Os efeitos jurídicos da culpa na dissolução do vínculo conjugal: reflexões à luz da Emenda Constitucional nº 66 de 2010

July 18, 2017 | Autor: Mariana Monteiro | Categoria: Processo Civil, Direito Civil, Direito de família
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OS EFEITOS JURÍDICOS DA CULPA NA DISSOLUÇÃO DO VÍNCULO CONJUGAL: reflexões à luz da Emenda Constitucional nº 66 de 2010 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A evolução histórica do divórcio no Brasil. 3. A Emenda Constitucional nº 66/2010.4. A extinção da culpa como requisito para a dissolução do vínculo conjugal. 5. Os possíveis efeitos jurídicos remanescentes da culpa. 6. Conclusão. RESUMO A Emenda Constitucional 66/2010 alterou a redação do artigo 226, §6°, da Constituição Federal promovendo, dessa forma, verdadeira transformação do instituto do divórcio no país. A mudança mais expressiva e incontestável foi a supressão de quaisquer requisitos temporais para a decretação do divórcio. Contudo, o posicionamento acerca da supressão do requisito subjetivo que vigorava para as separações judiciais litigiosas - a culpa de um dos cônjuges pelo término da relação - ainda não se encontra pacificado no contexto do novo divórcio. Assim, o objetivo do presente artigo é investigar a real e atual extensão da discussão sobre a culpa dos cônjuges nas ações judiciais de divórcio, abordando aspectos como a própria dissolução do vínculo conjugal, a prestação de alimentos, a manutenção do sobrenome conjugal, a guarda dos filhos, a responsabilidade civil por danos morais e materiais e a partilha de bens. Palavras-Chave: Emenda Constitucional 66/2010. Direito de Família. Divórcio. Culpa. Alimentos. Guarda. Nome. Responsabilidade Civil. Partilha de Bens. ABSTRACT The Constitucional Amendment 66/2010 modified the redaction of the article 226, §6º, of the Brazilian Constitution, promoting, this way, a truly transformation of the divorce institute at the country. The most expressive and incontestable change was the supression of any timing requirements to enact the divorce. However, the positioning about the supression of the subjective requirement which prevailed on the contentious legal separations – one spouse’s guilty about the end of the marriage – is not pacified at the new divorce’s context. Thus, the purpose of this article is to investigate the real and actual extension of the discussion about spouses’ guilty in the divorce legal proceedings, covering aspects like marital dissolution itself, alimony, child custody, civil liability and property sharing. Key Words: Constitucional Amendment 66/2010. Family Law. Divorce. Guilt. Alimony. Child custody. Name. Civil Liability. Property Sharing.

1.

INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional nº 66, de 2010, capitaneada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, representou um avanço na concretização da mínima intervenção do Estado nas relações afetivas e rompeu, em grande parte, com a

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tradição do Direito Canônico que, ao longo dos anos, influenciou o direito brasileiro no sentindo de obstaculizar o rompimento dos vínculos matrimoniais. Por meio da EC 66/2010, o Poder Reformador Constitucional promoveu a alteração da redação do §6º do art. 226 da Constituição Federal1, instituindo a possibilidade do divórcio direto, ainda que por iniciativa de apenas um dos cônjuges, sem a necessidade de prévia separação judicial ou de separação de fato. Por certo que a alteração constitucional foi bastante clara em eliminar, de pronto, os requisitos temporais que até então vigoravam para a concessão do divórcio. Não obstante, observa-se que a nova redação do artigo 226, §6º, da Constituição Federal não é capaz, por si só, de definir qual é o novo alcance da culpa de um dos cônjuges pelo término da relação, questão que era de fundamental relevância na análise da separação judicial litigiosa (Código Civil, artigo 1.573). Assim, o presente artigo tem como escopo delimitar os efeitos jurídicos da culpa na dissolução do vínculo conjugal após a EC 66/2010, bem como seus eventuais desdobramentos na seara do direito civil e sua influência em temas como a fixação da prestação alimentícia, a manutenção do sobrenome conjugal, a guarda dos filhos e a responsabilidade civil. 2.

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIVÓRCIO NO BRASIL

Para melhor compreender o alcance da alteração constitucional promovida pela Emenda nº 66, de 2010, faz-se necessária breve retrospectiva do instituto do divórcio no ordenamento pátrio. De início, cabe ressaltar que, tradicionalmente, a dissolução da sociedade conjugal não era vista com bons olhos pela sociedade brasileira, sobretudo em razão da influência da religião católica nas relações interpessoais e mesmo no direito positivo. O Estado assumiu, nesse contexto, uma postura paternalista, que buscava, em síntese, a conservação da família e de seu patrimônio e, por conseguinte, a manutenção do casamento como instituição indissolúvel.

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Nesse contexto, apresenta-se a nova redação do §6º do art. 226, CF, ipsis litteris: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. A redação antiga do referido parágrafo se apresentava da seguinte forma: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”.

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Contudo, as desavenças entre cônjuges sempre existiram – bem como nunca deixarão de existir – uma vez que são inerentes às relações humanas. Assim, não era incomum que um casal cessasse a convivência, rompendo faticamente a sociedade conjugal. Em correspondência a tal situação, surgiu o desquite, que significava o rompimento da sociedade conjugal, mas não dissolvia o vínculo matrimonial, de modo que não era possível à pessoa desquitada, por exemplo, contrair novas núpcias. Ademais, havia grande segregação social em relação aos desquitados, sobretudo as mulheres2. O próprio significado da palavra desquite representa “não quite”, isto é, os desquitados eram considerados pessoas em débito com a sociedade e com o Estado. Esse cenário perdurou por muitos anos, tendo em vista que somente em 1977, com a Emenda Constitucional nº 09, a qual modificou a então vigente Constituição de 1967, introduziu-se no Brasil a possibilidade de dissolução do próprio vínculo conjugal. A partir de então, foi elaborada a Lei nº 6.515/77, comumente denominada Lei do Divórcio, que regulamentou a alteração constitucional, mantendo, ainda, a modalidade do desquite, sob nova designação: separação. Nesse ponto, importante destacar que foi instituído um sistema binário de dissolução do vínculo matrimonial, tendo em vista que para que o casal pudesse se divorciar, antes era necessário que tivessem se separado, só existindo a conversão da separação em divórcio e não sendo possível, portanto, o divórcio direto, salvo em hipóteses emergenciais. A intenção de tal medida era, claramente, a de desestimular o rompimento dos casamentos, concedendo aos cônjuges um tempo – durante a vigência da separação – para que pudessem refletir acerca do término, oportunizando, assim, o reestabelecimento do casamento antes da decretação do divórcio. Demonstrou-se, assim, por mais uma vez, a ingerência do Estado nos vínculos matrimoniais e sua intenção inexorável de manter a instituição familiar, ainda que a vontade do casal, em razão do desgaste do casamento, destoasse desse propósito.

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Segunda união só foi liberada em 1977. Jornal do Senado, Brasília, 14 dez. 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 jan. 2014.

