Os direitos culturais no direito internacional, na União Europeia e no constitucionalismo brasileiro

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Referência: AMATO, Lucas Fucci. Os direitos culturais no direito internacional, na União Europeia e no constitucionalismo brasileiro. Mimeo. 2012. Disponível em: .

OS DIREITOS CULTURAIS NO DIREITO INTERNACIONAL, NA UNIÃO EUROPEIA E NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO

Lucas Fucci Amato

SUMÁRIO Introdução, p. 1 1. O direito à cultura nos tratados internacionais de direitos humanos, p. 2 1.1. Sistema internacional universal (ONU/ UNESCO), p. 2 1.1.2. Os direitos humanos culturais nos tratados da UNESCO, p. 9 1.2. Sistemas internacionais regionais de direitos humanos, p. 25 2. Cultura e direitos culturais na União Europeia, p. 36 3. Direitos culturais no constitucionalismo brasileiro, p. 41 Referências bibliográficas, p. 56

Introdução Este trabalho recobre parte da pesquisa realizada no projeto de iniciação científica Impactos desdiferenciantes da política e da economia sobre os direitos humanos: o caso do direito à cultura, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo entre setembro de 2010 e setembro de 2012. O texto esboça um panorama das fontes normativas do direito à cultura (ou dos direitos culturais), primeiramente na ordem jurídica internacional, abrangendo o sistema onusiano, tratados específicos da agência especializada da ONU para a cultura – a UNESCO – e sistemas regionais de direitos humanos (interamericano, europeu e africano). A seguir, trata de aspectos dos direitos culturais na ordem jurídica

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comunitária da União Europeia. Finalmente, traça um histórico do direito à cultura no constitucionalismo brasileiro, com especial destaque para a Constituição de 1988.

1. O direito à cultura nos tratados internacionais de direitos humanos Neste tópico, destaca-se uma análise dos textos normativos1 e instituições do direito internacional no que toca especificamente à tutela dos direitos culturais. É analisada a inserção dessa matéria na ordem jurídica internacional universal, construída no âmbito da Organização das Nações Unidas e de sua organização especializada em cultura, a UNESCO. A seguir, aponta-se o tratamento da matéria nos sistemas internacionais de direitos humanos – o europeu, o (inter)americano e o africano –, o que pressupõe uma revisão sobre a estrutura e o funcionamento desses sistemas.

1.1. Sistema internacional universal (ONU/ UNESCO) Adotando-se aqui a tradicional divisão do direito internacional em textos normativos jurídicos e instituições de vocação universal e de vocação regional, o primeiro passo é uma abordagem do direito à cultura no sistema da Organização das Nações Unidas (ONU) e, a seguir, procede-se a uma visão deste direito nos sistemas regionais de direitos humanos, destacando-se os sistemas europeu, (inter)americano e africano. Como organização internacional de maior abrangência, a ONU nasceu já prevendo na Carta de São Francisco (1945), dentre seus objetivos, a cooperação cultural2, temática que é trabalhada no âmbito da Assembleia Geral3 (da qual o

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Adotou-se o uso da expressão “tratados internacionais” em sentido amplo. Em sentido estrito, podem ser diferenciadas: as recomendações, “simples resoluções adotadas por organizações internacionais que não vinculam os Estados membros” (White, 1996: 92); as declarações, “em essência princípios gerais de direito estabelecidos em uma resolução não vinculante” (White, 1996: 100); as determinações, consistentes na “aplicação desses princípios gerais, ou dos princípios de um documento constitutivo, a um particular conjunto de fatos ou uma disputa” (White, 1996: 100); e as convenções, tratados promulgados por órgãos plenários de organizações internacionais a serem ratificados por Estados membros dessas organizações (cf. White, 1996: 103-6). 2 Carta da ONU, Artigo 1: “Os propósitos das Nações unidas são: [...] 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e [...] 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns”. Carta da ONU, Artigo 55: “Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: [...] a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; [....] b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de

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Conselho de Direitos Humanos é órgão subsidiário) e, mais especificamente, pelo Conselho Econômico e Social4, que tem dentre suas agências especializadas a Organização das Nações Unidas para Ciência, Educação e Cultura (UNESCO)5. Além dos tratados internacionais sobre direitos culturais, um marco na definição de tais direitos foi a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que afirmou a categoria dos “direitos sociais, econômicos e culturais”6 (ao lado dos “direitos civis e políticos”) e, quanto aos direitos (humanos) culturais, previu direitos de liberdade e de participação na vida cultural, incluindo a proteção de direitos de autor7. A bipartição das categorias de direitos humanos, progressivamente relativizada – como na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 19868 e na Conferência Mundial dos Direitos Humanos de 19939 – permaneceu na elaboração do Pacto

caráter cultural e educacional; e [....] c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. 3 Artigo 13, 1: “A Assembléia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: [...] b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. 4 Artigo 57, 1: “As várias entidades especializadas, criadas por acordos intergovernamentais e com amplas responsabilidades internacionais, definidas em seus instrumentos básicos, nos campos econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos, serão vinculadas às Nações Unidas, de conformidade com as disposições do Artigo 63. 2. Tais entidades assim vinculadas às Nações Unidas serão designadas, daqui por diante, como entidades especializadas”. Artigo 62, 1: “O Conselho Econômico e Social fará ou iniciará estudos e relatórios a respeito de assuntos internacionais de caráter econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos e poderá fazer recomendações a respeito de tais assuntos à Assembléia Geral, aos Membros das Nações Unidas e às entidades especializadas interessadas”. 5 Constituição da UNESCO [1945], Artigo 1, 1: “1. O propósito da Organização é contribuir para a paz e para a segurança, promovendo colaboração entre as nações através da educação, da ciência e da cultura, para fortalecer o respeito universal pela justiça, pelo estado de direito, e pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, que são afirmados para os povos do mundo pela Carta das Nações Unidas, sem distinção de raça, sexo, idioma ou religião”. 6 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo 22: “Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade”. 7 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo 27: “1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. [...] 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”. 8 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, Artigo 6, 2: “Todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.” 9 A Conferência Mundial dos Direitos Humanos destacou: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais” (Art. 5º da Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993).

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Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ambos de 1966 – embora já se reconhecesse o mútuo condicionamento entre as categorias de direitos; vide, por exemplo, os preâmbulos de ambos os Pactos, nos quais se consigna o reconhecimento de que, “em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais”. Se se entendessem as categorias de direitos humanos aí elencadas em um sentido sistêmico mais bem delineado, resultaria uma implosão da referida dicotomia: dentre os direitos econômicos estaria, por exemplo, a liberdade de atividade econômica; dentre os direitos culturais, a liberdade de expressão artística, por exemplo. Na verdade, tal bipartição, que resulta dos conflitos político-ideológicos daquele momento (Guerra Fria), não tem um fundamento jurídico estrutural que a sustente. Os direitos culturais são um grande exemplo nesse sentido, já que, entendidos em um sentido próprio (direitos referentes ao âmbito cultural), apresentam dispositivos relevantes em ambos os Pactos de 1966. No Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o direito político de autodeterminação dos povos já traz em si importante componente cultural: a autodeterminação dos povos na condução de seu desenvolvimento cultural. Reza o artigo 1º, 1: “Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam

livremente

seu

estatuto

político

e

asseguram

livremente

seu

desenvolvimento econômico, social e cultural”. Outro direito neste Pacto consignado é o de respeito à cultura das minorias – que poderíamos definir como comunidades culturais no interior de um país cuja cultura tem uma pequena comunicabilidade naquele país, uma baixa representatividade no que se entende por cultura nacional. Nesse sentido, o artigo 27 prescreve: “No caso em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. O direito civil de liberdade de expressão inclusive na esfera artística é previsto no artigo 19, 2: “Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar,

receber

e

difundir

informações

e

ideias

de

qualquer

natureza, 4

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independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha”. Já o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais repete o direito à autodeterminação, inclusive cultural, dos povos10, e consagrou como dispositivo nuclear no tratamento do direito à cultura seu artigo 1511, no qual previramse os direitos à participação na vida cultural, à proteção dos direitos de propriedade intelectual e à liberdade de criação artística, bem como registrou-se o dever de o Estado fomentar a conservação, o desenvolvimento e a difusão da cultura. Ao longo das décadas, inúmeros tratados internacionais de direitos humanos trouxeram disposições com referência a direitos culturais, como, em uma relação meramente ilustrativa: a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986), que se referiu também ao “desenvolvimento cultural”12; a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989)13; a Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992)14; as Regras Gerais sobre a Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiências

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Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Artigo 1º, §1º: “§ 1. Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. 11 Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Artigo 15: “§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de: [...] 1. Participar da vida cultural; [...] 2. Desfrutar o progresso científico e suas aplicações; [...] 3. Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda a produção científica, literária ou artística de que seja autor. [...] §2. As medidas que os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito incluirão aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura. [...] §3. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável à pesquisa científica e à atividade criadora. [...] §4. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais no domínio da ciência e da cultura”. 12 Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, Artigo 1, 1: “O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados”. 13 Convenção sobre os Direitos da Criança, Artigo 30: “Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas ou pessoas de origem indígena, nenhuma criança indígena ou que pertença a uma dessas minorias poderá ser privada do direito de, conjuntamente com membros do seu grupo, ter a sua própria vida cultural, professar e praticar a sua própria religião ou utilizar a sua própria língua”. Artigo 31: “1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito ao repouso e aos tempos livres, o direito de participar em jogos e actividades recreativas próprias da sua idade e de participar livremente na vida cultural e artística. 2. Os Estados Partes respeitam e promovem o direito da criança de participar plenamente na vida cultural e artística e encorajam a organização, em seu benefício, de formas adequadas de tempos livres e de actividades recreativas, artísticas e culturais, em condições de igualdade”. 14 Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Princípio 22: “As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades locais, têm papel fundamental na gestão do meio-ambiente e no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e práticas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e apoiar de forma apropriada a identidade, cultura e interesses dessas populações e comunidades, bem como habilitá-las a participar efetivamente da promoção do desenvolvimento sustentável”.

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(1993)15; a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006)16. Cabe destacar, com mais ênfase, os tratados que especificamente firmaram o marco dos direitos culturais como direitos humanos – embora aqui também não se tenha uma pretensão de completude taxativa17. Esses tratados serão analisados no subtópico a seguir. 15

Regras Gerais sobre a Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiências, Regra 10: “Cultura. [...] Os Estados devem garantir que as pessoas com deficiências se integrem e possam participar nas atividades culturais, em condições de igualdade com as demais. [...] 1. Os Estados devem assegurar que as pessoas com deficiências tenham oportunidade de utilizar o seu potencial criativo, artístico e intelectual, não apenas em benefício próprio, mas também para enriquecimento da sua comunidade, quer esta se situe em zonas urbanas quer em zonas rurais. São exemplos de tais atividades a dança, a música, a literatura, o teatro, as artes plásticas, a pintura e a escultura. Nos países em desenvolvimento, em particular, deve ser dado destaque às formas de arte tradicionais e contemporâneas, tais como o teatro de marionetes, a declamação e a narração de histórias. [...] 2. Os Estados devem promover o acesso das pessoas com deficiências a espaços onde se realizem eventos ou se prestem serviços culturais, tais como teatros, museus, cinemas e bibliotecas, devendo também providenciar pela disponibilização de tais locais. [...] 3. Os Estados devem promover o desenvolvimento e a utilização de meios técnicos especiais, com vista a tornar a literatura, o cinema e o teatro acessíveis às pessoas com deficiências”. 16 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Artigo 30: “Participação na vida cultural e em recreação, lazer e esporte. [...] 1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência de participar na vida cultural, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e tomarão todas as medidas apropriadas para que as pessoas com deficiência possam: [...] a) Ter acesso a bens culturais em formatos acessíveis; [...] b) Ter acesso a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais, em formatos acessíveis; e [...] c) Ter acesso a locais que ofereçam serviços ou eventos culturais, tais como teatros, museus, cinemas, bibliotecas e serviços turísticos, bem como, tanto quanto possível, ter acesso a monumentos e locais de importância cultural nacional. [...] 2. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para que as pessoas com deficiência tenham a oportunidade de desenvolver e utilizar seu potencial criativo, artístico e intelectual, não somente em benefício próprio, mas também para o enriquecimento da sociedade. [...] 3.Os Estados Partes deverão tomar todas as providências, em conformidade com o direito internacional, para assegurar que a legislação de proteção dos direitos de propriedade intelectual não constitua barreira excessiva ou discriminatória ao acesso de pessoas com deficiência a bens culturais. [...] 4. As pessoas com deficiência farão jus, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a que sua identidade cultural e lingüística específica seja reconhecida e apoiada, incluindo as línguas de sinais e a cultura surda. [...]”. 17 A UNESCO lista em seu site em inglês (http://portal.unesco.org/en/) os seguintes textos normativos internacionais pertinentes à área de cultura (fora seus respectivos protocolos adicionais): Convention on the Protection and Promotion of the Diversity of Cultural Expressions (2005), Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage (2003), UNESCO Declaration concerning the Intentional Destruction of Cultural Heritage (2003), Convention on the Protection of the Underwater Cultural Heritage (2001), UNESCO Universal Declaration on Cultural Diversity (2001), Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore (1989), Recommendation concerning the Status of the Artist (1980), Recommendation for the Safeguarding and Preservation of Moving Images (1980), Multilateral Convention for the Avoidance of Double Taxation of Copyright Royalties, with model bilateral agreement and additional Protocol (1979), Recommendation for the Protection of Movable Cultural Property (1978), Declaration on Fundamental Principles concerning the Contribution of the Mass Media to Strengthening Peace and International Understanding, to the Promotion of Human Rights and to Countering Racialism, apartheid and incitement to war (1978), Recommendation on Participation by the People at Large in Cultural Life and their Contribution to It (1976), Recommendation concerning the Safeguarding and Contemporary Role of Historic Areas (1976), Recommendation on the Legal Protection of Translators and Translations and the Practical Means to improve the Status of Translators (1976), Recommendation concerning the International Exchange of Cultural Property (1976), Recommendation concerning the Protection, at National Level, of the Cultural and Natural Heritage (1972), Declaration of Guiding Principles on the Use of Satellite Broadcasting for the Free Flow of Information, the Spread of Education and Greater Cultural Exchange (1972), Convention concerning the Protection of the World

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Antes, cabe mencionar as possibilidades de judicialização de questões referentes aos direitos humanos culturais no sistema internacional universal. Notada a ausência de um órgão jurisdicional com competência especificamente delineada na matéria dos direitos humanos, destacam-se a Corte Internacional de Justiça (CIJ) e o Tribunal Penal Internacional (TPI). No que diz respeito à primeira, o acesso é exclusivo a Estados18; potencialmente questões concernentes aos direitos culturais poderiam ser levadas àquele órgão, com base em um tratado internacional que versasse sobre a matéria. Como dispõe o Estatuto da CIJ (1945), esta poderia se pronunciar tanto sobre a interpretação de tal tratado quanto sobre a violação de um compromisso nele prescrito19. Já o TPI tem uma atuação complementar à das jurisdições penais estatais e pode ser provocado por um Estado parte, pelo Conselho de Segurança da ONU ou por seu próprio procurador. A competência material do Tribunal cinge-se a quatro tipos de crime (crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão), considerados representativos dos “crimes de maior gravidade, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto [...]”, na expressão do preâmbulo Estatuto de Roma do Cultural and Natural Heritage (1972), Universal Copyright Convention as revised at Paris on 24 July 1971, with Appendix Declaration relating to Article XVII and Resolution concerning Article XI (1971), Convention for the Protection of Producers of Phonograms against Unauthorized Duplication of their Phonograms (1971), Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property (1970), Recommendation concerning the Preservation of Cultural Property Endangered by Public or Private works (1968), Declaration of Principles of International Cultural Co-operation (1966), Recommendation on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Export, Import and Transfer of Ownership of Cultural Property (1964), Recommendation concerning the Safeguarding of Beauty and Character of Landscapes and Sites (1962), Recommendation concerning the Most Effective Means of Rendering Museums Accessible to Everyone (1960), Convention concerning the Exchange of Official Publications and Government Documents between States (1958), Convention concerning the International Exchange of Publications (1958), Recommendation on International Principles Applicable to Archaeological Excavations (1956), Convention for the Protection of Cultural Property in the Event of Armed Conflict with Regulations for the Execution of the Convention (1954), Universal Copyright Convention, with Appendix Declaration relating to Articles XVII and Resolution concerning Article XI (1952), Agreement on the Importation of Educational, Scientific and Cultural Materials, with Annexes A to E and Protocol annexed (1950), Agreement For Facilitating the International Circulation of Visual and Auditory Materials of an Educational, Scientific and Cultural character with Protocol of Signature and model form of certificate provided for in Article IV of the above-mentioned Agreement (1948). Não são todos tratados de direitos humanos e nota-se que a lista não é completa. A própria Declaração sobre Direitos Culturais como Direitos do Homem, de 1968, analisada a seguir, não foi elencada. 18 Estatuto da Corte Internacional de Justiça, Artigo 34, 1: “Só os Estados poderão ser partes em questões perante a Corte”. 19 Estatuto da Corte Internacional de Justiça, Artigo 36, 2: “Os Estados, partes do presente Estatuto, poderão, em qualquer momento, declarar que reconhecem como obrigatória, ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado que aceite a mesma obrigação, a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto: a) a interpretação de um tratado; b) qualquer ponto de direito internacional; c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria violação de um compromisso internacional; d) a natureza ou extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional”.

