Os Direitos Humanos, a Hierarquização dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Pátrio e o Caso do Depositário Infiel

June 3, 2017 | Autor: Gabriela Figueiredo | Categoria: Direito Internacional, Direito Civil, Direitos Humanos, Tratados internacionais, Depositário Infiel
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Os Direitos Humanos, a Hierarquização dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Pátrio e o Caso do Depositário Infiel Gabriela Pinto Brito de Figueiredo1

Resumo Examinam-se, neste artigo, o destaque e a relevância que os direitos humanos estão alcançando, principalmente, com o aprimoramento do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Através de uma análise sobre seu conceito, suas características, suas classificações e posições adotadas ao serem recepcionados pelo ordenamento jurídico interno, esclarecida fica a importância que esses direitos estão adquirindo. Além disso, o artigo aborda um tópico acerca da prisão civil do depositário infiel, que trará à luz a importância da Emenda Constitucional número 45 e uma reflexão acerca das teorias de hierarquização dos tratados internacionais de direitos humanos. Palavras- Chave: Direitos Humanos. Hierarquia. Direito Internacional. Constituição Federal. Depositário Infiel. Emenda Constitucional número 45. Abstract This article examines the focus and the relevance that human rights are reaching, especially with the improvement of international human rights law. Through an analysis of its concept, its features, its classifications and positions adopted by the doctrine of the time it is introduced into domestic law, clarifying the importance that these rights are acquiring. In addition, the article ends with a discussion about the civil prison of the unfaithful trustee, which will bring to light the importance of Constitutional Amendment number 45 and a reflection about the hierarchy theories of international human rights treaties. Key-words: Human Rights. Hierarchy. International law. Constitution. Unfaithful trustee. Constitutional Amendment number 45. Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de Direitos Humanos; 3. Características dos Direitos Humanos; 4. As Dimensões dos Direitos Humanos; 5. Soberania Nacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos; 6. Teorias acerca da Hierarquização dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Direito Interno; 7. A Prisão Civil Decorrente da Condição de Depositário Infiel; 8. Considerações Finais; 9. Referências Bibliográficas. 1

Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, UFPB.

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1 Introdução

Neste presente artigo, discorrer-se-á acerca dos Direitos Humanos como um todo, através de uma análise de seus vários aspectos, de suas dimensões e de sua recepção por nosso ordenamento jurídico, assim como será apresentado o caso da prisão civil do depositário infiel, com sua jurisprudência, seus precedentes e suas consequências. Inicialmente serão esclarecidas a três possíveis definições que os Direitos Humanos podem assumir na doutrina: a conceituação tautológica, a formal e a finalística, que adota o objetivo que se pretende alcançar com tais direitos como ponto de partida. Em seguida, serão apresentadas as características dos direitos fundamentais, as quais, depois de descritas e esgotadas, levarão ao preciso entendimento da relevância que atualmente esses direitos alcançaram para a humanidade. Não obstante, é feito um estudo sobre as dimensões desses direitos, que se dividem em quatro, as quais estão em constante interação, apresentando complementariedade uma em relação à outra, surgindo em épocas diferentes, de acordo com seus contextos históricos respectivos. Apresentar-se-á um embate que é comum no Direito Internacional, o qual diz respeito à soberania dos Estados em relação às normas contraídas nos tratados internacionais, explicando a caducidade do argumento do principio da soberania e afirmando a necessidade de se ter um sistema universal de proteção dos direitos fundamentais. Serão abordadas as teorias de hierarquização dos tratados internacionais, quando recepcionados pelo Direito interno, tendo, como enfoque, os tratados de direitos humanos. São quatro ao todo: a tese da supraconstitucionalidade, isto é, hierarquia superior à própria Constituição; a da constitucionalidade material; a da hierarquia supralegal, que é o status inferior à Constituição e superior à legislação ordinária; a da hierarquia infraconstitucional, ou status de norma ordinária. Por fim, analisar-se-á a questão da prisão civil do depositário infiel, como se chegou à sua ilicitude, os argumentos que firmaram a tese da supralegalidade e o destaque da Emenda Constitucional número 45 em todo esse processo.

