Os ensinamentos de Viollet-le-Duc nos critérios de restauro e na arquitetura doméstica em António do Couto Abreu

May 27, 2017 | Autor: Teresa Neto | Categoria: Architecture, Architectural History, Architectural Theory
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Os ensinamentos de Viollet-le-Duc nos critérios de restauro e na arquitetura doméstica em António do Couto Abreu Teresa Neto Mestranda em Arquitetura, Instituto Superior Técnico – Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, [email protected] RESUMO: Em 1907, António do Couto Abreu ganhava o prémio Valmor com a casa Empis, na Av. Duque de Loulé. Conhecido na sua faceta de restaurador, onde se destaca a direção dos trabalhos na Sé de Lisboa entre 1911 e 1944, tem, contudo, todo o campo da produção da arquitetura doméstica carente de análise crítica. Discípulo de Ventura Terra, com quem trabalhou no Palácio das Cortes, era, igualmente próximo de Adães Bermudes, tendo realizado em comum o monumento ao Marquês de Pombal. Estabelece-se como objetivo avaliar os ensinamentos de Viollet-le-Duc, absorvidos por este arquiteto a nível da arquitetura doméstica, quando em Portugal se estabelecia a discussão em torno da “Casa Portuguesa”. PALAVRAS-CHAVE: Viollet-le-Duc; arquitetura doméstica; funcionalidade; ornamento. ABSTRACT: In 1907, António do Couto Abreu was awarded the Valmor prize for the house Empis, in the Duque de Loulé Av. Widely known for his efforts in Restoration, particularly for the works in the Lisbon Cathedral between 1911 and 1944. However, his production on the field of domestic architecture lacks critical analysis. Disciple of Ventura Terra, with whom he worked for in Palácio das Cortes; he was equally proximate with Adães Bermudes, working together for the monument of Marquis of Pombal. The objective established is to evaluate the teachings of Viollet-le-Duc, absorbed by this architect in regards of domestic architecture, when in Portugal was established a discussion around the “Portuguese House”. KEY WORDS: Viollet-le-Duc, domestic architecture, functionality, ornament.

PROPÓSITO Os ensinamentos e o prestígio de Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879) cedo foram reconhecidos em Portugal, com a nomeação do distincto architecto francez como académico de mérito junto da Academia Real de Belas Artes de Lisboa. A distinção foi registada em ata da conferência geral, daquela agremiação, de 23 de janeiro de 1863 [1]. Viollet terá sido ainda convidado a contribuir para a reforma do ensino na Academia, ao mesmo tempo que lhe era solicitada autorização para traduzir, em língua portuguesa, os seus Entretiens sur l’Architecture, coincidente com o ano de início de publicação [2]. Gorada a edição portuguesa dos Entretiens, a obra teórica do arquiteto não deixa de penetrar em Portugal no francês de origem, destacando-se, sobretudo o Dictionnaire raisonné de l’architecture, nos seus vários volumes publicados entre 1854 e 1868. Contudo, se a definição do termo “restauro” e a atitude face aos monumentos históricos protagonizadas por Viollet rapidamente começam a ser ventiladas entre nós, os seus preceitos no campo da arquitetura habitacional, segundo os desafios da época contemporânea irão demorar um pouco mais a ser interiorizados. Perante um paupérrimo panorama nacional a nível de formação arquitetónica e

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mesmo do reconhecimento da importância e do papel do arquiteto na sociedade, caberá àqueles que tiveram o privilégio de fazer a sua formação em Paris, um contacto mais estreito com os ensinamentos de Viollet, proporcionando um rasgar de horizontes no caminho da modernidade. Miguel Ventura Terra (1866-1919) será um desses arquitetos, cujo modelo “beauxartiano” praticado surge impregnado de alguns conceitos do mestre francês. Aliás, num dos raros testemunhos de opinião prestados por este arquiteto a um jornal de Lisboa, os Entretiens são por ele citados a propósito da discussão então instalada sobre a Casa Portuguesa [3]. Mas será um seu discípulo, António do Couto Abreu (1874-1946) a protagonizar uma interessante absorção do pensamento de Viollet-le-Duc, tanto a nível do restauro dos monumentos nacionais, como a nível da produção da arquitetura doméstica, sobretudo numa primeira fase da sua carreira e antes desta ser tomada, quase na totalidade, pela atividade de restaurador. Posto que esta sua faceta sobre as pré-existências monumentais tem merecido já atenção crítica, reserva-se uma maior ênfase na avaliação dos projetos executados de raiz, no domínio habitacional e industrial.