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Tribunal Penal Internacional (1998). No que mais se aproximam aos direitos humanos culturais, podem ser destacados os tipos penais do genocídio20 e dos crimes contra a humanidade21, notadamente o extermínio (se referido a certo grupo culturalmente identificado)22 e a perseguição de grupo ou coletividade por motivos culturais23. Fora da esfera jurisdicional, o sistema internacional universal de proteção dos direitos humanos conta ainda com o Comitê de Direitos Humanos da ONU, instituído pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e com o Conselho Econômico e Social da ONU, previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A competência desses órgãos está cingida à apreciação de relatórios dos Estados partes sobre a implementação dos direitos humanos previstos nos respectivos pactos24. 20

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, Artigo 6º: “Crime de Genocídio. [...] Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘genocídio’, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: [...] a) Homicídio de membros do grupo; [...] b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; [...] c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; [...] d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; [...] e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”. 21 Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, Artigo 7º (“Crimes contra a Humanidade”), 1: “Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por ‘crime contra a humanidade’, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: [...] a) Homicídio; [...] b) Extermínio; [...] c) Escravidão; [...] d) Deportação ou transferência forçada de uma população; [...] e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; [...] f) Tortura; [...] g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; [...] h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; [...] i) Desaparecimento forçado de pessoas; [...] j) Crime de apartheid; [...] k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.” 22 Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, Artigo 7º, 2, b: “O ‘extermínio’ compreende a sujeição intencional a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição de uma parte da população [...]”. 23 Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, Artigo 7º, 2, g: “Por ‘perseguição’ entende-se a privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa [...]”. 24 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Artigo 40: “1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a submeter relatórios sobre as medidas por eles adotadas para tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto e sobre o progresso alcançado no gozo desses direitos: [...] a) dentro do prazo de um ano, a contar do início da vigência do presente Pacto nos Estados Partes interessados; [...] b) a partir de então, sempre que o Comitê vier a solicitar. [...] 2. Todos relatórios serão submetidos ao Secretário-Geral da Organização das nações Unidas, que os encaminhará. Para exame, ao Comitê. Os relatórios deverão sublinhar, caso existam, os fatores e as dificuldades que prejudiquem a implementação do presente pacto. [...] 3. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas poderá, após consulta ao Comitê, encaminhar às agências especializadas cópias das partes dos relatórios que digam respeito à sua esfera de competência. [...] 4. O Comitê estudará os relatórios apresentados pelos Estados partes do

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1.1.1. Os direitos humanos culturais nos tratados da UNESCO A Organização das Nações Unidas para Ciência, Educação e Cultura (UNESCO), vinculada ao Conselho Econômico e Social, órgão da Assembleia Geral da ONU, é a principal organização internacional especializada na questão cultural, sendo a sede do tratamento dos direitos humanos culturais no sistema internacional universal. Ao longo de sua história, “[a] renovação dos desafios trazidos pela cultura desde a criação da UNESCO fez com que a Organização mostrasse, com todos os meios possíveis, as suas diferentes faces: como laboratório de ideias, ao antecipar e identificar estratégias e políticas culturais adequadas; como clearinghouse [central de informações] para a coleta, transmissão, disseminação e compartilhamento de informações, conhecimentos e boas práticas; como formadora de capacidades humanas e institucionais junto aos Estados-Membros; como organização normativa, ao convidar os Estados-Membros a acordar regras comuns de modo a fortalecer a cooperação internacional genuína”25. A seguir, traz-se uma retrospectiva não taxativa de alguns textos jurídicos internacionais em matéria cultural, de caráter vinculante ou não vinculante, destacandose aqueles que mais de perto se associam ao enfoque dos direitos culturais como direitos humanos. Primeiro documento a se destacar em uma perspectiva histórica do tratamento dos direitos culturais pela UNESCO é a Declaração dos Princípios da Cooperação presente pacto e transmitirá aos Estados Partes seu próprio relatório, bem como os comentários gerais que julgar oportunos. O Comitê poderá igualmente transmitir ao Conselho Econômico e social os referidos comentários, bem como cópias dos relatórios que houver recebido dos Estados partes do Presente pacto. [...] 5. Os Estados Partes no presente pacto poderão submeter ao Comitê as observações que desejarem formular relativamente aos comentários feitos nos termos do § 4° do presente artigo”. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Artigo 16: “1. Os Estados Signatários do presente Pacto se comprometem a apresentar, de acordo com esta parte do Pacto, informes sobre as medidas que tenham adotado e sobre os progressos realizados a fim de garantir o respeito aos direitos reconhecidos no mesmo. [...] 2. a) Todos os relatórios serão apresentados ao Secretário Geral das Nações Unidas, que enviará cópias ao Conselho Econômico e Social para que sejam examinadas conforme o disposto no presente Pacto. [...] b) O Secretário Geral das Nações Unidas transmitirá também aos organismos especializados cópias dos relatórios ou das partes a eles pertinentes, que tenham sido enviados pelos Estados Signatários do presente Pacto que, além disso, sejam membros desses organismos especializados, na medida que seus relatórios ou partes tenham relação com matérias que sejam da competência dos ditos organismo conforme seus instrumentos constitutivos”. Artigo 17: “1. Os Estados Signatários do presente Pacto apresentarão seus relatórios por etapas, segundo o programa que estabelecerá o Conselho Econômico e Social no prazo de um ano desde a entrada em vigor do presente Pacto, feita um consulta prévia com os Estados Signatários e com os organismos especializados interessados. [...] 2. Os informes poderão apontar as circunstancias e dificuldades que afetem o grau de cumprimento das obrigações previstas neste Pacto. [...] 3. Quando a informação pertinente já tiver sido fornecida às nações Unidas ou a algum organismo especializado por um Estado Signatário, não será necessário repetir a referida informação, e bastará tão somente fazer referência, concreta à mesma”. 25 UNESCO, 2007: 21 (grifo no original).

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Cultural Internacional, proclamada pela conferência geral da organização em 1966. Junto a essa Declaração, a UNESCO divulgou, em 1970, um documento intitulado Os direitos culturais como direitos do homem, que veiculou uma Declaração sobre os Direitos Culturais como Direitos do Homem, síntese de uma série de estudos desenvolvidos por peritos convocados pela organização para um debate sobre diversos temas pertinentes ao escopo daquela reunião, desde a definição de cultura até seus desdobramentos quanto ao Estado nacional, à sociedade de consumo, à modernidade e aos diferentes grupos e coletividades26. A reunião dos especialistas pautou-se por uma semântica que se alterou, se comparada à própria tematização da cultura nos documentos mais recentes da UNESCO27. Notadamente, o que permaneceu para a prática posterior do tratamento dos direitos culturais no direito internacional dos direitos humanos foram nem tanto as perspectivas teóricas avençadas por cada especialista em suas discussões, mas as linhas traçadas por ambas as declarações. Primeiramente, na Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional (1966), estabeleceu-se uma vinculação entre a cultura e a dignidade humana28. Constituindo esta o fundamento dos direitos humanos, segundo entendimento prevalente notadamente na tradição jurídica de origem germânica, é possível se visualizar que tal Declaração acolhe o entendimento da cultura como espécie do gênero direitos humanos (tal como firmado pelo menos desde a Declaração Universal de 1948), embora não tenha expressado tal subsunção, mas antes frisado que a cooperação cultural deveria se dar no marco do respeito aos direitos humanos29 – ou melhor, pode-se interpretar, do respeito aos demais direitos humanos. A Declaração registrou a circularidade da cooperação cultural como condição para a própria cooperação entre os

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Cf. UNESCO, 1973. Alguns pontos da ordem do dia da reunião de especialistas ilustram as ideias debatidas: “4. Como evoluiu a concepção de direitos culturais como direitos do homem entre 1948 e 1968, nos diversos contextos socioeconômicos (sociedades industriais e sociedades em vias de desenvolvimento): [...] a) Direitos do indivíduo; [...] b) Direitos da coletividade ou do grupo; [...] c) Cultura de ‘élite’ e cultura de massa. [...] 5. Os fatores que influem sobre os direitos culturais como direitos do homem: [...] a) Tradição; [...] b) Educação; [...] c) Meios de informação; [...] d) Interação cultural; [...] e) Condições socioeconômicas; [...] f) Função social dos artistas e escritores”. 28 Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional, preâmbulo: “Lembrando que nos termos desta mesma Ata constitutiva, a dignidade do homem exige a difusão da cultura e educação de todos em ordem à justiça, à liberdade e à paz, e, para este efeito, impõe a todas as nações deveres sagrados que têm de cumprir num espírito de mútua assistência [...]”. 29 Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional, Artigo 11º, 2: “Os princípios da presente Declaração serão aplicados no respeito dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”. 27

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países em todos os setores30 e afirmou a dignidade de toda cultura31. Já pode ser depreendido dessa Declaração o entendimento contemporâneo de que a proteção de cada cultura deve voltar-se não à sua preservação e isolacionismo, mas sim ao seu desenvolvimento autônomo em intercâmbio com outras culturas32 – no plano das “culturas nacionais”, tal entendimento corresponde ao reconhecimento da soberania dos Estados no planejamento e na promoção de suas políticas culturais33. Em linhas gerais, é o que continuaram a estabelecer os sucessivos tratados e convenções internacionais no âmbito da UNESCO, até a atualidade. Já a Declaração sobre os Direitos Culturais como Direitos do Homem (1968) foi na verdade um resumo dos debates travados na reunião dos especialistas que redigiram os textos compilados no documento homônimo34. O texto35 ressaltou a necessidade de reconhecimento da “diversidade de valores, de realizações e de formas culturais [...]”, em detrimento de uma concepção elitista de cultura (ponto 2) e, constatando um empobrecimento cultural na “sociedade de consumo” industrializada e em industrialização, em plena “revolução tecnológica” (ponto 4), apontou para a necessidade de democratizar os meios de comunicação de massa, não só aumentando a 30

Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional, preâmbulo: “[...] a ignorância do modo de viver e dos costumes dos povos é ainda obstáculo à amizade entre as nações, à sua cooperação pacífica e ao progresso da humanidade [...]”. 31 Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional, Artigo 1º, 1: “Toda a cultura tem uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e salvaguardados”. 32 Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional, Artigo 1º, 2: “Todo o povo tem o direito e o dever de desenvolver a sua cultura”. Artigo 3º: “A cooperação cultural internacional estenderse-á a todos os domínios das atividades intelectuais e criadoras dependentes da educação, da ciência e da cultura”. Artigo 4º: “A cooperação cultural internacional, sob as suas diversas formas – bilateral ou multilateral, regional ou universal – terá por fins: [...] 1. Difundir os conhecimentos, estimular as vocações e enriquecer as culturas; [...] 2. Desenvolver as relações pacíficas e de amizade entre os povos e levá-los a conhecer melhor os seus modos de vida respectivos; [...]”. Art. 5º: “A cooperação cultural é um direito e um dever para todos os povos e todas as nações devem repartir o seu saber e os seus conhecimentos”. Art. 6º: “Na ação benéfica que exerce sobre as culturas, a cooperação internacional, favorecendo o seu enriquecimento mútuo, respeitará a originalidade de cada uma delas”. 33 UNESCO, 1973: 5 (prefácio): “Neste contexto, a expressão ‘políticas culturais’ designa um conjunto de princípios operacionais, de práticas e de processos de gestão administrativa ou orçamental, devendo servir de base à ação cultural do Estado. É certo que não se conseguiria uma política cultural válida para todos os países; pertence a cada Estado membro determinar a sua própria política cultural em função dos valores culturais, de objetivos e opções que ele fixa a si próprio”. No sentido da relação entre soberania nacional e cultura, destaque-se também a disposição do Artigo 73 da Carta da ONU: “Os Membros das Nações Unidas, que assumiram ou assumam responsabilidades pela administração de territórios cujos povos não tenham atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos, reconhecem o princípio de que os interesses dos habitantes desses territórios são da mais alta importância, e aceitam, como missão sagrada, a obrigação de promover no mais alto grau, dentro do sistema de paz e segurança internacionais estabelecido na presente Carta, o bem-estar dos habitantes desses territórios e, para tal fim, se obrigam a: [...] assegurar, com o devido respeito à cultura dos povos interessados, o seu progresso político, econômico, social e educacional, o seu tratamento equitativo e a sua proteção contra todo abuso [...]”. 34 UNESCO, 1973. 35 in: UNESCO, 1973: 209-14.

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qualidade da informação veiculada, mas também permitindo maior abertura à participação da sociedade na formação desse conteúdo (ponto 7). Afirmou a necessidade de se incluir a população tanto na produção quanto na fruição artística (ponto 9) e visualizou como condição para a efetivação dos direitos culturais os direitos econômicos, educacionais, civis e políticos: “Para os pobres do mundo inteiro, os direitos à cultura devem começar pela libertação da sua pobreza, da doença e do analfabetismo. Os governos livremente eleitos devem ser protegidos da intervenção militar, econômica e política de potências estrangeiras” (ponto 5). Afirmando a “liberdade de conhecimento” como “direito humano fundamental” (ponto 8), frisou o acesso à ciência e à “aplicação de seus resultados” (tecnologia) como componentes centrais da cultura na modernidade (pontos 8 e 10). Embora os tratados seguintes firmados no âmbito da UNESCO não sejam explicitamente instrumentos normativos de direitos humanos (embora possam vir a ser assim classificados, na prática política e jurídica e pela doutrina jurídica), inserem-se como desdobramentos normativos do reconhecimento dos direitos culturais como categoria de direitos humanos, reconhecimento esse firmado em âmbito internacional principalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Nesse sentido, em 1970 a UNESCO firmou a Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais. No marco da efetivação do direito à cultura, este é particularizado aqui no dever dos Estados combaterem as práticas ilícitas de importação, exportação e transferência de propriedade de bens culturais36, entendidos 36

Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais, Artigo 1º: “Para os fins da presente Convenção, a expressão ‘bens culturais’ significa quaisquer bens que, por motivos religiosos ou profanos, tenham sido expressamente designados por cada Estado como de importância para a arqueologia, a préhistória, a história, a literatura, a arte ou a ciência e que pertençam às seguintes categorias: [...] a) as coleções e exemplares raros de zoologia, botânica, mineralogia e anatomia, e objetos de interesse paleontológico; [...] b) os bens relacionados com a história, inclusive a história da ciência e da tecnologia, com a história militar e social, com a vida dos grandes estadistas, pensadores, cientistas e artistas nacionais e com os acontecimentos de importância nacional; [...] c) o produto de escavações arqueológicas (tanto as autoridades quanto as clandestinas) ou de descobertas arqueológicas; [...] d) elementos procedentes do desmembramento de monumentos artísticos ou históricos e de lugares interesse arqueológicos; [...] e) antiguidades de mais de cem anos, tais como inscrições, moedas e selos gravados; [...] f) objetos de interesse etnológico; [...] g) os bens de interesse artísticos, tais como: [...] (i) quadros, pinturas e desenhos feitos inteiramente a mão sobre qualquer suporte e em qualquer material (com exclusão dos desenhos industriais e dos artigos manufaturados a mão); [...] (ii) produções originais de arte estatuária e de cultura em qualquer material; [...] (iii) gravuras, estampas e litografias originais; [...] (iv) conjuntos e montagens artísticas em qualquer material; [...] h) manuscritos raros e incunábulos, livros,

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como parcelas do patrimônio cultural dos respectivos países de origem. Se em 1970, firmou-se a noção de “bem cultural”, em 1972 a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural adotou um tratamento conjunto da tutela do meio ambiente natural e cultural, firmando a noção de “patrimônio cultural”37. Nessa convenção, fica preservada a ideia de soberania dos Estados na implementação de medidas para a preservação desse patrimônio e também seu dever de omissão quanto a condutas que o deteriorem38. Já se estabelece, paralelamente, um sistema internacional

documentos e publicações antigos de interesse especial (histórico, artístico, científico, literário etc.), isolados ou em coleções; [...] i) selos postais, fiscais ou análogos, isolados ou em coleções; [...] j) arquivos, inclusive os fonográficos, fotográficos e cinematográficos; k) peças de mobília de mais de cem anos e instrumentos musicais antigos”. Artigo 4º: “Os Estados-Partes na presente Convenção reconhecem que, para os efeitos desta, fazem parte do patrimônio cultural de cada Estado os bens pertencentes a cada uma das seguintes categorias: [...] a) os bens culturais criados pelo gênio individual ou coletivo de nacionais do Estado em questão, e bens culturais de importância para o referido Estado criados, em seu território, por nacionais de outros Estados ou por apátridas residentes em seu território; [...] b) bens culturais achados no território nacional; [...] c) bens culturais adquiridos por missão arqueológica, etnológica ou de ciências naturais com o consentimento das autoridades competentes do país de origem dos referidos bens; [...] d) bens culturais que hajam sido objeto de um intercâmbio livremente acordado; [...] e) bens culturais recebidos a título gratuito ou comprados legalmente com o consentimento das autoridades competentes do país de origem dos referidos bens”. 37 Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, Artigo 1: “Para os fins da presente Convenção, são considerados ‘patrimônio cultural’: [...] - os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, [...] - os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, [...] - os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico”. 38 Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, Artigo 4: “Cada Estado-parte da presente Convenção reconhece que lhe compete identificar, proteger, conservar, valorizar e transmitir às gerações futuras o patrimônio cultural e natural situado em seu território. O Estado-parte envidará esforços nesse sentido, tanto com recursos próprios como, se necessário, mediante assistência e cooperação internacionais às quais poderá recorrer, especialmente nos planos financeiro, artístico, científico e técnico”. Artigo 5: “A fim de assegurar proteção e conservação eficazes e valorizar de forma ativa o patrimônio cultural e natural situado em seu território e em condições adequadas aos países, cada Estado-parte da presente Convenção empenhar-se-á em: [...] a) adotar uma política geral com vistas a atribuir função ao patrimônio cultural e natural na vida coletiva e a integrar sua proteção aos programas de planejamento; [...] b) instituir no seu território, caso não existam, um órgão (ou vários órgãos) de proteção, conservação ou valorização do patrimônio cultural e natural, dotados de pessoal capacitado, que disponha de meios que lhe permitam desempenhar suas atribuições; [...] c) desenvolver estudos, pesquisas científicas e técnicas e aperfeiçoar os métodos de intervenção que permitam ao Estado enfrentar os perigos ao patrimônio cultural ou natural; [...] d) tomar as medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras cabíveis para identificar, proteger, conservar, valorizar e reabilitar o patrimônio; e [...] e) fomentar a criação ou o desenvolvimento de centros nacionais ou regionais de formação em matéria de proteção, conservação ou valorização do patrimônio cultural e natural e estimular a pesquisa científica nesse campo”. Artigo 6: “1. Com pleno respeito à soberania dos Estados em cujo território se situa o patrimônio cultural e natural a que se referem os artigos 1 e 2 deste instrumento, e sem prejuízo dos direitos reais previstos pela legislação nacional sobre esse patrimônio, os Estados-partes da presente Convenção reconhecem que ele constitui patrimônio universal, com a proteção do qual a comunidade internacional tem o dever de cooperar. [...] 2. Os Estados-partes comprometem-se, por conseguinte, e em conformidade às disposições da presente Convenção, a dar apoio para identificar,

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de cooperação e assistência39, formando-se no âmbito da UNESCO um Comitê Intergovernamental de Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, bem como um Fundo para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural. Uma renovação na ordem jurídica internacional universal no campo da cultura ocorreu na década de 2000 e foi representada na UNESCO pela adoção de três importantes convenções. A primeira foi a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001). No tratamento do meio ambiente cultural, ainda se reforça o paralelo com o meio ambiente natural (diversidade cultural e diversidade biológica ou biodiversidade), mas a cultura é tratada em um instrumento normativo próprio; neste, a “diversidade cultural” é reconhecida como “patrimônio comum da humanidade”40. Reforçam-se aqui as noções de pluralismo cultural41 e diálogo intercultural, concebendo-se a preservação do patrimônio cultural como condição para o autodesenvolvimento das culturas em relações construtivas de intercâmbio mútuo42. A efetivação dos direitos humanos culturais é concebida como atribuição principalmente do Estado – por meio da definição e implantação das políticas culturais –, mas também

proteger, conservar e valorizar o patrimônio cultural e natural de que tratam os parágrafos 2 e 4 do artigo 11, por solicitação do Estado, em cujo território o bem está localizado. [...] 3. Cada um dos Estadospartes da presente Convenção se compromete a não tomar deliberadamente qualquer medida suscetível de prejudicar, direta ou indiretamente, o patrimônio cultural e natural a que se referem os artigos 1 e 2 localizados no território dos demais Estados-partes a esta Convenção”. 39 Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, Artigo 7: “Para os fins da presente Convenção, entende-se por proteção internacional do patrimônio mundial cultural e natural o estabelecimento de sistema de cooperação e de assistência internacional destinado a auxiliar os Estadospartes da Convenção nos esforços empreendidos para preservar e identificar esse patrimônio”. 40 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 1: “A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade. [...] A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras ”. 41 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 2: “Da diversidade cultural ao pluralismo cultural. [...] Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública”. 42 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 7: “O patrimônio cultural, fonte da criatividade Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas”.

