determina a obrigatoriedade das leis. Deste modo a natureza racional possui tanto valor objetivo quanto valor absoluto (dignidade). Kant entende, então, que a autonomia, ou a capacidade de se auto legislar é a única forma de lei moral que pode existir, já que qualquer outro tipo de princípio precisaria apelar para causas exteriores, e, portanto, contingentes. (WOOD, 1999)

3.2. O Direito à Dignidade como Consequência da Fórmula da Autonomia Kant afirma, na terceira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que tudo aquilo que tem um preço pode ser sacrificado ou trocado por algo equivalente. Aquilo, entretanto, que possui um valor absoluto, isto é, que não pode ser trocado ou substituído, possui dignidade, e esta troca não pode ocorrer nem por algo que também possui dignidade (que, por conta disto, possui valor absoluto). Este valor absoluto de todo ser racional por conta de sua capacidade de estabelecer fins morais para si e segui-los é um dos pontos basilares da teoria kantiana. (WOOD, 2008) Se o valor da humanidade, que fundamenta, segundo Wood (2008), o valor à igualdade remete a capacidade de todo ser racional de escolher os propósitos que deseja seguir, a dignidade irá residir na capacidade de estabelecer leis morais e segui-las. Esta capacidade, que Kant classifica como a natureza racional de uma pessoa9 , é o que ele valora fundamentalmente em sua teoria. Aqui, entretanto, é importante estabelecer uma diferença. Kant relaciona a dignidade que todo ser humano possui com a capacidade de agir moralmente, mas ele não diz que a dignidade é contingente à ação moral, ou seja, que o ser racional somente possuirá dignidade na medida em que agir de forma moral. Por conta do

8

Para Kant, respeito é a consciência, que o ser racional possui, da subordinação de sua vontade à lei moral, sem que hajam, nesta subordinação, outras influências dos sentidos. É, portanto, o efeito que o respeito pela lei moral provoca no ser racional, nunca, entretanto, a sua causa, uma vez que a causa das ações de acordo com a lei moral devem ser sempre a lei em si mesma.

8

papel fundamental da dignidade na teoria kantiana, qualquer coisa que possua valor, o terá em virtude deste valor básico conferido à dignidade. Portanto coisas como a felicidade, por exemplo, podem ser valoradas porque foram racionalmente escolhidas. Tal escolha racional, entretanto, não deve ser arbitrária. O valor absoluto é objetivo, e por possuir tal característica, deverá ser conferido a algo que a própria razão já considera como possuidor de algum valor absoluto. (WOOD, 2008) Segundo Guyer (2005), a autonomia é respeitada, e fundamenta o valor absoluto do ser racional porque representa a capacidade deste de ser livre da dominação das inclinações e da vontade de outros seres racionais e a este fato Kant confere respeito e nisto fundamenta a dignidade. A liberdade de agir de acordo com meras leis da natureza e agir de acordo com leis da razão, confere dignidade à autonomia e, portanto, a todos os seres racionais. O que merece respeito, portanto, são as atividades da vontade, nunca a mera dominação por leis da natureza ou pela vontade de outro ser racional. Segundo Wood (2008), o respeito à dignidade de um indivíduo não pode entrar em conflito como o respeito a dignidade de outro e, por conta disto, os fins escolhidos por todos os indivíduos devem ser combinados para formar o que Kant denomina de Reino dos Fins.