ENTRE OS ESTALEIROS DE SÃO BENTO E DA SÉ DE LISBOA Relação com Ventura Terra Após ter completado o Curso Geral de Desenho na ESBAL, e ainda na qualidade de aluno no Curso Especial de Arquitetura Civil, Couto vai ingressar no quadro do Ministério das Obras Públicas como desenhador, em 1896 [4]. Nessa condição, é chamado por Ventura Terra para colaborar na remodelação do Edifício das Cortes. Aí fará o seu tirocínio como arquiteto entre 1900 e 1902. Esta relação profissional foi sem dúvida crucial para o desenvolvimento da carreira do jovem António do Couto Abreu, tendo Ventura Terra lhe conferido um honroso atestado de competência técnica e artística. O responsável pelo grande estaleiro de São Bento cedo pugnou por um espírito de classe, não só ajudando a formar jovens arquitetos, como também estimulou o associativismo destes profissionais, tendo em 1902 ajudado a fundar a Sociedade dos Architectos Portugueses, assumindo a vice-presidência. Depois da sua passagem pela obra das Cortes, António do Couto, então arquiteto de 3ª classe, foi colocado na 1ª Direção de Obras Públicas do Distrito de Lisboa por despacho de 30 de julho de 1903. Dois anos depois, terá estado envolvido numa intervenção levada a cabo na Basílica de Mafra [5]. Mas será o ano de 1911 a constituir um importante marco na sua carreira, enquanto arquiteto restaurador, com a nomeação para assumir a liderança dos trabalhos na Sé de Lisboa, depois da morte do engenheiro Augusto Fuschini. Não são claros os contornos da sua escolha por parte do governo, quando a Comissão de Monumentos, do Conselho de Arte e Arqueologia, da região de Lisboa, havia indicado o nome de Adães Bermudes para suceder a Fuschini [6]. Terá Ventura Terra, na altura Presidente da Comissão de Monumentos, e prestigiado vereador da Câmara de Lisboa, influenciado na indigitação do jovem António do Couto, a 16 de agosto, para dirigir a polémica obra de restauro da catedral de Lisboa? Pedia-se uma alteração de rumo nos critérios de restauro praticados pelo defunto engenheiro, tendo Ventura Terra promovido uma visita dos membros da Comissão ao monumento a fim de avaliar a situação. Apesar de algum mal-estar inicial demonstrado pelo facto do governo ter ignorado a decisão maioritária da Comissão, quanto à indicação do arquiteto para a direção da obra, rapidamente os membros deste novo órgão do aparelho de salvaguarda patrimonial republicano, aceitam a figura de António do Couto. Nele depositam confiança para protagonizar uma modificação de atitude, menos inventiva, mais “séria” baseada na pesquisa arqueológica de elementos para suportar uma reconstituição primitiva, como José de Figueiredo advoga, em entrevista, um ano depois da

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nomeação do arquiteto. A unidade de estilo assumida por António do Couto vai ao encontro do pensamento de Viollet-Le-Duc e pretende ver o monumento como uma unidade orgânica no seu todo, a fim de fundamentar o seu programa de restauro [7].