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se integra nesse desafio o setor privado e o terceiro setor ou sociedade civil43. De particular importância é a reafirmação do tratamento da cultura no âmbito dos direitos humanos, isto é, dos direitos humanos culturais44. Inseridos nessa categoria, os direitos culturais associam-se aos direitos humanos de todas as outras categorias45, como os direitos civis e políticos, particularmente a liberdade de expressão46, os direitos econômicos e sociais e mesmo os direitos difusos, como o direito ao desenvolvimento47. Associado a este direito e ao sistema econômico está o reconhecimento da importância da “indústria cultural” na economia atual (“economia criativa”) e, principalmente, o entendimento de são necessárias medidas para diminuir o desequilíbrio de participação 43

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 11: “Estabelecer parcerias entre o setor público, o setor privado e a sociedade civil. [...] As forças do mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento humano sustentável. Desse ponto de vista, convém fortalecer a função primordial das políticas públicas, em parceria com o setor privado e a sociedade civil”. Artigo 9: “As políticas culturais, catalisadoras da criatividade. [...] As políticas culturais, enquanto assegurem a livre circulação das idéias e das obras, devem criar condições propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolver-se nos planos local e mundial. Cada Estado deve, respeitando suas obrigações internacionais, definir sua política cultural e aplicá-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na forma de apoios concretos ou de marcos reguladores apropriados”. 44 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 5: “Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural. [...] Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”. Nas linhas gerais do Plano de Ação para a Aplicação da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural (anexo a tal Declaração), reforça-se no ponto 4 o objetivo de: “Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais, considerados como parte integrante dos direitos humanos”. 45 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 4: “Os direitos humanos, garantias da diversidade cultural. [...] A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance”. 46 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 6: “Rumo a uma diversidade cultural accessível a todos. [...] Enquanto se garanta a livre circulação das idéias mediante a palavra e a imagem, deve-se cuidar para que todas as culturas possam se expressar e se fazer conhecidas. A liberdade de expressão, o pluralismo dos meios de comunicação, o multilinguismo, a igualdade de acesso às expressões artísticas, ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive em formato digital - e a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão, são garantias da diversidade cultural”. 47 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 3: “A diversidade cultural, fator de desenvolvimento. [...] A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória”.

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dos países nos fluxos econômicos dos bens e serviços culturais48 e de que estes têm características diferenciadas em relação aos demais produtos, devendo obedecer a um tratamento que leve em consideração as exigências culturais, e não somente as econômicas49. Diversas outras medidas, como a integração do conteúdo sobre diversidade cultural nos currículos escolares, também foram delineadas50. Em 2003, houve a adoção da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que preencheu uma lacuna na tutela jurídica internacional dessa espécie de patrimônio, que ainda demandava um instrumento vinculante51. O patrimônio cultural imaterial a ser preservado é aquele que não entre em contradição com a tutela dos demais direitos humanos – não somente os culturais – e que se compõe de expressões tradicionais condensadoras de um sentido histórico e identitário para certo grupo ou comunidade, considerados em suas múltiplas segmentações (e.g., certa localidade, determinada região de um país). Analogamente às outras convenções, a obrigação da promoção de políticas públicas nessa área recai principalmente sobre os Estados52, cujas obrigações vão desde o mapeamento e o inventário das manifestações culturais a serem tuteladas53 até ações educativas e a criação de estruturas

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Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 10: “Reforçar as capacidades de criação e de difusão em escala mundial. [...] Ante os desequilíbrios atualmente produzidos no fluxo e no intercâmbio de bens culturais em escala mundial, é necessário reforçar a cooperação e a solidariedade internacionais destinadas a permitir que todos os países, em particular os países em desenvolvimento e os países em transição, estabeleçam indústrias culturais viáveis e competitivas nos planos nacional e internacional”. 49 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 8: “Os bens e serviços culturais, mercadorias distintas das demais. [...] Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas para a criação e a inovação, deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao caráter específico dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores de identidade, de valores e sentido, não devem ser considerados como mercadorias ou bens de consumo como os demais”. 50 Plano de Ação para a Aplicação da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, objetivo 7: “Promover, por meio da educação, uma tomada de consciência do valor positivo da diversidade cultural e aperfeiçoar, com esse fim, tanto a formulação dos programas escolares como a formação dos docentes”. 51 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, preâmbulo: “Observando também que não existe ainda um instrumento multilateral de caráter vinculante destinado a salvaguardar o patrimônio cultural imaterial [...]”. 52 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 11: “Funções dos Estados Partes. [...] Caberá a cada Estado Parte: [...] a) adotar as medidas necessárias para garantir a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território; [...] b) entre as medidas de salvaguarda mencionadas no parágrafo 3 do Artigo 2, identificar e definir os diversos elementos do patrimônio cultural imaterial presentes em seu território, com a participação das comunidades, grupos e organizações não-governamentais pertinentes”. 53 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 12: “Inventários. [...] 1. Para assegurar a identificação, com fins de salvaguarda, cada Estado Parte estabelecerá um ou mais inventários do patrimônio cultural imaterial presente em seu território, em conformidade com seu próprio sistema de salvaguarda do patrimônio. Os referidos inventários serão atualizados regularmente. [...] 2. Ao apresentar

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administrativas especializadas para tratar da cultura imaterial54 – buscando sempre a participação da comunidade interessada no respectivo bem cultural imaterial55. Na UNESCO, foi criado um Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial responsável por monitorar a concretização das medidas previstas na Declaração, contando inclusive com a consultoria de organizações não governamentais especializadas no setor e devidamente credenciadas. Tal comitê também ficou responsável por apoiar medidas para a conservação do patrimônio cultural imaterial56, bem como por elaborar listas do patrimônio cultural imaterial da humanidade,

seu relatório periódico ao Comitê, em conformidade com o Artigo 29, cada Estado Parte prestará informações pertinentes em relação a esses inventários”. 54 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 13: “Outras medidas de salvaguarda. [...] Para assegurar a salvaguarda, o desenvolvimento e a valorização do patrimônio cultural imaterial presente em seu território, cada Estado Parte empreenderá esforços para: [...] a) adotar uma política geral visando promover a função do patrimônio cultural imaterial na sociedade e integrar sua salvaguarda em programas de planejamento; [...] b) designar ou criar um ou vários organismos competentes para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território; [...] c) fomentar estudos científicos, técnicos e artísticos, bem como metodologias de pesquisa, para a salvaguarda eficaz do patrimônio cultural imaterial, e em particular do patrimônio cultural imaterial que se encontre em perigo; [...] d) adotar as medidas de ordem jurídica, técnica, administrativa e financeira adequadas para: [...] i) favorecer a criação ou o fortalecimento de instituições de formação em gestão do patrimônio cultural imaterial, bem como a transmissão desse patrimônio nos foros e lugares destinados à sua manifestação e expressão; [...] ii) garantir o acesso ao patrimônio cultural imaterial, respeitando ao mesmo tempo os costumes que regem o acesso a determinados aspectos do referido patrimônio; [...] iii) criar instituições de documentação sobre o patrimônio cultural imaterial e facilitar o acesso a elas”. Artigo 14: “Educação, conscientização e fortalecimento de capacidades [...] Cada Estado Parte se empenhará, por todos os meios oportunos, no sentido de: [...] a) assegurar o reconhecimento, o respeito e a valorização do patrimônio cultural imaterial na sociedade, em particular mediante: [...] i) programas educativos, de conscientização e de disseminação de informações voltadas para o público, em especial para os jovens; [...] ii) programas educativos e de capacitação específicos no interior das comunidades e dos grupos envolvidos; [...] iii) atividades de fortalecimento de capacidades em matéria de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, e especialmente de gestão e de pesquisa científica; e [...] iv) meios nãoformais de transmissão de conhecimento; [...] b) manter o público informado das ameaças que pesam sobre esse patrimônio e das atividades realizadas em cumprimento da presente Convenção; [...] c) promover a educação para a proteção dos espaços naturais e lugares de memória, cuja existência é indispensável para que o patrimônio cultural imaterial possa se expressar”. 55 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 15: “Participação das comunidades, grupos e indivíduos. [...] No quadro de suas atividades de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, cada Estado Parte deverá assegurar a participação mais ampla possível das comunidades, dos grupos e, quando cabível, dos indivíduos que criam, mantém e transmitem esse patrimônio e associá-los ativamente à gestão do mesmo”. 56 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 18: “Programas, projetos e atividades de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. [...] 1. Com base nas propostas apresentadas pelos Estados Partes, e em conformidade com os critérios definidos pelo Comitê e aprovados pela Assembléia Geral, o Comitê selecionará periodicamente e promoverá os programas, projetos e atividades de âmbito nacional, subregional ou regional para a salvaguarda do patrimônio que, no seu entender, reflitam de modo mais adequado os princípios e objetivos da presente Convenção, levando em conta as necessidades especiais dos países em desenvolvimento. [...] 2. Para tanto, o Comitê receberá, examinará e aprovará as solicitações de assistência internacional formuladas pelos Estados Partes para a elaboração das referidas propostas. [...] 3. O Comitê acompanhará a execução dos referidos programas, projetos e atividades por meio da disseminação das melhores práticas, segundo modalidades por ele definidas”.

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discernindo as partes desse patrimônio que requerem tutela de urgência57. A assistência internacional e um Fundo do Patrimônio Cultural Imaterial também foram criados. Finalmente, o grande destaque dentre os instrumentos celebrados no seio da UNESCO com relação aos direitos culturais veio a ser a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005)58, considerada o primeiro tratado internacional vinculante após uma série de instrumentos não vinculantes celebrados no direito internacional regional e universal (notadamente a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural)59. Destaque-se que, além das declarações não vinculantes, “[n]a condição de uma organização normativa, a UNESCO produziu diversos instrumentos legais internacionais de caráter vinculante nas quatro áreas centrais da diversidade criadora: patrimônio cultural e natural, patrimônio cultural material, patrimônio cultural imaterial e criatividade contemporânea. Ao todo, sete convenções foram elaboradas: [...] Convenção Universal sobre Direitos Autorais (1952, revisada em 1971); [...] Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (1954 – primeiro protocolo; 1999 – segundo protocolo); [...] Convenção sobre as Medidas que Devem Ser Adotas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência Ilícitas de Propriedade de Bens Culturais (1970); [...] Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972); [...] Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (2001); [...] Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003); [...] Convenção 57

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Artigo 16: “Lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade. [...] 1. Para assegurar maior visibilidade do patrimônio cultural imaterial, aumentar o grau de conscientização de sua importância, e propiciar formas de diálogo que respeitem a diversidade cultural, o Comitê, por proposta dos Estados Partes interessados, criará, manterá atualizada e publicará uma Lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade. [...] 2. O Comitê elaborará e submeterá à aprovação da Assembléia Geral os critérios que regerão o estabelecimento, a atualização e a publicação da referida Lista representativa”. Artigo 17: “Lista do patrimônio cultural imaterial que requer medidas urgentes de salvaguarda. [...] 1. Com vistas a adotar as medidas adequadas de salvaguarda, o Comitê criará, manterá atualizada e publicará uma Lista do patrimônio cultural imaterial que necessite medidas urgentes de salvaguarda, e inscreverá esse patrimônio na Lista por solicitação do Estado Parte interessado. [...] 2. O Comitê elaborará e submeterá à aprovação da Assembléia Geral os critérios que regerão o estabelecimento, a atualização e a publicação dessa Lista. [...] 3. Em casos de extrema urgência, assim considerados de acordo com critérios objetivos aprovados pela Assembléia Geral, por proposta do Comitê, este último, em consulta com o Estado Parte interessado, poderá inscrever um elemento do patrimônio em questão na lista mencionada no parágrafo 1”. 58 Texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006. 59 Wouters; De Meester, 2008: 206-7: “A proteção da diversidade cultural foi aceita como um objetivo legítimo de política pública em uma série de instrumentos internacionais não vinculantes, como a Declaração sobre Diversidade Cultural do Conselho da Europa, de 7 de dezembro de 2000, e a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural da UNESCO, de 2 de novembro de 2001. Um instrumento internacional juridicamente vinculante foi agora criado com a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais [...]”.

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sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). [...] A Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais se destaca entre as convenções ligadas a questões de patrimônio, na medida em que se concentra primordialmente na diversidade das expressões culturais postas em circulação e compartilhadas por meio de atividades, bens e serviços culturais – vetores contemporâneos de transmissão de cultura”60. A Convenção de 2005 já era prevista na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001), que trazia, em seu plano de ação anexo, como primeiro objetivo: “Aprofundar o debate internacional sobre os problemas relativos à diversidade cultural, especialmente os que se referem a seus vínculos com o desenvolvimento e a sua influência na formulação de políticas, em escala tanto nacional como internacional; Aprofundar, em particular, a reflexão sobre a conveniência de elaborar um instrumento jurídico internacional sobre a diversidade cultural”. Considerando a “diversidade cultural” como “patrimônio comum da humanidade, a ser valorizado e cultivado em benefício de todos”61, a Convenção destaca em seu preâmbulo a variedade de questões envolvidas nessa temática, que pressupõem um tratamento consentâneo com as liberdades fundamentais, os direitos políticos e demais direitos humanos62. A partir do reconhecimento de que as disparidades econômicas e políticas no plano segmentário (e.g., entre países) muitas vezes convertem-se em um contato destrutivo de uma cultura por outra63, são reclamadas medidas destinadas a diminuir as disparidades de 60

UNESCO, 2007: 21-2. Preâmbulo da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. 62 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, preâmbulo: “Recordando que a diversidade cultural, ao florescer em um ambiente de democracia, tolerância, justiça social e mútuo respeito entre povos e culturas, é indispensável para a paz e a segurança no plano local, nacional e internacional [...] Celebrando a importância da diversidade cultural para a plena realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos universalmente reconhecidos, [...] Ciente de que a diversidade cultural se fortalece mediante a livre circulação de idéias e se nutre das trocas constantes e da interação entre culturas, Reafirmando que a liberdade de pensamento, expressão e informação, bem como a diversidade da mídia, possibilitam o florescimento das expressões culturais nas sociedades, [...]”. Artigo 2: “Princípios diretores [...] 1. Princípio do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais [...] A diversidade cultural somente poderá ser protegida e promovida se estiverem garantidos os direitos humanos e as liberdades fundamentais, tais como a liberdade de expressão, informação e comunicação, bem como a possibilidade dos indivíduos de escolherem expressões culturais. Ninguém poderá invocar as disposições da presente Convenção para atentar contra os direitos do homem e as liberdades fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e garantidos pelo direito internacional, ou para limitar o âmbito de sua aplicação”. 63 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, preâmbulo: “Constatando que os processos de globalização, facilitado pela rápida evolução das tecnologias de comunicação e informação, apesar de proporcionarem condições inéditas para que se intensifique a interação 61

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comunicabilidade entre as culturas, fomentando uma diversificação crescente e criativa (inclusive na mídia) pelo contato construtivo e equilibrado entre estas64. Ainda, ao mesmo tempo em que se registra a necessidade de tutela adequada às culturas tradicionais65, indica-se o reconhecimento da proteção dos direitos intelectuais66 e a necessidade de um tratamento consentâneo com a diversidade cultural para a comercialização de bens e produtos culturais67. Destaca-se como o “objetivo principal da Convenção [...] fortalecer os cinco elos inseparáveis da mesma corrente: a criação, a produção, a distribuição/disseminação, o acesso e o usufruto das expressões culturais

entre culturas, constituem também um desafio para a diversidade cultural, especialmente no que diz respeito aos riscos de desequilíbrios entre países ricos e pobres [...]”. 64 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, preâmbulo: “Sublinhando o papel essencial da interação e da criatividade culturais, que nutrem e renovam as expressões culturais, e fortalecem o papel desempenhado por aqueles que participam no desenvolvimento da cultura para o progresso da sociedade como um todo [...]”. Artigo 1: “Objetivos [...] Os objetivos da presente Convenção são: [...] (b) criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo; [...] (c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz; [...] (d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos [...]”. 65 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, preâmbulo: “Reconhecendo a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial, e, em particular, dos sistemas de conhecimento das populações indígenas, e sua contribuição positiva para o desenvolvimento sustentável, assim como a necessidade de assegurar sua adequada proteção e promoção, [...] Reconhecendo a necessidade de adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais incluindo seus conteúdos, especialmente nas situações em que expressões culturais possam estar ameaçadas de extinção ou de grave deterioração, [...] Reconhecendo que a diversidade das expressões culturais, incluindo as expressões culturais tradicionais, é um fator importante, que possibilita aos indivíduos e aos povos expressarem e compartilharem com outros as suas idéias e valores, [...] Tendo em conta a importância da vitalidade das culturas para todos, incluindo as pessoas que pertencem a minorias e povos indígenas, tal como se manifesta em sua liberdade de criar, difundir e distribuir as suas expressões culturais tradicionais, bem como de ter acesso a elas, de modo a favorecer o seu próprio desenvolvimento [...]”. 66 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, preâmbulo: “Reconhecendo a importância dos direitos da propriedade intelectual para a manutenção das pessoas que participam da criatividade cultural [...]”. 67 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, preâmbulo: “Convencida de que as atividades, bens e serviços culturais possuem dupla natureza, tanto econômica quanto cultural, uma vez que são portadores de identidades, valores e significados, não devendo, portanto, ser tratados como se tivessem valor meramente comercial [...]”. Artigo 1: “Objetivos [...] Os objetivos da presente Convenção são: [...] (g) reconhecer natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados [...]”. Artigo 4: “Definições [...] Para os fins da presente Convenção, fica entendido que: [...] 4. Atividades, bens e serviços culturais [...] ‘Atividades, bens e serviços culturais’ refere-se às atividades, bens e serviços que, considerados sob o ponto de vista da sua qualidade, uso ou finalidade específica, incorporam ou transmitem expressões culturais, independentemente do valor comercial que possam ter. As atividades culturais podem ser um fim em si mesmas, ou contribuir para a produção de bens e serviços culturais. [...] 5. Indústrias culturais [...] ‘Indústrias culturais’ refere-se às indústrias que produzem e distribuem bens e serviços culturais, tais como definidos no parágrafo 4 acima”.