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Há que se observar, contudo, que as transformações sociais e a flexibilização dos relacionamentos amorosos foram significativas, sobretudo a partir da década de oitenta. Durante esse período, houve aumento considerável do número de casais que optavam por simplesmente “morar juntos”, sem a celebração do casamento civil. Por certo que foram determinantes dessa tendência a imposição de barreiras ao divórcio e a complexidade da dissolução do vínculo conjugal, que andavam na contramão do fluxo social de naturalização dos rompimentos matrimoniais Acompanhando as mudanças sociais e mesmo jurisprudenciais, a Constituição de 1988, em seu art. 226, §6º3, representou novo avanço, posto que instituiu a possibilidade de divórcio direto, bem como reduziu os prazos necessários ao período de separação. Passou-se a oportunizar, dessa forma, duas hipóteses judiciais para dissolução do vínculo conjugal, quais sejam: 1) o casal, sem necessidade de ingressar com o procedimento judicial de separação, e desde que estivesse separado de fato há dois anos, poderia requerer o divórcio de forma direta; e 2) ingressava-se em juízo com o pedido de separação judicial e, após o trânsito em julgado da decisão que decretava a separação, era necessário aguardar um ano para que a mesma fosse convertida em divórcio. Aqui se chega a um ponto crucial para a análise que se pretende. A separação judicial bifurcava-se em duas espécies: consensual e litigiosa. Como sugere a própria denominação, a separação consensual era pleiteada por ambos os cônjuges em comum acordo, e, ainda nessa hipótese, a Carta Maior exigia o período mínimo de um ano de casamento como requisito, não obstante a vontade manifesta de ambos os cônjuges em cessar a convivência. Por outro lado, a separação judicial litigiosa ocorria apenas em razão da vontade do chamado “cônjuge inocente” e, para tanto, a lei exigia a prova inequívoca da culpa de seu consorte, ante os motivos elencados em rol enumerativo previsto no Código Civil (inicialmente no diploma de

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Constituição Federal. Redação Original. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. Disponível em : . Acesso em 28 dez. 2013.

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1916, tendo sido reproduzido na íntegra pelo diploma de 2002, consoante se vê de seu art. 1573). A adoção de um sistema de culpa como requisito para decretação da separação e, consequentemente, para sua conversão em divórcio, tolhia drasticamente a liberdade e a autodeterminação dos cônjuges. Ora, basta pensar que, não sendo provada a culpa no curso processual, se o magistrado adotasse interpretação literal das normas então vigentes, a separação não seria decretada, de forma que o cônjuge que ingressou em juízo estaria obrigado a manter o vínculo conjugal com quem não mais amava, não podendo contrair novas núpcias nem formar novo núcleo familiar. Por certo que tal posicionamento em nada contribuía para o término saudável dos relacionamentos afetivos, criando um campo de batalha judicial prejudicial ao casal envolvido e aos seus filhos. Outrossim, a situação era propícia à proliferação da informalidade dos vínculos afetivos, uma vez que o ordenamento jurídico não acompanhava as transformações da sociedade. Diante desses entraves, uma importante contribuição para a autonomia na dissolução das sociedades conjugais foi a possibilidade de a separação e o divórcio consensuais serem realizados por meio de escritura pública perante um tabelião, desde que os cônjuges não tivessem filhos menores ou incapazes e estivessem assistidos por advogado. Ou seja, nessa hipótese passou a ser desnecessária a intervenção do Poder Judiciário quando os cônjuges já tinham convicção comum e não houvesse interesses de incapazes a serem tutelados. Pois bem. Este era, em suma, o cenário do instituto do divórcio antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 66, de 2010. Passa-se, então, à análise das modificações promovidas neste instituto em decorrência da alteração promovida pelo Poder Reformador no §6º do art. 226 da CF/88. 3.

A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010

A Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, originou-se do Projeto de Emenda Constitucional nº 28, de 2009, e, mesmo antes de sua promulgação, já movimentava a discussão acerca do divórcio no Brasil, tendo o projeto, inclusive, recebido a alcunha de “PEC do Amor”, tendo em vista que a maior parte dos juristas

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defendia que sua aprovação colocaria o amor – ou a falta dele – como foco principal para a constituição e para a desconstituição dos casamentos, sem maiores requisitos a serem observados. A emenda foi resultado de intensa movimentação promovida pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, e teve como principal mote a facilitação do divórcio no país, em resposta às transformações apresentadas pela sociedade brasileira, e em atenção à tendência de aplicação do princípio da intervenção mínima do Estado no Direito de Família. Buscando a maior autonomia dos cônjuges na dissolução do próprio vínculo matrimonial (e não apenas da sociedade conjugal) o texto original do projeto, dava a seguinte redação ao §6º do art. 226 da Constituição Federal: “o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio consensual ou litigioso, na forma da lei”. Após a aprovação do projeto no Senado, houve, contudo, modificação da redação, de forma que o texto final, hoje vigente, é o seguinte: “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Defendendo o acerto na supressão da expressão “na forma da lei”, Pablo Stolze Gagliano e Rodrigo Pamplona Filho aduzem que: [...] aprovar uma Emenda simplificadora do divórcio com o adendo “na forma da lei” poderia resultar em um indevido espaço de liberdade normativa infraconstitucional, permitindo interpretações equivocadas e retrógradas, justamente o que a Emenda quer impedir. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 54)

Desse modo, tudo leva concluir que a alteração constitucional promovida pela EC 66/2010 introduz norma de eficácia plena, a qual, desde já, permite a dissolução do casamento pelo divórcio sem necessidade de observar quaisquer requisitos. Pois bem. Estando em vigor com plena eficácia o novo texto constitucional, impende analisar quais as mudanças que isto representou no cenário jurídico nacional. E, nesse ponto, abre-se o leque de discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema. Embora ainda não haja um consenso absoluto, a maior parte dos doutrinadores e dos tribunais vem adotando o entendimento de que, com o advento da EC 66/2010, se deu a eliminação imediata da necessidade de prévia separação judicial e a supressão da culpa como pré-requisito para a dissolução do vínculo conjugal.

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O divórcio passa a ser, portanto, um direito potestativo de ambos os cônjuges. Ou seja, qualquer deles que, por suas próprias razões, desejar pôr fim ao vínculo matrimonial, poderá fazê-lo sem a necessidade de comprovação da existência de quaisquer outros requisitos. Não é outro, inclusive, o posicionamento adotado pelo STJ em sua jurisprudência atual4. Nesse ponto, necessário se faz o corte metodológico do presente trabalho. Não se pretende, aqui, fomentar a discussão acerca da manutenção ou da extirpação do instituto da separação do direito brasileiro, mas tão somente investigar a questão atinente à culpa dos cônjuges e aos seus possíveis efeitos jurídicos remanescentes. 4.