2 Conceito de Direitos Humanos

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No senso comum, a definição do que seriam direitos humanos é variável e subjetiva, algumas possuindo uma ideia de variedade de direitos básicos, outras apenas acreditando que seja supérflua tal questão, pois é bem lógico que cada ser humano possui direitos. Na doutrina especializada, incorre-se na mesma situação de não se encontrar um conceito uniforme, uma vez que basta um simples exame das definições existentes para se certificar de que a descrição desses direitos não é tarefa fácil (RAMOS, 2005). A conceituação de Direitos Humanos é, ao mesmo tempo, óbvia e duvidosa, dependendo do ponto de vista que se adota, ao analisar tais termos. Há três tipos de definições existentes para explicar o que viriam a ser os direitos humanos (PERES LUÑO, 1995). O primeiro tipo tem, como característica principal, a tautologia, isto é, a afirmação lógica e racional que irrompe no subjetivo humano, logo de início, a qual não aporta elemento novo algum para a sua caracterização. Dessa forma, tem-se, como exemplo, a conceituação de que direitos humanos seriam aqueles que correspondem ao homem pelo fato de ser homem, entretanto é bem sabido que todos os direitos têm, como titulares, o homem ou suas emanações, tornando tal conceito incompleto. O segundo tipo de definição é aquela reconhecida como formal, que não visa à especificação do conteúdo dos direitos humanos, isto é, de sua materialidade, mas prende-se a alguma indicação sobre o seu regime jurídico especial. Assim, essa conceituação estabelece que tais direitos são os que pertencem, ou devem pertencer a todos os homens e que não podem deles se privar, uma vez que possuem regime indisponível e sui generis. Finalmente, existe a definição que adota, como ponto de partida, o objetivo ou o fim para se atingir a uma descrição dos direitos humanos. Dessa forma, esse rol de direitos seria uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida (DALLARI, 1998).

No mesmo sentido, os direitos humanos são faculdades que o Direito atribui a pessoas e aos grupos sociais, expressão de suas necessidades relativas à vida, liberdade, igualdade, participação política, ou social ou a qualquer outro aspecto fundamental que afete o desenvolvimento integral das pessoas em uma comunidade de homens livres, exigindo respeito ou a atuação dos demais homens dos grupos sociais e do Estado, e com garantia dos poderes públicos para restabelecer seu exercício em caso de violação ou para realizar sua prestação (PECES-BARBA, 1987).

Ainda mais preciso foi o conceito de Peres Luño, para o qual direitos humanos é o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais

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devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional (PERES LUÑO, 1995).

Nesse diapasão, os direitos humanos são todas faculdades deixadas ao alcance dos seres humanos para que estes tenham uma vida digna plena, na medida de suas necessidades.

3 Características dos Direitos Humanos

Para ter uma melhor compreensão da importância alcançada pelos direitos humanos no âmbito internacional, é de muita valia o estudo das características desses direitos, que permitirá o entendimento da consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com seus muitos tratados, cortes e órgãos assemelhados. Não obstante, servirá de base para conhecimento e aplicação por parte dos atuantes na área de Direito no Brasil, uma vez que este é signatário de dezenas de tratados de direitos humanos, já reconhecendo a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em sede preliminar, será examinada a superioridade normativa, que é possível de ser compreendida tanto no Direito interno, quanto no Direito Internacional. No primeiro, as normas de direitos humanos gozam, em geral, de status constitucional, sendo, assim, superiores às demais normas do ordenamento jurídico, justamente o que se constata no Brasil. Esses direitos estão protegidos e tutelados na Constituição, e ainda considerados cláusulas pétreas, possuindo, portanto, imutabilidade. No segundo, por sua vez, essa ideia de superioridade normativa é nova, pois, nessa instancia, é comum criar-se normas que sejam frutos de acordos mútuos, ou seja, provindas da vontade dos Estados e apenas dependentes desta, todavia, apesar de recente, é certo que hoje se discute a existência de normas imperativas internacionais (ou normas cogentes), que, por conter valores fundamentais da sociedade internacional, só podem ser derrogadas por normas de igual dignidade (RAMOS, 2005).