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veiculados por atividades, bens e serviços culturais – em particular nos países em desenvolvimento”68. A cultura é mais uma vez inserida na concepção de desenvolvimento69 e de desenvolvimento sustentável70, bem como se repete o reconhecimento da soberania dos Estados na elaboração e execução de suas políticas públicas culturais71, reafirmando-se a exortação à cooperação internacional nessa área72. A UNESCO permanece com função de indutora das políticas estatais no campo da cultura e de centro de coordenação dos vários Estados entre si e destes com o setor 68

UNESCO, 2007: 22. Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 1: “Objetivos [...] Os objetivos da presente Convenção são: [...] (f) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo [...]”. Artigo 2: “Princípios diretores [...] 5. Princípio da complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento [...] Sendo a cultura um dos motores fundamentais do desenvolvimento, os aspectos culturais deste são tão importantes quanto os seus aspectos econômicos, e os indivíduos e povos têm o direito fundamental de dele participarem e se beneficiarem”. 70 Artigo 2: “Princípios diretores [...] 6. Princípio do desenvolvimento sustentável [...] A diversidade cultural constitui grande riqueza para os indivíduos e as sociedades. A proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural é condição essencial para o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futuras”. Artigo 13: “Integração da cultura no desenvolvimento sustentável [...] As Partes envidarão esforços para integrar a cultura nas suas políticas de desenvolvimento, em todos os níveis, a fim de criar condições propícias ao desenvolvimento sustentável e, nesse marco, fomentar os aspectos ligados à proteção e promoção da diversidade das expressões culturais”. 71 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 1: “Objetivos [...] Os objetivos da presente Convenção são: [...] (h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território [...]”. Artigo 2: “Princípios diretores [...] 2. Princípio da soberania [...] De acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, os Estados têm o direito soberano de adotar medidas e políticas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seus respectivos territórios”. Artigo 4, 6: “Políticas e medidas culturais [...] ‘Políticas e medidas culturais’ refere-se às políticas e medidas relacionadas à cultura, seja no plano local, regional, nacional ou internacional, que tenham como foco a cultura como tal, ou cuja finalidade seja exercer efeito direto sobre as expressões culturais de indivíduos, grupos ou sociedades, incluindo a criação, produção, difusão e distribuição de atividades, bens e serviços culturais, e o acesso aos mesmos”. Artigo 5: “Regra geral em matéria de direitos e obrigações [...]1. As Partes, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, os princípios do direito internacional e os instrumentos universalmente reconhecidos em matéria de direitos humanos, reafirmam seu direito soberano de formular e implementar as suas políticas culturais e de adotar medidas para a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais, bem como para o fortalecimento da cooperação internacional, a fim de alcançar os objetivos da presente Convenção. [...] 2. Quando uma Parte implementar políticas e adotar medidas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território, tais políticas e medidas deverão ser compatíveis com as disposições da presente Convenção”. 72 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 1: “Objetivos [...] Os objetivos da presente Convenção são: [...] (i) fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais [...]”. Artigo 2: “Princípios diretores [...] 4. Princípio da solidariedade e cooperação internacionais. [...] A cooperação e a solidariedade internacionais devem permitir a todos os países, em particular os países em desenvolvimento, criarem e fortalecerem os meios necessários a sua expressão cultural – incluindo as indústrias culturais, sejam elas nascentes ou estabelecidas – nos planos local, nacional e internacional”. 69

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privado e a sociedade civil73, como já previsto na Declaração Universal de 2001, mas há um aperfeiçoamento institucional: pela Convenção de 2005, foram criados, sob assistência do Secretariado da UNESCO74, uma Conferência das Partes cuja reunião ordinária é bienal75, bem como um Comitê Intergovernamental para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, o qual se reúne em sessões ordinárias anuais76. Seu principal objetivo é monitorar as medidas de proteção77 e promoção78 (“preservação, salvaguarda e valorização”79) da diversidade cultural em sua

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Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artigo 12: “A UNESCO, por virtude de seu mandato e de suas funções, tem a responsabilidade de: [...] a) promover a incorporação dos princípios enunciados na presente Declaração nas estratégias de desenvolvimento elaboradas no seio das diversas entidades intergovernamentais; [...] b) servir de instância de referência e de articulação entre os Estados, os organismos internacionais governamentais e não-governamentais, a sociedade civil e o setor privado para a elaboração conjunta de conceitos, objetivos e políticas em favor da diversidade cultural; [...] c) dar seguimento a suas atividades normativas, de sensibilização e de desenvolvimento de capacidades nos âmbitos relacionados com a presente Declaração dentro de suas esferas de competência [...]”. 74 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 24: “Secretariado da UNESCO [...] Os órgãos da presente Convenção serão assistidos pelo Secretariado da UNESCO. [...] 2. O Secretariado preparará a documentação da Conferência das Partes e do Comitê Intergovernamental,assim como o projeto de agenda de suas reuniões, prestando auxílio na implementação de suas decisões e informando sobre a aplicação das mesmas”. 75 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 22, 4: “As funções da Conferência das Partes são, entre outras: [...] (a) eleger os Membros do Comitê Intergovernamental; [...] (b) receber e examinar relatórios das Partes da presente Convenção transmitidos pelo Comitê Intergovernamental; [...] (c) aprovar as diretrizes operacionais preparadas, a seu pedido, pelo Comitê Intergovernamental; [...] (d) adotar quaisquer outras medidas que considere necessárias para promover os objetivos da presente Convenção”. Artigo 22, 2: “2. A Conferência das Partes se reúne em sessão ordinária a cada dois anos, sempre que possível no âmbito da Conferência-Geral da UNESCO. A Conferência das Partes poderá reunir-se em sessão extraordinária, se assim o decidir, ou se solicitação for dirigida ao Comitê Intergovernamental por ao menos um terço das Partes”. 76 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 23, 6: “Sem prejuízo de outras responsabilidades a ele conferidas pela presente Convenção, o Comitê Intergovernamental tem as seguintes funções: [...] (a) promover os objetivos da presente Convenção, incentivar e monitorar a sua implementação; [...] (b) preparar e submeter à aprovação da Conferência das Partes, mediante solicitação, as diretrizes operacionais relativas à implementação e aplicação das disposições da presente Convenção; [...] (c) transmitir à Conferência das Partes os relatórios das Partes da Convenção acompanhados de observações e um resumo de seus conteúdos; [...] (d) fazer recomendações apropriadas para situações trazidas à sua atenção pelas Partes da Convenção, de acordo com as disposições pertinentes da Convenção, em particular o Artigo 8; [...] (e) estabelecer os procedimentos e outros mecanismos de consulta que visem à promoção dos objetivos e princípios da presente Convenção em outros foros internacionais; [...] (f) realizar qualquer outra tarefa que lhe possa solicitar a Conferência das Partes”. 77 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 8: “Medidas para a proteção das expressões culturais [...] 1. Sem prejuízo das disposições dos artigos 5 e 6, uma Parte poderá diagnosticar a existência de situações especiais em que expressões culturais em seu território estejam em risco de extinção, sob séria ameaça ou necessitando de urgente salvaguarda. [...] 2. As Partes poderão adotar todas as medidas apropriadas para proteger e preservar as expressões culturais nas situações referidas no parágrafo 1, em conformidade com as disposições da presente Convenção. [...] 3. As partes informarão ao Comitê Intergovernamental mencionado no Artigo 23 todas as medidas tomadas para fazer face às exigências da situação, podendo o Comitê formular recomendações apropriadas”. 78 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 7: “Medidas para a promoção das expressões culturais [...] 1. As partes procurarão criar em seu território um ambiente que encoraje indivíduos e grupos sociais a: [...] (a) criar, produzir, difundir, distribuir suas próprias

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implementação pelos Estados partes, que lhe devem relatórios quadrienais80 sobre as medidas implementadas. As medidas sugeridas na Convenção incluem desde marcos regulatórios para o setor cultural até o fomento a instituições públicas especializadas, a artistas, a organizações não governamentais e à indústria cultural, atentando para a promoção da presença dos produtos nacionais no mercado de bens e serviços culturais, bem como para a diversidade cultural nos meios de comunicação de massa81. Incluem também medidas educacionais, tanto para a difusão da diversidade cultural voltada à

expressões culturais, e a elas ter acesso, conferindo a devida atenção às circunstâncias e necessidades especiais da mulher, assim como dos diversos grupos sociais, incluindo as pessoas pertencentes às minorias e povos indígenas; [...] (b) ter acesso às diversas expressões culturais provenientes do seu território e dos demais países do mundo; [...] 2. As Partes buscarão também reconhecer a importante contribuição dos artistas, de todos aqueles envolvidos no processo criativo, das comunidades culturais e das organizações que os apóiam em seu trabalho, bem como o papel central que desempenham ao nutrir a diversidade das expressões culturais”. 79 UNESCO, 2007: 23: “É importante apontar para o fato de que, na terminologia da UNESCO, o termo “proteção” significa a adoção de medidas direcionadas à preservação, salvaguarda e valorização. É esse o sentido do termo usado nos diversos instrumentos existentes, tais como a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972), a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (2001) e a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003). Nesse contexto, o termo “proteção” não adquire as conotações que ele poderia sugerir na linguagem comercial. Quando usado em conjunto com o termo “promoção”, implica o desejo de manter vivas expressões culturais ameaçadas pelo crescente ritmo de globalização. A palavra “promoção” expressa o chamado à contínua regeneração das expressões culturais, de modo a assegurar que elas não sejam confinadas em museus, folclorizadas ou reificadas. Além disso, as palavras “promoção e proteção” são inseparáveis. O artigo 7 da Convenção focaliza a promoção, enquanto o Artigo 8, que o reforça, focaliza a proteção; este último afirma enfaticamente que todas as medidas tomadas com vistas a esse fim devem ocorrer ‘conforme disposições desta Convenção’, ou seja, respeitando os direitos humanos, as liberdades fundamentais e os tratados internacionais existentes”. 80 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 9: “Intercâmbio de informações e transparência [...] As Partes: [...] (a) fornecerão, a cada quatro anos, em seus relatórios à UNESCO, informação apropriada sobre as medidas adotadas para proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território e no plano internacional [...]”. 81 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 6: “Direitos das partes no âmbito nacional [...] 1. No marco de suas políticas e medidas culturais, tais como definidas no artigo 4.6, e levando em consideração as circunstâncias e necessidades que lhe são particulares, cada Parte poderá adotar medidas destinadas a proteger e promover a diversidade das expressões culturais em seu território. [...] 2. Tais medidas poderão incluir: [...] (a) medidas regulatórias que visem à proteção e promoção da diversidade das expressões cultuais; [...] (b) medidas que, de maneira apropriada, criem oportunidades às atividades, bens e serviços culturais nacionais – entre o conjunto das atividades, bens e serviços culturais disponíveis no seu território –, para a sua criação, produção, difusão, distribuição e fruição, incluindo disposições relacionadas à língua utilizada nessas atividades, bens e serviços; [...] (c) medidas destinadas a fornecer às indústrias culturais nacionais independentes e às atividades no setor informal acesso efetivo aos meios de produção, difusão e distribuição das atividades, bens e serviços culturais; [...] (d) medidas voltadas para a concessão de apoio financeiro público; [...] (e) medidas com o propósito de encorajar organizações de fins não lucrativos, e também instituições públicas e privadas, artistas e outros profissionais de cultura, a desenvolver e promover o livre intercâmbio e circulação de idéias e expressões culturais, bem como de atividades, bens e serviços culturais, e a estimular tanto a criatividade quanto o espírito empreendedor em suas atividades; [...] (f) medidas com vistas a estabelecer e apoiar, de forma adequada, as instituições pertinentes de serviço público; [...] (g) medidas para encorajar e apoiar os artistas e todos aqueles envolvidos na criação de expressões culturais; [...] (h) medidas objetivando promover a diversidade da mídia, inclusive mediante serviços públicos de radiodifusão”.

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população em geral, quanto para a formação de profissionais no campo cultural82. Como já mencionado, a “governança cultural”83 desenhada na Convenção reitera a necessidade da cooperação entre o Estado, a sociedade civil84, o setor privado e as organizações não governamentais85, bem como entre as esferas locais, nacionais e internacionais86. Quanto ao plano internacional, destaca-se a criação, pela Convenção, de um Fundo Internacional para a Diversidade Cultural87, bem como a previsão de um dever dos 82

Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 10: “Educação e conscientização pública [...] As Partes deverão: [...] (a) propiciar e desenvolver a compreensão da importância da proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, por intermédio, entre outros, de programas de educação e maior sensibilização do público; [...] (b) cooperar com outras Partes e organizações regionais e internacionais para alcançar o objetivo do presente artigo; [...] (c) esforçar-se por incentivar a criatividade e fortalecer as capacidades de produção, mediante o estabelecimento de programas de educação, treinamento e intercâmbio na área das indústrias culturais. Tais medidas deverão ser aplicadas de modo a não terem impacto negativo sobre as formas tradicionais de produção”. 83 UNESCO, 2007: 24. 84 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 11: “Participação da sociedade civil [...] As Partes reconhecem o papel fundamental da sociedade civil na proteção e promoção da diversidade das expressões culturais. As Partes deverão encorajar a participação ativa da sociedade civil em seus esforços para alcançar os objetivos da presente Convenção”. 85 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 15: “Modalidades de colaboração [...] As Partes incentivarão o desenvolvimento de parcerias entre o setor público, o setor privado e organizações de fins não-lucrativos, e também no interior dos mesmos, a fim de cooperar com os países em desenvolvimento no fortalecimento de suas capacidades de proteger e promover a diversidade das expressões culturais. Essas parcerias inovadoras enfatizarão, de acordo com as necessidades concretas dos países em desenvolvimento, a melhoria da infra-estrutura, dos recursos humanos e políticos, assim como o intercâmbio de atividades, bens e serviços culturais”. 86 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 12: “Promoção da cooperação internacional [...] As Partes procurarão fortalecer sua cooperação bilateral, regional e internacional, a fim de criar condições propícias à promoção da diversidade das expressões culturais, levando especialmente em conta as situações mencionadas nos Artigos 8 e 17, em particular com vistas a: [...] (a) facilitar o diálogo entre as Partes sobre política cultural; [...] (b) reforçar as capacidades estratégicas e de gestão do setor público nas instituições públicas culturais, mediante intercâmbios culturais profissionais e internacionais, bem como compartilhamento das melhores práticas; [...] (c) reforçar as parcerias com a sociedade civil, organizações não-governamentais e setor privado, e entre essas entidades, para favorecer e promover a diversidade das expressões culturais; [...] (d) promover a utilização das novas tecnologias e encorajar parcerias para incrementar o compartilhamento de informações, aumentar a compreensão cultural e fomentar a diversidade das expressões culturais; [...] (e) encorajar a celebração de acordos de co-produção e de codistribuição”. Artigo 17: “Cooperação internacional em situações de grave ameaça às expressões culturais [...] As Partes cooperarão para mutuamente se prestarem assistência, conferindo especial atenção aos países em desenvolvimento, nas situações referidas no Artigo 8”. 87 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 18: “Fundo Internacional para a Diversidade Cultural [...] 1. Fica instituído um Fundo Internacional para a Diversidade Cultural, doravante denominado o ‘Fundo’. [...] 2. O Fundo estará constituído por fundos fiduciários, em conformidade com o Regulamento Financeiro da UNESCO. [...] 3. Os recursos do Fundo serão constituídos por: [...] (a) contribuições voluntárias das Partes; [...] (b) recursos financeiros que a Conferência-Geral da UNESCO assigne para tal fim; [...] (c) contribuições, doações ou legados feitos por outros Estados, organismos e programas do sistema das Nações Unidas, organizações regionais ou internacionais; entidades públicas ou privadas e pessoas físicas; [...] (d) juros sobre os recursos do Fundo; [...] (e) o produto das coletas e receitas de eventos organizados em benefício do Fundo; [...] (f) quaisquer outros recursos autorizados pelo regulamento do Fundo. [...] 4. A utilização dos recursos do Fundo será decidida pelo Comitê Intergovernamental, com base nas orientações da Conferência das Partes

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Estados partes relativo ao intercâmbio de informações nessa área88. Os deveres e a estrutura de cooperação criados pela Convenção são relevantes na medida em que podem ampliar o escopo, os meios e a longevidade dos intercâmbios entre os Estados, por demais rarefeitos e lacunosos se restritos a acordos informais89.

1.2. Sistemas internacionais regionais de direitos humanos É abordado a seguir o tratamento dos direitos humanos culturais nos três sistemas regionais de direitos humanos em pleno funcionamento: o europeu, o (inter)americano e o africano. Tal tema pressupõe a retomada de alguns aspectos básicos da estrutura e do funcionamento desses sistemas, do ponto de vista dos textos normativos jurídicos que os fundam e das instituições que os compõem. Deve-se iniciar com a advertência da grande disparidade quantitativa entre esses sistemas, sendo que a já consolidada tradição do sistema europeu (cuja convenção fundante vige desde 1953) contrasta com os ainda iniciantes sistemas interamericano (cuja convenção fundante vige internacionalmente desde 1978, quando muitos Estados americanos ainda eram ditatoriais) e africano (cuja carta fundante vige desde 1986)90.

mencionada no Artigo 22. [...] 5. O Comitê Intergovernamental poderá aceitar contribuições, ou outras formas de assistência com finalidade geral ou específica que estejam vinculadas a projetos concretos, desde que os mesmos contem com a sua aprovação. [...] 6. As contribuições ao Fundo não poderão estar vinculadas a qualquer condição política, econômica ou de outro tipo que seja incompatível com os objetivos da presente Convenção. [...] 7. As Partes farão esforços para prestar contribuições voluntárias, em bases regulares, para a implementação da presente Convenção”. 88 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, Artigo 19: “Intercâmbio, análise e difusão de informações [...] 1. As Partes comprometem-se a trocar informações e compartilhar conhecimentos especializados relativos à coleta de dados e estatísticas sobre a diversidade das expressões culturais, bem como sobre as melhores práticas para a sua proteção e promoção. [...] 2. A UNESCO facilitará, graças aos mecanismos existentes no seu Secretariado, a coleta, análise e difusão de todas as informações, estatísticas e melhores práticas sobre a matéria. [...] 3. Adicionalmente, a UNESCO estabelecerá e atualizará um banco de dados sobre os diversos setores e organismos governamentais, privadas e de fins não-lucrativos, que estejam envolvidos no domínio das expressões culturais. [...] 4. A fim de facilitar a coleta de dados, a UNESCO dará atenção especial à capacitação e ao fortalecimento das competências das Partes que requisitarem assistência na matéria. [...] 5. A coleta de informações definida no presente artigo complementará as informações a que fazem referência as disposições do artigo 9”. 89 Lipson, 1991: 537-8: “Os variados usos dos acordos informais iluminam as possibilidades de cooperação internacional e algumas limitações recorrentes. Eles sublinham o fato de que a cooperação é frequentemente circunscrita e que seus estritos limites podem ser fundamentais aos participantes. Seu objetivo é frequentemente restringir o escopo e a duração dos acordos e evitar qualquer generalização de suas implicações. Os fins são em regra particularísticos e os meios, ad hoc. Acordos informais são delimitados de início delimitados. Via de regra não há intenção (nem real possibilidade) de extendê-los a matérias mais amplas, outros atores, maior duração ou obrigações mais formais. Eles simplesmente não são o começo de um processo mais inclusivo ou mais durável de cooperação.” 90 Piovesan, 2011: 181: “Note-se que, em 2004, a Corte Europeia havia proferido 21.191 decisões e 718 julgamentos. No sistema interamericano, até 2003, a Corte Interamericana havia decidido, em média, 4 casos por ano, proferindo uma opinião consultiva por ano Já a Comissão Interamericana havia decidido, em média, 200 casos por ano. Por sua vez, no sistema africano uma média de 10 casos por ano tem sido

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No que se refere ao sistema europeu de direitos humanos, de caráter internacional, e não supranacional – já que não vinculado à União Europeia –91, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, adotada pelo Conselho da Europa em 1950, em sua redação dada pelo Protocolo nº 11, que entrou em vigor em 1998, limitase à previsão dos chamados “direitos civis”. Dentre os previstos, aqueles que mais proximamente se relacionam ao âmbito cultural são a liberdade de expressão92 e a liberdade de reunião e associação93, além da proibição de discriminação, inclusive por fatores culturais94. Os direitos econômicos, sociais e culturais foram objeto da Carta Social Europeia (1961), revisada em 1996. Nela, reafirma-se a indivisibilidade das duas

decidida pela Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, desde 1988”. Piovesan (2011: 189) ainda destaca: “Quanto ao legado do sistema africano, até março de 2010 apenas um caso havia sido submetido à Corte, que decidiu não ter jurisdição para apreciá-lo, uma vez que o Estado reconhecido não havia reconhecido sua jurisdição”. 91 Delmas-Marty, 2004: 47 (grifos no original): “Cumpre ainda especificar logo de saída que não existe uma entidade jurídica nomeada Europa, nem sequer uma visão única e preestabelecida da Europa. A Europa é feita de instituições jurídicas diversas. Cada uma delas se construiu segundo suas próprias regras e vive como uma entidade autônoma. Entidade principalmente econômica, a Comunidade Econômica Europeia, tornada Comunidade Europeia [hoje União Europeia], organiza a livre circulação das pessoas e das mercadorias dentro da perspectiva da abertura das fronteiras entre os doze países do Mercado Comum. Daí o nascimento de um direito ‘comunitário’ oriundo do Tratado de Roma e do direito derivado, sendo a unidade de interpretação assegurada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que tem sede em Luxemburgo. De seu lado, o Conselho da Europa, cooperação política que agrupa hoje mais de trinta Estados (com os da Europa central e oriental), adotou em 1950 a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e criou a Comissão e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sediados em Estrasburgo, e podem recorrer-lhes um Estado ou uma pessoa vítima de uma violação dos direitos reconhecidos pela Convenção, controlam o respeito desses direitos e podem conceder à vítima uma ‘satisfação equitativa’”. 92 Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Artigo 10º: “(Liberdade de expressão). [...] 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. [...] 2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”. 93 Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Artigo 11º: “(Liberdade de reunião e de associação). [...] 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação, incluindo o direito de, com outrem, fundar e filiar-se em sindicatos para a defesa dos seus interesses. [...] 2. O exercício deste direito só pode ser objeto de restrições que, sendo previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. O presente artigo não proíbe que sejam impostas restrições legítimas ao exercício destes direitos aos membros das forças armadas, da polícia ou da administração do Estado”. 94 Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Artigo 14º: “(Proibição de discriminação). [...] O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”.