A EXTINÇÃO DA CULPA COMO REQUISITO PARA A DISSOLUÇÃO DO

VÍNCULO CONJUGAL Devidamente contextualizada a EC 66/2010, alcança-se o seguinte questionamento: remanesce no direito brasileiro a necessidade de alegação da culpa a fim de se obter a dissolução do vínculo conjugal por meio do divórcio? A resposta a tal indagação deve ser não, e muitos são os fatores que contribuem para tal conclusão. De início, é salutar destacar que a intenção da emenda era, conforme evidenciado anteriormente, a de desburocratizar o divórcio e diminuir a ingerência do Estado nas relações conjugais. Nesse contexto, não haveria qualquer coerência em admitir que o Poder Judiciário continuasse a promover a investigação da culpa de um dos cônjuges como requisito para decretar a dissolução do vínculo. Isto é, se a intenção do constituinte reformador era justamente a busca de maior autonomia privada nas relações conjugais e familiares, dando aos cônjuges a possibilidade de galgar sua felicidade por meio da dissolução de matrimônios

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Tal fica comprovado pelo seguinte trecho, extraído de decisão monocrática proferida pelo Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 406.122 – MS: “[...]Sabe-se que, com a Emenda Constitucional nº 66/2010, a qual alterou o artigo 226, § 6º, da Constituição Federal, para dispor que "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio", o divórcio passou a ser simplesmente um direito potestativo dos cônjuges não subordinado a critérios temporais, passível de ser exercido em conjunto ou separadamente, pela via judicial ou administrativa. Ou seja, a partir da EC nº 66/2010, o único requisito para o divórcio passou a ser o desafeto, não se exigindo mais nenhum prazo para a sua decretação. Portanto, basta que um ou ambos os cônjuges peça o divórcio que ele poderá ser concedido. O divórcio inclusive não está condicionado aos seus efeitos colaterais (alimentos, guarda de filhos, uso do nome e partilha de bens). Pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens (artigo 1.581 do CC e Súmula nº 197 do STJ)[...]” (STJ. AREsp 406122, Ministro Relator Luis Felipe Salomão, data da publicação: 01/10/2013).

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desgastados e buscar novos amores, não há nem que se cogitar em transpor a discussão da culpa que se promovia nas hipóteses de separação judicial litigiosa para o “novo divórcio”. A fim de corroborar tal raciocínio, apresentam-se trechos da justificativa apresentada pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro na proposta que deu origem à EC 66/2010: [...] Por outro lado, essa providência salutar, de acordo com valores da sociedade brasileira atual, evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam revelados e trazidos ao espaço público dos tribunais, com todo o causal de constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação. [...] Por outro lado, a preferência dos casais é nitidamente para o divórcio, que apenas prevê a causa objetiva da separação de fato, sem imiscuir-se nos dramas íntimos; Afinal, qual o interesse público relevante em se investigar a causa do desaparecimento do afeto ou do desamor? [...]

Assim, diante do exposto, resta comprovada a mens legislatoris da Emenda ora analisada e a sua incompatibilidade com a aferição da culpa enquanto requisito para por fim ao vínculo matrimonial. Não bastasse tal interpretação embasada na análise do texto legal, a questão ainda pode ser enfrentada com base na psicologia. O rompimento da vida em comum é, sem dúvidas, doloroso para ambos os cônjuges, por mais que possa representar a libertação de um matrimônio falido. Afinal, o término do casamento, significa, de certa forma, o fracasso de um projeto de vida em comum e notória é a dificuldade do ser humano em lidar com suas falhas. Por óbvio que há rompimentos amigáveis, porém, é inequívoco que grande parte dos divorciados nutre contra seus ex-cônjuges sentimentos negativos, tais como o ódio, a amargura, a vingança e a decepção. Nesse contexto, os processos judiciais que promovem ampla discussão da culpa apenas acirram a polarização entre os exconsortes, trazendo à tona os momentos difíceis do casal e tendo, ainda, o agravante da figura de um terceiro - o juiz - como inquisidor da vida íntima das partes, o que, por claro, não se coaduna aos princípios da proteção à intimidade e à vida privada dos indivíduos, constitucionalmente previstos (art. 5º, X, CF/88). Assim, para que investigar a culpa quando não houver absoluta necessidade de tal apuração? Se um dos cônjuges não mais deseja manter o vínculo conjugal, de que importa aferir se houve ou não um culpado para o término? Após a EC 66/2010, não

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há que se provar cabalmente nos autos a conduta desonrosa de um dos consortes, nem que se identificar grave violação de um dever matrimonial para que seja decretado o divórcio; conforme já dito, este passa a ser direito potestativo. Ora, se um dos cônjuges vem pleitear em juízo o divórcio, por certo que a vida em comum já se encontra insustentável. Isso porque o casamento é instituição que não sobrevive se não houver esforço constante e diário de ambos os cônjuges. Não subsiste

incólume

um

vínculo

matrimonial

se

não

houver

cumplicidade,

compreensão e amor, assim como não há núcleo familiar saudável e equilibrado sem que haja harmonia entre o casal. Outrossim, a análise da culpa (quando dos processos de separação judicial litigiosa) sempre se demonstrou bastante complexa. Isso porque não é simples categorizar um culpado e um inocente nos relacionamentos afetivos. O ser humano, via de regra, comporta-se num princípio de ação e reação: dificilmente um ato de um dos cônjuges será isolado e imotivado, sem que, ao menos subjetivamente, tenha ocorrido em razão de ato pretérito do outro. Portanto, mais coerente seria interpretar a dissolução do casamento como efeito de concausas, ou simplesmente como o resultado da “morte do amor” e do desgaste da relação. A doutrina trata tal interpretação pela designação de Teoria da Deterioração Factual, defendendo

que

a

mesma

é

corolário

da

liberdade

de

escolha

e

da

autodeterminação dos cônjuges em relação à manutenção e à extinção de sua entidade familiar (LARA, 2010, apud DIAS, 2010, p.38). Interessante observar que a jurisprudência pátria já admitia, desde antes da promulgação da EC/66, o afastamento da comprovação da culpa de um dos cônjuges como requisito subjetivo para decretação da separação judicial. O STJ, por exemplo, firmou tal posicionamento nos acórdãos proferidos no REsp 886744/MG5,

no

EREsp

466329/RS

e

no

EREsp

466329/RS,

julgados,

respectivamente, em fevereiro de 2010, setembro de 2005 e junho de 2004.

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CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. PARTILHA DOS BENS. AUSÊNCIA DE CONSENSO. 1. Não há por que falar em violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos dedeclaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 2. Requerida a separação judicial com fundamento na existência de culpa, é possível ser decretada a separação do casal sem imputação de

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Ademais, os Tribunais de Justiça estaduais vêm adotando este mesmo posicionamento.