O jus cogen é o grupo de normas que possuem conteúdo essencial para a humanidade, possuindo força frente a outras normas do Direito Internacional. Esse direito imperativo, que assim se pode chamar, surgiu na doutrina através de debates contra o voluntarismo existente na esfera internacional, que inicialmente foi criticado por ideias fundadas no Direito Natural, que defende a existência de normas estranhas à vontade humana, as quais existem independentemente, pois surgem concomitante à humanidade e impõem limites à liberdade dos Estados em criar tratados. Verdross, jurista alemão, foi um dos primeiros a defender a presença de normas cogentes, com argumentos diversos do jusnaturalismo. A sobrevivência 4

da comunidade internacional começava a ser transformada no fundamento para aceitação universal das normas imperativas. Pela primeira vez em toda história, a humanidade da Era Nuclear enfrentava o risco do desaparecimento, não de um Estado ou outro, mas sim da própria espécie. Além disso, iniciavam-se as preocupações ambientais, também capazes de ameaçar a sobrevivência da espécie, uma vez que, como fruto paradoxal da corrida espacial, o homem descobre-se, em plena década de 70, preso à Terra (RAMOS, 2005).

Como, então, saber que uma norma faz parte do jus cogens, e quem define que tal norma é cogente ou não? Uma característica dos direitos humanos é a sua abertura, também reconhecida como principio da não tipicidade, isto é, sempre de acordo com as necessidades humanas de cada período histórico, o rol desses direitos se modifica, com a inclusão de mais alguns. Outra característica é a indivisibilidade, que corresponde ao entendimento de que os direitos humanos consistem em um único bloco não passível de repartição, pois todos esses direitos devem ter a mesma proteção jurídica, uma vez que são essenciais para uma vida com dignidade. Portanto, todos os direitos ditos humanos são jus cogen, já que não podem ser divididos, assim como sua lista não está esgotada, visto que possuem a característica da abertura, e como é a comunidade internacional que estabelece, em conjunto, quais são os direitos essenciais à humanidade, por via de consequência lógica, quem define as normas cogentes também é a comunidade internacional. A quarta característica diz repeito à universalidade, que se pode referir a três distintos planos: o da titularidade, que remete os direitos humanos serem universais, devido aos seus titulares, que são todos os seres humanos, sem distinção de religião, gênero, convicção política, raça ou nacionalidade; o da temporalidade, que afirma que os direitos humanos são universais, porque os homens os possuem em qualquer momento histórico; o da cultura, em que os direitos humanos são universais, porque fazem parte de todas as culturas humanas (PECES-BARBA, 1999). O artigo 1.o da Declaração de Viena diz que “a natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas”, e, em seu parágrafo 5.o, reconhece a universalidade como característica marcante do regime jurídico internacional dos direitos humanos. Importante notar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não mencionou a característica da universalidade em sua redação, porque, ao momento de sua concepção, a Assembleia Geral da ONU contava apenas com a participação de 58 Estados, e boa parte da humanidade vivia sob o jugo colonial.

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A Declaração de Viena admitiu, sim, que particularidades locais de cada Estado, de cada cultura e religião devem ser sopesadas diante de algum conflito com os direitos fundamentais, mas afirmou que é obrigação do Estado proteger os direitos humanos, que são universais, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais. Outra característica dos direitos humanos é a interdependência, que se alia ao conceito de indivisibilidade. A ampliação acelerada do número de direitos protegidos fez nascer, por outro lado, a necessidade da sistematização dos mesmos em uma concepção lógica capaz de dar coerência ao conjunto de direitos humanos protegidos, em especial nos casos de colisão aparente e concorrência entre eles (RAMOS, 2005).

