Os encontros nacionais feministas na memória do feminismo paraibano (1979-2000)

May 18, 2017 | Autor: D. Sobreira | Categoria: Feminist studies
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2º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: Razão Política e Acontecimento João Pessoa/PB – 2016 GT 2: Gênero & Sexualidades OS ENCONTROS NACIONAIS FEMINISTAS NA MEMÓRIA DO FEMINISMO PARAIBANO (1979-2000)1 Dayane Nascimento Sobreira2 Resumo: Historicamente, o feminismo seguiu evidenciando as malhas de poder dispostas no social, promovendo resistências e experiências peculiares, dentre as quais a realização dos encontros nacionais feministas. Realizados entre os anos de 1979 e 2000, foram espaços públicos alternativos, como colocam Ferreira e Bonan (2004), que mesclaram diferença, pluralidade e solidariedade. Como acontencimentos (FOUCAULT apud RAGO, 2013), esses encontros alteraram a história de suas participantes, potencializando verdadeiras artes feministas da existência e também a criação de grupos, como o Grupo Feminista Maria Mulher, fundado em 1979 na cidade de João Pessoa-PB. Nesse sentido, essa comunicação visa tecer traços dos encontros nacionais feministas a partir da memória do feminismo paraibano, mapeada por meio de narrativas orais e escritas de suas integrantes. Fruto de pesquisas em andamento sobre a história do movimento feminista na Paraíba, esperamos contar uma história possível desses espaços de trocas, fortalecimento de ações e (trans)formações. Palavras-chave: Encontros Nacionais Feministas; Paraíba; Memória.

Invenções políticas peculiares. Assim, Claudia Ferreira e Claudia Bonan (2004) definem os encontros nacionais feministas, ocorridos por sua vez entre os anos de 1979 e 2000. Tais encontros apresentam uma relação conexa ao feminismo da Paraíba na medida em que em 1979 foi fundado o primeiro grupo feminista da Paraíba dentro das atividades do 1º ENF. Em 2000, a realização do 13º encontro na cidade de João Pessoa. Assim, essa apresentação visa tecer traços da história desses eventos importantes na história do feminismo ao mesmo tempo que elaboramos uma história possível do movimento na Paraíba e no Brasil. Emergido a partir dos ventos feministas soprados na resistência ao regime civilmilitar brasileiro implantado em 1964, o primeiro grupo feminista da Paraíba foi fundado durante as atividades do I Encontro Nacional Feminista, realizado em Fortaleza. Desse encontro, a proliferação de inspirações e da sistematização da militância em grupos pautados na bandeiras do feminismo e nos ideais de libertação e 1

Trabalho preparado para apresentação no 2º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: Razão Política e Acontecimento, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de setembro de 2016. 2 Mestranda em História pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

igualdade. Nisso, a ebulição de subjetividades revolucionárias, marcadas pela intensidade das discussões e atuações do movimento da década de 1970 em diante. Entre as décadas de 1970 e 1980, as mulheres se articularam a outras “minorias”, fazendo emergir várias associações feministas no país. Como diz Rago (2003), esses grupos mesclavam a participação de ex-militantes e as novas gerações que despertaram questões do corpo e da sexualidade. Questões próprias da instância privada vieram a público, implicando na emergência de uma cultura de valorização do feminino e de seus atributos. Dessas reverberações, o feminismo encontrou-se com o movimento de mulheres, adentrando diferentes instituições e setores da sociedade civil. Vale ressaltar que o movimento de mulheres não tinha as questões feministas como bandeira de luta. Lutava-se por melhorias das condições materiais: por creches, por transporte, por habitação. Ainda como sinaliza Margareth Rago, esse encontro foi certamente lucrativo para todas: “Para as feministas, porque passavam a atingir uma rede muito mais ampla de mulheres; para as mulheres pobres da periferia, porque lhes traziam questões que dificilmente seriam enunciadas espontaneamente, como as referentes à moral sexual, ao corpo e à saúde” (Idem, p. 09). Sobre essa relação hoje, Silvia Camurça e Carmen Silva (2010) elencam a relação interseccional e retroalimentada, em que: “o movimento de mulheres faz o feminismo, ao mesmo tempo em que é constituído por ele” (p. 15). Com suas especificidades, os feminismos no Nordeste apresentaram ampla ressonância nos Estados de Pernambuco, Bahia, Maranhão e Paraíba. Paraíba que se situava em um contexto efervescente entre as décadas de 1970 e 1980, marcado por conflitos de terras, proliferação das comunidades eclesiais de base (CEBs), greves estudantis, de professores, motoristas e cobradores de ônibus e pela formação de comitês de apoio às lutas travadas. Em 1978 foi formado o Comitê de Apoio às Lutas Populares sob suporte da Arquediocese da Paraíba que também respaldava trabalhadores e moradores das periferias. Ao mesmo tempo, a UFPB se expandia, recebendo professores de outros Estados do país, que segundo Koury (1983, p. 54) “passam a engajar-se de um modo contínuo na luta pela democracia interna da universidade e no apoio e organização às lutas dos setores dominados da sociedade paraibana” (sic). Professores que também eram atacados por discursos críticos aos seus comportamentos morais e sexuais e às suas capacidades profissionais. Nesse contexto