4. DA FUNDAMENTAÇÃO KANTIANA DO DIREITO À LIBERDADE 4.1 O conceito de direito em Kant Por fim, resta demostrar de que forma o direito à liberdade pode ser extraído a partir da teoria kantiana. O conceito de liberdade perpassa por toda a teoria de Kant, desde a Crítica da Razão Pura, passando pela Fundamentação da Metafísica dos Costumes, livros nos quais Kant não consegue provar a realidade prática da liberdade. Tal conceito é o ponto central da segunda crítica kantiana (a crítica da razão prática), onde, por meio do factum da razão Kant finalmente prova que a liberdade tem realidade prática. Por fim, a liberdade também é abordada do ponto de vista da filosofia do direito de Kant e constitui-se como um de seus pontos principais. É a partir deste ponto de vista que a liberdade será abordada aqui. Kant, desde a Crítica da Razão Pura, já formula as bases para a sua filosofia do direito, que mais tarde será totalmente desenvolvida na Metafísica dos Costumes. Naquele livro Kant já argumenta que a liberdade de cada indivíduo deverá coexistir com a liberdade dos outros e que este princípio deverá ser a base de todas as leis a serem promulgadas. Posteriormente 9

Kant formula seu sistema de princípios do direito que, tem como principal objetivo, a fundamentação de limitações para a atuação no Estado, e, por conta disto, é responsável por fornecer a ideia moderna de direitos humanos, bem como estabelecer o papel e o âmbito de atuação do direito público e privado, em questões como o direito à propriedade e o papel do estado na aplicação de penas criminais. (HÖFFE, 2005) A filosofia do direito de Kant terá como fundamento princípios a priori, ou seja, que não dependem de conclusões tiradas do mundo empírico. Segundo Kant, o direito não pode se deixar enganar pelas experiências empíricas e, assim como no restante de seu sistema filosófico, ele argumenta que a experiência não pode ser utilizada como embasamento, por ser fonte de ilusões e dúvidas, em função de seu caráter mutável. O conceito de direito em Kant será, portanto, racional. Por conta disto, o filósofo do direito não será responsável pela criação do sistema jurídico, e sim, apenas dos conceitos que servirão de critérios de avaliação para determinar quais leis são legítimas. Desta forma o filósofo não substitui o legislador, mas este tampouco deve ignorar o trabalho daquele, uma vez que a determinação dos princípios do direito que definirão a legitimidade das leis é função do filósofo. Kant, entretanto, não ignora que, para o direito, não somente princípios a priori são necessários, mas também, elementos empíricos. Estes elementos, no entanto, possuem importância para a aplicação do direito, e não como fundamentos do mesmo, sendo assim, o direito privado não pode ser tomado totalmente dissociado de elementos empíricos, ao contrário do conceito de direito, que não necessita de tais elementos. (HÖFFE, 2005) Para Kant, os deveres de direito não se confundem com os deveres de virtude (aqueles ligados a moral). Apesar de ambos serem conceitos da razão, e não da experiência, o direito refere-se somente àquelas ações que possuem relevância do ponto de vista da liberdade externa, enquanto a doutrina da virtude leva em consideração as orientações internas. A filosofia jurídica de Kant, rejeita, portanto, uma visão moralizante do direito, ou seja, nega que os sistemas jurídicos têm o papel de promover a virtude dos indivíduos. Não pertencem ao âmbito do direito, por conseguinte, as discussões acerca dos aspectos internos das ações tais como interesses, impulsos, paixões, etc. Estes elementos terão relevância somente quando tiverem impacto direto na liberdade externa. A atitude que está na base da ação, então, não possuirá relevância para o direito. Tal característica será utilizada como forma de determinar quais leis são justas. O Estado, em Kant, tem o papel apenas de promover ou manter a liberdade externa, e se este começa a promulgar leis que visam aumentar a felicidade ou a 10

virtude de seus cidadãos, então este Estado se torna injusto. Kant admitirá leis que promovam a felicidade somente quando estas têm como principal objetivo a manutenção do estado interno ou como defesa contra inimigos externos. (HÖFFE, 2005) De acordo com Höffe (2005), o ponto central da teoria de Kant, portanto, será o questionamento acerca de quais as condições sob as quais os sujeitos poderão exercer sua liberdade externa, uma vez que, como foi dito anteriormente, o papel principal do Estado e do direito será o de promover e manter a liberdade externa dos cidadãos, e legítimas serão aquelas leis garantirem a compatibilidade da liberdade externa. Este critério para a aplicação do direito será equivalente, segundo Höffe (2005), ao Imperativo Categórico na filosofia moral kantiana, este obrigando a vontade a cumprir as máximas auto-impostas e aquele obrigando os indivíduos pertencentes a uma comunidade de liberdade externa a cumprir com a legalidade universal. Kant desenvolverá o conceito de liberdade externa a partir do princípio universal do direito, que será desenvolvido no tópico a seguir.