Nesse deambular, para se evitar qualquer forma de conflito, é necessário interpretar os tratados de direitos humanos em conjunto, e não separadamente. Tem-se também a indisponibilidade, como atributo dos direitos humanos, a qual implica entender que esses direitos são irrenunciáveis. Essa indisponibilidade pode ser relacionada a três fatores: a qualidade especial de seu titular, como incapazes, crianças e adolescentes; o seu objeto, como bens fora de comercialização e direitos fundamentais da pessoa humana; as relações jurídico-institucionais, como o casamento e a família. Tradicionalmente, a indisponibilidade de um direito fundamental se ancorava no respeito pela ordem pública, mas foi ultrapassada com a consagração da dignidade da pessoa humana no Direito Internacional dos Direitos Humanos e, até mesmo, no Direito interno. O fundamento da dignidade da pessoa humana traduz a impossibilidade do ser humano se transformar em mero objeto, mesmo que seja por sua vontade. Dessa forma, torna os direitos humanos indisponíveis, uma vez que estes prezam pela dignidade de todos os indivíduos. O caráter erga omnes dos direitos humanos é, da mesma forma, necessário de se conhecer. Essa qualidade possui duas facetas: o reconhecimento do interesse de todos os Estados da comunidade internacional em ter os direitos humanos amplamente protegidos; a aplicação geral e indiscriminada das normas protetivas a todos os seres humanos, o que implica que todos sob a jurisdição de um Estado podem invocar tais direitos, sem que a nacionalidade ou seu estatuto jurídico importem, obtendo, assim, acesso às instancias internacionais de proteção dos direitos humanos (RAMOS, 2005). Em 1993, a Declaração da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, por meio de sua redação, consagrou a crescente preocupação com a implementação dos Direitos Humanos, tendo em vista que a fase legislativa de proteção já estava sendo ultrapassada. Dessa forma, essa Declaração invocou outro atributo dos direitos humanos: a sua exigibilidade. 6

A implementação dos direitos fundamentais é o desafio atual que se apresenta a toda comunidade internacional. A Convenção Americana exerceu um grande papel nessa área, pois estabeleceu um verdadeiro processo judicial internacional para aqueles Estados que violassem suas normas, com a integração da Comissão e da Corte Interamericana. As sentenças proferidas pela Corte possuem efeitos vinculantes, com o propósito de reestabelecer a legalidade internacional. A Constituição brasileira de 1988 expressamente estabelece a aplicação imediata – outro atributo – dos direitos humanos, em seu artigo quinto, parágrafo primeiro, isto é, que as normas de direitos e garantias fundamentais não necessitam de outras normas jurídicas para regularem seus conteúdos. Já no Direito Internacional, essa particularidade depende da própria redação das normas, que permitirá, ou não, sua aplicação imediata pelo Direito interno de cada país. Isso gera uma distinção entre as normas de direitos humanos em self-executing e not-self executing rules. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em importante parecer consultivo, estabeleceu que é admissível a consulta que tenha, como fundamento, dúvidas acerca da autoaplicabilidade das normas pertencentes à Convenção Americana de Direitos Humanos, afirmando a sua competência para decidir sobre cada questão apresentada. Dessa forma, esse tema não pode ser simplesmente debatido na esfera interna dos Estados. A autoaplicabilidade de uma norma se sustenta no entendimento de cada órgão internacional responsável por suas respectivas convenções e tratados. Outro ponto a ser analisado sobre os Direitos Humanos é o que se refere à dimensão objetiva dos mesmos. É necessário entender que esses direitos, além de conferir posições jurídicas aos indivíduos (dimensão subjetiva), geram também regras impositivas de comportamento para que se tenha proteção plena deles (dimensão objetiva), que, em geral, são direcionadas ao Estado. Esses deveres geram a criação de procedimentos e também de entes ou organizações capazes de assegurar, na vida prática, os direitos fundamentais da pessoa humana. À dimensão subjetiva dos direitos humanos, soma-se essa dimensão objetiva, assim denominada pela sua característica organizacional e procedimental, independente de proteções individuais (RAMOS, 2005).