Colaboração com Adães Bermudes Ambos antigos alunos casapianos, a amizade entre Couto Abreu e Adães Bermudes parece não ter saído beliscada do episódio da escolha do arquiteto para o restauro da Sé de Lisboa. Aparecem a colaborar em concursos públicos, tais como o promovido pela Câmara Municipal de Lisboa para o Palácio de Exposições e Festas [8] e o projeto do Monumento ao Marquês de Pombal, ambos em 1914. Neste último, em conjunto com o escultor Francisco dos Santos, o trio saiu vencedor do concurso onde participaram catorze maquetes, tendo Marques da Silva alcançado o segundo lugar, num ambiente marcada pelo “ressurgimento da arte arquitectónica e escultural” [9]. Segundo a memória descritiva do projeto vencedor, os seus autores afirmam ter adotado “o estilo e os emblemas da época pombalina, vazando-os, porém em moldes menos clássicos e mais naturalistas” [10]. Parece, pois, ter constituído uma renovação, no quadro dos monumentos públicos celebrativos nacionais, esta parceria de arquitetos e escultor, conforme uma receita depois muito utilizada.

PROJETOS DE HABITAÇÃO: A MORADIA FAMILIAR E O PRÉDIO DE RENDIMENTO Modelos de ‘modernidade’ No final do século XIX, as modernas necessidades urbanas, face aos condicionalismos da sociedade de então, conduziram a uma expansão planeada da cidade, induzindo o aparecimento de novas tipologias. Grandes armazéns comerciais, gares de comboios, hotéis, salas de espetáculo (teatros e óperas), bibliotecas, grandes pavilhões de exposição de produtos industriais e edifícios de habitação unifamiliares e multifamiliares surgem num contexto urbano, sujeitos a novas realidades sociais e tecnológicas. Como o próprio Viollet-le-Duc aponta nos seus Entretiens sur l’Architecture, até ao séc. XVI cada casa em França estava ocupada por uma família. O novo propósito de edifício multifamiliar será desenvolvido ao longo dos séculos seguintes, embora seja questionável se os requisitos para estes edifícios tenham sido cumpridos satisfatoriamente. Para o fazer, segundo o autor, torna-se estritamente necessário abandonar a rotina e as tradições estéticas anteriores. Os requerimentos da vida Moderna aumentavam a complexidade do edifício, sendo necessário fazer uso das novas tecnologias de modo a resolver os problemas técnicos de ventilação, iluminação, controlo da temperatura [11]. Em Portugal, no início do novo século assiste-se ao desfasamento entre a linguagem arquitetónica e as possibilidades técnicas oferecidas, onde a tradição de utilizar materiais nobres e a elaboração decorativa seguem tradições românticas e revivalistas importadas de outros locais e tempos. Muitos dos novos processos construtivos são ocultos, facto também condenado por Viollet, numa aparente submissão da técnica à tradição arquitetónica historicista. Contudo, é devido destacar os primeiros esforços de contracorrente, onde se começa a introduzir inovações de forma gradual. Curiosamente, a renovação vai chegar segundo duas atitudes muito distintas, ambas definidas como modernas por Pedro Vieira de Almeida [12], protagonizadas por dois arquitetos formados no estrangeiro: o já citado Miguel Ventura Terra e Raul Lino (1879-1974), discípulo de Karl Albrech Haupt, na Escola Técnica de Hannover. Questiona-se Lisboa Ÿ Portugal Ÿ 20-21 Novembro 2014