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categorias de direitos humanos95 e direitos culturais são mencionados dentre direitos das pessoas deficientes96, dos trabalhadores97 e dos idosos98, além de associados a um dever dos Estados de implementarem políticas contra a pobreza e a exclusão social99. Outros instrumentos normativos internacionais adotados no âmbito do Conselho da Europa também apresentam proximidade aos direitos culturais, como a Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais (1995) e a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias (1992). A Carta Social Europeia não tem uma instância jurisdicional correspondente. No âmbito do Conselho da Europa, o Comitê Europeu dos Direitos Sociais monitora a conformidade da legislação e da prática dos Estados partes em relação aos direitos nela previstos. O Comitê avalia os relatórios de cada Estado parte sobre a implementação dos referidos direitos, emitindo conclusões; caso as decisões do Comitê Europeu dos

95

Carta Social Europeia, preâmbulo: “Tendo em conta que a Conferência Ministerial sobre os Direitos do Homem, realizada em Roma em 5 de Novembro de 1990, sublinhou a necessidade, por um lado, de preservar o carácter indivisível de todos os direitos do homem, quer sejam civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais e, por outro, de dar um novo impulso à Carta Social Europeia [...]”. 96 Carta Social Europeia, Artigo 15º: “Direito das pessoas com deficiência à autonomia, à integração social e à participação na vida da comunidade. [...] Com vista a garantir às pessoas com deficiência, independentemente da sua idade, da natureza e da origem da sua deficiência, o exercício efetivo do direito à autonomia, à integração social e à participação na vida da comunidade, as Partes comprometem-se, designadamente: [...] 3) A favorecer a sua plena integração e participação na vida social, designadamente através de medidas, incluindo apoios técnicos, que visem ultrapassar os obstáculos à comunicação e à mobilidade e permitir-lhes o acesso aos transportes, à habitação, às atividades culturais e aos tempos livres”. 97 Carta Social Europeia, Artigo 22º: “Direito de tomar parte na determinação e na melhoria das condições de trabalho e do meio de trabalho. [...] Com vista a assegurar o exercício efetivo do direito dos trabalhadores a tomarem parte na determinação e na melhoria das condições de trabalho e do meio de trabalho na empresa, as Partes comprometem-se a tomar ou a promover medidas que permitam aos trabalhadores ou aos seus representantes, em conformidade com a legislação e a prática nacionais, contribuírem: [...] c) Para a organização de serviços e equipamentos sociais e sócio-culturais na empresa [...]”. Anexo (“Âmbito da Carta Social Europeia Revista no que respeita às pessoas protegidas”), Artigo 22º, 2: “Os termos "serviços e facilidades sociais e sócio-culturais" visam os serviços e facilidades de natureza social e ou cultural oferecidos por certas empresas aos trabalhadores, tais como assistência social, espaços desportivos, salas para amamentação, bibliotecas, colônias de férias, etc.”. 98 Carta Social Europeia, Artigo 23º: “Direito das pessoas idosas a uma protecção social. [...] Com vista a assegurar o exercício efectivo do direito das pessoas idosas a uma protecção social, as Partes comprometem-se a tomar ou a promover quer directamente quer em cooperação com organizações públicas ou privadas, medidas apropriadas que visem, designadamente: [...] - Permitir às pessoas idosas permanecerem durante o maior período de tempo possível membros de pleno direito da sociedade, mediante: [...] a) A atribuição de recursos suficientes que lhes permitam levar uma existência decente e participar activamente na vida pública, social e cultural [...].” 99 Carta Social Europeia, Artigo 30º: “Direito à protecção contra a pobreza e a exclusão social. [...] Com vista a assegurar o exercício efectivo do direito à protecção contra a pobreza e a exclusão social, as Partes comprometem-se: [...] a) A tomar medidas, no quadro de uma abordagem global e coordenada, para promover o acesso efectivo, designadamente, ao emprego, à habitação, à formação, ao ensino, à cultura, à assistência social e médica das pessoas que se encontrem ou corram o risco de se encontrar em situação de exclusão social ou de pobreza, e da sua família [...]”.

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Direitos Sociais não sejam cumpridas pelos Estados, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa emite uma recomendação. Conforme adesão do Estado a protocolo adicional, este pode ser alvo de reclamações dirigidas ao Comitê Europeu dos Direitos Sociais por: 1) entidades patronais e trabalhistas europeias (European Trade Union Confederation,

BusinessEurope

e

International

Organisation

of

Employers);

organizações não governamentais reconhecidas pelo Conselho da Europa; organizações patronais e trabalhistas do respectivo país denunciado; 2) e, para os Estados que também tenham aceito, organizações não governamentais do respectivo país100. Por outro lado, além de poderem ser monitorados por relatórios dos Estados partes

101

, os direitos previstos na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e em seus

protocolos (como o Protocolo 12 de 2000, que trata do direito à não discriminação) podem ser judicialmente exigidos por organizações não governamentais, grupos e indivíduos (não só os cidadãos dos Estados parte, como também os não nacionais e não residentes)102 perante a Corte Europeia dos Direitos Humanos (Strasbourg, França), a qual tem competência para proferir decisões vinculantes contra os respectivos Estados sob sua jurisdição (que é subsidiária à jurisdição dos Estados – requisito do esgotamento prévio dos recursos internos103). O acesso direto dos indivíduos à Corte é resultado do Protocolo 11 de 1998, antes do qual o acesso à Corte era restrito aos Estados partes e à Comissão Europeia (à qual os indivíduos podiam apresentar denúncias). As medidas que a Corte pode impor vão desde compensações pecuniárias e indenizações até medidas legislativas, judiciárias e administrativas, como a revogação ou criação de legislação adequada ou a capacitação profissional em certo setor. Embora caiba ao Comitê de Ministros (órgão executivo do Conselho da Europa) supervisionar a execução das decisões pelos Estados, é destes a obrigação de informar as medidas adotadas para o cumprimento daquelas. A sanção última em caso de não cumprimento 100

Cf. Council of Europe, 2012. Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Artigo 52º: “(Inquéritos do Secretário-Geral). [...] Qualquer Alta Parte Contratante deverá fornecer, a requerimento do Secretário-Geral do Conselho da Europa, os esclarecimentos pertinentes sobre a forma como o seu direito interno assegura a aplicação efectiva de quaisquer disposições desta Convenção”. 102 Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Artigo 34º: “(Petições individuais) [...] O Tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus protocolos. As Altas Partes Contratantes comprometem-se a não criar qualquer entrave ao exercício efectivo desse direito”. 103 Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Artigo 35º, 1: “(Condições de admissibilidade) [...] 1. O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as vias de recurso internas, em conformidade com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos e num prazo de seis meses a contar da data da decisão interna definitiva”. 101

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da decisão é a expulsão do Estado do Conselho da Europa, mas as “irritações” políticas têm sido positivamente exercidas no sentido do cumprimento das decisões jurídicas dessa Corte104. Quanto ao sistema interamericano de direitos humanos, a Carta da OEA, com sua última reforma em 1993, previu diversos dispositivos atinentes à cultura, destacando-se o reconhecimento de uma “unidade cultural” dos Estados americanos construída com base no respeito às identidades culturais de cada país105. Já em 1948, meses antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem declarava em seu preâmbulo: “É dever do homem exercer, manter e estimular a cultura por todos os meios ao seu alcance, porque a cultura é a mais elevada expressão social e histórica do espírito”. Ainda previa os direitos culturais como espécie de direitos humanos e continha dispositivos garantidores do direito de liberdade de associação para fins culturais106, do direito ao “tempo livre” para o aperfeiçoamento cultural107 e dos direitos a participar da vida cultural e a ter acesso aos benefícios da atividade cultural, inclusive prevendo a proteção dos direitos dos respectivos autores108. A Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica (1969), apesar de breve referência também aos direitos econômicos, sociais e

104

Sobre a Convenção e a Corte Europeia de Direitos Humanos, cf. Piovesan, 2011: 99-121. Piovesan (2011: 120, grifos no original) registra: “Há que frisar que outras pressões, de natureza diversa, devem ser conjugadas para encorajar os Estados ao cumprimento dos parâmetros internacionais. Dentre elas, destaca-se o interesse coletivo em prol da estabilidade na Europa; pressões diplomáticas. Interesse em integrar a União Europeia (um good record em Strasbourg é visto como relevante pré-condição); e o power of shame ou power of embarassment pelo risco de ser considerado um Estado violador no âmbito do Comitê de Ministros”. 105 Carta da Organização dos Estados Americanos, Artigo 3: “Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: [...] m) A unidade espiritual do Continente baseia-se no respeito à personalidade cultural dos países americanos e exige a sua estreita colaboração para as altas finalidades da cultura humana; [...]”. Artigo 17: “Cada Estado tem o direito de desenvolver, livre e espontaneamente, a sua vida cultural, política e econômica. No seu livre desenvolvimento, o Estado respeitará os direitos da pessoa humana e os princípios da moral universal”. 106 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Artigo 22: “Toda pessoa tem o direito de se associar com outras a fim de promover, exercer e proteger os seus interesses legítimos, de ordem política, econômica, religiosa, social, cultural, profissional, sindical ou de qualquer outra natureza”. 107 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Artigo 15: “Toda pessoa tem direito ao descanso, ao recreio honesto e à oportunidade de aproveitar utilmente o seu tempo livre em benefício de seu melhoramento espiritual, cultural e físico”. 108 Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Artigo 13: “Toda pessoa tem direito de tomar parte na vida cultural da coletividade, de gozar das artes e de desfrutar dos benefícios resultantes do progresso intelectual e, especialmente das descobertas científicas. Tem o direito, outrossim, de ser protegida em seus interesses morais e materiais, no que se refere às invenções, obras literárias, científicas ou artísticas de sua autoria”.

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culturais109, centrou-se nos direitos civis e políticos – dentre os quais a liberdade de associação inclusive para fins culturais110. Quanto à primeira categoria de direitos, estabeleceu, em seu artigo 26: “Os Estados Membros comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”. Já em 1988, foi adotado o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). Os direitos culturais tiveram como núcleo seu artigo 14111, que previu: a cooperação internacional na área cultural; o dever dos Estados de promoverem políticas para a conservação, o desenvolvimento e a divulgação da cultura; o direito à participação na vida cultural; e os direitos dos autores das criações artísticas. Ademais, o artigo 3 proibiu a implementação seletiva dos direitos, isto é, sua negação discriminatória112.

109

Convenção Americana de Direitos Humanos, preâmbulo: “Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos. [...]”. 110 Convenção Americana de Direitos Humanos, Artigo 16: “Liberdade de associação. [...] § 1. Todas as pessoas têm o direito de associar-se livremente com fins ideológicos, religiosos, políticos, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais, desportivos ou de qualquer outra natureza. [...] § 2. O exercício desse direito só pode estar sujeito às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional, da segurança e da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. [...] § 3. O presente artigo não impede a imposição de restrições legais, e mesmo a privação do exercício do direito de associação, aos membros das forças armadas e da polícia”. 111 Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Artigo 14: “Direito aos benefícios da cultura. [...] § 1. Os Estados Membros neste Protocolo reconhecem o direito de toda pessoa a: [...] a) Participar na vida cultural e artística da comunidade. [...] b) Gozar dos benefícios do progresso científico e tecnológico. [...] c) Beneficiar-se da proteção dos interesses morais e materiais que lhe caibam em virtude das produções científicas, literárias ou artísticas de que for autora. [...] § 2. Entre as medidas que os Estados Membros neste Protocolo deverão adotar para assegurar o pleno exercício deste direito figurarão as necessárias para a conservação, desenvolvimento e divulgação da ciência, da cultura e da arte. [...] § 3. Os Estados Membros neste Protocolo comprometem-se a respeitar a liberdade indispensável para a pesquisa científica e a atividade criadora. [...] § 4. Os Estados Membros neste Protocolo reconhecem os benefícios que decorrem da promoção e desenvolvimento da cooperação e das relações internacionais em assuntos científicos, artísticos e culturais e, nesse sentido, comprometem-se a propiciar maior cooperação internacional nesse campo”. 112 Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Artigo 3: “Obrigação de não discriminação [...] Os Estados Partes neste

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Quanto ao Protocolo de San Salvador, reconhecida a obrigação dos Estados de progressivamente concretizarem os direitos econômicos, sociais e culturais, não foi estabelecido com relação a estes, em regra, um tratamento jurisdicional – este só é previsto como possível quanto aos direitos sindicais (basicamente organização e filiação sindicais; artigo 8, 1, a) e quanto ao direito à educação (artigo 13). Há apenas o monitoramento da implementação de tais direitos por meio de relatórios endereçados pelos Estados partes ao Secretário Geral da OEA113. Por outro lado, o regime jurídico estabelecido pelo Pacto de San José da Costa Rica previu uma duplicidade de competências, divididas entre a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Àquela cabe monitorar a implementação dos direitos previstos no Pacto pelos Estados, bem como prestar tal informação por meio de um relatório anual submetido à Assembleia Geral da OEA, além de outros trabalhos de investigação e aconselhamento (inclusive aos Estados membros da Organização). Como Protocolo comprometem-se a garantir o exercício dos direitos nele enunciados, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. 113 Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Artigo 19: “Meios de proteção [...] 1. Os Estados Partes neste Protocolo comprometem-se a apresentar, de acordo com o disposto por este artigo e pelas normas pertinentes que a propósito deverão ser elaboradas pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, relatórios periódicos sobre as medidas progressivas que tiverem adotado a fim de assegurar o devido respeito dos direitos consagrados no mesmo Protocolo. [...] 2. Todos os relatórios serão apresentados ao Secretário-Geral da OEA, que os transmitirá ao Conselho Interamericano Econômico e Social e ao Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura, a fim de que os examinem de acordo com o disposto neste artigo. O Secretário-Geral enviará cópia desses relatórios à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. [...] 3. O Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos transmitirá também aos organismos especializados do Sistema Interamericano, dos quais sejam membros os Estados Partes neste Protocolo, cópias dos relatórios enviados ou das partes pertinentes deles, na medida em que tenham relação com matérias que sejam da competência dos referidos organismos, de acordo com seus instrumentos constitutivos. [...] 4. Os organismos especializados do Sistema Interamericano poderão apresentar ao Conselho Interamericano Econômico e Social e ao Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura relatórios sobre o cumprimento das disposições deste Protocolo, no campo de suas atividades. [...] 5. Os relatórios anuais que o Conselho Interamericano Econômico e Social e o Conselho Interamericano de Educação. Ciência e Cultura apresentarem à Assembléia Geral conterão um resumo da informação recebida dos Estados Partes neste Protocolo e dos organismos especializados sobre as medidas progressivas adotadas a fim de assegurar o respeito dos direitos reconhecidos neste mesmo Protocolo e as recomendações de caráter geral que a respeito considerarem pertinentes. [...] 6. Caso os direitos estabelecidos na alínea a_, do artigo 8 e no artigo 13 forem violados por ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Protocolo, tal situação poderia dar lugar, mediante participação da Comissão Interainericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à aplicação do sistema de petições individuais regulado pêlos artigos 44 a 51 e 61 a 69 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. [...] 7. Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos poderá formular as observações e recomendações que considerar pertinentes sobre a situação dos direitos econômicos, sociais e culturais estabelecidos neste Protocolo em todos ou em alguns dos Estados Partes, as quais poderá incluir no Relatório Anual à Assembléia Geral ou num relatório especial, conforme considerar mais apropriado. [...] 8. No exercício das funções que lhes confere este artigo, os Conselhos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos levarão em conta a natureza progressiva da vigência dos direitos objeto da proteção deste Protocolo.

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apenas têm legitimidade perante a Corte os Estados e a Comissão, esta também exerce uma função conciliadora entre os grupos, entidades não governamentais e indivíduos que a acessam e o respectivo Estado acusado – aqueles, embora não possam submeter suas denúncias diretamente à Corte, nela podem apresentar sua própria argumentação uma vez que seja iniciado o procedimento jurisdicional perante o órgão. O prévio esgotamento dos recursos internos é sempre condição para que um caso chegue a essa instância jurisdicional internacional114, assim como, para chegar à Corte, é necessário que não tenha havido acordo entre os denunciantes e o Estado violador no âmbito da Comissão ou que tal acordo não haja sido cumprido. Dentre as violações da Convenção por parte de um Estado está o próprio conflito da legislação estatal com o disposto na Convenção, o que permite à Corte exercer um “controle de convencionalidade das leis”. Assim, as medidas impostas pela Corte vão desde o pagamento de indenização até medidas legislativas, administrativas e jurisprudenciais (e.g., revogação de lei que contrarie o disposto na Convenção; anulação ou execução de sentença proferida por corte estatal; investigação e processamento de certo caso). O monitoramento do cumprimento das sentenças cabe à própria Corte115, o que não tem sido suficientemente eficaz; a execução das decisões da Corte Interamericana é problemática principalmente no que concerne às obrigações não pecuniárias a que são condenados os Estados, as quais não costumam ser (totalmente) cumpridas116. Piovesan117 destaca que a intermediação da Comissão Interamericana – em contraste com o sistema europeu atual, no qual o indivíduo tem legitimidade perante a Corte Europeia – permitiu historicamente uma forte seletividade política dos casos que chegavam à Corte, o que foi atenuado pela “maior tônica de ‘juridicidade’” conferida desde o Regulamento da Comissão adotado em 2001 (o atual é de 2009); por outro lado, enfraquecem o sistema o fato de serem facultativas as cláusulas: 1) de legitimação passiva do Estado membro da Convenção perante a Corte (nem todos os Estados que

114

Convenção Americana dos Direitos Humanos, Artigo 46, 1: “Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão será necessário: [...] 1. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos [...]”. 115 Convenção Americana dos Direitos Humanos, Artigo 65º: “A Corte submeterá à consideração da Assembléia Geral da Organização, em cada período ordinário de sessões, um relatório sobre suas atividades no ano anterior. De maneira especial, e com as recomendações pertinentes, indicará os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento as suas sentenças”. 116 Sobre o sistema interamericano de direitos humanos, cf. Piovesan, 2011: 123-60. 117 2011: 135.