Como penúltimo atributo, tem-se a proibição do retrocesso, que traduz a ideia de que não é permitido regredir na seara dos direitos humanos. É vedado aos Estados que diminuam ou amesquinhem a proteção já alcançada por esses direitos, assim como não é autorizado que novos tratados os imponham restrições e diminuições. 7

Finalmente, a última característica dos direitos humanos é a sua eficácia horizontal, que é a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, sem a necessária mediação de uma lei. Existem duas modalidades de eficácia horizontal de normas de tratados internacionais de direitos humanos: a primeira diz respeito ao reconhecimento no próprio tratado da possível aplicação desses direitos às relações entre particulares; e a segunda consiste em haver fiscalização continua sobre o cumprimento das obrigações dos Estados em prevenir e sanar as possíveis violações dos direitos humanos em seu território. Essa ideia de aplicação horizontal dos direitos humanos se confronta com a tese liberal, que afirma serem esses direitos apenas de defesa contra o Estado, somente possibilitando sua inserção nas relações verticais (indivíduo-Estado). Consequentemente, esse posicionamento liberal não permite uma eficácia plena dos direitos fundamentais, ignorando a importância de cada individuo poder, sem qualquer necessidade de mediação, invocar os direitos e garantias individuais nas suas relações privadas.

4 As Dimensões dos Direitos Humanos

Inicialmente, é bastante adequado esclarecer o embate que há sobre os termos “dimensão” e “geração” de direitos humanos. Aquele vem substituindo este na doutrina, devido a várias críticas pelo fato da palavra “geração” acarretar uma ideia temporal, fomentando, no raciocínio humano, ao estudar mencionado tema, o entendimento de que a segunda geração de direitos ultrapassou a primeira, assim como a terceira fez sucumbir a segunda. O que realmente não acontece. No lugar de sucessão de direitos, há uma acumulação (BONAVIDES, 1993). Uma geração não sucede a outra, mas com ela interage, estando em constante e dinâmica relação (PIOVESAN, 1998). Assim, toma-se o devido cuidado para que se enfatize a questão da complementariedade, interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, princípios que têm sido enfatizados nas conferencias internacionais relativas a esses direitos (BORGES, 2014).

É importante compreender também que os direitos humanos, na modernidade ocidental, são frutos históricos de lutas associadas a movimentos burgueses na Europa e nos Estados Unidos, e não, como os jusnaturalistas defendiam, direitos provindos da própria natureza, pré-existindo ao direito positivo. A primeira dimensão de direitos humanos engloba os chamados direitos de liberdade, que são aqueles que invocam, majoritariamente, as prestações negativas do Estado, com o 8

intuito de proteger a esfera da autonomia do individuo. Necessário é prestar atenção ao “majoritariamente”, pois, em certas situações, exige-se uma posição ativa do Estado, para que se garanta a proteção desses direitos. Fazem parte desse grupo os direitos civis e políticos. São produtos das revoluções liberais do século XVIII na Europa e nos Estados Unidos. Os direitos fundamentais que compõem a segunda dimensão são resultados dos impactos provocados pelo avanço da industrialização, guiada pelo capitalismo, no século XIX. Criou-se uma enorme necessidade de ações positivas do Estado para que os indivíduos viessem a possuir dignidade frente a todas as situações que estavam acontecendo. O socialismo teve bastante influencia na luta por esses direitos de cunho positivo estatal, participando da cobrança e realização dos mesmos (SARLET, 2007). Estão inclusos, nesse grupo, os direitos sociais e econômicos. Eles possuem como marcos históricos a Constituição Mexicana de 1917 (que regulou o direito ao trabalho e à previdência social), a Constituição alemã de Weimar de 1919 (que estabeleceu os deveres do Estado perante a proteção dos direitos sociais) e, no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, que criou a Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo os direitos dos trabalhadores (RAMOS, 2005). Já os direitos da terceira dimensão são aqueles que possuem como titulares a comunidade em geral, assim como grupos menos determinados de pessoas que não detêm vínculo jurídico ou fático preciso. São os chamados direitos difusos ou transindividuais. Entre eles, encontram-se o direito à paz, o direito a autodeterminação e o direito ao meio ambiente equilibrado. Esses direitos são frutos da descoberta do homem vinculado ao planeta Terra, com recursos finitos, divisão absolutamente desigual de riquezas em verdadeiros círculos viciosos de miséria e ameaças cada vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana (RAMOS, 2005).