Nesse sentido, transcreve-se, por assaz elucidativo, trecho da

fundamentação do voto nº 11.283, proferido no TJSP pelo Desembargador José Joaquim dos Santos (AC 0004201-18.2006.8.26.0360), nos quais se defende que o único requisito para o divórcio na atual ordem constitucional é a demonstração de vontade de uma das partes envolvidas: [...] Diante disso, foi extinta a necessidade de prévia separação de fato (por dois anos) ou judicial (por um ano) para a obtenção do divórcio, bastando, atualmente, a demonstração da livre vontade de um dos cônjuges, pois com a evolução do instituto do matrimônio, percebeu-se que ninguém pode ser obrigado a permanecer casado civilmente com alguém, um peso outrora causador de dano à liberdade dos cidadãos, direito fundamental penosamente conquistado durante a história da civilização moderna [...] A nova disposição constitucional provocou a não recepção dos artigos infraconstitucionais que arrolam qualquer outro requisito para a decretação do divórcio. [...]

Também o TJES posiciona-se, após a EC 66/2010, no sentido de extirpar a culpa como requisito subjetivo de decretação do término do vínculo matrimonial6. Este posicionamento foi adotado recentemente pelo Desembargador Dair José Bregunce de Oliveira, da Terceira Câmara Cível, na decisão monocrática por ele proferida nos autos do Agravo de Instrumento de nº 35129005522 e publicada no Diário Oficial em 03 de maio de 2013:

causa a nenhuma das partes quando não restarem devidamente comprovados os motivos apresentados, mas ficar patente a insustentabilidade da vida em comum. 3. Em razão da ausência de consenso entre as partes, a partilha dos bens não pode ser realizada na sentença que julgou a ação de separação, devendo ser adotado o procedimento determinado pelo § 1º do art. 1.121 do Código de Processo Civil. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e provido. (STJ. REsp 886744/MG, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, data de julgamento: 02/02/2010, data de publicação: 11/02/2010). 6

CONSTITUCIONAL E CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. CONVERSÃO EM DIVÓRCIO. POSSIBILIDADE. EC 66⁄2010. ARTIGO 226, § 6º. DA CF. DISCUSSÃO DE CULPA. DESNECESSIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 1.É cabível a conversão da ação de separação judicial litigiosa em ação de divórcio, com fundamento no disposto no § 6º, do artigo 226 da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 66⁄2010.2.A partir da Emenda Constitucional nº 66⁄2010, restou insubsistente o instituto da separação judicial, de forma que as demandas em curso devem ser adequadas, a fim de atender à nova disposição Constitucional. 3. É desnecessária a manifestação judicial sobre a culpa para o deferimento do pedido relativo ao reconhecimento do fim da relação conjugal. 4. Recurso desprovido. Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima indicadas. Acordam os Desembargadores da QUARTA CÂMARA do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, à unanimidade, NEGAR PROVIMENTO ao recurso. (TJES. Agravo de Instrumento nº 035119000277, Relator Desembargador Samuel Meira Brasil Junior, Relator Substituto Desembargador William Silva, Quarta Câmara Cível, data do julgamento: 17/10/2011).

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[...] É certo que, a Emenda Constitucional n. 66/2010 aboliu a discussão da causa do divórcio ou a culpa pelo fim do casamento, ou seja, não se pode deixar de perceber, conforme advertem Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald, que o objeto cognitivo do divórcio litigioso é extremamente restrito, pois o acionado não mais poderá alegar a culpa ou o descumprimento de obrigações conjugais, em sua defesa de mérito, em razão da vedação de tais discussões [...]

Ademais, não é consistente a argumentação em sentido contrário apenas com base na banalização do casamento, a qual foi amplamente veiculada por representantes da Igreja Católica. Ora, não é razoável pensar que uma pessoa recorrerá ao instituto do divórcio apenas porque ele existe e está facilitado. A sociedade brasileira já se encontra madura o suficiente para decidir, sem demasiada ingerência do Estado, o destino de seus matrimônios.

Diante do exposto, fundamentadas as razões de ordem legal, psicológica e jurisprudencial que embasam a tese ora sustentada, consolida-se o posicionamento no sentido de ser dispensável – e mesmo indevida - a investigação da culpa para a decretação do divórcio. Dessa forma, não deve ser transposto o rol de motivos elencados no art. 1573 do Código Civil, que vigoravam para a separação judicial litigiosa, na análise judicial do “novo divórcio”. A fim de simplificar o procedimento de modo definitivo, após a EC 66/2010, o único requisito para a dissolução do casamento deve ser a vontade de um dos cônjuges, não importando o quantitativo de tempo ou a culpa de qualquer dos consortes.

5.

OS POSSÍVEIS EFEITOS JURÍDICOS REMANESCENTES DA CULPA

A argumentação desenvolvida até então tratou apenas da culpa enquanto requisito para a decretação do divórcio (tal como era na separação judicial). Passa-se agora à investigação de possíveis efeitos remanescentes da culpa em diversos temas do Direito Civil que são correlatos ao divórcio, tais como: alimentos, manutenção do sobrenome de casado, guarda dos filhos, responsabilidade civil e partilha de bens. 5.1.

A CULPA E OS ALIMENTOS

A fixação dos alimentos entre ex-cônjuges e sua possível correlação com efeitos remanescentes da culpa pelo fim do relacionamento vem sendo uma das questões mais controversas, sobretudo na doutrina, após o advento da EC nº 66/2010.

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Conforme já sustentado, a reforma constitucional eliminou a discussão da culpa pelo término do casamento para fins de decretação do divórcio, tornando esse instituto um direito potestativo dos cônjuges. Contudo, quando se trata da fixação dos alimentos, a questão não pode ser analisada simplesmente por esse viés, havendo outros fatores sociais e jurídicos a serem considerados. Primeiramente, observa-se que o Código Civil de 2002, em atenção à igualdade entre homens e mulheres defendida na Constituição da República (art. 226,§5º), estabelece, em seu artigo 1.556, III, a obrigação de mútua assistência entre o casal durante a constância do casamento, e, desse direito-dever advém, conjuntamente, a obrigação alimentar recíproca, disciplinada pelo artigo 1.694 do mesmo diploma legal. O Código, contudo, foi além, prevendo a prestação de alimentos mesmo nas hipóteses em que se pleiteava a separação judicial, tal como se observa da leitura de seus artigos 1.702 e 1.704. Nesses casos, apenas o cônjuge inocente e que fosse desprovido de recursos receberia do outro (culpado) o quantum fixado pelo magistrado a título de pensão alimentícia. Outrossim, o cônjuge culpado, caso necessitasse receber alimentos, só faria jus aos designados alimentos necessários, ou seja, aqueles indispensáveis à sua subsistência, e somente se não houvesse outro parente seu apto a prestá-los. Nesse sentido também vinha entendendo o Superior Tribunal de Justiça em seus julgados7.