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adotaram a Convenção precisam submeter-se à jurisdição da Corte Interamericana)118; e 2) de adoção do sistema de comunicações interestatais, pela qual um Estado reconhece que outro Estado parte da Convenção possa denunciá-lo119. Quanto ao sistema africano de direitos humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta de Banjul), adotada pela Organização da Unidade Africana (OUA) em 1981, registrou em seu preâmbulo o entendimento de que, “para o futuro, é essencial dedicar uma particular atenção ao direito ao desenvolvimento; que os direitos civis e políticos são indissociáveis dos direitos econômicos, sociais e culturais, tanto na sua concepção como na sua universalidade, e que a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais garante o gozo dos direitos civis e políticos”. A Carta ainda previu o direito de cada um de participar da vida cultural120 e o direito de todos os povos ao seu livre desenvolvimento cultural, com acesso ao “patrimônio comum da humanidade”121. Prescreveu a assistência dos Estados partes da Carta a todos os povos africanos, em sua luta contra a dominação estrangeira, inclusive cultural122. Finalmente,

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Convenção Americana dos Direitos Humanos, Artigo 62º: “1. Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção. [...] 2. A declaração pode ser feita incondicionalmente, ou sob condição de reciprocidade, por prazo determinado ou para casos específicos. Deverá ser apresentada ao Secretário-Geral da Organização, que encaminhará cópias da mesma aos outros Estados membros da Organização e ao Secretário da Corte. [...] 3. A Corte tem competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção que lhe seja submetido, desde que os Estados Partes no caso tenham reconhecido ou reconheçam a referida competência, seja por declaração especial, como prevêem os incisos anteriores, seja por convenção especial”. 119 Convenção Americana dos Direitos Humanos, Artigo 45º: “1. Todo Estado Parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece a competência da Comissão para receber e examinar as comunicações em que um Estado Parte alegue haver outro Estado Parte incorrido em violações dos direitos humanos estabelecidos nesta Convenção. [...] 2. As comunicações feitas em virtude deste artigo só podem ser admitidas e examinadas se forem apresentadas por um Estado Parte que haja feito uma declaração pela qual reconheça a referida competência da Comissão. A Comissão não admitirá nenhuma comunicação contra um Estado Parte que não haja feito tal declaração. [...] 3. As declarações sobre reconhecimento de competência podem ser feitas para que esta vigore por tempo indefinido, por período determinado ou para casos específicos. [...] 4. As declarações serão depositadas na Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, a qual encaminhará cópia das mesmas aos Estados membros da referida Organização”. 120 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 17º, 2: “Toda a pessoa pode tomar livremente parte na vida cultural da Comunidade”. 121 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 22º, 1: “Todos os povos têm direito ao seu desenvolvimento econômico, social e cultural, no estrito respeito da sua liberdade e da sua identidade, e ao gozo igual do patrimônio comum da humanidade”. 122 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 20º, 3: “Todos os povos têm direito à assistência dos Estados Partes na presente Carta, na sua luta de libertação contra a dominação estrangeira, quer esta seja de ordem política, econômica ou cultural”.

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concebeu como dever individual a preservação da cultura africana123. “Direitos civis” relacionados também ao âmbito cultural, como a liberdade de associação124, são reconhecidos. Destaca-se na Carta Africana o reconhecimento, lado a lado, de “direitos civis e políticos” e “direitos sociais, econômicos e culturais”, sem uma bipartição do regime – como ocorre nos sistemas europeu e (inter)americano – e a ênfase coletivista na previsão dos direitos (dimensão dos “povos”), semântica que resulta da recente descolonização dos países africanos. No que diz com a execução dos direitos em tal instrumento previstos, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, órgão da União Africana sediado na Gâmbia desde 1987, é responsável por apreciar denúncias contra Estados partes da Carta assinadas por outro Estado Parte125, por indivíduos ou organizações não governamentais126, bem como tem como sua competência avaliar

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Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 29º: “Todo indivíduo tem ainda o dever: [...] 7. De velar, nas suas relações com a sociedade, pela preservação e reforço dos valores culturais africanos positivos, num espírito de tolerância, de diálogo e de concertação e, de uma maneira geral, de contribuir para a promoção da saúde moral da sociedade”. 124 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 10º: “1. Toda a pessoa tem direito de constituir, livremente, com outras pessoas, associações, sob reserva de se conformar às regras prescritas na lei. [...] 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação sob reserva da obrigação de solidariedade prevista no artigo 29”. 125 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 47º: “Se um Estado Parte na presente Carta tem fundadas razões para crer que um outro Estado Parte violou disposições desta mesma Carta, pode, mediante comunicação escrita, chamar a atenção desse Estado sobre a questão. Esta comunicação será igualmente endereçada ao Secretário-Geral da O.U.A. e ao Presidente da Comissão. Num prazo de três meses a contar da recepção da comunicação, o Estado destinatário facultará ao Estado que endereçou a comunicação explicações ou declarações escritas que elucidem a questão, as quais, na medida do possível, deverão compreender indicações sobre as leis e os regulamentos de processo aplicáveis ou aplicadas e sobre os meios de recurso, quer já utilizados, quer em instancia, quer ainda disponíveis”. Artigo 48º: “Se num prazo de três meses, a contar da data de recepção pelo Estado destinatário da comunicação inicial, a questão não estiver solucionada de modo satisfatório para os dois Estados interessados, por via de negociação bilateral ou por qualquer outro processo pacífico, qualquer desses Estados tem o direito de submeter a referida questão à Comissão mediante notificação endereçada ao seu Presidente, ao outro Estado interessado e ao Secretário-Geral da O.U.A.”. Artigo 49º: “Não obstante as disposições do artigo 47.º, se um Estado Parte na presente Carta entende que um outro Estado Parte, violou disposições desta mesma Carta, pode recorrer diretamente à Comissão mediante comunicação endereçada ao seu Presidente, ao Secretário-Geral da O.U.A. e ao Estado interessado”. 126 Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 55º: “1. Antes de cada sessão, o Secretário da Comissão estabelece a lista das comunicações que não emanam dos Estados Partes na presente Carta e comunica-a aos membros da Comissão, os quais podem querer tomar conhecimento das correspondentes comunicações e submetê-las à Comissão. [...] 2. A Comissão apreciará essas comunicações a pedido da maioria absoluta dos seus membros”. Artigo 56º: “As comunicações referidas no artigo 55.º, recebidas na Comissão e relativas aos direitos do homem e dos povos devem necessariamente, para ser examinadas, preencher as condições seguintes: [...] 1. Indicar a identidade do seu autor mesmo que este solicite à Comissão manutenção de anonimato. [...] 2. Ser compatíveis com a Carta da Organização da Unidade Africana ou com a presente Carta. [...] 3. Não conter termos ultrajantes ou insultuosos para com o Estado impugnado, as suas instituições ou a Organização da Unidade Africana. [...] 4. Não se limitar exclusivamente a reunir noticias difundidas por meios de comunicação de massa. [...] 5. Ser posteriores ao esgotamento dos recursos internos se existirem, a menos que seja manifesto para a Comissão que o

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relatórios bienais de cada Estado a respeito das medidas tomadas para concretizar os direitos referidos na Carta e emitir resoluções. As obrigações de elaboração dos relatórios e de cumprimento das resoluções da Comissão não gozam de mecanismos jurídicos efetivos a lhes garantir executoriedade e, considerada tal ausência, também não há reconhecimento político suficiente da importância de cumpri-las. A submissão do Estado parte da Carta à Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos é facultativa. A Corte, que começou a funcionar em 2006 e julgou seu primeiro caso em 2009, tem competência consultiva127 e exerce jurisdição contenciosa, à qual tem acesso Estados, a Comissão Africana e organizações africanas intergovernamentais – também, mas apenas excepcionalmente, mediante aceitação prévia do respectivo Estado ao qual se vinculem, indivíduos e organizações não governamentais128. As decisões da Corte

processo relativo a esses recursos se prolonga de modo anormal. [...] 6. Ser introduzidas num prazo razoável, a partir do esgotamento dos recursos internos ou da data marcada pela Comissão para abertura do prazo da admissibilidade perante a própria Comissão. [...] 7. Não dizer respeito a casos que tenham sido resolvidos em conformidade com os princípios da Carta das Nações Unidas, da Carta da Organização da Unidade Africana ou com as disposições da presente Carta”. Artigo 57º: “Antes de qualquer exame quanto ao fundo, qualquer comunicação deve ser levada ao conhecimento do Estado interessado por intermédio do Presidente da Comissão”. Artigo 58º: “1. Quando, no seguimento de uma deliberação da Comissão, resulta que uma ou várias comunicações relatam situações particulares que parecem revelar a existência de um conjunto de violações graves ou maciças dos direitos do homem e dos povos, a Comissão chama a atenção da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo sobre essas situações. [...] 2. A Conferência dos Chefes de Estado e de Governo pode então solicitar à Comissão que proceda, quanto a essas situações, a um estudo aprofundado e que a informe através de um relatório pormenorizado, contendo as suas conclusões e recomendações. [...] 3. Em caso de urgência devidamente constatada, a Comissão informa o Presidente da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo que poderá solicitar um estudo aprofundado”. Artigo 59º: “1. Todas as medidas tomadas no quadro do presente capitulo manter-se-ão confidenciais até que a Conferência dos Chefes de Estado e de Governo decida diferentemente. [...] 2. Todavia, o relatório é publicado pelo Presidente da Comissão após decisão da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo. [...] 3. O relatório de atividades da Comissão é publicado pelo seu Presidente após exame da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo”. 127 Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre o Estabelecimento de uma Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 4º: “Opiniões consultivas [...] 1. Por solicitação de Estado membro da OUA, a OUA [hoje UA, União Africana], qualquer de seus órgãos ou qualquer outra organização africana reconhecida pela OUA, a Corte pode elaborar uma opinião sobre qualquer questão jurídica relacionada à Carta ou a qualquer outro relevante instrumento de direitos humanos, assegurando que o objeto da opinião não se refere à questão pendente de exame pela Comissão. [...] 2. A Corte deve fundamentar suas opiniões consultivas, permitindo a cada juiz elaborar um voto dissidente ou em separado”. 128 Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre o Estabelecimento de uma Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 5º: “Acesso à Corte [...] 1. Podem submeter casos à Corte: [...] a) a Comissão; [...] b) o Estado-parte que submeteu o caso perante à Comissão; [...] c) o Estado-parte contra o qual o caso na Comissão foi submetido; [...] d) o Estado-parte cujo cidadão é vítima de violação de direitos humanos; [...] as organizações africanas intergovernamentais. [...] 2. Quanto um Estado-parte tiver interesse em um caso, poderá submeter uma solicitação à Corte no sentido de que dele participe. [...] 3. A Corte poderá conferir a relevantes organizações não governamentais com status de observadora perante a Comissão e a indivíduos a prerrogativa de submeter-lhe diretamente, de acordo com o artigo 34 (6) do Protocolo”. Artigo 34, 6: “No momento de ratificação deste Protocolo ou em qualquer outro momento, o Estado poderá fazer uma declaração aceitando a competência da Corte para

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devem ser monitoradas pelo Conselho de Ministros da União Africana129. A facultatividade da jurisdição da Corte ao Estado parte da Carta e a necessidade de aceitação específica da possibilidade de ser denunciado por indivíduos ou ONGs pelo Estado a ser denunciado130, ao lado do baixo grau de cumprimento das decisões da Comissão são aspectos jurídicos que enfraquecem intensamente o sistema africano de direitos humanos131.

2. Cultura e direitos humanos culturais na União Europeia Surgida como bloco econômico, a União Europeia viveu em sua origem uma “ilusão economicista”132, restringindo sua prática (política e econômica) a específicos interesses econômicos e gerando uma normatividade apenas atenta à economia e, restritivamente, à “política interna” do bloco, isto é, às suas instituições. As organizações que precederam a União Europeia não consagraram nenhum tratado ao tema dos direitos humanos – seja a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), seja a Comunidade Econômica Europeia (CEE), seja a Comunidade Europeia da Energia Atômica (CEEA). Ao lado dessas comunidades organizadas para objetivos de integração e cooperação econômica geral ou setorial, haveria uma Comunidade Política Europeia, que deixou de ser criada pela falta de apoio da França. Sobre esta e sobre o Conselho da Europa, organização internacional fundada em 1949, recairia a função de promoção dos direitos humanos. Meses antes da fundação da CECA, o Conselho da Europa congregaria as iniciativas para a assinatura da Convenção Europeia de Direitos Humanos (Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), adotada em 1950 e vigente desde 1953, independentemente das estruturas organizacionais de cooperação econômica na Europa133. Paralelamente ao diagnóstico de que a integração econômica europeia necessita, para adensar-se, de uma base jurídico-política que contemple a pauta dos direitos humanos, surge o apelo à noção de “povo” europeu, entendido como uma “comunidade receber casos nos termos do artigo 5º (3) deste Protocolo. A Corte não poderá receber qualquer petição nos termos do artigo 5º (3) envolvendo Estado que não tiver elaborado tal declaração”. 129 Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre o Estabelecimento de uma Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Artigo 29, 2: “O Conselho de Ministros deve ser também notificado do julgamento e deve monitorar sua execução em nome da Assembleia [da União Africana]”. 130 Até o final de 2011, cinco Estados haviam aceitado a possibilidade de denúncia por indivíduos e ONGs. 131 Sobre o sistema africano de direitos humanos, cf. Piovesan, 2011: 161-75. 132 Carvalho Ramos, 2008: 59-63. 133 Carvalho Ramos, 2008: 59-60.

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de comunicação”, ou seja, uma comunidade cultural, cuja identidade fincaria bases para a maior abertura da União Europeia a sua esfera pública134. Ao mesmo tempo, tal demanda por identidade apenas pode ser colocada em termos de assecuração da diferença, já que os movimentos migratórios desenharam um perfil crescentemente variado das etnias e outras matrizes culturais no cenário europeu das últimas décadas, trazendo à tona o tema da multiculturalidade que, em variadas terminologias, há muito é objeto do imaginário e da análise dos países “periféricos”, mas apenas recentemente assumiu status de grande debate nos “países centrais” (não só na Europa, mas também nos Estados Unidos) e, então, foi alçado à categoria de tema global. É ilustrativo destacar que os temas de cultura e direitos humanos permanecem sob uma espécie de “delegação implícita” da União Europeia ao Conselho da Europa, organização internacional independentemente que gere a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a respectiva Corte Europeia, com sede em Estrasburgo. Assim, já que os Estados-membros da União Europeia também integram o Conselho da Europa, desenvolveu-se uma coordenação entre as ordens jurídicas internacional (do Conselho da Europa) e supranacional (da União Europeia), o que permite a esta ainda atentar-se quase que exclusivamente a temas econômicos, mas o que, por outro lado, retira daquela (o Conselho da Europa) vantagens de estrutura e funcionamento, como a aplicabilidade imediata aos cidadãos da legislação supranacional. Aqui há que ser notada, portanto, uma limitação dos sistemas político e econômico à concretização dos direitos humanos em geral, e especialmente dos direitos culturais135. A complexa e eficaz 134

Brunkhorst, 2005: 169-70: “O conceito de povo consistente nos cidadãos da UE é um conceito jurídico-normativo construído pelos tratados da Comunidade Europeia. No heterogêneo contexto europeu, a cidadania da UE pode e deve – por razões democráticas – apenas corresponder a um altamente abstrato e inclusivo conceito jurídico de povo. [...] Um conceito mais exclusivo, étnico, religioso ou de qualquer modo fechado poderia excluir, junto com os segmentos da população juridicamente subintegrados, a possibilidade de uma ‘identidade de legisladores e legislados’ democrática [...]. Todos os elementos do conceito material de um povo (em um Estado ou na União Europeia) derivam da intersecção dos princípios da identidade e da diferença [...]: da autovinculação de indivíduos com direitos iguais; De modo a formar um povo, os cidadãos precisam [...] 1. atribuir a si mesmos todos os direitos necessários; [...] 2. formar uma comunidade de comunicação (de qualquer modo baseada em histórias, destinos, linguagens, religiões ou culturas) – de outro modo não pode haver deliberação pública; [...] 3. desejar fundar e continuar uma comunidade jurídica (como um poder constituinte ou constituído); [...] 4. transformar isso em ação real (por meio de suficiente participação que inclua votar e concorrer para a administração), seja ou não essa ação motivada etnicamente, moralmente, malvadamente, por patriotismo constitucional, universalisticamente, particularisticamente, egoisticamente ou altruisticamente; e, finalmente; [...] 5. não excluir ninguém que seja afetado pelas possíveis medidas coercitivas da comunidade jurídica da comunidade de cidadãos iguais”. 135 Sand, 2004: 63: “Um dos principais projetos políticos hoje parece ser o estabelecimento de mercados liberais baseados na livre concorrência, com poucas fronteiras. A combinação de um mercado liberal e eficiente, com exceções para a saúde e o meio ambiente, uma moldura multicultural e um contexto de

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institucionalização permanece ao lado da economia – a União Europeia ainda parece adotar como núcleo de sua atuação o princípio do livre comércio136, em vez de inseri-lo em um quadro complexo de releitura jurídica da sociedade diferenciada na forma de vários princípios e regras. Os direitos humanos e a cultura são tratados como instâncias à parte, podendo entretanto ser mobilizados argumentativamente – ou melhor, “retoricamente” – quando se pretende fundar as bases da legitimação da organização econômica em uma identidade comum e em valores humanistas compartilhados. Dentro da ordem internacional do Conselho da Europa, mas com as notadas inter-relações com a ordem transnacional da União Europeia, cabe citar em termos da normatividade sobre direitos culturais a Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais, adotada em Estrasburgo em 1995 e vigente internacionalmente desde 1998. Uma base normativa para esta Convenção é o artigo 14 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que consagra a “proibição de discriminação”, prescrevendo que “[o] gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação”. Ademais, o Protocolo nº 4 à Convenção137, datado de 1963, consagrou a “proibição da expulsão de nacionais”138 e a “proibição de expulsão coletiva de estrangeiros”139.

países participantes com enormes diferenças sociais e econômicas e um projeto extremamente complexo e multidimensional, que demandará equivalentes perspectivas de governo multidimensional e policontextual.” 136 Sand, 2004: 54-5: “CE/UE, NAFTA, GATT/OMC e outros tratados institucionalizaram o princípio do livre comércio em um grau sem precedentes pelo uso de instituições, cortes e mecanismos de solução de controvérsias. Em comparação com os tratados comerciais anteriores, uma das diferenças vitais é a ênfase, ou o caráter quase constitucional, do princípio da livre competição e sua mais severa e eficiente implementação pelo uso de padrões de não discriminação e ausência de obstáculos ao comércio. Exceções à proteção do meio ambiente ou da saúde são sujeitas a comparações gerais sob padrões de não discriminação, necessidade, proporcionalidade e evidência científica (quando aos danos) – em vez de serem aceitas como baseadas em julgamento político. Os estreitos acoplamentos entre os sistemas econômico, político e jurídico foram decisivos para a eficiência dos tratados de livre comércio.” 137 Com texto modificado nos termos das disposições do Protocolo n° 11, a partir da entrada deste em vigor, em 1 de novembro de 1998. 138 Protocolo n° 4 em que se reconhecem certos direitos e liberdades além dos que já figuram na Convenção e no Protocolo adicional à Convenção, Artigo 3º: “Proibição da expulsão de nacionais [...] 1. Ninguém pode ser expulso, em virtude de disposição individual ou coletiva, do território do Estado de que for cidadão. [...] 2. Ninguém pode ser privado do direito de entrar no território do Estado de que for cidadão.” 139 Protocolo n° 4, Artigo 4°: “Proibição de expulsão coletiva de estrangeiros. [...] São proibidas as expulsões coletivas de estrangeiros.”