A maioria dos autores ainda defende uma quarta dimensão, que é resultado da globalização dos direitos humanos, tendo como integrantes os direitos de participação democrática (democracia direta), de informação e direito ao pluralismo (BONAVIDES, 1997).

5 Soberania Nacional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos

A proteção dos direitos humanos integra o contemporâneo espaço do Direito Internacional, pois quando se positiva os direitos fundamentais em convenções e declarações universais, eles passam a ser reconhecidos simultaneamente para toda a humanidade. Hoje, 9

temos no Direito Internacional um estabelecido rol de direitos humanos que são protegidos através de mecanismos, também consolidados, de supervisão e controle das ações preventivas ou corretivas de violações a esses direitos por parte dos Estados (RAMOS, 2005). Isto posto, não é mais aceitável as alegações estatais afirmando que a proteção desses direitos é de exclusivo domínio seu, e que possíveis averiguações internacionais da sua situação interna ofenderiam ao principio da soberania dos Estados. “Com efeito, a crescente aceitação de obrigações internacionais no campo de direitos humanos consagrou a impossibilidade de se alegar competência nacional exclusiva em tais matérias” (RAMOS, 2005). O desenvolvimento histórico da proteção internacional dos direitos humanos gradualmente superou barreiras do passado: compreendeu-se, pouco a pouco, que proteção dos direitos básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia se esgotar, na atuação do Estado, na pretensa e indemonstrável ‘competência nacional exclusiva’ (CANÇADO TRINDADE, 1991).

Em uma forma ainda mais esclarecedora: ainda que por sede argumentativa se queira recorrer aos padrões clássicos de soberania, é necessário ser destacado que mesmo a atuação nacional na celebração de tais tratados é manifestação da atividade soberana do Estado (CHOUKR, 2001).

Portanto, a proteção alcançada pelos direitos fundamentais no campo internacional é fruto do exercício pleno da soberania dos Estados, que, através de experiências históricas, perceberam sua impotência na absoluta tutela desses direitos com apenas seus próprios mecanismos.

6 Teorias acerca da Hierarquização dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Direito Interno

A escolha sobre qual teoria de hierarquia dos tratados de direitos humanos seja a mais adequada dentro de cada ordenamento interno é uma questão de difícil solução diante dos fortes argumentos em defesa de cada uma delas. Há, na doutrina nacional, quatro posicionamentos sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos: a tese da supraconstitucionalidade, isto é, hierarquia superior à própria Constituição; a da constitucionalidade material; a da hierarquia supralegal, que é o status inferior à Constituição e superior à legislação ordinária; a da hierarquia infraconstitucional, ou status de norma ordinária. A teoria da supraconstitucionalidade atribui aos tratados de direitos humanos posição superior à Constituição. A doutrina que a defende atenta, especialmente, para o artigo 27 da 10

Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o qual dispõe sobre a impossibilidade de o Estado invocar regras do Direito interno para deixar de cumprir um tratado internacional. Além disso, o princípio da boa-fé, que é, no Direito Internacional, acolhido de forma majoritária pelos Estados, orienta o não descumprimento das normas previstas em tratados internacionais. “Um Estado pode incorrer em responsabilidade internacional mesmo quando a violação do Direito Internacional é cometida por sua lei básica, ou seja, a Constituição” (MELLO, 2004). Celso Albuquerque de Mello foi o maior expoente nacional dessa corrente que defende a superioridade dos tratados de direitos humanos em relação a todas as normas de do Direito interno. O citado mestre entende que nem mesmo as emendas constitucionais poderiam revogar os tratados e convenções sobre direitos fundamentais ratificados pelo Estado. Outro status das normas internacionais que versam sobre direitos humanos é o constitucional. Entre os doutrinadores que defendem essa tese estão Flavia Piovesan, Valério de Oliveira Mazzuoli, e Antônio Augusto Cançado Trindade. Em sua redação, a Constituição, no artigo quinto, parágrafo segundo, aceita que normas internacionais ampliem o rol de direitos e garantias fundamentais, demonstrando que a lista de direitos humanos e garantias não é taxativo, nem imutável, assim como diz o artigo sessenta, paragrafo quarto, inciso quarto, da Constituição Federal, mas essa compreensão também encontra grandes debates na doutrina e jurisprudência. Com o surgimento da Emenda Constitucional número 45, de 2004, foram incluídos os últimos parágrafos do artigo quinto. O parágrafo terceiro estabelece que as normas internacionais, relativas a direitos humanos, para que assumam status equivalente à Constituição Federal, deveriam ter quórum qualificado de Emenda Constitucional, ou seja, possuir três quintos dos votos, das duas casas do Congresso, em dois turnos. Tal modifiação legislativa no artigo 5 da Carta Magna prejudicou o entendimento de status constitucional quanto a algumas normas internacionais, a exemplo da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que não recebeu esse quórum de qualificação. A terceira teoria, e que se diga de inicio, a mais aceita atualmente no Brasil, é a da supralegalidade. Essa corrente afirma que os tratados internacionais de Direitos Humanos possuem posição hierárquica inferior a Constituição, mas superior às normas ordinárias. O Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento do Recurso Extraordinário numero 466.343, por votação unanime, atribuir aos tratados que versassem sobre direitos e 11

garantias fundamentais a condição de norma supralegal. Dessa forma, o Brasil adota essa tese no momento. O referido julgamento teve uma importância de grande tamanho para o Direito brasileiro, pois ao discutir o Tratado de San Jose da Costa Rica em face da lei ordinária que permitia a prisão civil do depositário infiel, findou por conceder uma posição superior ao primeiro dentro da hierarquia das normas, possuindo, como consequência, a extinção da prisão civil por divida no caso de depositário infiel no Brasil. E é justamente por essa importância, que há o próximo e ultimo tópico para um aprofundamento dessa questão. A última teoria, chamada de teoria da legalidade, defende o posicionamento das suso mencionadas normas internacionais lado a lado às normas ordinárias, ou seja, na mesma hierarquia que as normas infraconstitucionais. Embora, como visto, a corrente adotada para os tratados de direitos humanos seja a da supralegalidade, em relação às outras categorias de tratados, adota-se aquela. Essa concepção hierárquica acarreta problemas para o Brasil, vez que, em caso de lei ordinária posterior ao tratado, aquela poderá retirar deste todos os efeitos, fazendo com que o país descumpra o pacta sunt servanda, que significa que o que for pactuado deve ser cumprido.

7 A Prisão Civil Decorrente da Condição de Depositário Infiel

Apesar de ser uma situação já pacificada, é de muita importância sua análise, para tanto compreender a adoção da teoria da supralegalidade para os tratados internacionais de direitos humanos, assim como para questionar se o aludido posicionamento realmente foi o mais adequado. Afinal, o direito é uma área de conhecimento extremamente mutável, pois seu curso se move paralelamente ao momento histórico de cada país. O depositário infiel é aquele que recebe a incumbência judicial ou contratual de zelar por um bem, mas não cumpre sua obrigação e deixa de entrega-lo em juízo, de devolvê-lo ao proprietário quando requisitado, ou não apresenta o seu equivalente em dinheiro na impossibilidade de cumprir as referidas determinações (STOLZE, 2014).