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RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. SEPARAÇÃO E DIVÓRCIO. PROVA INÚTIL E QUE FERE O DIREITO À PRIVACIDADE PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. O direito líquido e certo a que alude o art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal deve ser entendido como aquele cuja existência e delimitação são passíveis de demonstração de imediato, aferível sem a necessidade de dilação probatória. 2. A culpa pela separação judicial influi na fixação dos alimentos em desfavor do culpado. Na hipótese de o cônjuge apontado como culpado ser o prestador de alimentos, desnecessária a realização de provas que firam seu direito à intimidade e privacidade, porquanto a pensão não será aferida em razão da medida de sua culpabilidade (pensão não é pena), mas pela possibilidade que tem de prestar associada à necessidade de receber do alimentando. 3. Recurso ordinário provido. (STJ. RMS 28336/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, data do julgamento: 24/03/2009, data da publicação: DJe 06/04/2009). Também nesse sentido o julgamento proferido no REsp 204079/SC, em 15/12/2005

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A questão se encontrava bem sedimentada em relação à separação, conforme exposto. Contudo, não há previsão específica no Código Civil em relação ao divórcio e aos alimentos, e com o advento da EC 66/2010, tendo em vista o novo contexto deste instituto no Brasil, no qual muitos sustentam, inclusive, que nem ao menos remanesce o instituto da separação no ordenamento pátrio, permanece a incógnita: a culpa remanesceria produzindo efeitos limitadores da obrigação alimentar? Sem olvidar de todos os malefícios apontados anteriormente em relação à investigação da culpa pelo fim do casamento nos processos judiciais, há que se reconhecer, contudo, que, em se tratando de prestação de alimentos, sua perquirição ainda guarda substancial relevância. Muitos autores sustentam que, com a EC 66/2010, teria se dado a extirpação da culpa por completo, não devendo a mesma ter quaisquer reflexos, nem mesmo em relação aos alimentos. Este é o posicionamento, haja vista, de Rodrigo da Cunha Pereira, Pablo Stolze Gagliano, Rodrigo Pamplona Filho e Rolf Madaleno. Para eles, o quantum de pensão alimentícia devida por um dos cônjuges deve se pautar somente nos princípios norteadores do Direito de Família, sobretudo a solidariedade e o trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade8, sem que a culpa pelo fim da relação tenha qualquer interferência na fixação. Arrisca-se dizer que tal posicionamento, contudo, não equivale à postura social que predomina ainda nos dias atuais. É certo que, usualmente, não há uma única causa para o término do casamento e que a maior parte dos atos de um dos cônjuges tem origem noutro praticado por seu consorte, em verdadeira reação em cadeia. Contudo, não há como negar que alguns atos culposos que culminam no término da relação são deveras traumáticos, devendo ser considerados per se. Pois bem. Dito isso, passa-se a uma análise exemplificativa. Suponha-se que um casal já viesse convivendo mal há bastante tempo, sendo raros os momentos de felicidade e que, dada tal situação, a esposa tenha cometido adultério, em clara violação ao dever recíproco de fidelidade (Código Civil, artigo 1.566, I). Diante desse quadro, ajuíza o esposo a ação de divórcio. Destaca-se que a esposa, em idade avançada, nunca trabalhara, nem ao menos cursara qualquer faculdade, tendo

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PEREIRA, 2011, p. 122

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exercido apenas as tarefas do lar e vivido sob o sustento do marido. Ademais, não tem a mesma qualquer parente que lhe possa prestar auxílio financeiro. Assim, a esposa, em sua defesa, pleiteia judicialmente a concessão de pensão alimentícia para que possa prover seu sustento próprio. Vê-se que tal situação prática traduz perfeitamente a discussão posta em tela. O ex-marido seria obrigado a prestar alimentos civis, a fim de manter o mesmo padrão de vida da mulher que o traiu? Se a questão for analisada com base no entendimento comum e majoritário de nossa sociedade, não. Muitos diriam, inclusive, que o mesmo nem deveria prestar a ela qualquer tipo de auxílio. Assim, pode-se considerar que apesar de a sociedade brasileira estar preparada para aceitar o divórcio pela simples vontade de um dos cônjuges, sem perquirir culpados, ainda não tolera a desconsideração dos efeitos sociais e psicológicos, por exemplo, de um adultério, devendo o mesmo repercutir, portanto, para efeitos de prestação alimentícia ao ex-cônjuge. Feita a perquirição social, passa-se a analisar juridicamente a situação. Considerando o princípio da solidariedade e da dignidade humana, sabe-se, contudo que deve ser garantida, no mínimo, a subsistência do cônjuge culpado, o que se dá justamente com a prestação dos alimentos necessários. Nesse sentido, Yussef Said Cahali9 defende a aplicação do art. 1704 do Código Civil, que trata das separações judiciais, também às hipóteses de divórcio, de forma que a culpa de um dos cônjuges continue sendo elemento limitador da obrigação de prestação alimentar. E não se trata aqui de uma investigação subjetiva da culpa, mas sim objetiva, ou seja, aquela pautada no descumprimento dos deveres do casamento previstos no Código Civil, em seus artigos 1.566 e 1.56710. Nesse sentido, também é o posicionamento de Regina Beatriz Tavares da Silva11. 9

CAHALI, 2011, p. 994 LIMA NETO & CASAGRANDE, 2011, p. 68 11 “É evidente que essa consequência sancionatória da culpa deverá ser mantida sob a égide da EC n. 66/2010, já que a eliminação desse efeito acarretaria situações esdrúxulas, como a de uma mulher violentada em casa pelo marido continuar a sustentá-lo caso seja ela a provedora da família, ou de um homem ter de alimentar plenamente a mulher que o traiu, em benefício até mesmo de seu amante” (DA SILVA, 2012, p. 76). 10

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Assim, definida a manutenção dos efeitos jurídicos da culpa para fins de fixação de alimentos, observa-se a necessidade de investigar qual o meio processual adequado a tal verificação, questão que, de forma geral, poderia levar a duas respostas: 1) a própria ação de divórcio, por meio de pedidos cumulados; ou 2) ação autônoma. Mais acertada parece ser a discussão da culpa para tais efeitos no bojo da própria ação de divórcio, por meio de cumulação de pedidos ou mesmo em contestação ou reconvenção, considerando que, com a decretação do divórcio, cessa-se o dever de mútua assistência entre os cônjuges decorrente do vínculo matrimonial e, por decorrência, o fundamento para a obrigação alimentar. Assim, regra geral, deve ocorrer o pleito alimentar e, consequentemente, a investigação da culpa do cônjuge que lhe seja relevante, na própria ação de divórcio12. Esse entendimento prestigia o princípio da economia processual e não necessariamente atua como um fator de atraso para a decretação do divórcio almejado. Isso porque, conforme já exposto, o divórcio passou a ser direito potestativo com o advento da EC 66/2010 e, consequentemente, é também direito incontroverso, posto que impassível de objeção. Desse modo, sua decretação pode, sem maiores obstáculos, ocorrer por meio de decisão antecipatória de tutela, com fulcro no que dispõe o artigo 273, §6º, do CPC, o qual permite a concessão da tutela antecipada quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. Assim, no que se relaciona à prestação de alimentos pelos ex-cônjuges no novo cenário do divórcio, conclui-se que a mesma está sim submetida aos efeitos jurídicos remanescentes da culpa, conforme os parâmetros do artigo 1.704 do Código Civil, e que o método processual mais oportuno para pleitear os alimentos seria a própria ação de divórcio, podendo a decretação do mesmo se dar em decisão antecipatória de tutela de forma a prosseguir o processo com a discussão da culpa e a posterior fixação do valor da pensão. 5.2. A CULPA E O SOBRENOME CONJUGAL