4.2 O Direito Inato: A Liberdade. Kant delineia, na Metafísica dos Costumes, o princípio universal do direito, qual seja: “age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (KANT, 2010). Segundo Ripstein (2009), este princípio tem como consequência imediata um direito inato: a liberdade, que será conferida a cada ser racional em virtude de sua humanidade, ou seja, sua capacidade de determinar suas escolhas. Em suma, todo ser racional tem o direito de ser seu próprio mestre. A liberdade também não pode ser analisada do ponto de vista de um indivíduo isolado, e sim, da interação entre dois ou mais indivíduos possuidores de liberdades externas iguais. Além disso, a ação de todos os indivíduos, como dispõe o princípio citado, deve estar de acordo com uma lei universal, isto é, uma lei que impõe a todos a mesma restrição. Um conceito fundamental para o princípio exposto acima é o de independência. Este conceito, diz respeito a uma não sujeição de um indivíduo as escolhas de outro e gera a igual liberdade de todos. Entretanto, a liberdade externa, entendida como independência, não é um direito absoluto, uma vez que, se assim fosse, seria impossível fazer com que duas liberdades ilimitadas coexistissem, gerando assim, uma contradição irremediável dentro do princípio 11

universal do direito. Por conta disso, Kant traça alguns limites que ele denomina de “matéria de escolha”, ou seja, o fim particular que o indivíduo possui. Inevitavelmente pode ocorrer de um fim escolhido pelo indivíduo A se torne impossível de ser cumprido pelo resultado do fim escolhido por B, isso não constitui uma limitação ou um desrespeito à liberdade, uma vez que o poder de escolha de ambos não foi tolhido. Portanto, a liberdade em Kant, deve ser entendida como pertencente a um sistema de limites recíprocos, mas em cuja base encontra-se a prerrogativa de que ninguém deverá ser impedido por outro na escolha de deus propósitos. Estes limites recíprocos são incondicionais, isto é, não dependem de nenhuma condição empírica específica para se concretizar, e sua aplicação também será incondicionada, porque tais limites não têm como objetivo atingir outro fim. (RIPSTEIN, 2009) Como foi dito acima, em Kant a liberdade é considera o direito inato do homem, do qual decorrem outros direitos, como, por exemplo, o direito à propriedade. Segundo Ripstein (2009), a argumentação acerca do direito inato feita por Kant pode ser dividida em duas partes. Na primeira Kant dispõe que os indivíduos possuem um direito inato, em virtude de sua humanidade, e tal direito não necessita de qualquer ato jurídico para ser válido. Na segunda parte, Kant usa o imperativo honeste vive, do jurista romano Ulpiano, para determinar que há uma limitação do indivíduo em relação ao uso da liberdade e esta limitação consiste na proibição deste indivíduo de se fazer como mero meio para os fins dos outros agentes racionais. Tal limitação é importante para a doutrina do direito de Kant e dela decorrerão regras basilares do direito público e privado. Tais ramos do direito decorrem imediatamente da independência, uma vez que este conceito deve ser entendido apenas como o primeiro passo para determinar as regras pelas quais os indivíduos exercerão sua liberdade externa. Kant, além de determinar o direito como um modo pelo qual a liberdade de todos deve ser respeitada, define-o na Metafísica dos Costumes, como: “a possibilidade de um uso inteiramente recíproco de coerção que é compatível com a liberdade de todos de acordo com leis universais” (KANT, 2010 p. 55). Para Kant, a coerção não é somente uma ameaça ou perigo, e sim, uma limitação da liberdade, ou seja, a coerção é o ato pelo qual uma pessoa sujeita outra a suas escolhas. Isso expande o conceito de coerção, fazendo com que tal conceito seja entendido tanto como um ato quanto como a ameaça de tal ato. Kant argumenta que a coerção não deve ser entendida somente em relação aos seus efeitos, mas também tendo como pano de fundo a ideia de 12