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um modelo de “Casa Portuguesa”, mas sobretudo procura-se uma resposta para a tal “estrutura habitacional moderna”, ao qual Ventura Terra responde com um modelo ‘progressista’ que terá no palacete Henrique Mendonça talvez um dos melhores exemplos. Terminado em 1908, coincide com a construção da casa do Cipreste, moradia própria que Lino projetara e fazia construir para a sua família em Sintra. As zonas de fresco proporcionadas pelo alpendre, a utilização do azulejo, ou a modelação da luz pelo emprego de gelosias, por parte de Lino, numa aceção ‘culturalista’ contrastavam com o moderno equipamento térmico encomendado em Paris por Terra, para a casa Mendonça [13]. Mas Ventura Terra ganhava a Lino em despiques diretos, como no concurso para o Pavilhão de Paris, em 1900, ou nos prémios Valmor recebidos, em 1903 (relativo à sua moradia própria) 1906 (palacete Valmor), 1909 (pelo citado palacete Mendonça) e 1911 (casa Quartim), enquanto o autor de A nossa Casa (1918) apenas receberia esta distinção em 1930. O prémio Valmor instituído em 1902 por Fausto Queirós Guedes, visconde de Valmor, destinava-se a premiar o “mais belo prédio ou casa (...) com a condição” deste ter “um estilo Arquitectónico, Clássico, Grego ou Romano, Romano-Gótico ou Renascença, ou algum tipo artístico português, enfim um estilo digno de uma cidade civilizada”. Sujeitas ao gosto da clientela burguesa da época, existem tentativas de inovação formal nos edifícios algo superficiais e fachadistas, como os citados projetos de Ventura Terra. A fórmula encontrada por Terra será ensaiada por António do Couto Abreu e os seus esforços, logo, saem compensados, conquistando o prestigiado prémio em 1907, com a moradia projetada para Ernesto Empis, e ainda uma Menção Honrosa, dois anos depois, pela Casa Henrique Sena, um edifício na Rua Tomás Ribeiro; ambos demolidos em 1954. Expressões plásticas e opções técnicas: a Casa Empis, 1907 Foi Adães Bermudes o autor do texto apreciativo da Casa Empis, publicado na revista Arquitectura Portuguesa, em março de 1908. Sobretudo reconhecido pelo facto de ter sido o primeiro prémio Valmor demolido, este palacete no gaveto da Avenida Duque de Loulé é ainda referência pela decoração da fachada principal onde impera a importação de modelos franceses, “da época de Francisco I, de que são exemplos o Castello de Blois, a casa de Diana de Poitiers, etc.” [14], temperados com alguns ornamentos de inspiração neomanuelina Contudo, é mais interessante estudar a fachada voltada para o jardim, onde uma decoração mais depurada, focada no tratamento do vão das janelas [15] se relaciona com a estrutura de ferro e vidro ao longo da mesma, culminando na garagem e outros espaços de arrumos. Esta área de transição entre o interior da casa e o exterior, com o jardim, dialoga ainda com o corredor em U que organiza os espaços sociais, privados e funcionais da casa – tal como professado por Viollet-leDuc [16]. As áreas funcionais estão separadas por motivos funcionais e de segurança, onde a comunicação é imediata entre a cozinha e a sala de jantar. O corredor permite o acesso direto às diferentes secções da casa, embora as divisões sociais permaneçam ligadas tradicionalmente. O acesso vertical encontra-se descentralizado, desprovido de monumentalidade, focado no seu propósito funcional. Como é possível observar, o arquiteto poderia facilmente ter optado por uma grandiosa escadaria diante do foyer de entrada, devendo-se considerar esta escolha como totalmente deliberada, num esforço de funcionalizar o acesso, retirando-lhe o valor de monumentalidade dos palacetes historicistas do passado. Os valores matriciais desta residência – utilização de materiais novos, como o ferro e vidro; acoplamento funcional dos espaços, abandono da simetria, corredor funcional de distribuição 358