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LIMA NETO & CASAGRANDE, 2011, p. 70

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A manutenção do sobrenome conjugal após a dissolução do vínculo matrimonial e sua correlação com a culpa de um dos cônjuges também é tema que provoca intenso embate doutrinário. De início, necessário contextualizá-lo sob a ótica do Código Civil de 2002. Em seu artigo 1.578, tal diploma legal tratou de disciplinar a questão em relação à separação judicial, de forma que o cônjuge culpado, em regra, perde o direito de utilizar o sobrenome conjugal, salvo quando tal perda pode representar: I - evidente prejuízo para a sua identificação; II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; ou III - dano grave reconhecido na decisão judicial. Em relação ao divórcio direto e ao divórcio conversão, o artigo 1.572, §2º, estabelece que “dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.” Ou seja, tal dispositivo remete o intérprete ao artigo 1.578, de forma que vigorava, na hipótese de divórcio, a mesma regra de perda do direito ao sobrenome conjugal para o cônjuge considerado culpado, salvo as exceções legais já elencadas anteriormente13. A questão tornou-se polêmica após a edição da EC 66/2010 sendo necessária a consolidação de um posicionamento a ser adotado em razão da possibilidade da 13

Nesse sentido era o entendimento dos tribunais pátrios, conforme se confere, haja vista, no acórdão do TJES a seguir reproduzido: EMENTA - ação de divórcio direto - direito de permanecer com o nome de casada - regra do art. 4º, caput, da Lei de Alimentos - alegação de que o sobrenome do marido passou a integrar sua personalidade e que com ele mantém identificação com a prole - inexistência de pedido inicial quanto à mantença do nome - art. 294 do CPC, que reza que depois da citação o autor não poderá aditar o pedido - sentença de conversão determinará que a mulher volte a usar o nome que tinha antes de contrair matrimônio, só conservando o nome de família do ex-marido se alteração prevista acarretarlhe: I - evidente prejuízo para a sua identificação; II - manifesta distinção entre o seu nome de família e dos filhos havidos da união dissolvida; e III - dano grave reconhecido em decisão judicial - novo Código Civil, não aplicável à espécie, em seu art. 1.578, fez expressamente constar que a perda do sobrenome do outro encontra-se condicionada a, além da culpa pela separação, a requerimento feito pelo outro cônjuge nesse sentido - comparando-se os dois sistemas reguladores da matéria, vê-se que o silêncio das partes no anterior não vedava ao Magistrado à proceder a supressão do sobrenome, como in casu se se deu - a apelante que deveria requerer e comprovar os motivos elencados no § único do art. 25 da Lei 6.515⁄77, formulando pedido neste sentido [...], mantém-se incólume a sentença hostilizada - apelo improvido. (TJES. Apelação Cível nº 035010021877, Relator Desembargador Carlos Henrique Rios do Amaral, Revisor Desembargador Annibal de Resende Lima, Primeira Câmara Cível, data de julgamento: 21/09/2005)

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decretação do divórcio imediato, sem imposição de nenhum requisito ou amarra, tal como defendido nesse trabalho. Se o divórcio pode ocorrer sem quaisquer motivações, também a manutenção do sobrenome conjugal poderia se dar sem qualquer restrição? Nesse sentido, parte da doutrina, representada por Maria Helena Diniz, Rodrigo da Cunha Pereira e Carlos Roberto Gonçalves entende que o artigo 1.578 do Código Civil estaria automaticamente revogado com a nova ordem constitucional do divórcio, de forma que independentemente de ser arguida a culpa de um dos cônjuges, aquele que se identifica como inocente não teria a prerrogativa de exigir que o culpado não mais utilizasse seu sobrenome, sendo a manutenção do sobrenome conjugal uma liberalidade da pessoa que o adotou quando da celebração do casamento. Esse não parece ser, contudo, o posicionamento mais adequado. Aqui, assim como se deu com a questão dos alimentos, deve ser adotado raciocínio pautado na razoabilidade e na harmonização dos interesses dos ex-cônjuges. Considerando como objetivo máximo na atualidade a redução dos ressentimentos causados pelo procedimento judicial de dissolução do vínculo conjugal, não parece ser razoável que o cônjuge que durante a constância do casamento foi vítima do descumprimento latente de um dos deveres conjugais (que são aqueles previstos nos artigos 1.566 e 1.567 do Código Civil) não tenha como pleitear que o cônjuge que descumpriu tal dever (e por isso pode ser considerado o culpado) não mais utilize seu sobrenome. Por certo que a questão deve ser analisada com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, artigo 1º, II), mas não se pode olvidar que tal análise deve abarcar ambos os envolvidos na questão familiar. E nesse sentido, importante a lição de Regina Beatriz Tavares da Silva (DA SILVA, 2012, p. 78): Também é evidente que essa consequência sancionatória deve permanecer, já que haveria violação ao princípio constitucional da proteção da dignidade da pessoa humana se um homem desrespeitado pela mulher tivesse de ver seu sobrenome atrelado ao dela para o resto da vida. A

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mesma observação para a mulher deve ser feita, caso o adotante do sobrenome conjugal tenha sido o homem.

Logo, para que haja a harmonização da questão, de modo a não desfavorecer nenhum dos divorciados de forma exacerbada, respeitando a dimensão existencial de cada um deles14, se faz necessária a transposição do artigo 1.578 do Código Civil para a análise da questão do nome nos casos do “novo divórcio”. Ou seja, seria essa mais uma hipótese de projeção de efeitos jurídicos da culpa após a EC 66/2010 (tratando-se, por certo, da culpa objetiva, pautada na inobservância dos deveres conjugais). Desse modo, em regra, o cônjuge considerado culpado não manteria o sobrenome conjugal, ainda que fosse de sua vontade, exceto nos casos em que a supressão pudesse lhe ensejar prejuízo para identificação perante a sociedade, manifesta distinção em relação ao nome dos filhos ou qualquer outro dano grave demonstrado em juízo. As ressalvas elencadas acima se mostram suficientes para a defesa do nome do cônjuge considerado culpado enquanto um direito da personalidade, que se faz necessário ao seu reconhecimento e à sua singularização perante a sociedade (Código Civil, art. 16). Isso porque bastaria ao mesmo comprovar na ação de divórcio que a perda do sobrenome conjugal lhe traria prejuízos à identificação social para que o juiz reconhecesse seu direito em mantê-lo. Em conclusão, observa-se que entender o tema de forma diversa poderia causar descontentamento ainda maior com o fim do casamento, pelo menos em relação a um dos envolvidos, acirrando os ressentimentos e prejudicando a convivência dos ex-cônjuges após o fim do vinculo, caso essa ainda fosse necessária (em razão de filhos, por exemplo). 5.3

A CULPA E A GUARDA DOS FILHOS

O fim da relação conjugal, notoriamente, não implica em consequências apenas para os cônjuges, mas também para sua prole. É que cessada a convivência entre