Pois bem, a prisão civil do depositário infiel era permitida pelo artigo 5.o, em seu inciso LXVII, da Constituição Federal, assim como a prisão civil por inadimplemento inescusável do débito alimentar, esta porem permanece lícita. Não obstante o Brasil ser signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica, e este permitir apenas a prisão civil por débito alimentar, o Supremo Tribunal Brasileiro adotou a postura de permissividade para a prisão do depositário infiel, como estabeleceu o Ministro 12

Mauricio Correa no julgamento do HC 75.512-7/SP: “Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (paragrafo 2.o, do artigo 5.o, da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-Povo na elaboração de sua Constituição: Por esta razão, o Pacto de San Jose da Costa Rica (ninguém deve ser detido por divida: este principio não limita os mandados de autoridade judiciaria competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar) deve ser interpretado com as limitações impostas pelo artigo 5.o, inciso LXVII, da Constituição”. Entretanto a emenda constitucional número 45, de 2004, veio a mudar o posicionamento do STF em relação à matéria. Como já apontado no tópico passado, a partir dessa emenda, adotou-se no Brasil a teoria da supralegalidade dos tratados de direitos humanos e a do status constitucional para aqueles que fossem aprovados no Congresso como emendas. Dessa forma, a Convenção Americana de Direitos Humanos ficou no patamar supralegal, pois não atingiu os votos necessários para alcançar a posição de uma emenda constitucional. E tal configuração hierárquica revelou uma nova ideia, um novo entendimento entre os ministros, que reconheceram a superioridade desse tratado em relação à norma ordinária que regulava a prisão civil do depositário infiel. Assim, a prisão do depositário infiel não foi especificamente considerada inconstitucional, pois sua previsão segue na Constituição (que é considerada, pelo STF, superior aos tratados), mas foi considerada ilícita, pela ausência de norma legal valida a lhe respaldar (STOLZE, 2014).

Dúvidas são levantas acerca da existência ou não, então, de uma sanção para o depositário infiel, visto que sua prisão foi considerada ilícita. Mas a solução é bem simples: a conduta deve ser rechaçada com a exigência judicial da obrigação correspondente, através da tutela especifica da obrigação de fazer. Isso tudo sem prejuízo do enquadramento da conduta em tipo penal próprio, seja de apropriação indébita, seja de disposição alheia como própria (nos termos do artigo 55 da Lei número 10.931, de 2 de agosto de 2004, c/c o artigo 171, paragrafo 2. o, inciso I, Código Penal), cabendo a devida notitia criminis a autoridade competente (STOLZE, 2014).

8 Considerações Finais

Através deste artigo é possível compreender a relevância dos direitos humanos no plano nacional e internacional, a partir de uma detalhada explicação sobre: seu conceito, que são vários, dependendo do objeto que enfoca; suas características, que totalizam doze; suas 13

dimensões, onde foi possível discernir a diferença entre dimensão e geração de direitos humanos, tendo em vista que o última criava uma ideia de ultrapassagem, de superação de um grupo de direitos em relação aos outros, assim como foi importante para a compreensão do contexto histórico no processo de aquisição desses direitos; sua problemática, que envolve o principio da soberania dos Estados; sua hierarquização (quando inscritos em tratados internacionais) ao serem recepcionados no Direito interno, que possui quatro correntes ideológicas com fortes argumentos cada uma. Ao final, encontra-se um resumo da história jurisprudencial da prisão civil do depositário infiel, que tem o intuito de expor posicionamento que o STF vem adotando em relação aos tratados internacionais de direitos humanos, com destaque para o julgamento do HC 75.512-7/SP, assim como demonstrar o prestígio que os mesmos estão adquirindo com o constante crescimento do Direito Internacional. Importante foi perceber o que a Emenda Constitucional número 45 acarretou na jurisprudência do nosso país, consolidando a tese da supralegalidade, que antes sofria uma forte concorrência com a corrente da constitucionalidade material. Ainda mais relevante é saber que nada é para sempre, muito menos no campo do Direito, que posições novas poderão ser adotadas de acordo com as necessidades humanas, que novas teorias surgirão, assim como novos casos serão postos à prova, e novos direitos serão originados. Cumpre, porém, ressaltar o principio da proibição ao retrocesso, que é a única exceção a essa característica costumeira do Direito, de estar modificando-se a todo tempo.

9 Referências Bibliográficas

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