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dos espaços – irão permanecer com o Arquiteto, sendo passíveis de identificar nos seus outros trabalhos. ‘A Casa Portuguesa, com inspiração Italiana’ - Palacete José Maria Posser de Andrade, 1913 A já mencionada discussão em torno da “Casa Portuguesa” tinha o seu palco privilegiado nas revistas do meio, como a Construção Moderna – dedicando uma rubrica recorrente ao assunto – e a Architectura Portugueza, onde o autor Mello de Matos aproveita um projeto de Couto Abreu para discorrer sobre o assunto. Citando Abel Botelho e Rocha Peixoto ao “negarem a possibilidade de se criar uma estilização para a casa portuguesa”, sublinha a importância da renascença italiana, entre outros movimentos artísticos, para resolver a questão, dando como exemplo a atitude de José Maria Posser de Andrade que, assim, “muito justificadamente quis esquecer o estúpido prolóquio”, mandando “fazer no Estoril um palacete em estilização italiana” [17]. As inovações a nível da planta assemelham-se à casa Empis, onde a edifício em ferradura se desenvolve em torno do jardim posterior, e o corredor ao longo da habitação distribui os espaços, agrupados funcionalmente. As necessidades específicas do programa, nomeadamente o contexto socioeconómico, levam a uma maior segregação das áreas de trabalho – por razões de segurança contra incêndios e ainda separação de residentes e empregados. Ainda segundo o esquema de casa “senhorial”, há sem dúvida uma estilização da arquitectura vernacular portuguesa, patente na fachada e nos pátios com arcarias, pese embora seja “o estilo italiano que o exigia e também a lógica do clima do Estoril [18]. Muito provavelmente devido ao gosto do proprietário, os trabalhos de decoração são uma parte essencial deste projeto. As opções enunciadas por Couto remetem para outro dos escritos de Violle-le-Duc: De la décoration appliquée aux édifices, de 1880, onde o francês expressa a necessidade de integrar a decoração com a arquitetura, de modo a não perder a unidade [19]. O ornamento pode e deve existir, sem ocultar a arquitectura [20], devendo esta ser adequada à tipologia e subordinada à função [21]. Com efeito, na casa Posser de Andrade, regista-se uma coordenação precisa entre o arquiteto e o escultor Francisco dos Santos, responsável pela execução dos motivos decorativos, entre “conchas, cabeças de creanças com festões nos fechos dos arcos e sob as impostas das janelas” [22]. Mas se esta articulação pode ser facilmente justificada pela amizade e camaradagem que uniam estes dois artistas desde os tempos da Casa Pia, favorecida, então, pelo triunfo no concurso para o monumento ao Marquês de Pombal, o planeamento com o pintor Benvindo Ceia, autor dos frisos da sala de jantar, é igualmente bem conseguido. Viollet reforça ainda a importância do arquiteto coordenar e incorporar as soluções técnicas no projeto – neste caso, Couto Abreu recorreu a firmas portuguesas, inglesas e francesas para assegurar a total integração de ferragens, instalações elétricas e sanitárias. Na sala de jantar, o arquiteto optou pelo uso das vigas do pavimento superior em ferro à vista, algo também perfilhado pelo teórico francês. Regista-se, ainda, uma incorporação dos trabalhos de carpintaria, onde “na sala de jantar, tanto o grande móvel do topo, como o tecto, lambriz, etc., são de madeira de castanho. Nesta sala assim como nos quartos de cama e outras dependências, os móveis taes como armários, gavetões, etc., fazem parte da construção da casa” [23]. Este modo de integração aprendeu-o Couto, por certo, no Palácio das Cortes, com o seu mestre que tem outros belíssimos exemplos, como a recém-restaurada capela privativa da rainha no Palácio da Ajuda.

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A integração pensada entre o projeto arquitetónico e o programa decorativo é igualmente bem conseguida no edifício da Travessa das Águas Livres às Amoreiras, de 1913. Um dos seus proprietários, o industrial da seda Sr. Albino Ferreira, “gosta também de auxiliar a arte em todas as suas manifestações, e por isso, chamou para lhe traduzirem em obra o seu pensamento, artistas como António do Couto e Benvindo Ceia” [24]. Com efeito, a característica mais interessante deste projeto, onde as exigências de um prédio de rendimento se colocam, é a pintura no tecto do vão da escada principal, bem implantada, junto à garagem numa das extremidades do edifício em cotovelo. Construção realizada a partir de uma estrutura préexistente pombalina [25], tomou-se o rés-do-chão e o primeiro andar para arrendamento, reservando-se o segundo andar para os proprietários e família. Com alguns recursos de ornamento ao gosto francês, bastante requisitados por Ventura Terra, como o grande janelão devidamente emoldurado a marcar a entrada principal, ou apenas a conferir ritmo no alçado, Couto vai definido a sua marca no projeto de habitação burguesa. São ainda exemplo, a casa do próprio arquiteto, na Defensores de Chaves, a qual não deixava de seguir “todos os mais modernos processos de construção” [26] e a casa José Júlio Leite Lage, na rua Pedro Nunes “uma bela vivenda, onde se atenderam todas as exigências do moderno conforto e higiene” [27]. Contudo o recurso ao ornamento estilizado, utilizado nos seus projetos, tem a maneabilidade de não seguir uma linguagem única e de procurar, como Viollet-le-Duc defendia, a adaptação da gramática decorativa à natureza do edifício e à sua envolvente [28]. Como exemplo pode-se apontar a Casa da Calçada, em Cinfães, onde a torre da capela de trejeitos românicos, talvez inspirados na demolida torre lanterna da Sé de Lisboa, se coaduna com a arquitetura medieval da região. Enquanto a arcaria cega e as cornijas utilizadas na galeria de união do pequeno templo à casa solarenga parecem evocar o santuário de Santa Luzia projetado pelo seu mestre, em Viana do Castelo.