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Nesse contexto normativo140, a Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais buscou aludir a um conceito amplo (“minorias nacionais”141), mas igualmente problemático, ainda mais se inserido no debate europeu sobre multiculturalismo, dentro do qual há ainda autores a ressaltar que a “política do reconhecimento não se limita a ‘reconhecer’; em realidade, fabrica e multiplica diferenças [...]”, do que adviria uma tendência à guetização e à própria destruição da “comunidade pluralística”142. Já uma posição balanceada dentro das “políticas de reconhecimento” concede relevo à ideia de que “a identidade nacional, um suporte importante das instituições democráticas, é melhor preservada restringindo-se seu âmbito em favor das identidades não nacionais, o que pode reduzir a possibilidade de sua transformação em

nacionalismo

antidemocrático”143. Destaca-se que “[a] Convenção-quadro é o primeiro instrumento multilateral juridicamente vinculativo consagrado à protecção das minorias nacionais em geral”144. Ao contrário da normatividade supranacional da UE, que se consagra na aplicabilidade imediata de numerosas diretrizes, normações detalhadas impostas diretamente aos Estados e a seus cidadãos, é ilustrativo notar o caráter meramente “programático” que adota a Convenção Quadro, inserida em uma estrutura internacional com um enforcement reduzido, embora conte com a relevante instituição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Além de propor princípios programáticos a serem seguidos pelos Estados, livres para decidir sobre as políticas públicas a implementar como meios para atingir os fins propostos pela Convenção, esta deixou em aberto o conceito de “minoria nacional”, ressaltando a já notada dificuldade conceitual145. 140

Cf. mais informações no relatório sobre a Convenção Quadro (Conselho da Europa, 1995: 1-3). Salerno, 1990: 265: “[...] a praxe internacional concorda em reter que a existência de uma minoria deva pressupor dois elementos: um histórico, ou seja, a vinculação e uma tradição objetivamente persistente no tempo, o outro de natureza puramente voluntarista, que transparece no desiderato do grupo mesmo de ter sua diversidade antropológico-cultural respeitada diante daquela prevalente no Estado.” 142 Sartori, 2007: 78. 143 Keane, 1994: 79. 144 Conselho da Europa, 1995: 3 (§10). 145 Conselho da Europa, 1995: 3-4: “11. Atendendo à diversidade de situações existentes e à variedade dos problemas a resolver, decidiu-se optar por uma Convenção-quadro constituída essencialmente por disposições de carácter programático, que definem os objectivos a prosseguir pelas Partes. Estas disposições, não sendo directamente aplicáveis, deixarão aos Estados interessados uma margem de apreciação na concretização dos objectivos que se comprometeram a atingir, permitindo-lhes, desse modo, tomar em conta situações particulares. [...] 12. Convém ainda referir que a Convenção-quadro não contém nenhuma definição da noção de “minoria nacional”. Ao proceder desta forma, decidiu-se adoptar uma abordagem pragmática perante a impossibilidade, no estádio actual, de se chegar a uma definição susceptível de obter o apoio global de todos os Estados membros do Conselho da Europa. [...] 13. A aplicação dos princípios inscritos na presente Convenção-quadro processar--se-á através de legislação nacional e de políticas governamentais adequadas, não implicando o reconhecimento de nenhum direito colectivo. A Convenção-quadro visa assegurar a protecção das pessoas pertencentes a minorias nacionais, 141

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Essa breve ilustração do tratamento dos direitos (humanos) culturais no âmbito europeu reforça a debilidade desses direitos dentro da ordem jurídica supranacional europeia – o que revela, no plano extra-jurídico, a debilidade do tratamento, nessa ordem, das demais esferas de comunicação que não o sistema econômico e, com restrições, o sistema político. A UE permanece como um bloco econômico, com dificuldades políticas de organização interna e, quando delega o tratamento dos direitos humanos à ordem internacional, deixa de contribuir para uma promoção mais efetiva e estruturada desses direitos. Assim é que mesmo um tratado normativamente aberto sobre direitos culturais, como é o caso da Convenção Quadro, pode encontrar tanto uma fragilidade do âmbito público – ou melhor, do sistema político – em apoiar sua concretização quando uma recursa dos âmbitos privados em vincular-se de qualquer modo a tais direitos146. Sumariza Añon147 que “[o]s textos mais recentes sobre direitos das minorias na União Europeia falam exclusivamente em termos de direitos dos membros da minoria por meio da garantia efetiva dos direitos individuais e dos princípios da igualdade e não discriminação. [...] Os direitos culturais são fundamentalmente ‘direitos de acomodação’, pois não expressam apenas um desejo simbólico de reconhecimento, senão supõem também mudanças substantivas no modo como operam as instituições e [são] encaminhados a satisfazer melhor as necessidades de um grupo. Sua função é conjugar

as

exigências

de

reconhecimento,

redistribuição

da

riqueza

e

‘empoderamento’. [...] A maior parte dos conflitos que se apresentam como identitários podem ser resolvidos como conflitos acerca da distribuição do poder e da capacidade de permitindolhes exercer os seus direitos, individualmente ou em conjunto com outras (v. artigo 3.º, n.º 2). Neste sentido, segue na esteira de textos adoptados por outras organizações internacionais.” Convenção Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais, Art. 3º, 2: “As pessoas pertencentes a minorias nacionais podem exercer, individualmente ou em comum com outras, os direitos e as liberdades decorrentes dos princípios enunciados na presente Convenção-quadro.” 146 Keller, 1998: 57: “Os tratados de direitos humanos do Conselho da Europa repousam no nexo da teoria dos direitos humanos com a prática política. Para serem efetivos, devem refletir princípios sólidos e coerentes, mas devem também permanecer dentro das fronteiras da aceitabilidade política. Esses são os requisitos demandados e a Convenção Quadro não é apta nem mesmo a os satisfazer bem. Como um tratado composto, tenta elucidar as princípios relevantes de liberdades civis da CEDH [Convenção Europeia de Direitos Humanos] e incorporar o conceito de assistência positiva a minorias étnicas na manutenção e desenvolvimento de suas linguagens e culturas, enquanto também inclui um princípio de plena e efetiva igualdade. Essa eclética mistura de restrições negativas e obrigações positivas aos Estados Partes força os fundamentos conceituais do sistema europeu de direitos humanos, que é vinculado ao princípio de que a CEDH é composta essencialmente de direitos negativos. As dificuldades políticas da Convenção Quadro são também bastante aparentes. Mesmo quando interpretada o mais restritivamente possível, esse tratado será percebido por muitos nas populações majoritárias europeias como uma interferência desnecessária na vida pública e privada.” 147 Añon, 2006: 63-4.

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decisão, quer dizer, de empoderamento. [...] A integração cultural é um processo bidirecional. Entendido nesse sentido, não cabe sustentar a tese de que a cultura anfitriã é o molde em que se acomoda, para diluir-se, toda cultura alógena que deseje integrarse. Todo processo de integração, se realmente o é, supõe transformação para as duas partes nele implicadas”.

3. Direitos culturais no constitucionalismo brasileiro A referência dos textos constitucionais à cultura permaneceu vaga e pontual até mais da metade do século XX. A origem remota dos direitos humanos fundamentais culturais, ainda não concebidos como uma classe específica de direitos, remonta às previsões sobre a liberdade de expressão presentes nos primeiros textos do constitucionalismo moderno; porém, o direito à cultura propriamente dito afirma-se nas referências da regulação constitucional da cultura nos textos das primeiras constituições “sociais” (a do México, de 1917 e a de Weimar, de 1918), que inauguraram a tradição de destinar seções dos textos constitucionais ao tratamento da “ordem econômica, social, educação e cultura”148. No Brasil, a referência constitucional à cultura é notada com mais precisão a partir da Constituição de 1934 (art. 148149), sendo que a Carta de 1937 promoveu uma abrangente regulamentação conjunta “da educação e da cultura” (entre seus arts. 128 e 134150), no que foi seguida pela Constituição de 1946 (em seus arts. 166 a 175151). A

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Silva, 2001: 39. Art. 148: “Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual”. 150 Art 128: “A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares. [...] É dever do Estado contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro, favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e de ensino”. Art 129: “A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. [...] O ensino pré-vocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é em matéria de educação o primeiro dever de Estado. Cumpre-lhe dar execução a esse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais. [...] É dever das indústrias e dos sindicatos econômicos criar, na esfera da sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento desse dever e os poderes que caberão ao Estado, sobre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo Poder Público”. Art 130: “O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos 149

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seguir, a Constituição de 1967 criou o “Título IV: Da Família, da Educação e da Cultura” (arts. 167 a 172, sendo o art. 167 destinado a regulamentar a família, e os arts. 168 a 172152 destinados a cultura e educação, dentro do “Capítulo IV: Dos Direitos e que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar”. Art 131: “A educação física, o ensino cívico e o de trabalhos manuais serão obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias, não podendo nenhuma escola de qualquer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que satisfaça aquela exigência”. Art 132: “O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às fundadas por associações civis, tendo umas; e outras por fim organizar para a juventude períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-lhe a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao cumprimento, dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação”. Art 133: “O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de freqüência compulsória por parte dos alunos”. Art 134: “Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional”. 151 Art 166: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. Art 167: “O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem”. Art 168: “A legislação do ensino adotará os seguintes princípios: [...] I - o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua nacional; [...] II - o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos; [...] III - as empresas industriais, comerciais e agrícolas, em que trabalhem mais de cem pessoas, são obrigadas a manter ensino primário gratuito para os seus servidores e os filhos destes; [...] IV - as empresas industrias e comerciais são obrigadas a ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, pela forma que a lei estabelecer, respeitados os direitos dos professores; [...] V - o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável; [...] VI - para o provimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficial ou livre, exigir-se-á concurso de títulos e provas. Aos professores, admitidos por concurso de títulos e provas, será assegurada a vitaliciedade; [...] VII - é garantida a liberdade de cátedra”. Art 169: “Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino”. Art 170: “A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios. [...] Parágrafo único - O sistema federal de ensino terá caráter supletivo, estendendo-se a todo o País nos estritos limites das deficiências locais”. Art 171: “Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de ensino. [...] Parágrafo único Para o desenvolvimento desses sistemas a União cooperará com auxílio pecuniário, o qual, em relação ao ensino primário, provirá do respectivo Fundo Nacional”. Art 172: “Cada sistema de ensino terá obrigatoriamente serviços de assistência educacional que assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência escolar”. Art 173: “As ciências, as letras e as artes são livres”. Art 174: “O amparo à cultura é dever do Estado. [...] Parágrafo único - A lei promoverá a criação de institutos de pesquisas, de preferência junto aos estabelecimentos de ensino superior”. Art 175: “As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público”. 152 Art 168: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana. [...] § 1º - O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Poderes Públicos. [...] § 2º - Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à Iniciativa particular, a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive bolsas de estudo. [...] § 3º - A legislação do

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Garantias Individuais”), mas boa parcela dos direitos previstos (notadamente as liberdades culturais e educacionais) foi desmentida pela prática estatal ditatorial; a mesma regulamentação da educação e da cultura foi mantida pela Emenda Constitucional nº 1 à Constituição de 1967, de 1969 (arts. 176 a 180). Esses são, portanto, os antecedentes brasileiros da regulamentação constitucional da cultura como direito fundamental. No exterior, como influência historicamente próxima sobre a Constituição brasileira de 1988, pode-se citar principalmente a Constituição portuguesa de 1976153, da qual se destacam na tutela do direito à cultura principalmente os arts. 42º154 (que tutela a “liberdade de criação artística”) e 73º a 79º155 ensino adotará os seguintes princípios e normas: [...] I - o ensino primário somente será ministrado na língua nacional; [...] II - o ensino dos sete aos quatorze anos è obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos primários oficiais; [...] III - o ensino oficial ulterior ao primário será, igualmente, gratuito para quantos, demonstrando efetivo aproveitamento, provarem falta ou insuficiência de recursos. Sempre que possível, o Poder Público substituirá o regime de gratuidade pelo de concessão de bolsas de estudo, exigido o posterior reembolso no caso de ensino de grau superior; [...] IV - o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio. [...] V - o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras do magistério de grau médio e superior será feito, sempre, mediante prova de habilitação, consistindo em concurso público de provas e títulos quando se tratar de ensino oficial; [...] VI - é garantida a liberdade de cátedra”. Art 169: “Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de ensino, e, a União, os dos Territórios, assim como o sistema federal, o qual terá caráter supletivo e se estenderá a todo o País, nos estritos limites das deficiências locais. [...] § 1º - A União prestará assistência técnica e financeira para o desenvolvimento dos sistemas estaduais e do Distrito Federal. [...] § 2º - Cada sistema de ensino terá, obrigatoriamente, serviços de assistência educacional que assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência escolar”. Art. 170: “As empresas comerciais, industriais e agrícolas são obrigadas a manter, pela forma que a lei estabelecer, o ensino primário gratuito de seus empregados e dos filhos destes. [...] Parágrafo único - As empresas comerciais e industriais são ainda obrigadas a ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores”. Art 171: “As ciências, as letras e as artes são livres. [...] Parágrafo único - O Poder Público incentivará a pesquisa científica e tecnológica”. Art 172: “O amparo à cultura é dever do Estado. [...] Parágrafo único - Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”. 153 Cf. Silva, 2001: 40-1; Pereira da Silva, 2007: esp. pp. 55-139. As referências à Constituição portuguesa tomam por base o aspecto atual de seu texto vigente. 154 Art. 42.º: “Liberdade de criação cultural [...] 1. É livre a criação intelectual, artística e científica. [...] 2. Esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor. 155 Art. 73.º: “Educação, cultura e ciência [...] 1. Todos têm direito à educação e à cultura. [...] 2. O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva. [...] 3. O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as colectividades de cultura e recreio, as associações de defesa do património cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais. [...] 4. A criação e a investigação científicas, bem como a inovação tecnológica, são incentivadas e apoiadas pelo Estado, por forma a assegurar a respectiva liberdade e autonomia, o reforço da competitividade e a articulação entre as instituições científicas e as empresas”.

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(que compõem um capítulo especificamente destinado aos “direitos e deveres culturais”). Apesar da existência de uma seção específica “Da Cultura” (Seção II, do Título VIII: Da Ordem Social, do Capítulo III: Da Educação, da Cultura e do Desporto), a disciplina dos direitos fundamentais culturais na Constituição Brasileira de 1988156 é dispersa ao longo do texto constitucional e a própria identificação de sua presença ao longo dos dispositivos constitucionais é suscetível a diversas possibilidades interpretativas, dentre as quais se destacam, a seguir, duas (vide quadro 1).

Art. 74.º: “Ensino [...] 1. Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar. [...] 2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado: [...] a) Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito; [...] b) Criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar; [...] c) Garantir a educação permanente e eliminar o analfabetismo; [...] d) Garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino, da investigação científica e da criação artística; [...] e) Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino; [...] f) Inserir as escolas nas comunidades que servem e estabelecer a interligação do ensino e das actividades económicas, sociais e culturais; [...] g) Promover e apoiar o acesso dos cidadãos portadores de deficiência ao ensino e apoiar o ensino especial, quando necessário; [...] h) Proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades; [...] i) Assegurar aos filhos dos emigrantes o ensino da língua portuguesa e o acesso à cultura portuguesa; [...] j) Assegurar aos filhos dos imigrantes apoio adequado para efectivação do direito ao ensino”. Art. 75.º: “Ensino público, particular e cooperativo [...] 1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população. [...]2. O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei”. Art. 76.º: “Universidade e acesso ao ensino superior [...] 1. O regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país. [....] 2. As universidades gozam, nos termos da lei, de autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira, sem prejuízo de adequada avaliação da qualidade do ensino”. Art. 77.º: “Participação democrática no ensino [...] 1. Os professores e alunos têm o direito de participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei. [...] 2. A lei regula as formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de carácter científico na definição da política de ensino”. Art. 78.º: “Fruição e criação cultural [...] 1. Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural. [...] 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: [...] a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio; [...] b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade; [...] c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum; [...] d) Desenvolver as relações culturais com todos os povos, especialmente os de língua portuguesa, e assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro; [...] e) Articular a política cultural e as demais políticas sectoriais”. Art. 79.º: “Cultura física e desporto [...] 1. Todos têm direito à cultura física e ao desporto. [...] 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e colectividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto”. 156 As referências ao texto da Constituição brasileira de 1988 guiam-se pelo texto atualmente vigente, com todas as alterações promovidas por emendas constitucionais.