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GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 109

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os pais, é obrigatória a estipulação da guarda dos filhos, que figura, inclusive, como objeto da própria ação de divórcio (Código Civil, artigo 1.584, I). Ao tratar do tema, a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77), em seu artigo 10º e parágrafos, regulamentou a guarda dos filhos conforme a culpa dos cônjuges pela então separação judicial. Desse modo, se um dos cônjuges houvesse praticado conduta desonrosa ou qualquer outro ato que importasse em grave violação dos deveres do casamento (apto a tornar insuportável a vida em comum), seria considerado culpado e a guarda dos filhos seria atribuída ao cônjuge inocente, ou seja, àquele que não havia dado causa à ruptura. Observa-se, contudo, que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, especialmente após a EC 66/2010, afastou-se a aplicação do artigo 10 da Lei nº 6.515/77, extirpando, assim, qualquer efeito jurídico da culpa pelo fim do matrimônio que pudesse recair sobre a guarda dos filhos. Isso porque a guarda deve sempre ser analisada em razão do melhor interesse do menor, tendo como parâmetros seu bem estar, sua segurança e seu conforto, além de sua própria vontade manifesta, não importando quem de seus pais possa ter sido o possível ensejador do término do casamento. Ora, é plenamente possível que o indivíduo que tenha falhado com os deveres matrimoniais seja, não obstante, um ótimo pai, que em momento algum comprometeu seu dever de educação e de cuidado para com a prole. Assim, em boa hora se demonstrou a mudança do paradigma do direito de família a fim de enterrar quaisquer discussões de culpa dos cônjuges na estipulação da guarda que não tenham estrita relação com o trato com os filhos. Nesse contexto, a Constituição Federal, em seu artigo 227, já estabelece a diretriz de proteção aos menores, estipulando enquanto dever da família a defesa dos direitos dos mesmos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do dever de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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É com base nesse parâmetro fixado pela Constituição que os Tribunais pátrios vêm entendendo pela aplicação do princípio do melhor interesse do menor15 enquanto norteador da definição da modalidade de guarda (unilateral, compartilhada ou alternada) e em, sendo o caso, do ex-cônjuge que a deterá, em razão de ter melhores condições morais, sociais e psicológicas de exercer esse mister. Assim, em conclusão, observa-se que, atualmente, a pretensa culpa de um dos cônjuges pelo término do casamento não mais produz, per se, qualquer efeito jurídico apto a influenciar na definição da guarda dos filhos menores. 5.4

A CULPA E A REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS

Com a EC 66/2010 e a consequente abolição da discussão da culpa enquanto requisito para decretação do novo divórcio, questiona-se se os atos culposos de um dos cônjuges ainda são passíveis de ensejar indenização por danos morais ou materiais. A análise de tal questão ultrapassa os limites do direito de família. Explica-se: a possibilidade de um ato culposo dos cônjuges dar azo à indenização em favor de seu consorte deve ser analisada com base nas regras que disciplinam a responsabilidade civil (Código Civil, artigos 186 e 927, sobretudo).

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Nesse sentido, confira-se o acórdão do STJ que, já em 2001, definia como critério de determinação da guarda o melhor interesse da criança: Separação judicial. Proteção da pessoa dos filhos (guarda e interesse). Danos morais (reparação). Cabimento.1. O cônjuge responsável pela separação pode ficar com a guarda do filho menor, em se tratando de solução que melhor atenda ao interesse da criança. Há permissão legal para que se regule por maneira diferente a situação do menor com os pais. Em casos tais, justifica-se e se recomenda que prevaleça o interesse do menor. [...] (STJ. REsp 37051 / SP, Relator Ministro Nilson Naves, Terceira Turma, data de julgamento: 17/04/2001, data de publicação: 25/06/2001. Outrossim, após a EC 66/2010 tal posicionamento foi apenas consolidado e perpetrado no STJ, conforme se pode observar do trecho da decisão monocrática a seguir: “[...] O atual Código Civil, em seu art. 1.584 determinou que 'decretada a separação judicial ou divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições de exercê-la'. Numa atitude inovadora, rompeu-se com o sistema que vincula a guarda dos filhos menores à culpa dos cônjuges, determinando que, na falta de acordo entre as partes, guarda dos filhos 'será atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la'. Portanto, havendo divergência entre os pais, o juiz deverá sempre verificar quem tem as melhores condições para exercício da guarda, devendo-se entender por melhores condições, não apenas a melhor situação econômica, mas todo um conjunto de condições que atendam aos interesses do menor [...]” (STJ. AREsp 193496, Relator Ministro Raul Araújo, data de publicação: 26/09/2012).

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Assim, se, por exemplo, durante a constância do casamento, um dos cônjuges cometer adultério de forma a expor o seu consorte ao ridículo perante a sociedade, ferindo-lhe a honra objetiva, é possível que se apure a responsabilidade pela reparação de danos morais, desde que a ação culposa e ilícita do adultério (contrária ao dever legal de fidelidade recíproca) seja causa de dano extraordinário suportado pelo consorte traído, contrário a seus direitos da personalidade, tais como o direito à integridade psicológica, à verdade e à intimidade16. Logo, não é a simples ocorrência de traição que gera o dano, mas sim a verificação de situação extraordinária dela decorrente que justifique a obrigação indenizatória17. Em resumo, há possibilidade de indenização decorrente de ato culposo de um cônjuge desde que estejam presentes os pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam: ação, dano e nexo de causalidade. Nesse sentido vem entendendo o Superior Tribunal de Justiça, inclusive após a EC 66/201018. Daí a afirmação de que a análise da questão ultrapassa o Direito de Família, uma vez que não há, nesses casos, a análise da culpa per se, mas sim dos atos culposos que podem ser enquadrados como atos ilícitos capazes de gerar direito à indenização. O simples término do vínculo matrimonial pelo divórcio, atualmente considerado um direito potestativo, não é capaz de gerar o direito à indenização, portanto. 16

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - OFENSA PSICOLÓGICA E FÍSICA. A ofensa física e a pública imputação de adultério a uma mulher, com o evidente propósito de comprometer a sua idoneidade moral perante a vizinhança, colegas de trabalho e familiares, constituem motivo a ensejar indenização por dano moral (TJMG, Apelação Cível 0686.08.225327-5/003, Des. Relator Guilherme Luciano Baeta Nunes, data de julgamento: 02/02/2010, data de publicação: 12/02/2010). 17

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. VIOLAÇÃO DE DEVERES MATRIMONIAIS. ADULTÉRIO. INEXISTÊNCIA DE ATO ILÍCITO. A melhor doutrina e jurisprudência pátrias orientam-se no sentido da desconsideração da culpa para a dissolução da sociedade conjugal. Para a responsabilização civil de um dos consortes não basta violação dos deveres do casamento, é necessário um comportamento ilícito de sua parte que desborde dos limites do razoável, considerando os padrões de ética e moral, e que seja capaz de gerar efetivo dano ao outro. Eventual mantença de relacionamento extraconjugal não é suficiente para a configuração do dever de indenizar. Lições doutrinárias e precedentes jurisprudenciais. DIVULGAÇÃO DE FATOS VEXATÓRIOS À HONRA DO AUTOR. AUSÊNCIA DE PROVAS. Não logrou o autor evidenciar que sua ex-esposa tenha deliberadamente divulgado suas aventuras amorosas a terceiros, conhecidos das partes, com o intuito de denegrir a imagem do autor, ônus que lhe incumbia, ex vi do art. 333, I do CPC. Sentença de improcedência mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA. (TJRS, Apelação Cível Nº 70057444416, Décima Câmara Cível, Relator Des. Paulo Roberto Lessa Franz, data de julgamento: 28/11/2013, data de publicação: 09/12/2013). 18

STJ, REsp 922462 / SP, julgado em 04/04/2013.