ARQUITECTURA INDUSTRIAL EFÉMERA – PAVILHÃO PANAMÁPACÍFICO, 1915 Um dos projetos mais interessantes de Couto Abreu na procura da harmonização entre uma estrutura funcional, segundo a utilização de modernos materiais e uma carga ornamental com simbolismo de referência é, sem dúvida, o Pavilhão Português para a Exposição PanamáPacífico, a realizar-se em São Francisco, em 1915. Após um moroso processo de instituição do comissariado, Melo de Matos, Diretor-geral interino do Comércio e Indústria vai elaborar orçamentos e “escolher o arquitecto do serviço do estado que deveria executar o projecto do pavilhão, já que não havia tempo nem verba para ser aberto concurso. A escolha caiu no arquitecto Snr. António do Couto, que foi requisitado para tal fim á Direcção Geral de Obras Públicas e Minas, precedendo despacho ministerial” [29]. O ‘estylo’ do pavilhão havia já sido sugerido pelo diplomata português José Batalha de Freitas, “uma copia da parte do Convento de Christo em Thomar, um dos seus lindos claustros como centro do edifício (...)”. Mais tarde, o comissariado irá deliberar “que o pavilhão deveria ser em estilo manuelino com motivos dos mais interessantes copiados dos nossos edifícios”. António do Couto Abreu procura executar a visão do ministro e comissariado, elaborando um anteprojeto, em conformidade com o orçamento delineado em outubro de 1913, com um custo total de 70.000 escudos. Este primeiro

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projeto parece evocar as igrejas do nosso gótico mendicante [30], embora ricamente ornamentado segundo a estética manuelina – conforme pedido. Questões financeiras levam à suspensão da iniciativa. Decide-se então reduzir os custos com um novo projeto, apresentando o arquiteto, desta vez, um pavilhão marcado por um corpo central oitavado abrindo em duas galerias corridas com as suas lógias, a fazer lembrar o Palácio de Monserrate em Sintra e o Hotel Palace, no Bussaco. A copiosa ornamentação, com mais de 600 motivos modelados em staff, reproduzidos dos maiores monumentos de Portugal da época dos descobrimentos, esteve a cargo dos escultores Costa Motta tio e sobrinho, colaboradores de António do Couto, também no restauro da Sé de Lisboa, servindo o claustro da catedral de estaleiro à produção dos elementos decorativos para o pavilhão.

Imagem 1. Perspectiva do primeiro anteprojeto e Alçado final do Pavilhão, 1913. Fonte: AHMOP.

O pavilhão “foi muito admirado na parte artística”, principalmente “pela sua arquitectura desconhecida”. De planimetria simples, com uma ossatura em ferro e painéis pré-fabricados, é possível discernir facilmente a estrutura volumétrica. Por se tratar de uma construção de cariz efémero, com propósitos representativos, é possível condescender à obrigatoriedade da carga ornamental, claramente servindo o propósito pretendido.