macroestrutural, emergiram os primeiros grupos feminista, ecologista e homossexual do Estado3.

DAS MEMÓRIAS

A memória, visão do passado capturada pelo presente, aos poucos tornou-se suporte para o estudo de trajetórias, grupos e comunidades durante muito tempo ausentes da escrita da história. Como uma guinada subjetiva (SARLO, 2007), coincidiu com uma revolução dentro dos chamados estudos culturais e se apropriou da história oral e do testemunho. Deu-se voz às experiências vividas e portanto, às narrativas de memória. Dentro da chamada história cultural, mulheres, negros e desvalidos, emergiram como protagonistas na história escrita, fazendo nascer uma historiografia renovada com influência de vários outros campos disciplinares. Da minha pesquisa de mestrado, um material rico sobre a memória e história dos encontros feministas. Plurais, reuniam mulheres de diferentes origens de classe, raça, sexualidade, instrução e crença. “Basta um olhar para esses encontros e lá se vão as tentativas de construir o esteriótipo da feminista, de determinar uma ideologia de classe, de identificar um comportamento típico ou uma única raiz cultural desses movimentos” (FERREIRA; BONAN, 2004, p. 75). Movimentos dentro de movimentos, como dizem as autoras. Em um mesmo encontro, a partilha e a experienciação, a catarse e descoberta pessoal, a luta comum.

[Os encontros] não têm formato de congresso ou de assembleia, com pauta fixa, determinada, imposta ao conjunto das mulheres. Os mais variados desejos, necessidades e vontades podem se transformar em oficinas, grupos de trabalho, painéis, rituais, alvoradas ou marchas: a iniciativa está nas mãos das participantes; os critérios de legitimidade são a valorização da diversidade, a não discriminação, o respeito à autonomia e a abertura às expressões das outras. (...) Para as mulheres que a eles comparecem a cada dois ou três anos, os encontros podem ser muitas coisas: fóruns, tribunas, exercícios, catarse, criação, produção do conhecimento, autoconhecimento e reconhecimento, confabulação, descoberta, toque, retoque, reflexão, provocação, festa, contemplação, intercâmbio, encenação, expressão verbal, corporal e artística de energias intelectuais, políticas e afetivas (Idem).

3

Respectivamente o Grupo Feminista Maria Mulher (1979), a Associação Paraibana dos Amigos da Natureza (1979) e o Grupo Nós Também (1978).