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Dessa forma, mais coerente e menos tumultuoso para os cônjuges seria transpor a discussão acerca da responsabilidade por danos morais e materiais para ação autônoma de indenização, retirando-a da ação de divórcio. Simplifica-se assim a decretação do divórcio, utilizando-se da ação específica apenas para as questões que urgem ser resolvidas a fim de que os ex-cônjuges possam seguir suas vidas (alimentos e sobrenome conjugal, haja vista). Por fim, resta perquirir qual seria o juízo competente para o julgamento da ação indenizatória autônoma. Por certo que a questão envolve aspectos de organização judiciária dos tribunais, de modo que não há um padrão verificável em todo o território nacional. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo vem entendendo que a competência para processar e julgar as ações indenizatórias advindas de relações conjugais seria das Varas Cíveis comuns e não das Varas de Família, em razão de a demanda estar vinculada à esfera individual do autor e pautada nos elementos que configuram a responsabilidade civil, e dissociada das questões familiares específicas (nesse sentido, acórdãos proferidos nos conflitos de competência de nºs 100100006079 e 100100005816, ambos julgados em 201019). 5.5

A CULPA E A PARTILHA DE BENS

A partilha de bens é uma necessidade que se verifica com o fim da sociedade conjugal. Observa-se, contudo, que tal divisão patrimonial nunca foi influenciada pela culpa e continua não sendo após a edição da EC 66/2010. Isso porque a partilha segue unicamente o regramento correspondente ao regime de bens que os cônjuges assumiram quando do casamento, não importando analisar quem teria sido responsável pelo término. A singularização dos aspectos patrimoniais atinentes à partilha é tal que até mesmo o Código Civil, em seu artigo 1.581, prevê que “o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens”. Nesse contexto, importante ressaltar que o regime de bens disciplina as relações jurídico-patrimoniais decorrentes do casamento e tem como princípio básico a liberdade de escolha dos cônjuges. Assim, a autonomia privada constitui pilar da 19

Esta também é a posição do TJDF conforme se vê dos acórdãos proferidos na ACJ nº 392388420088070001 e na ACJ nº 20060510086638.

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dimensão patrimonial dos casamentos, devendo ser mínima a intervenção do Estado. Em resumo, em se tratando de partilha, o que deve prevalecer é a vontade dos cônjuges, não devendo o Estado impor a investigação judicial da culpa. Contudo, situação peculiar se afiguraria, por exemplo, se os nubentes firmassem pacto antenupcial prevendo cláusulas de indenização ou de perda de bens em caso de adultério. Ora, como bem se sabe, o pacto antenupcial é verdadeiro negócio jurídico solene e condicional que segue os requisitos dispostos no artigo 1.653 do Código Civil, e, em relação a ele, vigora o princípio da livre estipulação (artigo 1.693), de forma que os nubentes podem estabelecer o que lhes aprouver acerca de seus bens, desde que não violem disposição absoluta de lei (artigo 1.655). Assim, como a questão da culpa não se encontra devidamente delimitada na legislação pátria, caso o adultério fosse pactuado pelos nubentes enquanto um limitador da situação patrimonial, por certo que, nessa hipótese, a análise da culpa teria significância quando da partilha em razão da vontade manifesta dos cônjuges (e não da ingerência do Estado). 6.

CONCLUSÃO

Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66/2010 observou-se verdadeira revolução do instituto do divórcio no Brasil e, mais do que nunca, o Direito de Família deu um significativo passo para promover a maior autonomia privada no gerenciamento das relações conjugais, respeitando-se, sobremaneira, a vontade dos cônjuges e pondo fim ao estigma da manutenção do casamento a qualquer custo. Nesse contexto, houve a derrocada dos prazos para o pedido de divórcio, podendo esse ser solicitado de forma imediata e sem necessidade da prévia separação judicial. Outrossim, conforme exaustivamente defendido, não mais há lugar para a manutenção da culpa enquanto um requisito a ser verificado para a dissolução do vínculo conjugal.

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O divórcio passa a ser um direito potestativo de ambos os cônjuges, não importando, para fins de sua decretação, qualquer discussão judicial com vistas a identificar qual dos consortes teria infringido deveres conjugais e, por isso, seria o culpado pelo término do casamento. Diminui-se, dessa forma, a ingerência estatal nas relações familiares e coloca-se o amor (e o desamor) como mote central do casamento (e do divórcio). Tal modificação do sistema do divórcio no Brasil encontra-se na esteira do que vem sendo desenvolvido em alguns países europeus, a exemplo de Portugal, Espanha (que eliminaram a culpa pelo fim do casamento) e Alemanha (que substituiu o princípio da culpa pelo da ruptura e não tem hipótese de separação judicial, mas tão somente de divórcio direto). Observa-se, portanto, que a democratização das relações conjugais, com maior autonomia dos cônjuges, não é tendência isolada do direito brasileiro, sendo amplamente verificada noutros países ocidentais. Contudo, muito embora esteja sedimentada a supressão da culpa enquanto requisito para decretação do divórcio, ao longo da explanação foi evidenciado que a mesma ainda produz efeitos jurídicos em relação a alguns temas que circundam a dissolução do vínculo conjugal. Assim, defende-se que ainda é possível a discussão da culpa nas ações de divórcio apenas para efeito de limitação da obrigação alimentar e de perda do direito de utilizar o sobrenome conjugal. Em conclusão, o que se observa no direito brasileiro é que se deu a eliminação da culpa em relação à dissolução do vínculo conjugal, havendo apenas poucos efeitos remanescentes da mesma que são atualmente relevantes. Assim, demonstra-se cada vez mais que o melhor caminho a ser seguido é permitir aos cônjuges a condução de seu núcleo familiar sem demasiada ingerência do Estado-juiz, flexibilizando-se o amor e o relacionamento conjugal à moda do Soneto da Fidelidade de Vinícius de Moraes: “que seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure”. 7.

REFERÊNCIAS

ASSIS JUNIOR, Luiz Carlos de. Análise Histórica do novo divórcio no Brasil à luz da autonomia privada. RTDC, Rio de Janeiro, v. 11, n. 44, pp. 87-104, out. 2010.

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