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Classificação de Tânia Maria dos Santos (2007: 100-1) • Núcleo básico dos direitos culturais • Cultura (art 5º, § 2º157 e art. 1, III158) • Educação fundamental (arts. 6159, 205160 e 208161) • Universidades (art. 207162) • Ciência e tecnologia (art. 218, caput163) • Arte (art. 216, III) • Núcleo otimizador dos direitos culturais • Promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro pelo poder público (art. 216, § 1º) • Proteção dos bens de cultura e às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros participantes do processo civilizatório nacional (art. 215) • Liberdade geral de ação cultural (art. 220, caput): • i) liberdade de expressão artística, científica e intelectual, sendo protegidos reflexamente os direitos autorais (art. 5º,

Interpretação de José Afonso da Silva (2001) •

“A Constituição Brasileira de 1988 referese à cultura nos arts. 5º, IX, XXVII, XXVIII e LXXIII, e 220, §§ 2º e 3º, como manifestação de direito individual e de liberdade e direitos autorais; nos arts. 23, 24 e 30, como regras de distribuição de competência e como objeto de proteção pela ação popular; no[s] arts. 215 e 216, como objeto do Direito e patrimônio brasileiro; no art. 219, como incentivo ao mercado interno, de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural; no art. 221, como princípios a serem atendidos na produção e programação das emissoras de rádio e televisão; no art. 227, como um direito da criança e do adolescente; e no art. 231, quando reconhece aos índios sua organização social, costumes, língua, crenças e tradições e quando fala em terras tradicionalmente ocupadas por eles necessárias à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”

157

Art. 5º, § 2º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 158 Art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”. 159 Art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. 160 Art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 161 Art. 208: “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de [...] I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; [...] II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; [...] III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; [...] IV - educação infantil, em creche e préescola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; [...] V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; [...] VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; [...] VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didáticoescolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. [...] § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. [...] § 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. [...] § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”. 162 Art. 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. [...] § 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. [...] § 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica”. 163 Art. 218, caput: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”.

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(p. 42, grifos no original). “Quais são esses direitos culturais reconhecidos na Constituição? São (a) liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica; (b) direito de criação cultural, compreendidas as criações artísticas, científicas e tecnológicas; (c) direito de acesso às fontes da cultura nacional; (d) direito de difusão das manifestações culturais; (e) direito de proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; (f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura – que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial, como forma de propriedade de interesse público. Tais direitos decorrem das normas dos arts. 5º, Ix, 215 e 216 [...]” (p. 51-2). Quadro 1 – Os direitos fundamentais culturais na Constituição brasileira de 1988 IX) ii) liberdade de manifestação do pensamento, cultural e de criação (tecnológica e artística) • iii) liberdade de informação, acesso às fontes culturas e difusão das manifestações culturais (art. 5º, XIV164) • Núcleo de extensão dos direitos culturais • Bem estar: desporto (art. 217, I a IV165) e lazer (arts. 6º166 e 217, § 3º167) • Meio ambiente (art. 225, caput168) •



Na Constituição, “cultura” denota diferentes extensões conforme o dispositivo que se analisa; em regra, é tratada ao lado da educação, da ciência, do desporto e da tecnologia (como nos arts. 23, V e 24, IX)169. A delimitação constitucional do conceito de cultura, por um lado, obedece a uma lógica que não a restringe às criações artísticas e/ou intelectuais; por outro, é dificultada se se pretende ampliar demasiadamente a noção de cultura, desvanecendo dos dispositivos constitucionais parâmetros que delimitem sua incidência e, portanto, regulem a concretização e informem a realização constitucional170. Analisando a ordenação constitucional da cultura, José Afonso da Silva nota que esta inclui desde as obras totalmente criadas pelo ser humano (na arte e 164

Art. 5º, XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. 165 Art. 217: “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: [...] I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; [...] II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; [...] III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional; [...] IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional. 166 Art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. 167 Art. 217, § 3º: “O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social”. 168 Art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 169 Silva, 2001: 19. 170 Silva, 2001: 20.

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na ciência, por exemplo) até paisagens, que podem cruzar as fronteiras entre meio ambiente natural e meio ambiente cultural, colocando-se como objetos de contemplação simbolicamente enraizados na vida de pessoas e grupos171. De modo panorâmico, pode-se afirmar que os direitos fundamentais culturais são tutelados pela Constituição brasileira com a observância da ambivalência desses direitos, cuja eficácia demanda que se lhes admita uma proteção jurídica tanto na dimensão individual quanto na sistêmica, tutelando-se tanto os direitos de cada partícipe da cultura quanto a própria cultura como bem da coletividade, garantindo assim “um processo de comunicação não distorcido”172, guiado livremente por códigos e programas da própria esfera cultural. Assim, ao diferenciarem direitos fundamentais que se voltam predominantemente à tutela das esferas individuais e/ou de esferas sociais (sistêmicas) de comunicação, Graber e Teubner173 visualizam a dualidade de direitos como os da liberdade de opinião, de arte, de educação e de pesquisa. Por uma análise do texto constitucional brasileiro vigente, pode-se notar que este mantém adequadamente essa plurivocidade, embora esta sempre necessite do detalhamento da legislação infraconstitucional para ganhar contornos normativos mais nítidos. Embora educação e ciência também estejam inseridas na esfera comunicacional da cultura, considera-se que tais sistemas são tutelados por direitos fundamentais próprios, o torna mais pertinente uma aproximação da presente análise à classificação de José Afonso da Silva174. Cabe notar que José Afonso da Silva não inclui como tutela constitucional da cultura os dispositivos que fazem referência simplesmente ao meio ambiente e parecem limitar-se ao tratamento do meio ambiente natural ou urbano (como o art. 225175), sem específica alusão ao meio ambiente cultural.

171

Silva (2001: 26, grifos no original) propõe a seguinte conceituação: “Os bens ou objetos culturais são coisas criadas pelo homem mediante projeção de valores, ‘criadas não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo construído, mas no sentido de vivência espiritual do objeto, consoante se dá em face de uma paisagem natural de notável beleza, que, sem ser materialmente construída ou produzida, se integra com a presença e a participação do ser humano”. De fato, a Constituição também, no seu art. 216, bens culturais que “se encaixam no campo dos objetos culturais mundanais, como vida humana objetivada num pedaço da natureza física, seja como bens culturais de natureza material ou imaterial, como forma de expressão, modos de criar, fazer e viver, ou como criações científicas, artísticas e tecnológicas, ou como obras, documentos, edificações, conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico ou arqueológico, seja objetos de cultura popular, indígena, afro-brasileira ou erudita”. 172 Graber; Teubner, 1998: 68. 173 1998: 66. 174 2001. 175 Art. 225, caput: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

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Inicialmente,

como

direitos

fundamentais,

os

direitos

culturais

estão

sistematicamente vinculados às bases axiológicas da República Federativa do Brasil definidas nos arts. 1º176 e 3º177, como a “dignidade da pessoa humana”, a solidariedade, a liberdade e a justiça, a “erradicação” da pobreza e da marginalização e a redução das “desigualdades sociais e regionais”. Também o art. 5º, que traz em seus incisos as primeiras referências a direitos que podem ser interpretados como especificamente culturais, destaca em seu caput178 direitos fundamentais como o da liberdade e da igualdade, e já no inciso IX é positivado o direito à liberdade cultural: “é livre a expressão

da

atividade

intelectual,

artística,

científica

e

de

comunicação,

independentemente de censura ou licença”. Esse direto revela uma tutela dupla, que atinge tanto o plano individual (vinculado à liberdade de expressão das pessoas) quanto o plano institucional (manutenção da diferenciação do âmbito cultural), protegendo-se a cultura contra determinações políticas, por exemplo, mas sempre permitindo um controle a posteriori do abuso do direito de liberdade de expressão quando seu exercício exceda a proteção constitucional a ele conferida179. Dentre os direitos fundamentais culturais, a Constituição destaca, ainda no art. 5º, os direitos de autor e conexos: “XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; [...] XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: [...] a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; [...] b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas”. Nesse sentido, cabe enfatizar a necessidade de espraiamento da eficácia dos direitos fundamentais às 176

Art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] I - a soberania; [...] II - a cidadania; [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; [...] V - o pluralismo político. [...] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 177 Art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...] II - garantir o desenvolvimento nacional; [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 178 Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”. 179 Cf. Silva, 2001: 64-70.

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relações entre particulares: no caso, seria inócuo reconhecer direitos aos criadores e intérpretes da arte, por exemplo, se tais direitos não incidissem também nas relações contratuais e extracontratuais entre entes privados – de fato, neste particular, o Código Civil e a legislação ordinária sobre a matéria desdobra tais direitos fundamentais no plano das relações civis. No caso, embora a priori notada uma referência prevalentemente individual dos direitos de autor e direitos conexos, o certo é que estes também tutelam o próprio mercado dos produtos culturais, ganhando então uma dimensão institucional. Aqui se concebe que a relação entre arte e economia, por exemplo, seja produzida de uma forma positiva, de modo que a produção e circulação econômica dos bens culturais viabilize e potencialize a criação e a difusão da arte, tutelando os agentes deste sistema. A Constituição reconhece em seu art. 227 (com redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010): “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A Constituição ainda prevê a obrigação positiva do Estado de atuar no sentido da proteção do “patrimônio cultural”, “artístico” e/ou “histórico”. Este é definido pelo art. 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...] I - as formas de expressão; [...] II - os modos de criar, fazer e viver; [...] III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; [...] IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticoculturais; [...] V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. A proteção do patrimônio cultural é colocada como um dever não só do Estado, mas de toda a sociedade, como se observa no art. 216. § 1º: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Ainda no âmbito material do patrimônio 49

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cultural brasileiro, a Constituição impõe dispositivos que inclusive facilitam a atuação de particulares, em colaboração com o poder público, na concretização desse direito (à preservação do patrimônio cultural). Neste sentido, o inciso LXXIII do art. 5º prevê que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. As disparidades entre culturas “subnacionais”, de referência e vigência tipicamente restrita a certas localidades e regiões do território, influenciam a Constituição no sentido do reconhecimento da pluralidade cultural, assumida como característica da cultura brasileira, não reduzida, assim, apenas à dimensão simbólica “nacional” unitária, que faz referência à generalidade abstrata da cultura típica de todo o território e povo brasileiros. O reconhecimento das referências locais e regionais subnacionais tem impulso relevante pelas previsões constitucionais: 1) da competência comum dos diversos entes federativos (União, estados, Distrito Federal e municípios) na prestação de serviços culturais e no planejamento e definição de políticas; 2) da competência legislativa concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal, que acaba também abrangendo os municípios em termos de competência legislativa suplementar (art. 30, II e IX). Assim, prevê o art. 23: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; [...] IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; [...] V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência”. Já em termos da repartição federativa das competências legislativas, prescreve o art. 24: “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; [...] VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; [...] IX - educação, cultura, ensino e desporto”. Finalmente, em termos de competência legislativa, tanto quanto de competência para demais prestações da política local à implementação do

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direito à cultura180, prevê o art. 30: “Compete aos Municípios: [...] II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; [...] IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual”. Ao lado da descentralização administrativa e da competência de política legislativa e executiva reconhecida tanto à União quanto aos demais entes federativos, que refletem a dialética interna da cultura brasileira entre a unidade nacional e a pluralidade multinacional e regional, a Constituição reconhece a necessidade de as políticas públicas culturais nos diversos planos federativos do Estado guiarem-se no sentido de um reforço das culturas que, simultaneamente, têm relevância história fundamental na construção da “nação” brasileira e têm comunicabilidade mais fragilizada diante de outras culturas também conformadoras do povo brasileiro, no sentido de Darcy Ribeiro181, como aquelas europeias e típicas dos demais imigrantes (os asiáticos, por exemplo) que chegaram ao Brasil ao longo de sua história. Nesse sentido, os dois primeiros parágrafos do art. 215 prescrevem: “§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. [...] § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais”. Sob a mesma perspectiva, prevê o art. 231, caput: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”182. Ainda, o art. 232 facilita a atuação

180

Cf. Silva, 2001: 43-4. 2006. José Afonso da Silva (2001: 36-7) concorda, ao analisar o art. 215, § 1º, que neste dispositivo, ao aludir ao conceito de “processo civilizatório nacional”, a Constituição traz referência à formação multicultural da “nação” brasileira, na linha dos estudos de Darcy Ribeiro, por exemplo. 182 Em continuação ao caput, o art. 231 prevê: “§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. [...] § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. [...] § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. [...] § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. [...] § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. [...] § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos 181

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dos indígenas na defesa de seus direitos (incluindo-se, obviamente, os culturais): “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”. A diferente comunicabilidade das culturas é reforçada pelos sistemas dos meios de comunicação de massa, que tendem a reproduzir conteúdos mais ou menos homogêneos em todo o mundo, dando espaço praticamente apenas às manifestações simbólicas e ideológicas dominantes. Tal modus operandi traz óbvios prejuízos para modos de vida, representações artísticas, formas de aprendizagem e demais produções culturais restritas a pequenas comunidades e nestas enraizadas, mas que mesmo em seu ambiente típico perdem sua força simbólica diante da hegemonia comunicacional da televisão, por exemplo183. Em observância aos diferentes graus de comunicabilidade, as diversas culturas do mundo, a cultura nacional e as culturas locais e regionais (subnacionais), são todas objeto de políticas públicas (a política cultural), que justamente visam a promovê-las no caráter inversamente proporcional ao de sua força e difusão184. É com vistas a se atingir não uma cultura nacional nacionalista, em sentido pejorativo, ou xenófoba, mas sim um equilíbrio multicultural e cosmopolita, que normativamente se colocam características essenciais do âmbito cultural em uma sociedade mundial assimétrica, complexa e diferenciada. É nesse sentido que se desenham as políticas, constitucionalmente fundadas e exigidas, de proteção e promoção da cultura nacional, tal como se observa no art. 219: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal”. Também com foco multiculturalista é que se prevêem diretrizes vinculantes ao conteúdo difundido pelos meios de comunicação de massa. Assim, o art. 221 reza: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. [...] § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º”. 183 Silva, 2001: 16. 184 Silva (2001: 49) assim entende: “A ação cultural do Estado há de ser ação afirmativa que busque realizar a igualização dos socialmente desiguais [e, pode-se incluir, das culturas de difusão destrutivamente e altamente desigual] [...].

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princípios: [...] I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; [...] II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; [...] III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; [...] IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Mantém-se a autonomia do sistema dos meios de comunicação de massa (notadamente, pelo direito de liberdade de imprensa) 185, embora o art. 223 o vincule a um procedimento político que na prática pode ser deturpado em suas finalidades, levando à própria ingerência de fatores relacionais, afetivos, familiares e econômicos na política e, simultaneamente, à incidência corrosiva da política, da economia e de outros âmbitos no próprio sistema dos meios de difusão de massa186 – portanto, na cultura. Nota-se, enfim, o caráter estratégico e de utilidade pública da comunicação de massa, dada sua força na conformação da cultura nacional, o que se coloca como base motivacional do art. 222187. 185

Art. 220: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. [...] § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. [...] § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. [...] § 3º Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; [...] II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. [...] § 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso. [...] § 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio. [...] § 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. 186 Art. 223: “Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. [...] § 1º - O Congresso Nacional apreciará o ato no prazo do art. 64, § 2º e § 4º, a contar do recebimento da mensagem. [...] § 2º - A não renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal. [...] § 3º - O ato de outorga ou renovação somente produzirá efeitos legais após deliberação do Congresso Nacional, na forma dos parágrafos anteriores. [...] § 4º - O cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo, depende de decisão judicial. [...] § 5º - O prazo da concessão ou permissão será de dez anos para as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão”. Vide, também o art. 224: “Para os efeitos do disposto neste capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como seu órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei”. 187 Art. 222: “A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. [...] § 1º Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação.

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Finalmente, no que se refere às políticas públicas de implementação do direito fundamental à cultura, enquanto unidade complexa de direitos culturais, vale a classificação de Chaui188 sobre os direitos: a) “à informação” sobre a cultura; b) “à fruição cultural”; c) “à produção cultural”; d) “à participação” na gestão das organizações da área cultural, na definição das políticas públicas de implementação do direito à cultura, etc. Nesse sentido, a Constituição prevê em seu art. 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. [...] § 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: [...] I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II produção, promoção e difusão de bens culturais; [...] III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; [...] IV democratização do acesso aos bens de cultura; [...] V valorização da diversidade étnica e regional”189. Na sequência, o art. 216 prescreve: “§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. [...] § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. [...] § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. [...] § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. [...] § 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: [...] I - despesas com pessoal e encargos sociais; [...] II - serviço da dívida; [...] III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos

[...] § 2º A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. [...] § 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. [...] § 4º Lei disciplinará a participação de capital estrangeiro nas empresas de que trata o § 1º. [...] § 5º As alterações de controle societário das empresas de que trata o § 1º serão comunicadas ao Congresso Nacional”. Observa-se que este artigo foi alterado pela (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 36, de 2002). 188 Chauí, 2006: 96-101. 189 Nota-se que o § 3º e seus incisos foram incluídos pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005.

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investimentos ou ações apoiados”190. A inovação mais recente do texto constitucional no ordenamento da cultura foi a emenda nº 71, de 2012, que estabeleceu o Sistema Nacional de Cultura191. O papel do Estado na promoção dos direitos culturais é, portanto, amplo e exercido sempre com respeito ao direito fundamental da liberdade cultural. A atuação positiva do poder público é, também, uma garantia dirigida a favor da democratização do acesso às múltiplas culturas, e não só à a própria cultura local, nacional ou à cultura global dos meios de comunicação de massa. É ainda uma atuação dirigida contra a submissão direta do âmbito comunicacional cultural ao sistema econômico e contra a dominação da privatização da cultura, altamente restritiva à concretude e realidade dos direitos culturais192. 190

O § 6º e seus incisos foram incluídos pela Emenda Constitucional nº 42, de 2003. Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012) [...] § 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: [...] I - diversidade das expressões culturais; [...] II universalização do acesso aos bens e serviços culturais; [...] III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; [...] IV - cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; [...] V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; [...] VI - complementaridade nos papéis dos agentes culturais; [...] VII transversalidade das políticas culturais; [...] VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; [...] IX - transparência e compartilhamento das informações; [...] X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social; [...] XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; [...] XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura. [...] § 2º Constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação: [...] I - órgãos gestores da cultura; [...] II - conselhos de política cultural; [...] III - conferências de cultura; [...] IV - comissões intergestores; [...] V - planos de cultura; [...] VI - sistemas de financiamento à cultura; [...] VII - sistemas de informações e indicadores culturais; [...] VIII - programas de formação na área da cultura; e [...] IX - sistemas setoriais de cultura. [...] § 3º Lei federal disporá sobre a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como de sua articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo. [...] § 4º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias. 192 Silva, 2001: 46, 47, 48, 51 (grifos no original): “Até muito recentemente a cultura (formal, artística) era tratada como um ornamento, objeto de proteção de mecenas que se compraziam em ver girarem em torno de si os astros que resplandecia, ao toque da inspiração romanesca, poética, musical ou das artes plásticas. Esses protetores prestaram, assim mesmo, enorme serviço ao desenvolvimento da cultura formal. Daí surgiram as academias, os prêmios, os teatros, as escolas. Mas as relações culturais se davam no meio privado, regidas pelo Direito Civil, normalmente por via de regras contratuais. [...] Essa visão da cultura [“como algo essencial, e não apenas como um lazer de potentados”] impôs a necessidade da interferência oficial, quer pela regulamentação das relações de cultura, quer pela criação de oportunidades culturais, quer, mesmo, como produtora de cultura, com a construção de espaços culturais, assim os teatros públicos, a oferta de ensino oficial das artes, como os conservatórios musicais, as escolas de balé, faculdades de comunicação e artes, manutenção de museus, disciplina da proteção do patrimônio cultural – enfim, pela prestação de serviços públicos culturais. [...] Nossa Constituição não deixa muitas dúvidas sobre o tema, já que garante a liberdade de criação, de expressão e de acesso às fontes da cultura. Isso significa que não pode haver cultura imposta, que o papel do Poder Público deve ser o de favorecer a livre 191

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