liberdade igual (RIPSTEIN, 2009). E se, segundo Ripstein (2009), a coerção é justificada somente quando ocorre restrição da liberdade não há de ser identificada com a sanção. Tanto a agressão quando a defesa são coercitivas, sendo esta última o modo pelo qual o agente defende sua liberdade. O sistema de coerção de Kant funciona da seguinte forma: um indivíduo A, pratica um ato que atenta contra a liberdade de outro indivíduo. Este ato é errado. Então um segundo ato, restringe a liberdade do indivíduo A, a fim de preservar o sistema de liberdade externa. Este segundo ato, entretanto, não é errado como o primeiro, porque tem como propósito restaurar a liberdade que foi suprimida pelo primeiro ato. A coerção aqui tem, portanto, a função de restaurar o direito original à liberdade.

5. CONCLUSÃO Nota-se, portanto, que a teoria kantiana tanto em relação a moral, quanto no que diz respeito ao teoria do direito é capaz de fornecer uma justificativa para os direitos elencados na Constituição Federal e nas diversas normas de direitos humanos. Tal fato ocorre porque na teoria kantiana as noções de liberdade, igualdade e dignidade ocupam posições basilares de onde Kant retira a maior parte das consequências de sua teoria moral, bem como fundamenta toda a sua filosofia jurídica. Por certo não se pode dizer que os legisladores tinham em mente a teoria kantiana quando elaboraram, por exemplo, a convenção européia de direitos humanos, entretanto aquela oferece um esquema de interpretação convincente para que tais direitos sejam explicados. Verificou-se, portanto, que o direito à igualdade pode derivado da segunda formulação do imperativo categórico, e que desta também pode ser deduzido o direito à dignidade, que, neste caso, também confere igualdade a todos os seres racionais. Tal direito, em Kant, pode ser deduzido através da capacidade de todo ser racional de escolher fins para sua ação, e que, portanto, comparações entre indivíduos não são permitidas. Através da terceira formulação da lei moral kantiana foi possível deduzir o direito à dignidade, como valor absoluto conferido a todos os seres racionais em virtude da capacidade possuída por estes de não se submeterem somente a leis empíricas. E, por fim, por meio da filosofia do direito de Kant foi possível provar que a manutenção da liberdade é o motivo pelo qual há sistema jurídico e que aquela deverá ser conferida a todos os seres racionais, e que tal prerrogativa deverá ser respeitada sempre tanto pelo Estado quando pelos demais indivíduos. 13

Percebe-se, portanto, que apesar de não ser a única teoria a apresentar uma fundamentação para o sistema de direito humanos, a filosofia de Kant é capaz de explicar de que forma tais prerrogativas podem ser garantidas (e, portanto, exigidas) a todos os seres racionais, e tal passo foi essencial na história da humanidade, para que a partir dele começássemos a deixar para traz preconceitos, abusos e atrocidades perpetradas contra a humanidade. REFERÊNCIAS COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

GUYER, P. Kant’s System of Nature and Freedom: Selected Essays. New York: Oxford University Press, 2005

HÖFFE, O. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KANT, I. Metafísica dos Costumes. São Paulo: Folha de São Paulo, 2010.

______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla: 2009.

RIPSTEIN, A. Force and Freedom. Massachusetts: Harvard University Press, 2009.

WOOD, W. A. Kant’s ethical thought. New York: Cambridge University Press, 1999.

______. Kantian Ethics. New York: Cambridge University Press, 2008.

14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.