NOTA FINAL O protagonismo de António do Couto Abreu sobressai no perfilhamento do pensamento do mestre francês na sua dupla atividade de restaurador e projetista de raiz. A adoção das ideias violletianas em ambas as vertentes dá-se, muito provavelmente, por influência de Miguel Ventura Terra, de quem toma formação desde cedo. A filiação no modelo ‘progressista’ de Terra, em detrimento da conceção ‘culturalista’ de Raul Lino, no domínio da arquitetura doméstica, encontra paralelo no campo da Teoria do Restauro. Ambos futuros arquitetos do quadro da DGEMN, Couto e Lino assumem-se como contrários também neste campo, onde permanecem como os seguidores mais emblemáticos em Portugal, respetivamente, de Violletle-Duc e do grande contestatário ao restauro estilístico, o inglês John Ruskin.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] Academia Nacional de Belas Artes (ANBA), Índice das conferências gerais, ordinárias e extraordinárias, p.7, consultável no digitarq sob o código de referência: PT-ANBA-ANBA-F-002-00001_m0015.

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[2] FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no século XIX, volume II, Bertrand, Lisboa, 1966, p.416. [3] O Dia, 5 de Março 1903, “A cidade – uma palestra com Ventura Terra”. [4] FARIA, Alberto. A Colecção de Desenho Antigo da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa (1830-1935): tradição, formação e gusto, Dissertação de mestrado em Museologia e Museografia apresentada à Universidade de Lisboa, 2008, p.16. [5] Idem. [6] ANBA, Livro de Actas 1911-06-01/1931-10-24, Acta nº2, p. 4, consultável no digitarq sob o código de referência: PT-ANBA-ANBA-A-001-00018_m0014. [7] NETO, Maria João, Memória, Propaganda e Poder – O restauro dos monumentos nacionais (1929-1960), FAUP Publicações, 2001, p.219. [8] Idem. [9] Architectura Portugueza (AP), Abril 1914. [10] Idem. [11] VIOLLET-LE-DUC, Eugène, Entretiens sur l’Architecture, 1896. [12] ALMEIDA, Pedro Vieira de, História da Arte em Portugal – A Arquitectura Moderna, Publicações Alfa, Lisboa, 1986, p.73. [13] Sobre estes dois modelos veja-se Ana Tostões, “Arquitectura moderna e obra global a partir de 1900” in Arte Portuguesa: da Pré-História ao Século XX, direção Dalila Rodrigues, vol. 16, p. 15, Vila Nova de Gaia: Fubu Editores, 2009. [14] Construção Moderna (CM), ano VI, nº33, 1906, p.258. [15] RAMOS, Rui, A Casa Unifamiliar Burguesa na Arquitectura Portuguesa – Mudança e continuidade no espaço doméstico na primeira metade do século XX, Volume I, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura apresentada à Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2004. [16] VIOLLET-LE-DUC, Eugène, Entretiens sur l’Architecture, 1896. [17] AP, nº2, Fevereiro 1913, p.6. [18] Idem, p.7. [19] VIOLLET-LE-DUC, Eugène, De la décoration appliquée aux édificies, Librairie de l’art, Avenue de l’Ópera, 1880, p.2. [20] Idem, p.27. [21] Idem, p.38. [22] AP, Fevereiro 1913, p.7. [23] AP, Fevereiro 1913, p.8. [24] AP, Março 1913. [25] CM, 10 Novembro 1913. [26] CM, 19 Abril 1913. [27] CM, 10 setembro 1913. [28] VIOLLET-LE-DUC, Eugène, De la décoration appliquée aux édificies, Librairie de l’art, Avenue de l’Ópera, 1880, p.39. [29] Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP), Relatório Final do Comissariado da Exposição Internacional Panamá Pacífico, Manuel Roldán y Pego, 1919. [30] NETO, Teresa, “Projetar para expor coleções: os pavilhões de Portugal em Exposições Internacionais entre a Primeira República e o Estado Novo” in Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX – Perfis e Trânsitos, Editora Caleidoscópio, Lisboa, 2014, pp. 321-350.

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