Angela Maria Arruda, professora recém-aposentada da UFRJ, ex-presa política, tendo passado pelo exílio no Chile e na França, foi uma das pioneiras do Grupo de Mulheres de Campina Grande, fundado em 1982. Campina Grande, cidade interiorana da Paraíba, sediava a esse momento o campus II da Universidade Federal da Paraíba e era campus sede da então Universidade Regional do Nordeste. Chegada com uma leva de professoras/es de fora do Estado para compor os quadros dessas instituições, foram muitas as trocas e as ebulições na nova estadia. A luta pelos direitos das ditas minorias estavam ascendendo, neles, o cenário para o somatório de forças e a atuação comum. Emergiram trabalhos e apoios ao movimento de luta pela moradia, movimento de trabalhadores/as rurais, movimento de mulheres... intensas interlocuções entre a academia e a periferia. O movimento feminista campinense representado então no Grupo de Mulheres e no posterior Grupo Raízes, organizaram a ida ao 8º Encontro Nacional Feminista, realizado em Petropólis-RJ. Sobre esse encontro, relata Angela Arruda:

O encontro mostrou que a política não se faz somente nos lugares ‘oficiais’ – parlamento, instituições etc. Política se faz no cotidiano, em todo lugar onde o poder se exerce, em qualquer oportunidade em que pessoas se juntam para discutí-lo visando a transformá-lo. (...) Fizemos política no Encontro sim, mas não pelas vias tradicionais, nem na forma convencional. (...) Fizemos política no feminino (Depoimento colhido em: FERREIRA; BONAN, 2004, p. 103).

Lembra ainda Soraia Jordão:

Foi em 86 que a gente já foi pro primeiro encontro feminista em Petrópolis. Fomos de ônibus, já organizamos, já fizemos pedágio, já fizemos um monte de coisa e já participamos desse encontro feminista. Aí pronto, do primeiro encontro feminista não tem volta. Não tem volta! Aí depois desse encontro feminista, foi só se desdobrando e chegando porque fica no sangue mesmo, aí teve muito retorno, fizemos algumas discussões depois do encontro feminista e também paralelo a isso estava também acontecendo as discussões das delegacias e do PAISMC (Soraia Jordão em entrevista cedida à autora em: 15 ago. 2014).

Soraia Jordão Almeida é atual secretária executiva da Cunhã Coletivo Feminista, ONG fundada em João Pessoa em 1990. Foi integrante do Grupo Raízes, aluna de

Angela Arruda nas disciplinas de Psicologia Social, na URNE. Feminista histórica, lembra desse encontro feminista com muita emoção, em um reencontro consigo:

Menina, eu lembro dessa cena de mim: a gente parou num canto para fazer xixi, tomar água e eu fui no banheiro, me olhei no espelho, eu disse: ‘Mudei’. Sabe você entrando no banheiro, passa no espelho e diz assim: alguma coisa aconteceu! Mudei no encontro feminista, voltei outra pessoa. E eram encontros em que discutíamos muito, eu achava fantástico, pena que hoje não tenha mais (Soraia Jordão em entrevista cedida à autora em: 22 mai. 2015 ).

Os encontros permitiam a troca de contatos, materiais de formação e a reformulação de subjetividades com o uso das chamadas metodologias feministas. Como pontua Carmen Silva (2010), as organizações e movimentos feministas têm como ponto substancial de suas ações, a prática educativa que tem como desafio contribuir com a formação de mulheres – entendidas como construção cultural – para a ação política transformadora de si mesmas e do mundo. Quebrando dualismos e intensificando uma relação entre corpo e subjetividade, o feminismo desfez amarras em uma luta constante por emancipação. Dos 13 encontros nacionais, 5 foram realizados no Nordeste. Sobre o 9º realizado em Garanhuns-PE, Angela Arruda cita:

Fomos para o encontro de Garanhuns, foi um ônibus cheio, fundamentalmente as mulheres da periferia que não tinham como se transportar e foi muito intenso porque elas participaram ativamente de todas as atividades, das oficinas em que você se expressa, atividades políticas, enfim, elas ficaram encantadas. Eu lembro de Dona Maria, uma figura já de uma certa idade, muito engraçada, muito ativa e ela: ‘Ah minha filha, não quero mais ir embora daqui não, eu queria ficar aqui, tem tudo, a cama feita, a comida pronta, todo mundo fala com a gente, a gente descobriu que a gente também é gente’. Menina, aquilo foi tão forte para mim! (Angela Arruda em entrevista cedida à autora em: 22 mai. 2015).

“Espaços públicos alternativos, nos quais as mulheres reinventam o jogo político da interação democrática e manufaturam teias de sociabilidade e identidades negociadas, constroem as novas agendas políticas e culturais e as disponibilizam para o mundo” (FERREIRA; BONAN, 2004, p. 76), os encontros nacionais feministas configuraram-se como lócus de evocação de memórias e afetos potentes. Espaços de

sociabilidade e de trocas políticas no feminino, refizeram identidades e marcaram a trajetória do movimento.

1.0. Integrantes da Cunhã Coletivo Feminista e colegas militantes no 11º Encontro Nacional Feminista, realizado em Caldas Novas-GO (1991). Arquivo da Cunhã Coletivo Feminista.

No que tange ao feminismo na Paraíba, o 13º encontro deixou frutos sólidos, dando-o visibilidade. Realizado na cidade de João Pessoa sob a coordenação da Cunhã Coletivo Feminista, Centro da Mulher 8 de Março e parcerias, levou mais de 800 mulheres às dependências do Hotel Tambaú na Orla de Cabo Branco. Desse encontro, a certeza de que as discussões se pluralizavam, exigindo demandas outras que se intensificaram na alvorada do novo século. Ana Adelaide Peixoto, uma das sóciofundadoras da ONG Cunhã comenta acerca das tensões que imergiram durante o evento:

A polêmica maior ficou por conta do ‘homem não entra’, limite acordado pelas instâncias do encontro, por acreditar que esse momento era exclusivo das mulheres. Concordo que à primeira vista, a não entrada dos homens parece preconceito, gueto, seita. Mas as razões do veto têm mais a ver com intimidade do que com machismo às avessas, como fizeram crer alguns jornalistas (Depoimento colhido em: FERREIRA; BONAN, 2004, p. 103).

Disso vê-se a pauta da transexualidade e da desnaturalização da categoria mulher intensificadas, ocasionando tensões no movimento. Marcas da pluralidade de ideias, origens e configurações. Nesse sentido, o feminismo adentrou os anos 2000 sob a pulverização de eventos e encontros seccionados abarcando suas mais diferentes vertentes e que logo se encontra também com o feminismo de Estado, pulverizado a partir da chegada da esquerda petista à presidência.

2.0. 13º Encontro Nacional Feminista, realizado em João Pessoa-PB (2000). Arquivo da Cunhã Coletivo Feminista.

Percebe-se a trajetória histórica do feminismo, suas tensões e filiações representadas nos encontros nacionais. Espaços de contribuição para a consolidação do movimento nacional e regional, de formação e deformação de certezas construídas sobre si e sobre as outras. Nesse âmago, o feminismo tem nesses encontros grandes marcos. Com destaque aqui para o feminismo paraibano. São assim, encontros dentro de encontros. Movimentos dentro do movimento.

FONTES SOBREIRA, Dayane Nascimento. Angela Maria Silva Arruda. Entrevista concedida à autora em 15 e 22 de maio de 2015 (4h e 22min). ______. Soraia Jordão Almeida. Entrevista concedida à autora em 15 de agosto de 2014 (43min). ______. Soraia Jordão Almeida. Entrevista concedida à autora em 22 de maio de 2015 (1h e 43min).

REFERÊNCIAS CAMURÇA, Silvia; SILVA, Carmen. Feminismo e movimento de mulheres. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010. FERREIRA, Claudia; BONAN, Claudia. Mulheres e movimentos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Rastros de tragédia: movimentos sociais na Paraíba (1964-1980). Textos UFPB/NDHIR, n. 1, ago. 1983. Arquivo documental do NDHIR / GT Indústria e Trabalho. (Mimeo.). SILVA, Carmen. Os sentidos da ação educativa no feminismo. In: ______. (org.). Experiências em pedagogia feminista. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, 2010. RAGO, Luzia Margareth. Os feminismos no Brasil: dos ‘anos de chumbo’ à era global. Labrys – Revista de Estudos Feministas, Brasília/Montreal/Paris, n. 03, 2003. Disponível em: . Acesso: 15 jul. 2014. ______. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções de subjetividade. Prefácio de Márcio Seligmann-Silva. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2013.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

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